por Luiz Fuganti
Estamos aqui fazendo uma abordagem do problema da educação que implica numa crítica radical, que tem como objeto uma desconstrução nos modos de vida humanos de investir num plano fora da natureza ou, ao menos, fora do próprio plano de imanência do desejo; fora, além ou sob o movimento que sustenta o próprio corpo, o tempo que sustenta o pensamento e o modo imediato como tempo e movimento se conservam, se acumulam, se concentram e se continuam a si mesmo nos seus processos de diferenciação. Esse plano de imanência é sistematicamente desinvestido do ponto de vista das maneiras humanas de existir, maneiras que acabam por desqualificar o plano mais essencial do real, que se produz a si mesmo e todas as coisas que decorrem disso. Nossa crítica radical incide sobre um plano suposto, necessária pelo modo de vida reativo do homem, incide sobre esses modos e maneiras de viver da humanidade que demandam um plano fora da natureza, ou mesmo dentro da natureza – mas diferente da natureza, de outra ordem , que seria esse plano transcendente de organização. Ficamos com a questão da educação para a potência a partir de um horizonte criativo, que seria desinvestir ou desconstruir esse plano exterior de referência do homem para liberar essa dimensão imanente da natureza de nós mesmos, nos modos de vida que levamos ou que implementamos. A educação para a potência seria simultaneamente uma desconstrução daquilo que nos separa dessa relação com a imanência – que a gente chama de imediato: imediato do tempo, do movimento, da diferença, da memória, do aprendizado, numa palavra, o imediato da experimentação. Implica numa desconstrução do que nos separa do imediato, do que faz com que a experiência seja apenas um consumo, uma troca, um suposto enriquecimento que, no fundo, é uma fraude. Ao mesmo tempo, essa crítica é como uma espécie de liberação das forças – que estariam investidas nesse plano supérfluo de organização – para inventar novas maneiras de experimentar, nas várias dimensões que atravessam a vida e os modos de vida humanos.
Sintetizamos isso através de 5 modalidades de experiência:
Experiência do Pensamento: A desconstrução de uma experiência do pensamento, de um investimento do pensamento que é capturado por esse plano transcendente e, ao mesmo tempo, a liberação de um pensamento enquanto pensa, enquanto acontece, o imediato do pensamento em nós, que faria com que a experiência do pensamento apreendesse a zona autônoma do próprio pensamento. E aqui se trata de uma questão radicalmente diferente do que se entende por autonomia. Não se trata de autonomia moral, racional, suposta liberdade kantiana, ou de acesso a um poder e um saber estabelecido, nem acesso as condições sociais dadas. Para gente isso não é autonomia, isso é a ligação da vida com um plano de referência que tutela a vida, gerando autonomia para essa vida e dando garantia dessa autonomia. A vida não precisa ser garantida de fora. Se quisermos autonomia, não precisamos pedir licença, nem ter reconhecimento social. Mas para isso precisamos conquistar essa dimensão do pensamento que é a dimensão do imediato. E aí, no pensamento encontrar a dimensão infinita dele mesmo. È o infinito que garante a autonomia, não é uma lei, o estado, uma forma democrática, uma lei humana. É nossa capacidade de entrar novamente em contato com esse infinito do pensamento. Não significa que vamos dissolver de modo misterioso no infinito. Existe uma finitude em nós, mas essa finitude não vem do nada, está ligada com outros elementos finitos que, por sua vez, tem um encadeamento infinito. Essa apreensão da finitude como perfeição é o que faz a gente se relacionar novamente com o infinito. Isso será trabalhado em todas as dimensões, não só com o pensamento, mas com a do corpo, a da diferença, da memória. Essa nova apreensão da finitude, não como morte ou algo imperfeito, ou uma degradação do infinito, mas como a própria perfeição do real. Essa finitude que nos liga a uma zona de acontecimento tal que nos põe em contato direto com a fonte inesgotável de si mesmo. Assim nosso pensamento finito se ligaria a uma zona de acontecimento infinito, uma fonte infinita do pensar, que nos sustentaria o tempo inteiro enquanto seres pensantes. Sem precisar de nenhuma referência acadêmica, científica, religiosa, moral, nenhum sistema de valores. O pensamento pode por ele mesmo pensar rigorosamente, sem ter nenhuma referência. Nisso que estamos investindo aqui. A conquista desse imediato do pensamento faz com que a gente mude de ideia a respeito de autonomia. Autonomia de pensamento não significa que o pensamento seja superior a outras regiões e que deveria dominá-las. Ao contrario.
Experiência do Corpo: nessa segunda modalidade, a experiência do corpo que vai ter esse mesmo tratamento crítico, que faz com que a gente apreenda os elementos que separam o corpo do que ele pode, que separa o movimento que se faz enquanto movimento e que se segmentariza o corpo. A critica a esse modo de segmentarizar o corpo, a um regime de corpo, a um regime de luz, essa desconstrução vai criar as condições para que o próprio movimento imediato do corpo apareça, se apresente e invente novas maneiras de se modificar ou de fazer variar esse movimento que constitui o corpo. Essa modalidade de experiência nos coloca nessa dupla postura: uma critica, que desconstrói o que captura ou separa o corpo do que ele pode e outra, afirmativa e criativa, que faz com que o movimento se apreenda novamente na dimensão imanente dele mesmo e gera uma linha de continuidade, uma religação com o infinito que o corpo perdeu. Uma retomada do infinito do corpo. Desse ponto de vista, podemos dizer que o corpo tem uma dimensão autônoma, radicalmente independente do pensamento e de outras dimensões. O corpo é o corpo. O pensamento é o pensamento. Nenhum é mais que o outro. Um é o que é e pode até o infinito. O outro é o que é e pode até o infinito. Têm uma dimensão de experimentação única, singular de cada uma, que não se compara nem estabelece uma condição de hierarquia. São zonas diferentes de acontecimento e essas zonas todas têm a sua perfeição.
Experiência da Seleção: que nos põe em contato com a diferença na própria existência, aquilo que faz a diferença, aquilo que seleciona em nós, aquilo que opera uma escolha. Essa dimensão tem também o seu aspecto crítico e criativo. O aspecto crítico é que nós ligamos a escolha a uma noção moral. Nós imaginamos que escolher só é possível a partir de um sujeito moral, responsável, que opera na própria consciência e que tem a ciência do bem e do mal, do verdadeiro e do enganador, do justo e do injusto, do útil e do nocivo. Desse modo haveria uma operação subjetiva que desdobra o desejo em três dimensões: um substrato de vontade, um desencadeamento de ações e uma finalidade da ação ou conseqüência da ação. O ser moral escolheria o bem e evitaria o mal, escolheria a verdade e evitaria o engano, escolheria a justiça e evitaria a injustiça, escolheria o útil e evitaria o nocivo. Isso é uma mediação das vidas tornadas impotentes. A escolha moral já é uma escolha impotente. Na verdade, não é uma escolha e sim uma escravidão. Supõe a captura de um desejo que já está separado do que pode. Devemos liberar o imediato dessa escolha que ocorre numa zona que chamamos de ética, que seria uma presença, e não uma consciência, do tempo e do movimento, na alternância e na conjugação do tempo e movimento em nós que operaria uma diferenciação, uma escolha, radicalmente distinta da moral, pois esta escolha não se dá mais entre um objeto e outro, entre o bem e o mal, entre o verdadeiro e o falso, entre o justo e o injusto, entre o útil e o nocivo. Ela se dá em qualquer relação, seja ela tida pelos seres morais, boa ou má, verdadeira ou falsa, justa ou injusta, útil ou nociva. Em qualquer relação, mesmo que tenha uma doença, uma impotência, uma injustiça, um engano, não importa; se a relação me atinge é porque tinha algo de necessário nela. É pela ótica do necessário e do relacional de cada relação que eu transmuto essa relação, de doença em saúde, de nociva em útil, de inimigo em aliado, etc, ou seja, não moralizar o acaso, a multiplicidade, o caos e as diferenças, mas aproveitar, em cada coisa que me chega, aquilo que tem de necessário. Naquilo que ela tem de necessário ela gera necessariamente uma afirmação de mim mesmo e não uma decomposição de mim mesmo. Esse necessário é o ser comum da relação, sem o que nem haveria relação e é por essa porta que eu começo operar uma transmutação, uma ética que não tem nada a ver mais com a exclusão de uma parte da natureza, como faz a moral. A moral exclui o mal, a doença… O ser ético aproveita do mal, da doença, da dor, do sofrimento. Ele sabe que a dor sempre tem um sentido alegre. A doença é uma provocação para o corpo e a mente alargar ainda mais a capacidade de experimentar. Sempre vê isso como uma oportunidade. Claro, aí entra a arte das doses, das distâncias, da prudência que permite experimentar mesmo nas zonas mais perigosas, com cuidado, para que a ousadia vá, de fato, mais longe. A prudência a serviço da ousadia e não o contrário. Assim como a paz a serviço de novas guerras. Guerras no sentido ativo, vivo, do combate da vida. Essa zona de experimentação da escolha, essa dimensão ética, da que faz a diferença em nós, retomaria uma outra zona de imanência de nós mesmos que se revezaria com a zona de imanência do pensamento e a do corpo. Pensamento, ética e estética. Nessa zona também há uma autonomia, um diferenciar que liga diretamente com uma continuidade intensiva e expressiva que nos põe em contato com a quarta modalidade.
Produção de Memória: A memória não mais como representação do passado, mas como função de futuro. Aquela que te dá direito ao futuro, que disponibiliza o tempo. Essa disponibilização do tempo, essa capacidade de se continuar a si mesmo e nesse processo de diferenciação que a ética nos insere, repetir o jogo da diferença, e não do mesmo. Isso é não só entrar em devir, mas num devir ativo, auto sustentável. Isso é fundamental. Quantas vezes não experimentamos maneiras interessantes, livres, vivas, intensas e logo as perdermos. Temos um insight, um vislumbre e vai embora. Não basta apenas encontrar essa zona do imediato, mas é preciso conquistar essa zona. Essa conquista implica na capacidade de produzir memória de futuro. É outro tipo de registro que se faz no próprio tempo. É o tempo que se registra nele mesmo, que se torna sujeito, e não uma consciência, assim como o movimento se torna sujeito. Existe um modo do movimento se registrar ou de gerar um plano contínuo dele mesmo. Nesse plano de continuidade existem duas maneiras da vida ativa continuar a ela mesma. Essas maneiras coexistem e são inseparáveis, mas são distintas. A primeira, uma continuidade intensiva de nós mesmos e a outra, uma continuidade expressiva de nós mesmos. Essa última chamamos de função de memória. É a linha imanente de continuidade que faz com que um processo desencadeie noutro, engendre outro e assim por diante. Há um auto engendramento das coisas. Essa linha de continuidade abstrata, mas inteiramente real, que chamando de memória. Memória bergsoniana, do livro Matéria e Memória (esse livro faz parte da bobliografia do curso) que compactua com a maneira que Nietsche interpreta o que é essencial e fundamental no homem, do que o distingue de outras modalidades de vida, que é a capacidade de dispor do tempo, o que ele chama de um animal que é capaz de prometer, de dispor do futuro. Essa continuidade do querer, da vontade… Um modo de querer que quer o que eu já quis, de novo e quero que esse querer continue. O que em mim se conserva, que faz com que eu apreenda a ideia de que algo em mim dura, mas ao mesmo tempo na duração esse algo se modifica. Então o que em mim se conserva, se diferencia, o que em mim quer voltar a processar essa diferenciação de mim mesmo, o que se continua, aí é necessariamente viabilizado na medida em que eu disponho do futuro. O modo de se continuar é essencial. Mas não é uma continuidade do estado, da moral, da razão, essa velha memória, que tem um centro de origem, um pai original, uma genealogia de um deus, um big bang da física. Aliás, esse mito da origem está em todas as ciências, na biologia molecular, na psicanálise, que é a mestra maior. Não tem nada a ver com a continuidade de uma memória central que formaria uma dinastia. É uma continuidade da capacidade de se diferenciar. É manutenção do inédito e do diferente como fundo de tudo na natureza. É até um paradoxo para quem está acostumado a analisar a continuidade do ponto de vista da consciência. Como já vimos em aulas anteriores, há uma autêntica continuidade assim como uma autêntica ruptura ou descontinuidade, do ponto de vista das quantidades intensivas e das qualidades expressivas, que forma aquilo que Deleuze Guatari chamam de plano de consistência. Há também uma falsa continuidade e falsa ruptura, uma ruptura significante, um corte significante ou uma continuidade formal, daquilo que Foucalt chama de memória de longa duração. Essa é uma continuidade do poder e do saber que integra poder, assim como a descontinuidade também é do poder. O poder corta, separa, para depois oferecer a união de novo. Ele desqualifica para oferecer a requalificação, ele destitui para institucionalizar ao seu modo, cria um critério de legitimação, de justificação, de verificação e de utilização de todas as práticas que atravessam a vida humana. Então você legitima, verifica, justifica os movimentos que atravessam o corpo, as ideias que atravessam o pensamento. Você disponibiliza dessa forma a partir de um plano de referência o modo desses elementos em sociedade efetuarem ou investirem nesse tipo de escolha, que é a escolha moral e criar uma ideia de responsabilidade radicalmente nociva, mortal para a vida. Esses que se enchem de arrogância ou de autoridade, ao falar que é necessário uma responsabilidade social, ou mesmo com as diferenças, com as multiplicidades, com a vida, sempre se fala da vida, o pior dos poderes jamais vai falar o que, de fato, é inconfessável para ele. O poder sempre opera de numa dupla maneira, de um lado ele desqualifica para qualificar, instiga violência –jamais diz isso – para oferecer segurança, de um lado mete medo e desconfiança para oferecer confiança e esperança , introjeta caos e confusão para oferecer uma clareza, e assim vai, é seu modo de operar, e a educação está totalmente alinhada com isso. Por isso é muito pouco dizer que a educação está errada, ela não está errada, está certíssima. Ela não foi feita para outra coisa, serve para separar a vida do que ela pode. Isso é o essencial, se não acessarmos essa dimensão vamos ficar sempre moralizando, ah, vocês estão fazendo errado, vocês não entendem, estão cegos, o verdadeiro caminho é esse. Nós não estamos falando de verdadeiro caminho, não tem verdadeiro caminho, a vida não precisa de verdadeiro caminho, a vida faz os caminhos necessários para ela, não precisa de modelo, desde que ela se ligue ao que ela pode.
Esse é nosso trabalho crítico. Não é dizer vamos mudar de sistema, de valores, não é fazer uma transformação de valores, mas uma transmutação de elemento que cria valor. Inserir de novo a vida no seu plano de forças, de potências e não dizer que a força e a potência precisam ser subordinadas a forma, que é o que fazem esses poderes mais democráticos e humanistas, inclusive, dizendo que é pela forma que o homem se salva, que se legitima, que se harmoniza, que funciona de modo benéfico, atrelado a um suposto bem comum. A forma é a primeira instituição da violência, o que gera a violência é justamente a forma que se imagina harmônica, pacífica, civilizatória. A forma é uma maneira de institucionalizar a violência. A violência só aparece quando uma força está separada do que pode, de alguma maneira é esmagada, se despreza e se desqualifica a instância própria de cada corpo, de cada pensamento, de cada movimento, de cada tempo. Ao desprezar e desqualificar, ao nadificar o tempo próprio, o movimento próprio de cada corpo, de cada desejo, necessariamente gera monstros dentro de si, gera o mal, a doença e isso vai se expressar de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde, do jeito mais torto possível. Aí o moralista vai dizer: -Viu? Tinha monstros sim, é por isso que precisa da lei e da forma para segurar o monstro!- Mas a forma, antes, já estava produzindo monstros. É como a questão do incesto. Dizem: -Ah, se a proibição do incesto está aí, é porque o incesto existe.- É essa inversão que se faz. Não se vê que é a proibição que gera a ideia de incesto, porque incesto não existe. A própria proibição que gera essa imagem. Não que ele não existe, existe numa zona, num certo modo de perceber a realidade. É sempre essa inversão que é operada, assim como você coloca o produto no lugar do produtor, põe o condicionado para determinar o condicionante, ao invés de partir direto da condição, apreender a condição para depois aí ver de que modo ela condiciona. Você pega o modelo da condição pelo condicionado, que ela de alguma maneira efetuou, e põe o efeito no lugar da causa, a imagem no lugar da força, a coisa no lugar da potência. A coisa, a imagem, o sujeito, o objeto, os signos, são efeitos de forças e potências.
É por isso que desdobramos tanto aqui a noção de experiência. Essa noção de experiência que atravessa as cinco modalidades: Experiência do pensamento, do movimento, da seleção, da memória e do aprendizado. É essa noção de experiência que nos põe em contato diretamente com esse imediato de cada modalidade, do pensamento, que é do tempo; do corpo, que é do movimento; da escolha, que é o imediato da diferença enquanto diferença; da memória, que é disposição do tempo e não a representação de um tempo que foi; e do aprendizado, que é apreender aquilo que aumenta a capacidade de criar-se a si mesmo, que não tem nada a ver com o aprendizado tradicional.
Esses imediatos todos é que nos gera uma condição de não ter mais que investir num plano superior- ou um plano transcendente de organização, um plano de referência- mas nos põe novamente ligados a essa capacidade de criar o próprio real, de criar as condições de experiência, de criar as condições existenciais. Só aí, para gente, existe liberdade. Liberdade não ter à disposição um campo de possibilidades, onde você é livre para fazer isso ou aquilo. Isso é muito pouco. A liberdade só acontece quando você não a diferencia mais de uma necessidade de efetuar a própria natureza, de fazer a diferença diferenciar. Nessa medida, a própria diferença, se diferenciando, não está sujeita a um campo de possibilidades, mas ela cria a possibilidade, ela movimenta, ela recria, a todo o momento, o campo do possível. Ela não se atrela ao campo do possível. O campo do possível é efeito desse acesso ao virtual, dessa religação com o virtual.
A ideia de experiência nos devolve essa maneira de nos por em contato com uma fonte que nos torna capazes de viver sem pedir licença, sem imitar, sem se identificar, sem fazer como, mas afirmando aquilo que há de necessário e inédito na existência. E como é impossível não haver o inédito, a gente precisa dispor dessa dimensão que nos faz inéditos e necessários a cada instante. O que faz a nossa vida uma missão real, algo que torna a nossa vida não apenas uma contingência, mas uma necessidade. A nossa vida não é um acaso – pode ser um acaso, se não a tomarmos nas próprias mãos. Mas eu posso fabricar o próprio destino, e aí ela se torna uma necessidade. A vida pode ser um mero acidente, mas posso fazer dela uma essência. Pode ser um mero devir aleatório, mas posso fazer disso a necessidade de um ser.
Vou falar um pouco, pois já desdobramos isso em outras aulas, da diferença de uma experiência extraordinária e uma ordinária. A experiência ordinária é aquela que é um mero enriquecimento, uma mera troca, um mero consumo de palavras, de discursos, de imagens, daquilo que se diz enriquecimento na experiência cotidiana que, na verdade, desemboca num consumo necessário de fantasmas e múmias, de coisas mortas. Quanto mais a gente consome isso, mais pesado a gente fica, mais a gente produz um passado que nos ancora na falta, num buraco e que demanda, aí sim, um referencial e uma referência. Esse tipo de experiência é uma fraude e usamos essa visão de experiência, em contraste com a experimentação extraordinária, que é um modo de experimentar raro que deve se tornar freqüente, e não importa o quão raro seja, deveria ser horizonte de cada momento de nossas vidas, em todas as nossas dimensões, seja pelo pensamento, pelo corpo, pela diferença, pela produção de continuidade. Esse modo de experimentar é aquele onde, de fato, a vida é tomada como um acontecimento, onde não há vida fora do acontecimento, nem fora da modificação e a modificação produz realidade. A modificação é real, não é uma troca qualquer, não é um faz de conta, não é uma metáfora, não é um fazer como. A modificação produz diferença, não só nas coisas como em mim. Na experiência que eu tenho, que é sempre em relação, algo se passa. Algo vai e algo vem ao mesmo tempo e isso faz com que eu entre em devir, que eu me torne outra coisa do que eu sou, mas eu não me torno o outro, nem imito o outro, nem me identifico com o outro, nem faço como o outro, ou como alguém. Na verdade eu me torno diferente de mim mesmo, esse que é o devir na relação, no encontro que eu faço. Dependendo do modo como eu sou no encontro, da qualidade que eu crio para encontrar as condições da experimentação, que eu posso modificar, dependendo dessas condições eu tenho o que eu mereço. Aliás, eu sempre tenho o que eu mereço, a justiça é imanente. Não existe deus, a moral, o homem para julgar o que é bom ou é mal. Até existe, mas é tudo por ficção e captura. O que realmente se passa é que eu acabo tendo o que eu mereço. Todos temos o que merecemos. Temos a sociedade que merecemos, o modo de vida que merecemos, segundo essa capacidade de ser: determinado de fora, das condições dadas ou de criar as próprias condições. Isso nos põe de novo naquela questão: existe o coitadinho? O miserável? O impotente? Existe, mas não sem ele ser cúmplice. Não sem algo nele que se deixa capturar. A vida tem potência. Senão essa visão piedosa que se tem sempre, que é preciso investir num sistema provedor para não deixar que a vida fraca, o coitadinho, o miserável, seja excluído. Precisamos incluí-lo. Essa visão reproduz a impotência em nome de uma outra ideia que seria dar autonomia. Dar autonomia coisa nenhuma, ao contrário, reproduz a dependência. A gente sabe que nenhum poder exerce no abstrato, ele se exerce sobre nossa própria energia, nossa própria potência, sobre nosso corpo, no nosso pensamento, sobre o uso que fazemos da linguagem, da sensibilidade. Essa sensibilidade, esse pensamento, o uso que faço da linguagem, que me atravessa, necessita que eu disponibilize algo de mim. Essa disponibilização é a minha cumplicidade. É bem diferente dizer culpa. Não se trata de dizer que a vida é culpada, mas trata de dizer que há uma conivência, uma cumplicidade e essa vida, separada do que pode, é cúmplice, pois na medida em que ela aceita e investe nesse poder, investe porque tem vantagens. Por mais que ela seja reprimida, ela tem vantagens, ela está ali porque ainda acredita que isso é um mal menor, em função de um mal maior que poderia advir se ela não investisse nesse modo de ser. É essa covardia que é necessário a gente provocar. Não para humilhar, para atacar, no sentido moral, no sentido de uma desqualificação, mas para sair desse lugar de vitimização e se tornar co-autor do destino. A cumplicidade se dá nesse modo de experimentar. É aí que a gente capta a zona de imanência da vida. É aí que a gente vai ver o imediato ou colocar a mediação no lugar do imediato, seja do ponto de vista do corpo, do pensamento, da diferença. Na verdade, é uma zona muito concreta, a zona do acontecimento. É aquilo que pode transformar o acontecimento num estado de coisa ou o que pode fazer do acontecimento a única fonte de potência e de atualização de força. O acontecimento, na verdade, é a fonte, não tem outra fonte, não é deus, nem o estado, nem a lei. A fonte é o modo de acontecer, é esse horizonte que atravessa qualquer vida, esse relacional de qualquer vida. Toda vida está em relação, necessariamente. Então, a qualidade desse relacional que nos atualiza, necessariamente é que faz com que a gente perca ou aumente a potência. Como a gente se efetua? A partir de uma necessidade imanente da própria diferença ou sendo preenchido de fora?
A questão da experiência, dessa dimensão extraordinária da experiência, faz com que o imediato salte e se ponha no lugar dos estados de coisas, seja nos estados de corpo, nos estados mentais, estados de época ou valores de época ou das determinações históricas, sociais e econômicas. O acontecimento nos põe novamente em contato com essa fonte, ele é a própria fonte. Por isso é preciso distinguir acontecimento de fato. Fato não é acontecimento. Fato já é o acontecimento efetuado, sob o ponto de vista de uma força. A mídia sempre produz fatos a partir do apoderamento, da apropriação de um acontecimento. São Paulo produziu o fato que é a instituição do cristianismo, ao se apoderar do acontecimento da morte de Jesus, e diz que Cristo morreu pelos nossos pecados. Isso é a produção de um fato, mas o acontecimento, a morte de Cristo, é múltiplo, tem múltiplos sentidos, más segundo São Paulo, um dos sentidos é esse. Cristo morreu pelos nossos pecados, porque eles se tornaram tantos e infinitos que o próprio credor deu o seu próprio filho para quitar essa divida impagável. Golpe de gênio que faz com que esse deus do amor que ama os homens piedosamente, na verdade, atrela os homens numa dependência ainda maior. Assim faz a história oficial, a história dos vencedores, de uma dinastia ou a mídia, sempre interpreta o acontecimento do ponto de vista daquilo que é necessário enquanto espelho, enquanto referência, modelo que te orienta como você deve opinar e pensar. O fato, na verdade, é o modo de se apropriar do acontecimento e que constitui um espelho, sem o qual não haveria reflexão nem referência. Quando a gente diz aqui que o acontecimento é aquilo que faz saltar a dimensão extraordinária da experiência, a gente não está chamando de acontecimento o fato. O fato já é um resultado, um acontecido, um vivido. O acontecimento a é a condição da própria vida, não há vida sem essa dimensão do acontecer e essa dimensão é inesgotável como os verbos nos seus modos infinitivos. Andar, há um inesgotável no andar – a minhoca anda, a terra anda, o homem anda, o cavalo anda, o carrapato, a girafa, não importa. Há uma pluralidade de andares para esse acontecimento andar. O andar é uma potência infinita de se modificar segundo essa singularidade andar. Essa potência infinita de se modificar se repete a cada acontecimento do andar, segundo a intensidade, a modalidade, que se entra nessa variação do andar. Acontecimento é essa dimensão abstrata, mas inteiramente real, do que faz o movimento mover, o pensamento pensar, a vida viver. Há uma causa imanente que é o próprio acontecer, que é uma abertura virtual e não uma possibilidade formal, uma região onde põe a vida em variação e, mais do que isso, potencializa a vida, apesar de nós mesmos sempre nos relacionarmos com essa abertura como uma ameaça. Por isso que a gente demanda e investe tanto no controle ou mediações.
Não há como apreender a dimensão do que seria a educação para a potência se não prepararmos o próprio corpo, a gente tem que agüentar o tranco. A gente pode bancar essas ideias? São mais que ideias, são modos de vida. Tem que fazer a lição de casa. Daí a questão da experiência extraordinária ser uma prática do abstrato. Precisamos praticar o abstrato e sem isso estamos apenas adquirindo competências, autoridades, instruções, novas formações. Fica naquela eterna formação permanente, sempre se reciclando, se atualizando. Não que isso seja uma bobagem, mas é muito pouco diante dessa prática do abstrato necessário, que nos põe sempre em relação com a capacidade de manter as próprias condições de criação. Esse é o ponto essencial, manter as capacidades, ou manter as condições da potência sempre nessa região criativa. Criativa das próprias criações da experiência e do que acontece nessa experimentação. É uma ideia de liberdade raramente pensada ou acessada pelos homens. E não porque é rara, é impossível. Se fosse impossível deveríamos desejar o impossível. O impossível é apenas uma contra parte do possível, um falso problema. O possível e o impossível, você produz. Não pode ficar refém de uma coisa que seria impossível, porque isso não existe na natureza. Não existe o impossível. Existe o virtual, que fabrica o campo de possibilidades e impossibilidades. Então é preciso acessar isso aí.
Essa ideia de experiência nos põe numa condição de gostar do acontecimento, nos coloca numa espécie de receptividade onde o próprio acontecimento deseja em nós, gosta em nós, se interessa ou cria o interessante em nós. Não é um sujeito, uma consciência em nós que vai adquirir o gosto. É a própria maneira de ser que na abertura encontra o gosto da própria abertura, encontra o gosto da própria diferenciação. Criar um gosto pela experimentação é a única maneira de ultrapassar a moral, de ultrapassar essa escolha racional, ultrapassar a ideia de que a vida tem que ser aperfeiçoada, melhorada, progredir, e de encontrar o perfeito da natureza em cada relação de acontecimento. A única maneira é criar esse gosto.
O inimigo principal desse gosto é a primeira institucional das sociedades fracas, o medo. O medo é aquilo que necessariamente nos separa desse primeiro gosto. Mas o medo não é uma força abstrata, solta. Ele se alimenta já dos nossos maus encontros, na nossa separação daquilo que podemos. O medo alimenta a desconfiança no acaso, no devir, nas multiplicidades, no caos que supostamente nos ameaça, nas forças que a gente teme que estão em nós mesmos, nos nossos porões. As forças de fora e as de dentro. Ele é uma máquina de inoculação de desconfiança, no devir, na abertura e no acontecimento, que se sustenta pelo mau uso da dor, do sofrimento. A vida em abertura, em acontecimento, necessariamente está em contato com a dimensão da dor e do sofrimento assim como está em contato coma dimensão do prazer. Mas a vida separada do que pode se confunde com uma dimensão reativa dela mesma. O prazer e a dor nada mais são do que instâncias reativas, não são o principal, na verdade, são temperos da vida, excitantes da vida. Se eu começo a apreender a dor como um tempero da vida, apreendo-a como um presente. No pior dos casos, uma provocação, e no melhor dos casos, um presente, uma ocasião, uma oportunidade para a vida variar ainda mais, ampliar a sua potência e poder enunciar, junto com Nietzsche, “o que não me mata, me deixa mais forte”. Ter esse gosto implica em inventar um outro sentido da dor. Se eu me relaciono com a dor como aquilo que deve ser eliminado, sou um ser adepto da anestesia, que quer amortizar tudo, vou tornar a dor idêntica a um mal que exprimiria imperfeição da existência, da qual deveríamos fugir. Fugimos da dor como fugimos do mal ou da imperfeição e buscamos uma perfeição, uma saúde, um prazer segundo esse modelo da dor e do prazer, que nada mais são que instâncias reativas em nós. Ao nos reduzirmos ao estado de corpo, de impotência, achamos que a ultima palavra na vida, do ponto de vista do modo de vida, é a quantidade de dor e de prazer que temos direito ou dever, que se tornam nosso quinhão. Aí reduzimos a existência a essa dimensão absolutamente reativa e tornamos cúmplices na alimentação desse plano de desconfiança que se põe entre as relações humanas. A gente mesmo alimenta as desconfianças, porque estamos presos a um ressentimento, a uma impotência de se subtrair ao estado de corpo que nos constitui. Por isso é necessário fazer um combate essencial. Esse combate não é contra o poder, contra a educação estabelecida ou contra não sei quem. Esse combate já começa por nós, se a gente não o faz, tornamos necessariamente cúmplices. A gente não suporta a existência de outra maneira. A gente diz: Esse sistema está errado, mas vamos reformá-lo, vamos criar um outro. Mas jamais abandona a ideia de um sistema. O combate não é contra as forças do poder ou do saber estabelecidos, mas entre as forças que nos constitui. Que forças são essas? Existem forças que nos põe diretamente em contato com o imediato e que se alimentam disso, são forças de criação, o que Nietzsche chama de forças ativas. Essas não precisam de nenhuma referência, não estão inscritas num plano de finalidade, aquilo que diz Spinoza, a natureza não age em vistas de fins, ela não é prisioneira de fins, age em vista da sua própria necessidade. O fim é sempre um efeito, uma conseqüência que você nunca sabe onde vai dar, mas se você é ativo, afirmativo, você sabe necessariamente que essa conseqüência é boa, é uma potência e não aquilo que o fraco fica sempre imaginando, que pode gerar uma doença, uma desconstrução, um aprisionamento. O fraco sempre precisa que o outro pense na conseqüência. O forte sabe que, na medida em que ele age, sempre gera mais valor e mais potência para a realidade. O fraco que seja capaz de captar essa mais potência e aproveitar porque isso é um presente, uma generosidade, e não aquilo que o aniquilaria.
Na medida em que a gente acessa essa dimensão ativa de nós mesmos, sabemos que ela é necessária para manter a vida no imediato, saudável, realmente livre e em processo criativo. O combate de manter essas forças ativas ou criativas dominantes em relação às forças reativas em nós, que são meras forças de conservação no melhor dos casos, esse combate é essencial. Não deixar que o reativo seja dominante me nós em relação ao ativo em nós. Fazer com que o reativo em nós obedeça a nossa dimensão criativa. Existe uma região de nós mesmos que deve obedecer e outra que deve comandar. O que deve comandar em nos é justamente a dimensão da experimentação ativa, da capacidade criativa, da ousadia em relação à prudência. A prudência sim, mas a serviço da ousadia. A conservação sim, mas a serviço da criação. Essa postura entra já numa dimensão ética que nos expõe a um combate de nós mesmos, um combate conosco mesmo. Não contra outro, mas entre as nossas forças. Adestrar forças em nós para que elas sejam agidas por outras forças, adestrar as forças reativas para que elas sejam agidas por forças ativas. Educar seria exatamente esse adestramento, ou seja, criar as condições para que a vida se torne forte e livre. Podemos experimentar isso em cada coisa que a gente faz: ao se alimentar, ao morar, ao se transportar, ao gerar lixo, sei lá o que, em tudo, em tudo existe essa presença. É isso que Nietsche provoca o tempo inteiro, que a humanidade está dormindo. Ela se acha tão consciente de tudo, mas a consciência é o modo de ela dormir, está no piloto automático. A gente dispensa essa presença de nós mesmos. Ela está aí, mas não se apresenta. Acha que está criando, mas está repetindo e o que repete é o estado de corpo. A gente acha que é esse estado que se tornou, mas esse estado já é um efeito, um mau jeito na relação. A gente se reduz a um estado por um mau jeito na relação e perde essa dimensão virtual de nós mesmos que é uma potência em ato e que se apresenta na fronteira de si mesmo. Essa fronteira de si mesmo é a zona da experimentação extraordinária, essa fronteira do acontecer da própria vida, o acontecimento do próprio acontecimento.
O racional no humano se confunde com a linguagem. A gente acha que a palavra já é pensamento. Aí você liga uma palavra com outra e acha que está raciocinando. Então liga uma palavra com outra, um signo com outro, uma imagem com outra imagem e chama isso de razão. Essa racionalização é pura imaginação e o pior uso dela, pois a imaginação é uma potência. Agora, imaginação é imaginação, pensamento é pensamento, são coisas radicalmente distintas. Ma usar a imaginação e dizer que está pensando é estúpido e é isso que o poder faz. Aliás, na escola se ensina a ordenar a imaginação segundo a demanda da sociedade. É isso que se faz ao ensinar a pensar. Não se ensina a pensar, se ensina a obedecer. Por isso dizemos que esta educação é para obediência, pois incentiva um encadear de signos, de imagens. É como a filosofia do Wittgenstein, vai dar nessa estupidez que é achar que a linguagem e o pensamento é uma coisa só. É como a relação entre acontecimento e fato. A linguagem é só um fato desse ponto de vista, do pensamento. A questão não é fazer a dicotomia entre a palavra e o pensamento. A questão é apreender aquilo que sem o que a própria palavra não é. A palavra tem um sentido que vai além da própria estrutura da linguagem e esse sentido emerge no acontecer. Há um acontecer intemporal que atravessa todas as coisas. Esse acontecer se exprime na linguagem. O sentido expresso na linguagem é incorporal, ele não se confunde com a linguagem, mas sem ele não haveria linguagem. Aí eu abro a palavra para o sentido, ultrapasso o significado, o designado, o manifestado, o significante, o desejante, o eu , o mundo e deus e entro no próprio sentido que exprime uma força – o sentido é sempre uma direção de uma força – e saio dessa zona intelectualoide, de uma neutralidade da forma e do saber e vejo que todo o exprimir exprime a direção de uma força e faço da linguagem uma máquina de produção de sentidos.
A linguagem é produtiva e não representativa. Esse uso da linguagem que a gente vai propor e ao mesmo tempo desconstruir o uso representativo da própria linguagem que separa o pensamento da capacidade de se relacionar com o tempo imediato. Sentido aqui é uma zona anterior a esse sentido que normalmente imaginamos que, na verdade é apenas significado, está cheio de convenção. O sentido é sempre singular. Na medida em que um sentido se põe numa espécie de zona que o repete e que faz dele um significado, esse significado se torna um universal e o universal, sim, enquanto valor orientador, enquanto um saber, se sobrepõe as particularidades, que em última instância é sobrepor as singularidades. A própria particularidade já é produto dessa abstração do universal. O universal e o particular são efeitos de um certo uso capturado da singularidade. O que tem no fundo é sempre singularidade. Vamos explicando isso aos poucos, existem regiões muito espinhosas e difíceis, mas tenham confiança que vamos chegar lá. O que precisamos é nos tornar criadores e não seguidores de um sistema. Fazermos-nos aliados. Eu dou aulas não para instruir, mas para fazer aliados, vidas livres. Quanto mais as vidas forem fortes e potentes muito mais interessante elas se tornam. Não existe uma intenção moral, de fazer o bem, é interesseiro mesmo, quer a vida intensa e ela se torna mais intensa quando nos tornamos mais fortes, quando jogamos de modo mais livre.
Essa ideia de experimentação nos coloca imediatamente com a ideia de experiência naquilo que chamamos da experiência do pensamento que é nossa primeira modalidade. O que é essa experiência extraordinária do pensar? Ainda que o pensar ocidental se arvore numa altura tal, nas suas modalidades de pensamento, o que aparentemente seria uma experiência extraordinária, é mística, metafísica, genial, um acesso a uma realidade inacessível que só alguns gênios acessariam. A primeira coisa que devemos fazer é dizer que isso não é pensamento. Não só dizer, mas demonstrar. Há no mínimo três modos de pensar ou de se definir o pensamento que atravessa e são dominantes no ocidente que a gente vai dizer que não é pensar. Pensar é contemplar. Em grego contemplação é teoria. Teorizar é contemplar. A teoria é a própria contemplação. Essa visão dominou o ocidente até o século 17, e estamos só a 400 anos do séc. 17. Vinte e um séculos de domínio dessa ideia de que pensar é contemplar. Pensar é refletir, que foi a ideia que se tornou dominante a partir do séc. 17, com Descartes. Descartes acreditava que pensar era refletir. No sujeito o objeto, refletir o objeto no sujeito seria pensar, o espírito como espelho. Do séc. 18 para 19 uma nova ideia do que é pensar, que é dominada por Kant, vai se estabelecer: Pensar é comunicar, uma informação, uma verdade que se exprime na informação. Pensar é comunicar entre sujeitos, uma relação inter subjetiva.
Descartes é uma relação entre sujeito e objeto. O objeto se reflete no sujeito e em Kant é entre sujeitos. Vou desenvolver um por um, mas antes disso vamos definir pensar de um modo bem resumido, para nos inspirar nessa desconstrução. Já insistimos nisso de que a nossa desconstrução não é uma crítica ressentida, não é falar contra. Esse falar contra é efeito de uma afirmação que gera uma criação. Nós afirmamos que pensar não é contemplar, não é refletir e não é comunicar, em virtude de uma afirmação maior que é a de que pensar é criar. É preciso ter sempre essa dimensão do criar quando desconstrói o contemplar, o refletir e o comunicar.
O que é criar? Geralmente a gente acha que é uma invenção artificial qualquer, um brinquedinho, um faz de conta. Criar é o que tem a dimensão de criar eternidades, não criar fantasmas, não uma imagem qualquer, não um signo qualquer, não uma metáfora. Cria-se realidade, cria-se eternidade. Criar eternidade, criar realidade. Isso que é pensar. Pensar é criar, não é descobrir uma ideia pronta. Não é se relacionar com modelos ou com verdades a serem descobertas. Pensar é criar. Essa ideia é essencial. Criar o que? Realidade. Mas como a realidade ou eternidade se exprimem? De várias maneiras, por exemplo, ao modo de conceito. Quem cria conceito? O filósofo. A gente pode convencionar que o filósofo cria conceitos, quer dizer, não qualquer um. Platão, por exemplo, diz que criar é acessar o modelo, a ideia enquanto ideia. Mas ele precisou criar isso. Precisou criar o que ele chama de incriado, para ele é incriado, mas ele criou antes um criado. Pode-se até dizer, Platão criou ideias, apesar de ele dizer que a ideia é incriada. Ele criou inclusive essa maneira de fraudar o real. É uma invenção dele. Cada um tem a invenção que merece. Essa invenção vai fazer com que a vida vá para uma direção. O que cria? Conceito, sensação, aí já não é o filósofo e sim o artista. O artista cria sensações assim como novas maneiras de receber e de se afetar ou de entrar em devir. Novas maneiras de desejar, que é a mesma coisa. Assim como o cientista cria funções, se ele é criador, porque existem cientistas que só reproduzem modelos e paradigmas, está inserido dentro de uma epistemie que é constituída de um campo de forças e ele não apreende a zona cega que esse campo produz e acha que a partir dali gera uma certa luz, mas está só reproduzindo e não está criando, de fato. Mas ao pensar ele cria funções. Pensar é criar. Há pensamento, não só na filosofia, mas na ciência, nas artes e todas as dimensões do humano. Isso só é possível entender na medida em que a gente acessa a necessidade do próprio pensamento como dimensão autônoma e esta não como um delimitação formal, uma instância garantida por um deus ou instituição. O pensamento se garante por ele mesmo porque ele tem um modo de realidade único e de variação infinita dele mesmo. Aí que está a autonomia. Nessa medida em que se apreende essa autonomia do pensar, sabe-se que pensar é criar.
Vamos agora ver o que não é pensar em três momentos. Pensar não é contemplar. O que é contemplar? Platão, na esteira de Sócrates, constrói uma imagem do pensamento que, na verdade, continua sendo a imagem do ocidente a cerca do pensar. Só que houve um devir dessa imagem, várias modificações dessa imagem do pensamento. Tem um segundo momento que é a imagem feita por Descartes e um terceiro momento, o kantiano. Estes últimos não teriam sido possível sem o momento platônico. O que é pressuposto nesses três modelos ou nessas três imagens do pensamento? Que haveria uma instância, uma realidade da ideia fora da natureza que seria diferente da própria natureza. Uma instância transcendente a natureza. Platão nomeia essa região. È a região do mundo das ideias, que habita uma região supra celeste, além dos céus, é metafísico. Como apreendemos isso, realmente? A inspiração é socrática. Platão, na esteira de Sócrates faz isso. Sócrates, nas suas práticas eurísticas, agonísticas, na Grécia – que depois vai ser acusado de pervertor de jovens e impiedosos para com os deuses de Atenas e condenado a beber cicuta – opera o pensamento em conversas privadas com os jovens, com os sofistas, os artistas, gente da cidade. Sócrates tem uma obsessão, ele ama a verdade. Aliás, foi ele que inventou o modelo ocidental de verdade. Ele acredita que a verdade de uma coisa é dada por uma definição. Quando se define uma coisa tem-se a sua essência. E ao dar a essência de uma coisa tem-se a verdade universal dessa coisa. Ele quer sempre definir as coisas, dar a verdade de cada coisas e inventa uma maneira de perguntar. Inventa essa pergunta filosófica: O que é a…? ou O que é o…? O que é a essência, a natureza de algo? Não é o que é este algo ou aquele algo, mas o que é o. O que é a. O que é a universalidade, o modelo da coisa, a idealidade das coisas. Sócrates interroga Alcebíades, Hermógenes. A partir de um certo problema pergunta: o que é a beleza? O interlocutor responde: beleza é as cochas da égua do Aristófanes. Sócrates diz: Eu não perguntei o que é essa beleza, ou aquela beleza, mas perguntei o que é a beleza nela mesma. O que é a essência de beleza? Não te perguntei dessa ou daquela beleza, perguntei da beleza. Essa é a pergunta que Sócrates inventa. Não quer saber dessa ou daquela cadeira, mas a cadeira. Mas a cadeira não existe no mundo. Não existe a cadeira no mundo ou nos corpos. Existe essa ou aquela cadeira, a cadeira é uma abstração. A cadeira não existe, é ideia, é ideal, não tem corpo, é incorporal. Então para acessar a ideia é preciso se livrar do corpo e ao mesmo tempo não se encontra na natureza, pois tudo na natureza é corpo, logo não está nem no mundo, nem na terra, nem nas águas, nem nos céus, está além dos céus, no mundo supra celeste. O ideal é o que não se encontra na natureza. Sócrates tem vontade de ideal. Nietzsche diz que o ideal é o mais longo erro da humanidade. O ideal, que é o ideal de verdade é a mais longa estória da maior de todas as mentiras e ele diz que a questão de erro não é uma questão de ignorância ou de cegueira, como falaria o próprio Sócrates. O erro, para Nietzsche, é covardia. E para fazer frente à pergunta socrática, Nietzsche vai inventar a sua: E quem precisa do ideal? Na verdade ele faz a seguinte questão: O que é a essência de alguma coisa remete por um sintoma. O sintoma de um desejo que busca essa essência, esse ideal. Mas o ideal é apenas um efeito de um modo de vida. Existe um modo de vida que vai buscar o ideal porque não consegue mais viver o real. Ele se ressente do acontecimento, das multiplicidades, dos devires, já está separado do que pode. Nietzsche vai além: Quem quer o ideal? O que quer esse que quer o ideal? Essa é a sua maneira de reverter o socratismo, o platonismo, o aristotelismo, o niilismo. Isso para explicar que o erro na crença do ideal não é cegueira nem uma questão de ignorância, o erro é um covardia, na medida em que não suporta mais essa dimensão da existência.
Veremos onde se funda o senso comum e o bom senso que são os dois pilares do sistema de julgamento ou do sistema de representação humana. Como o homem moraliza e conhece segundo a representação, segundo os modelos do senso comum e do bom senso, que na verdade é uma forma de julgamento que implica em uma não criação. Quem julga não cria. Então pensar não é julgar. Poderíamos resumir que a contemplação, a reflexão e a comunicação são modos de julgar. Mas pensar não é julgar, pensar é criar. Na seqüência da desconstrução da contemplação, da reflexão e da comunicação vamos saltar esses dois pilares do juízo, que é o bom senso e o senso comum que são fundamentos da identidade, da origem, da unidade e da totalização ou do fim, da finalidade. Todos esses modos sedentários de pensar e de fraudar e capturar a vida.
Vocês viram que eu saí da idealidade pura, da imagem do que é pensar e remeti para quem gera essa imagem, quem precisa dessa imagem, remeti para um campo de forças. Saí da pura forma, da idealidade e vim para um campo de forças, que é o desejo implicado aí. O desejo já remete esse pensamento para um campo de forças, que é a pergunta nietzscheniana. Não é mais o que é a essência de alguma coisa – que seria puramente formal e neutro, universal – mas é quem se relaciona com isso, inventa isso, cultiva isso, aplica isso, que já é um desejo, uma potência que entra em variação segundo essa relação. Não o que é mas quem e o que quer esse quem ao querer esse o que é. O que é, é mero sintoma, mero efeito. Não é causa nem principio de nada. Sócrates e Platão colocam isso como principio. Sócrates diz que o objeto geral é superior ao objeto particular. Essa e aquela cadeira são objetos particulares, mas a cadeira é um objeto geral. Sócrates diz que nesse objeto geral você dá a essência de qualquer cadeira, você atinge o modelo que governa qualquer cadeira particular e você atinge a estrutura de cadeira, por isso é superior. Não só de modo lógico ela é superior, mas também de modo moral. A estrutura superior contempla todas as cadeiras particulares. Se uma é mais ou menos cadeira que a outra, todas são contempladas pela verdadeira cadeira, que é essa essência ideal, essa estrutura do ideal. Essa estrutura do ideal e do universal é um guarda chuva, um guarda sol que protege todas as cadeiras particulares. E que unifica todas as cadeiras particulares, hierarquiza as cadeiras, sim. Esse exemplo é chato, podemos usar o homem. Existe uma essência do homem, e todos os homens particulares se aproximam mais ou menos dessa essência, desse modelo, e nessa medida, vão ter mais ou menos realidade, são hierarquizados segundo essa aproximação ou afastamento e ao mesmo tempo ordenados segundo essa estrutura. Essa hierarquia é moral e essa estrutura é lógica. Uma diz respeito ao conhecimento especulativo a outra diz respeito o conhecimento prático. O conhecimento prático detem uma função moral, social, político, etc. e o conhecimento especulativo seria uma pura forma neutra da verdade. A dimensão especulativa é que o homem, esse objeto geral, a essência do homem, seria uma verdade universal e por isso contemplaria a todos os homens particulares e mais do que isso, poria, por essa ordem e hierarquia, os homens em harmonia, no seu devido lugar. Esse modelo unifica tudo, apazigua e concilia tudo, por isso esse modelo é a fonte do bem, ou o próprio bem. O universal teria relação direta com o bem. Sócrates é alguém que quer o bem, é um homem de bem, justo, bom, veraz, útil, tudo que o idealismo quer, que o homem bondoso quer. Nessa medida ele seduz os homens a aderir a esse universal que gera uma harmonia social, política, afetiva, todos os campos. O universal contemplaria as partes e ultrapassaria o elemento passional de cada parte que é a fonte do mal, do conflito, das guerras, das destruições, das mortes, das doenças, das imperfeições, das misérias, etc. Seria uma maneira de orientar a vida para que ela se superasse ou progredisse em relação a esse ideal.
Platão vai mais longe. Não que isso não seja explicito em Sócrates. Sócrates é aquele que vai beber a cicuta porque ele acha que a lei ou o sistema de lei, por pior que seja, é um representante do bem, uma delegada do bem, assim como as ideias dos homens são delegadas dessa ideias, dessas essências em si. A lei pode ser melhorada, mas deve ser obedecida e respeitada, mesmo a pior delas. No caso dele, ele obedecer a lei. Ele poderia fugir, ficou trinta dias a disposição dos amigos, com planejamento de fuga, era simples ele ter fugido, mas não fugiu, ele cumpriu a lei. Existe aqui um drama, de um certo ponto de vista, muito patético, que Sócrates é protagonista. Isso revela aquilo que Deleuse e principalmente Nietzsche falam que há um suicídio depressivo em Sócrates. Beber a cicuta é uma espécie de suicídio. A posição platônica é maníaco-depressiva, se quisermos psicologisar Platão, que não é uma coisa boa de se fazer. O movimento platônico é esse: você está num buraco e busca altura. A vida está separada do que pode, busque o ideal. Ela perde o devir, perde a superfície, é uma posição maníaco-depressivo. Sócrates é o fundador dessa posição em filosofia. E voltando para o campo de forças, Sócrates, na verdade está cansado da vida, é um tipo doente, sem juízo de valor, feio, cansado e doente. (Com humor, sem sacanagem! Nosso modo malvado de ser.) Sócrates é um desgostoso com a existência, não tem o gosto pelo devir, pelas multiplicidades, pelo movimento, pelo fluxo. É como diz Nietzsche, aquele que não suporta o devir precisa de um refúgio no ser. Esse ser, para Platão, é o que é verdadeiramente real. O que a gente acha que é o real aqui e agora, no movimento e no devir é um falso ser, é apenas uma aparência de ser. Nessa aparência de ser Platão vê duas vertentes: um ser aparente que vai para o ser essencial e um ser aparente que gera a própria aparência, como pegadinha, que Platão chama de simulacro. Simula o ser, mas na verdade, fica apenas na aparência de ser, que é terrível, pois ela imita, despista, se passa por, quando o que está sustentando isso é uma coisa terrível de decadência, de depreciação, o que Platão chama de falsa cópia, de um ser que inviabiliza a relação com o modelo, que nem reconhece o modelo.
O verdadeiramente real é tomado como aquilo que não muda. O critério de realidade para Platão é a mudança ou a permanência. Para Platão está mais próximo do real aquilo que permanece e mais afastado, aquilo que muda. Então o ser é mais real que o devir, que muda. O critério absoluto dele é: o verdadeiramente real que é aquele que permanece eternamente no mesmo. Não é que não tem movimento, até tem movimento, mas é o movimento circular da eternidade, que vai do mesmo ao mesmo. É a cobra mordendo o próprio rabo. Ao ponto dele definir as ideias de modo tautológico, pelo modelo do mesmo. O que é a justiça? É aquilo que é justo. O que é a beleza? Aquilo que é belo. A beleza é bela, a justiça é justa, a verdade é verídica e por aí vai. Existe aqui um problema lógico que Platão vai resolver na obra chamada Parmênides onde ele cometeu o famoso parricídio, pois ele diz que Parmênides é o seu pai filosófico. Parmênides é aquele filosofo do ser. Só que o ser de Parmênides não tem nada a ver com o ser de Platão, mas Platão vai dizer que este ser é o ideal, e para Parmênides o ser é a natureza, que é algo muito mais interessante. Platão comete esse parricídio, desmente Parmênides, que diz que o ser é e o não ser não é. E Platão diz que o não ser é de alguma maneira, para que ele crie uma lógica. É o famoso problema da atribuição. Pois senão Platão estaria preso a essa mesma idade: a justiça é justa, a beleza é bela. Isso é o modelo do mesmo, mas Platão ainda precisa do modelo do outro senão não há atribuição lógica possível e dessa forma não há julgamento, não há distribuição de destinos, não há hierarquização de ordem na natureza e assim ele não pode aplicar a supra realidade humana. Ele precisa arranjar um jeito de aplicar isso, senão prá que serve o ideal? Ele tem que ser aplicado. O ideal é para nós, nunca é em si. Isso que não é dito. O que é verdadeiramente real para Platão é o que permanece eternamente idêntico a si. Isso você não encontra na natureza, então isso é uma sobre-natureza, uma para- natureza, é além da física, uma metafísica. Essa sobre natureza, transcende a própria natureza, é uma região transcendente ao real. Esse modelo, do que jamais muda, vai ser o critério de avaliação daquilo que muda, é para isso que vai servir o modelo. O modelo é apenas meio, um instrumento para julgar a vida. Platão inventa esse meio, esse critério de julgamento para medir as pretensões dos homens. Platão inventa a realidade como uma realidade que disputa, uma realidade de pretendentes. Para Platão existe o modelo, a ideia, o ser que permanece eternamente nele mesmo e aquilo que muda, que pode se relacionar com esse ser ou se desviar desse ser. Na medida em que relaciona com esse ser, vai ter uma certa disputa, que quer se aproximar o máximo desse ser e na medida em que não se relaciona com esse ser, pior ainda porque vai inocular a decadência na realidade que muda. Vai ser um jeito de Platão excluir essa realidade que não se relaciona com o modelo e que ela é incorrigível, selvagem, não é domesticável, jamais vai se submeter à verdade disso que não muda. Aqui, é importante a gente marcar que o que eu não muda, o que permanece, esse modelo do mesmo, do idêntico a si, é algo acabado, pronto, é impossível haver mudança nela, é por isso que é eterna. Então, a eternidade de Platão está fora do tempo, não é essa que falamos a pouco, de produzir eternidade. A eternidade que a gente fala é a de produção no tempo. Essa eternidade é a que o ocidente já vem de longa data fazendo uma imagem, que se põe fora do tempo. Essa é a eternidade platônica, está fora do tempo e fora do movimento. Não apenas é a origem dos tempos e dos movimentos, está realmente fora deles, é transcendentes a eles e seria uma origem. Em última instãncia nós somos uma parte dessa ideia. Na medida em que somos homens e particulares, somos um certo grau de realidade desse homem geral, essencial, que seria pura ideia. E na medida em que somos partes temos uma certa relação hierárquica. Quanto mais nos aproximamos da ideia mais espirituais nos tornamos, mais verdadeiros, mais imutáveis, mais permanentes. E quanto mais afastarmos, mais estaremos próximos do corpo, da matéria, do movimento, do tempo, do devir, de tudo que faz com que a gente saia do ser. Para Platão o devir é inferior ao ser porque o devir é aquilo que é incapaz de permanecer no ser. É o contrário do que a gente fala. Verdadeiramente real, para Platão, é aquilo que jamais sai do seu ser. O devir é o que é irreal e que vira outra coisa, não permanece. Platão diz que o devir é efêmero. Por isso é inconsistente e não tem realidade. Platão está preso numa imagem do que é o devir, não está no elemento substancial do próprio devir, por isso faz essa ficção do que seria o devir. Então haveria também aqui um ideal puritano, o que Nietzsche chama de ideal ascético. Aeschesis, em grego significa exercício. Há uma prática, um exercício no sentido da submissão do corpo, ou da superação do corpo ou da renúncia do corpo. Sócrates vai se inspirar nas práticas xamânicas, que atravessam as seitas órficas, pitagóricas, as seitas exotéricas da Grécia, que já é um xamanismo decadente que vai se utilizar de uma ideia da alma que separa do corpo. Não apenas alma que viaja, que sai do corpo como o xamanismo que vem da Sibéria e contagia a Grécia, mas é uma alma que separa do corpo. Sócrates traz a ideia da psiquê separada do soma, de uma alma que separa do corpo e que é superior ao corpo. E que quanto mais o corpo está submetido mais a alma viaja e é livre. Vai haver uma inspiração ascética, puritana, que é de exercícios de domínio das paixões e tudo que corporifica que é justamente para liberar mais o espírito. É aquela ideia absolutamente invertida, que depois Spinoza vai desconstruir, de quanto mais o corpo é passivo mais a alma é ativa e vice versa. Se a alma e o pensamento, que acessam o universal, a verdade, o bem é superior ao corpo, tem que submeter as paixões, que são sempre particulares, geradores de discórdia, de interesses parciais, que seriam fonte do mal, da escravidão e dos conflitos que aniquilam a vida. Esse ideal puritano está na condição do acesso a verdade. Para acessar a verdade é preciso uma prática de si, de renuncia e submissão daquilo que é corpóreo. O corpo é o lugar das misturas, a ideia é o lugar do puro. Na ideia não tem corpo, nada se mistura à ideia. Esse puritanismo que implica um ódio ao devir, às misturas, às relações, vai se impor como um oriente salvador do homem. Claro Sócrates e Platão estão já num momento decadente da cidade grega, de Atenas que foi uma cidade ascendente, eles querem salvar essa sociedade da decadência. Isso tem a ver com todo um contexto social.
Pensar não é contemplar. Tudo isso foi matéria para entender o que se contempla e como se contempla. Você só acessa essa contemplação pelo espírito. É o espírito ou essa alma, que se separa do corpo, que contempla. A alma, como pura ideia, como puro espírito só emerge quando eu me constituo como sujeito moral, ainda que seja difícil falar na palavra sujeito na Grécia, mas é uma espécie de dobra de si, uma condição moral sem a qual a condição especulativa do pensamento, ou do conhecimento, não emergeria. Essa coisa prática, essa prática de si, que faz com que eu adquira as condições para contemplar, ela é a condição primeira da própria contemplação e na medida em que essa condição é efetuada eu me apreendo como puro espírito, como pura ideia e dessa forma eu apreendo a minha origem divina, supra celeste. Eu, enquanto ideia, vim do mundo das ideias. Isso significa que eu posso re- conhecer, fazer a re-cognição da origem que eu sou, da ideia que eu já era. Sócrates diz que é filho de parteira e ele, ao seu modo, é um parteiro. Ele diz, eu sou um parteiro de ideias. A parteira, ao fazer o parto, ela não cria o bebê, só ajuda ele a nascer, ele já estava lá. Sócrates, ao fazer o parto de ideias, não cria a ideia, a ideia já estava lá. Ele só desperta a ideia pronta que já estava lá ou faz com que você acesse o que já estava pronto em você, e mais, antes de você nascer, estava no outro mundo. A ideia de transcendência não cria nada, ela só faz você descobrir o que já existe, então dá ideia de deus, pois já existe como? Existe em si nesse modelo da ideia. Você é uma degenerescência, uma decadência disso, um grau inferior disso. Mas o momento mais elevado do homem seria apreender como puro espírito, pois aí contempla uma realidade que já viu um dia, a realidade supra celeste.
Platão tem o mito da circulação das almas, numa obra chamada Fedra. Ele diz que a alma do homem é como um cocheiro em cima de um carro puxado por dois cavalos, um negro e um branco. O cocheiro é a parte racional da alma, intelectiva, aquela pura ideia. O cavalo negro é a parte mais baixa da alma, a parte desejante da alma, a parte passional da alma. O cavalo branco é o aspecto da força, da coragem da alma. A coragem pode ser usada tanto do lado das paixões, quanto do lado das ideias. É uma espécie de guerreiro santo do conhecimento ou o guerreiro perverso das paixões. O cavalo branco estaria entre essas duas realidades. Platão diz: antes da gente incorporar a gente fez um passeio junto ao cortejo de um deus e os deuses, então, estão dispostos, com suas realidades puramente ideais, e nós
Na medida em que fizemos parte desse cortejo, contemplamos essas realidades ideais puras, essas puras ideias. Aqui entra a palavra contemplação. Contemplação é uma visão do espírito, não do olho, onde a gente vê a pura ideia na sua pura estrutura, a pura idealidade, esse ser que jamais muda, essa circularidade ideal que permanece eternamente idêntica a si mesma. Mas quem vê é o cocheiro, é a parte espiritual da alma que vê. Mas ela precisa de condições para ver, como aqui na terra que precisa fazer a renúncia do corpo, as práticas ascéticas e puritanas para criar essa zona espiritual e aí acessar a verdade. Não deixar que o corpo atrapalhe. Platão diz que aqui na terra existem almas que viram muito e almas que viram pouco. As que viram pouco são aquelas que, na ocasião desse cortejo celeste, dessa circulação, tinham seu cavalo negro indócil, nunca ia na finalidade, na origem da ideia, sempre desviando, e o cocheiro ao invés de ficar contemplando as ideias, ficava preocupado em domar o seu cavalo negro. Nessa medida, ele perdeu a oportunidade de ver muito e dificilmente vai se lembrar aqui na terra do que viu desse outro mundo. Nesse sentido Platão é inteiramente socrático. Sócrates acredita que a ideia está lá pronta, isso vem das seitas órficas, puritanas. Já que esta alma viu pouco, ela não consegue ver o que Sócrates quer liberar, então Sócrates vai dizer que os sofistas, o tirano, os artistas estão nessa zona das almas que viram pouco. E as almas que viram muito, como diz Sócrates são as que sabem amar verdadeiramente pois ela não amam a beleza do corpo, elas amam a beleza enquanto beleza. Essa é a essência do amor platônico. É por isso que o discurso de Fedra é belíssimo, há um erotismo incrível e é Sócrates na relação com Alcebíades, que é um jovem efebo, aquela coisa da homosexualidade grega, da beleza idealizada. Ele ama Alcebíades, na medida em que ele é o signo dessa pura beleza que existe no outro mundo. Os corpos ou as relações com a beleza aqui na terra, são apenas meios, instrumentos de chegar a ver essa beleza em si, essa ideia em si que já estava pronta e acabada.
Pensar, segundo esse modelo, é contemplar o que já se viu algum dia, na verdade é reconhecer essa visão primeira, que tinha tido antes, da existência. Essa visão primeira vai ser, na verdade, sempre segunda, do ponto de vista da existência. Isso implica que pensar não é criar, pensar é reconhecer. É que nem a ideia de lei, que nem a nossa justiça. Dependendo da grana, da influência, da força tal, você muda a sentença, faz isso, faz aquilo. A sentença deveria ser neutra, deveria ser de um puro modelo de verdade neutra. Assim também o modelo platônico, um puro modelo de verdade, inacessível, mas quem determina o conteúdo dessa verdade é quem se apropria da fábrica de fazer modelo. Assim a sociedade fabrica os seus modelos, suas normas, suas leis, a partir de um diagrama de forças que não tem nada a ver com a forma. A forma é efeito de um diagrama de forças. Platão fez a gente acreditar que a forma era pronta e era princípio e causa de tudo, causa de organização de tudo. Na verdade, é só um meio de integrar as forças difusas que atravessam esse diagrama de poder. Como fala Foucault, o diagrama como diferencial da força e a forma ou o extrato como integrador dessa força diferencial. Diferencial ou integral, é como em matemática. A forma como integrador de poderes difusos, que são imperceptíveis, abstratos, apesar de plenamente reais e nessa medida, então você tem uma maneira de esconder, de omitir, de tornar inacessível, a ideia de que a realidade incriada precisou ser antes criada, a realidade superior e primeira, na verdade, é conseqüência, fruto de uma realidade anterior, ela não é primeira coisa nenhuma, que a realidade mais elevada é fruto de uma baixeza. Que a realidade mais pacifica é fruto de uma violência. Que a realidade mais idealizada é fruto de um corpo mais misturado de modo impotente. É essa fraude, esse elemento inconfessável, que não se diz nunca ao se aderir a esse modelo de que pensar é contemplar. Esse modelo atravessa a educação, todas as áreas do homem.
A gente sempre acredita que atingir a verdade é descobrir a verdade, é descobrir algo que está lá. Ao ler um livro e não entende nada. Não entende porque acha que tem uma verdade para descobrir ali. Não tem nada a descobrir, tem a maquinar, algo se passa ou não se passa. E se passa, como funciona isso em mim? Começa a se relacionar com o sentido, com a força que atravessa ali e não com um significado verdadeiro. Não há nada para ser descoberto. Você tem que ler, criando. De outra forma não se entende. Entender é criar, pensar é criar. Se estou lendo para entender, tenho que ler pensando, ler criando. Ler de uma maneira tal que sou até capaz de adivinhar a frase seguinte, não porque eu sigo um modelo, mas porque a própria força se antecipa e aponta para mim. Isso é ler pensando, de modo vivo, numa co-criação. Essa crítica é sempre fundamental termos em nosso horizonte, para a hora que formos ensinar, aprender, estudar, ler, escrever, estudar, não entregar o ouro no sentido que meu ouro vai se adequar a uma forma pronta, isso é um desperdício. A nossa potência é co-criadora, no mínimo, da ideia, de um saber ou de um entendimento. Essa dimensão da criação e da co-criação falaremos por último, só estou anunciando esse contraste. A imagem do pensamento como uma contemplação é sempre uma presuposição de que existe algo em mim que é imutável, que é o meu espírito, que veio já de outra região, supra celeste, fora da natureza e que reconhece aquilo também que viu objetivamente fora de si como uma pura ideia imutável e pronta, acabada. Isso é o que a gente chama de sabedoria e não de pensamento. Sábio é aquele que acredita em ideias prontas. O sábio na verdade é um sacerdote. O sábio nasceu sob os regimes mágico-religiosos e despóticos, no interior de um palácio. O sábio é um sacerdote que interpreta a vontade do déspota e que se relaciona com os deuses. O sábio tem a ver com os escribas, ele também é um escriba associado a uma contabilidade material dos contadores da acumulação material do déspota, ele cria uma contabilidade espiritual, ele cria um negócio com os deuses. O sábio vai negociar segundo a aproximação do modelo mítico inserido naquele regime de signos mágico-religioso, que é o regime mítico. O regime mítico de soberania, não o regime mítico dos guerreiros ou das sociedades primitivas, que tem outro tipo de regime mítico, são mitos da terra, de fertilidade e abundância, de guerra e não mitos de soberania. Nesse sentido Platão é um nostálgico, desse sábio antigo. Platão ou os gregos são herdeiros de um mundo mágico-religioso e despótico que se estabeleceu em Creta que era o mundo micênico, cujo centro era ocupado pelo Arnax que era o déspota divino. Esse Anax, que vivia em palácio, tinha todos os seus escribas, os seus sábios, contadores, seus funcionários. O sábio é um sacerdote, um padre, um crente com ideias prontas.
Será que somos padres? Essa é nossa questão. Até onde somos padres, até onde acreditamos que as coisas estão prontas? Ou precisamos das coisas prontas? Esse é o sábio, o padre em nós. É necessário por o pensamento novamente ligado a uma capacidade de criar. Encontrar a dimensão criativa do pensamento. Não uma criação de metáforas, de fantasma, uma criação de realidade. Pensamento produz realidade, uma realidade singular, é dele, não do corpo, que é outra realidade. Não que ela se contrapõe, mas são diferentes. Uma coisa é criar movimento e variação de movimento, outra é criar tempo, variação de tempo ou a criação do virtual. O virtual se cria a si mesmo. O pensamento produz virtual, e é uma realidade. O virtual não existe, mas é real. Precisamos encontrar essa dimensão. A gente já encontrou isso algum dia, por isso, falo em reencontar. E não só reencontrar, mas aquilo que chamamos de primeira idade, esse frescor do encontro com imediato, mas também conquistar essa dimensão, que é o que faz a gente distinguir primeira idade e primeiridade. Esse outro tempo onde você não só entra em contato com o imediato, mas passa a se apropriar da capacidade de se manter
no imediato. Esse é o único ter nobre, na verdade. O ter vem antes do ser. Ter a capacidade de se relacionar diretamente com o imediato e produzir o próprio destino. Ter a vida nas próprias mãos. Isso implica na retomada da dimensão criativa do pensamento.
Hoje, após a introdução ficamos focados na ideia de contemplação. No próximo encontro vamos falar de reflexão e comunicação e talvez entrar em senso comum e bom senso. O senso comum é um lugar comum, uma espécie de identificação de todo o desejo humano, ou de uma subjetividade humana, que é a mesma, há um senso comum e o bom senso é esse senso comum da subjetividade humana, que é a mesma, que se acredita que pode ir numa ou noutra direção, ou o que fez poderia ter feito diferente. É uma espécie de zona de livre arbítrio que te põe numa condição de julgamento, você pode ser julgado. Isso que você fez, poderia ter feito diferente. Aí entra a condição do julgamento que diz você fez o mal e não o bem, ou você fez o bem e vai ser recompensado. O julgamento impõe um senso comum, uma base comum do desejo das nossas almas, ou da subjetividade e uma finalidade no bem ou no mal: um bom sentido, um mal sentido, um bom senso. Senso comum e bom senso, são os dois pilares do julgamento. Ou seja, ele falsifica a ideia de que todo desejo é diferencial, singular, incomparável. É impossível julgá-lo ou separá-lo do que pode, a não ser por ficção. É essa a ideia que o senso comum e o bom senso ou que esse plano transcendente de organização impõe as nossas práticas.
Há um uso da linguagem que valoriza mais o artigo definido e não o indefinido, mais o substantivo comum e não o nome próprio, mais o adjetivo, o predicado do que o verbo no infinitivo. Um pensamento nômade se relaciona mais com um do que com o ou o a. Mais com o nome próprio do que o nome comum, mais com o acontecimento no verbo do que com um predicado que atribui um sujeito e fixa aquele sujeito com traços de caráter, por exemplo. Essa é uma questão essencial. Revalorizar o nome próprio, o artigo indefinido e o verbo. Existem pensadores que se dizem de esquerda, como Chomsky, que estão inteiramente nesse elemento platônico do puro. Por isso precisamos perceber que o buraco é mais embaixo, a zona é mais sutil.
Não existe devir homem. O homem enquanto modelo, enquanto ser… é como o modelo platônico se quer fora do devir, é uma ficção, o homem como essa ficção modelar, por isso que não existe devir homem, esse devir do homem macho. Ex, eu sou homem, você mulher, claro que tem devir para mim. Mas a forma homem não tem devir, ninguém se encaixa na forma homem, é um ideal, não existe, por isso não tem devir. Um congelamento do devir no universal, uma tentativa de parar o devir. A forma homem, a forma deus são esse tipo de ideia, é aquilo que quer se por no lugar do devir, porque se acredita que o devir é inferior. O devir é aquilo que te põe em contato com uma zona do acontecimento onde não há outra realidade que não a singularidade. A idealidade se confunde com o próprio acontecimento e singularidade. Não há uma idealidade em outro mundo. Isso que liga o pensamento a capacidade de criar que vamos desenvolver depois. O pensamento que cria, produz singularizações que emergem numa zona de acontecimento, de devir, de vir a ser, de variação. A forma é um convite para você sair da variação, para entrar nesse puro ser, eterno, para morrer lá e ficar em paz. É um desejo de morte, por isso Nietzsche vê um suicídio em Sócrates, um cansaço da vida que busca o ideal. Uma tentativa desesperada da vida, separada do que pode, completamente torta, de buscar e preservar a si mesmo. Nietzsche fala sobre isso em alguns fragmentos do primeiro livro de Zaratustra em Sobre os Desprezadores do Corpo, em Sobre os Transmundanos. Na verdade essa tentativa de saída do corpo e da terra se deve a um corpo capenga, é um espasmo desse corpo doente e cansado. Esse espasmo é que o corpo ainda quer o corpo, a vida ainda quer a vida, a terra ainda quer a terra, mas já de modo torto e doente.