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Fuganti – Lógica Penal e Criminalização das Vidas: Controle, Poder e Sujeição

 

por Luiz Fuganti

Conferência proferida no Congresso de Psicologia Jurídica
Realizado em Belo Horizonte – MG em outubro de 2009,
promovido pelos CRPs do RJ, MG e ES

PARTE I

Tecerei algumas considerações acerca de uma tendência dominante em nossas sociedades, que condiciona as práticas contemporâneas de justiça e seus dispositivos de julgamento, controle e gestão sobre a vida, já manifesta e pressuposta em seus modos de desejos, pensamentos e crenças. E então procurarei desdobrar algo do que pode se processar em nós segundo a natureza e o investimento dessa tendência. Paralelamente tentarei extrair algumas virtualidades daquilo que em nós pode dar sustentabilidade a uma outra postura – com outros valores, outra maneira de desejar, de pensar, de sentir.

Nas últimas décadas esteve e continua no ar e nos discursos da nossa época um desejo de mudança com o qual interrogamos o futuro sobre ‘o que fazer’ desde agora para construir uma vida diferente, mais livre e ativa, participativa, co-produtora e fruidora direta dos bens materiais e imateriais fabricados pelas sociedades contemporâneas, os quais em tese aumentariam sua autonomia, com mais direitos e menos violência – que enfim supere em qualidade aquela que se tem levado até agora. Mas quando se busca concretamente implementar, usufruir e partilhar esse diferencial, sequer conseguimos ensaiar uma ‘lição de casa’, um ‘o que fazer consigo mesmo’ e oferecer a nossa própria maneira de viver como realização desse desejo. Quero chamar a atenção para isso. Não para juntar-me ao coro dos que lamentam as impotências do homem. Mas para compreender como, ao mesmo tempo que buscamos nos superar, aderimos por dissociação de gosto a forças que rebaixam a vida humana; e, principalmente, para que nos concentremos naquilo que se faz, política e eticamente com o próprio desejo e suas modalidades, onde e como ele se divide e assim se aplica e as cumplicidades e comprometimentos que isso implica.

Ao pretendermos fazer de nós íntegros interventores e legítimos agentes cumpridores de qualquer função socialmente relevante – no caso em questão trata-se de uma função não apenas geral da psicologia mas especial da psicologia jurídica, e tão especial que precisaríamos nos perguntar se esta demanda jurídica não estaria justamente no coração da constituição mesma da psicologia moderna, ou seja, se não seria enquanto dispositivo necessário à instrução da prática da justiça que a psicologia moderna encontraria sua principal razão de ser – investindo-nos como funcionários autorizados e qualificados no desejo de atender demandas institucionais, através de poderes e saberes socialmente estabelecidos como instâncias normativas, reguladoras e guardiãs das legítimas relações sociais e das boas condutas de mentes e corpos, acreditamos talvez consciente ou inconscientemente, além de usufruir das vantagens que tal profissão possa trazer pessoalmente, fazê-la coincidir com um ideal superior de sociedade; integrar um esforço civilizatório e humanizante e nos posicionar ‘naturalmente’ contra a violência, o arbítrio, a usurpação de direitos, a opressão, os maus tratos com a vida, a perversão, a corrupção e degeneração moral; integrar um processo formador ou restaurador de uma moralidade e de uma racionalidade libertadoras do mal que poderia contaminar e desencaminhar a humanidade – atributos que serviriam de princípios para essa  e outras funções, tantas vezes reconhecidos como baluartes da verdadeira evolução humana e louvados como promotores de elevado senso de responsabilidade, justiça, verdade, comungando enfim, ao menos em intenção, de um inquestionável sentido do bem.

Entretanto, é preciso jamais esquecer de ao menos tentar esboçar e circunscrever o quadro no qual a vida, que ‘escolhe’ esse caminho do bem e se quer protagonista de tal função, se insere; compreender o campo de imanência desse desejo e encontrar a fonte motora de suas crenças, pensamentos e práticas – tarefa essa que pode já fazer com que ultrapassemos em muito sua ‘boa consciência’ e ‘comportamento irretocável’ e vejamos o que pode estar por trás de seu protocolo de declaração de intenções, e que faria do mesmo mero álibe e meio para realização de desejos mais encobertos. A partir de então, destacar desse campo seus contrastes, seus claros e escuros, seus limites e necessidades, tolerâncias e escusas, obstruções e ideais, enfim seus pressupostos que condicionam o acoplamento de tal desejo; fazer saltar os pressupostos que também tornam superficial e sintomático todo seu ideário, cuja lógica segregatória está baseada na crença na oposição extrema de valores que se excluem. É portanto preciso tentar seguir algumas tendências que não atravessam e dominam o corpo social sem serem transportadas e corroboradas pelos nossos modos afetivos, e ao percorrê-lo, nos colocam questões e interrogam as cumplicidades que mantemos imperceptivelmente com aquilo que supostamente combatemos. Nesse acoplamento, no vínculo imanente do nosso desejo ao campo social uma escuta singular de nós mesmos se faz cada vez mais urgente. Tanto mais quanto uma espécie de surdez atinge profundamente os homens do nosso tempo. Esta se trai e se deixa diagnosticar pelo próprio aumento da desatenção tornado não somente institucional, mas também cultural, como um buraco que não pára de crescer no seio da nossa cultura. Tal surdez, deficit ou degenerescência se manifesta, por um lado, no desinvestimento regulado de um tipo de percepção ou conhecimento de si ao qual sempre temos dado às costas – e que é por nós no presente sistematicamente negligenciado; e, por outro, no desinvestimento do conhecimento de algo que não cessamos de subtrair ao presente e que por isso nos faz perdê-lo a cada vez  que nos ausentamos, nos perdemos ou fugimos de nós mesmos. Talvez essa dupla negação (ou desconhecimento), implícita em nossos comportamentos e discursos seja um dia lembrada como a fonte maior da violência e demais males supérfluos, a omissão maior, a pobreza maior, o deserto próprio à nossa época. Aqueles mais vigilantes que herdarão o legado desse tempo poderão descobrir, num futuro próximo, o quanto nossos contemporâneos, enquanto depositários das condições de um direito ao futuro de seus filhos foram cúmplices e reprodutores de uma terrível inversão, uma irresponsabilidade – uma velada covardia, posta a serviço dos desejos mais vis – ao investirem na fabricação, proliferação e aplicação do que denominam medidas cautelares de vigilância e prevenção em nome do insuspeito ideal de ‘segurança’ e de ‘preservação da vida’. Como, em suas respostas à impotência criativa e falta de autonomia que acomete as vidas tornadas dependentes de tutela institucional, acabaram por consolidar a dominação dos pontos de vista mais baixos que nivelam os homens pelo que eles não podem, e isso, claro, feito aparentemente em atenção àqueles para os quais são implementadas e executadas tais medidas – os homens de bem. Em nome da defesa da sociedade e seu bem comum têm-se promovido valores de compaixão que, ao invés de torna-la vigilante, forte e liberta do mal de alguns, anestesiam-na, fragilizam-na e a entregam ainda mais indefesa a uma indolência generalizada dos muitos demais. Pois ao fazer um uso imaginário e distorcido do sofrimento e da miséria, seja na projeção ou introjeção de suas ‘causas’ – quando deliram ao apontar como causa responsável pelos males que rebaixam o homem as zonas intensivas da vida -, não poupam seus bálsamos e prodigalizam seu piedoso e consolador ‘amor’ perante o clamor por poupar da crueldade ‘desumana’ vidas insípidas. Omissões que, além de desperdiçar e deformar o essencial do presente como tempo aberto e fonte imediata de uma liberdade criadora de si, acabaram por comprometer e sacrificar, num parasitismo contagioso, o sangue de vidas por vir, abortando um futuro próximo e perdendo um mais distante, fraudando o presente e encerrando o passado em dívidas cuja única possibilidade de redenção seria a de uma queda vertiginosa em um remordimento da consciência auto-punitiva – penalidade que, entre outros efeitos, pode contribuir para converter os que dela padecem a arautos de um ideal de justiça e para torná-los diligentes soldados do espírito de vingança contra tudo que é altivo e alegre. E isso em nome de sua pobre representação, a um só tempo paranóica e passional; da demanda por reparação de atos interpretados como ofensivos à suas vidas debilitadas; e do medo disseminado por estas vidas tornadas fracas e estagnadas nesse mesmo presente esterilizado, desvitalizado pela representação moral do mundo.

Qual poderia ser o diagnóstico para um processo tão corrosivo que se apossou da humanidade sem dar trégua nem sinal de abandoná-la tão já? Como emergiu essa idiossincrasia de gosto que nos levou a cultuar cada vez mais uma via de afastamento, de separação e a manifestar uma recorrente desconfiança com relação à natureza, com sua (in)conseqüente desintensificação? Do que pode se alimentar o temor ou pânico que nos assombra com a suposição construída de uma iminente invasão de forças vindas tanto de fora quanto do inconsciente selvagem, animal interior da humanidade, estranhas e sem controle? Do que também então poderia se alimentar a falácia de atribuir a essas forças um poder maligno e caótico de produzir catástrofes, cuja suposta existência nos leva a desejar uma ordem simbólica que esquematiza em vez de singularizar, que em grosseira abreviação tudo nivela, buscando regular e governar corpos, afetos e mentes assim simplificados e mutilados? Qual vontade em nós adota uma forma discursiva preferencialmente racional quando realiza os fins da moral vigente que enquadra, abstrai e controla, organizando e assegurando assim as condições de existência da vida cada vez mais coagida e depreciada? E por essa ‘garantia’ tal forma discursiva é elevada sem qualquer crítica, promovida ao status de dircurso científico e verdadeiro? Mas nós perguntamos: a quem interessa tal garantia que acolhe e sustenta a vida em estado desintensificado? Não haveria aí uma motivação menos nobre, mais inconfessável? Seduzimos e embalamos a razão essencial e extraordinária da vida para embarcá-la no sono profundo das práticas ordinárias e curva-la às ordenações aparentes; somos treinados em atraí-la para traduzi-la e substituí-la, representá-la e negociá-la no mercado das trocas simbólicas onde é etiquetada, cifrada – para finalmente tornar-se uma mera confirmação numérica de um equivalente moral ao qual corresponde um inominável prazer de rebaixar. Vontade de conservação, de fazer retornar o que garante a medida gregária, tudo equiparando à justiça do tipo médio de homem. Fomos invadidos pelo mau gosto estéril de enquadrar e encurralar os afetos sob ‘universais’ cujo valor normativo coincide com o da manutenção da redundância estatística de uma maioria malograda – separada das fontes criativas da existência. Assim se busca eliminar a qualquer custo supostas ‘anomalias’ e ‘ameaças’ da vida humana. Desde então tornam-se as autênticas singularidades suscetíveis de serem deformadas pela fantasmagorização e aprisionamento em labirintos da falta de uma consciência esburacada; neutralizadas no círculo vicioso da repetição do Mesmo, o retorno indefinido de uma mesma fixação, corte ou trauma; dissociadas da auto-produção de valor em seus surpreendentes processos de variações diferenciais e do sentido alimentar do imprevisível; depreciadas pelo consenso das opiniões dominantes e sua normatização gregária, enfim, entorpecida, esgotada por sentimentos compassivos e complacentes.

Na impotência de criar e no correspondente esforço dos modos de desejo desligados das fontes do devir, encontramos não só uma vida tornada cativa, como obsecada  por se conservar a qualquer custo, maníaca por segurança. Vemo-la ocupada em construir redomas subjetivas, gaiolas espirituais, prisões interiores fabricadas com signos da mesma linguagem que nos inclui na vida em sociedade. Adotamos e investimos, ao praticar essa linguagem, uma ordem de discurso que transmite de modo implícito e mudo sentenças, sutis ‘sins’ e ‘nãos’, pequenas e silenciosas sentenças de morte que quebram e curvam paulatinamente o desejo, travestidas de eficiência vital e liberdade responsável – observe-se as tonalidades acinzentadas e ritmo fúnebre dos discursos ‘competentes’ e ‘verdadeiros’ cuja ordem protegeria do mal e do caos e conquistaria garantias de um futuro indolor. Quanto mais a vida se debilita, mais torna-se suscetível de se ressentir e padecer da abertura e franqueza próprias dos jogos do existir; e então pode ocorrer também de imaginar reagir a eles, proteger-se deles agarrando-se a um ‘desejo de segurança’, refugiando-se e aquartelando-se em um poder de julgar. A gente acabou por contrair o hábito de ver e ouvir feito um pedinte mendigando atenção, que estende as mãos e espera em vão a provisão, e assim decepcionado, rejeitado e mais ressentido as recolhe vazias. Desde então acha-se natural acusar ao falar e exigir reparação. A gente deseja desde então apontar e denunciar o verdadeiro sentido por trás das ações, a boa ou má intenção latente do querer sob os atos e pensamentos manifestos: assim se lê escavando a procura de valores mais ‘elevados’ por trás das palavras, idéias e crenças expressas nos discursos; assim também se escreve feito um sisudo conselheiro, como quem prescreve advertidos deveres à vida para salvá-la, resgatá-la ao retomá-los, elegendo e restaurando a partir deles o bom fim.

Talvez chegue-se destarte a dissimular melhor o começo baixo e passional da melhor das intenções. Despista-se a insuspeitável torpeza que a movia desde o princípio e coloca-se em seu lugar, como centro da cena principal, o elevado propósito de sua transcendência aos interesses passionais. Assim também pode-se melhor desresponsabilizar e desculpar as forças do ressentimento. Cínica e languidamente subtrai-se à tarefa de adestrá-las. Acalenta-se a impotência sob o álibe de uma missão superior na existência: dobrar as forças do mal, encontrar a felicidade na terra e ao fim, depois desta vida quem sabe, o paraíso. A gente deseja e espera eleger o lado bom do mundo, para dele poder tirar vantagem no que imagina ser conforme a si própria; a gente também procura desse modo um amor, eleger um outro capturável, passível de ser amado desde que preencha a condição de servi-la; espera fazer deles – do mundo e do outro – seus funcionários, torná-los melhor, mais bem intencionados para que melhor possam merecê-la, amá-la e servi-la; ou enfim, o que dá no mesmo, para que melhor possa deles se servir e, claro, pouco tenha que dar-lhes; chupar-lhes o sumo e atirar-lhes o bagaço. E para isso, tagarela-se, põe-se a linguagem que abrevia e generaliza no lugar da expressão viva e direta que singulariza e difere, para controlá-la, vigiá-la, preparar-lhe arapucas, julgá-la e finalmente puni-la! Senão, como seria possível o direito ao lucro e a reparação? Direito ao crédito, à vantagem, sempre em nome da ‘vida’, do ‘cuidado’, da ‘proteção’; vontade justiceira que se credita o direito sobre tudo aquilo que se desvia do ideal de sua conservação e prosperidade. Mas raramente a gente faz algo de não passivo, de não supérfluo, algo do diferencial ou visceral da vida passar em nossas falas e escutas, interpretações e avaliações, registros e memórias; este algo irredutível de todo o vivente que faria dele não um poço de mágoas, de ressentimento e reivindicação passional, mas uma potência imanente e generosa de criação de maneiras de existir. Raramente tem-se a honestidade de exprimir, sem covardias e trapaças, outros usos, outras práticas que fazem da fala e da escuta, da escrita e da leitura, dos registros e das memórias, das interpretações e das avaliações operadores diferenciais e fontes vivas de nossas virtualidades criadoras.

Despistamos, desprezamos e emudecemos de modo regular, institucional e sistemático as vozes que denunciam em primeira mão aquilo que acontece diretamente com nossas capacidades de existir segundo os modos de vida que levamos. Na vida se fala e se escuta, se lê e se escreve, se investe desejos e se pratica usos; mas em cada uma dessas operações impõe-se um passivo esquecimento, um desprezo mendaz e um grosseiro silêncio àquilo que nos faz escutar e falar, ler e escrever, interpretar e avaliar, praticar e investir. Vivemos numa civilização que tem como primeira instituição a inflação do medo e sua inconseqüente demanda por homogeneização dos tipos e dos devires ativos das forças do homem em nome da segurança – os quais ao preencherem e modificarem nossos desejos fazem necessariamente variar os humores, efetuando e continuando o curso intensivo e virtual da própria existência -, mas não sem roubar-lhe ou abreviar-lhe o futuro. E no entanto, aquilo que constitui e move a nossa existência é também o que simultaneamente constitui e preenche nossa essência, alimenta ou envenena nosso desejo, aumenta ou diminui a nossa potência ou capacidade de existir. Esquece-se dessa modificação essencial que se passa conosco a cada relação que estabelecemos, segundo a maneira como nos relacionamos, e que mostraria o que fazemos aqui e agora da própria vida, esquece-se dessa responsabilidade bem mais profunda com a vida e que deveria ser promovida como a mais importante e essencial para o desejo ativo, uma vez que deste modo o destino estaria inteiramente em nossas mãos. Mas pasmem! Em vez da promoção dessa nova responsabilidade, simplesmente destituímos esse plano, essa fronteira existencial das relações como mera zona aparente, palco dos acidentes irrelevantes. Delegamos o controle da mesma e encarregamos embusteiramente alguma Providência exterior que venha de cima para redimir-nos e desincumbir-nos ao mesmo tempo que neutralizar essa fronteira. Mas na verdade não existe outra zona de liberdade e nem outra zona de escravidão. Porque então delegamos a Outrem esta tarefa? A zona de liberdade e de escravidão é a mesma: é sempre e simultaneamente adjacente e tangente ao modo de vida que investimos e cultivamos.

Seria preciso então deixar de acreditar, ou melhor, chegar a conceber como ficção um plano onde se quer opor os valores que orientam o homem: não passamos de crentes (num plano superior à vida) quando opomos bem e mal, verdade e mentira, realidade ideal e realidade aparente, etc e pretendemos assim jogar a própria vida contra outra vida – É mesmo desde já imprescindível distinguir o ato de pensar do de crer. E, diante de um pensar sem tutelas, é inelutável uma conseqüente destituição da crença na ‘necessidade a priori’ de um plano superior. Uma vez que a fé na transcendência pressupõe uma crença mais subterrânea na existência decaída, o sentido expresso nessa imaginação é necessariamente efeito de um modo coagido e servil de viver que delira sob a sombra da falta; assim também o valor desse sentido deixa entrever sua baixa origem quando a vida impotente procura atribuir legitimidade a sua resposta desesperada; quando a impotência não pode mais avaliar sem deformar o outro e tentar adaptar o mundo a si; exprime portanto os motivos rasteiros de quem precisa vergar todo o vivo sob as depreciações do juízo desvitalizado –  Seria portanto preciso não apenas deixar de pensar e investir contra o mal, mas sobretudo deixar de pensar e investir a favor do bem. Se o mal é uma ficção, não o é como crêem as belas almas por ser mera ausência do bem! Antes o contrário, é por ele ser a sombra de uma ficção ainda mais enganadora – a existência do bem como excrescência, ilusão projetada pelas vidas malogradas para além da miséria que as envolve como condição de um resgate. Como? Sua existência não passaria de uma invenção necessária para manejar vidas decaídas? E o clamor pelo bem não seria mais que uma confissão de impotência, um sintoma testemunho de renúncia e desistência, um ficar de mau com a vida pelo mau jeito junto ao jogo da vida?

Nós humanos, esposamos um círculo vicioso. Ciclo ilusionista da intencionalidade do devir. Quanto mais nos encontramos no buraco, atolados na impotência de retomar um devir que não carece de alvo exterior a si mesmo, mais investimos a ilusão de uma finalidade redentora pretendendo sustentá-la no horizonte do futuro, como suposto termo compensatório de seu curso injusto. Só conseguimos assimilar o sentido, a significação da existência atribuindo uma direção prévia a seus movimentos, cujo valor de origem e de chegada se exprimiria no poder de encaminhar ou desencaminhar, de adiantar ou de retardar, de recompensar ou de punir nossas vidas. Toda ação, toda idéia, todo afeto que carece de intenção e de um objetivo teleológico é lançado no limbo do não-senso. Fora do objetivo que move o espírito para fora da vida, liberta e purifica o desejo das paixões e converte o pensamento para o ideal não conseguimos apreender qualquer sentido legítimo. Eis a fonte de todo cansaço! Então esgotados desistimos de reencontrar as fontes imediatas que fazem de todo o vivo um criador de si e acabamos por nos render a essa maneira pesada e míope de caminhar e de enxergar. Um começo demasiado baixo para um ideal pretensamente tão elevado de pular fora, de transcender os tormentos do devir; uma indisposição malquerente para encurralar o devir, mal disfarçando a arrogância, o ódio, a mentira e a trapaça que se insinuam sob as posturas humildes, os gestos amáveis e os discursos verazes que as consciências morais se atribuem ao se auto-proclamarem sérias, responsáveis e exemplares.

Mas quando se constata que tanto o mal quanto o bem não têm qualquer estatuto de transcendência como suposto princípio ou entidade substantiva primeira, uma tempestade pode varrer a mente dos mais castos e fazer desabar os que assim se elevaram com pernas tão artificiosas. Não há dúvida, sofrerão vertigem com a altitude à qual conduz semelhante acontecimento; pode mesmo assustar e afugentar quem mal se aproxima ou hesita em afirmar o elemento inédito e necessário de cada encontro casual sem projetar nele propósito ou sinal de cumprimento de um oculto plano divino. A apreensão de que o bem se mostra finalmente como uma ficção constitui-se em um acontecimento capital, da espécie daqueles que exige de nós uma rara elevação, um distanciamento a partir do qual se dispensa qualquer instância tutelar ou mediação diante dos desafios do que está por vir. Uma nova inocência pode então se pôr em curso e reconduzir-nos às vias de uma sutil e rara lucidez. Sim, nem mesmo o bem! Ele mesmo, a mais acalentada e enganadora das ficções que o homem já criou para distrair e fugir de suas responsabilidades mais sérias! Bem e mal não como causas de perdição ou salvação, de liberdade ou escravidão, de verdade ou de engano, de prêmio ou castigo, mas sintomas de uma humanidade infantil e ainda muito descuidada de si. Efeitos óticos de superfície, não causas de origem profunda! Fábula gestada na falsa profundidade dos porões escuros do homem amedrontado! Mentiras necessárias a uma tipologia de vida que não sabe viver sem depreciar a priori um outro diferente tomado como oposto; que não pode subsistir sem lançar mão de sistemas que criminalizam as virtualidades, destituem as intensidades, encurralam as diferenciações não controláveis e julgam o vivo, o vital da vida de fora, como se sobre ela estivessem, investidos das prerrogativas do lugar do anjo. Funções para um tipo de vida que, por não poder criar as próprias condições do existir, também não suporta o mundo e as multidões que o povoam sem deformá-los, rebaixá-los, para adaptá-los a si, para obrigá-los a servi-la sob a promessa de recompensa pelo prática do bem e dissuadi-los sob ameaça de punição pela prática do mal. Mas já lá não se vão quase quatro séculos desde Spinoza, e um século e meio desde Nietzsche, para lembrar apenas dois dos maiores imoralistas que a humanidade já teve e que combateram sem tréguas essas ilusões e capturas do homem? Estamos surpresos com a antiguidade de tal crítica? Terá perdido a atualidade, o frescor e o viço de sua novidade? Ou faria sentido apenas para mentes extracelestes? Porque afinal o curso da humanidade segue incólume, insensível e surdo a ela em seu destino rumo ao nada, isto é, à desintensificação da existência?

E se houvessem com efeito, senão entidades ou seres substantivas doravante destituídos como quimeras, maneiras de relação que qualificariam tanto atos quanto modos de viver? Maneiras de qualificar não os seres, mas modalidades de devires – bons se ativos, maus se reativos -, servindo esses adjetivos tanto para selecionar modalidades de ações quanto para diferenciar modos de viver e de se relacionar em sociedade?

Mas a quê exatamente se atribuiria tal adjetivação? Parece então que não poderia mais incidir sobre o ser dos objetos e dos sujeitos, mas às maneiras de acontecer e modos de desejar no devir. Como poderiam ainda haver objetos e sujeitos bons, objetos e sujeitos maus? Ou, então, bom e mau emergiriam apenas no fim, como efeitos terminais e superfíciais de relações de composição ou decomposição de durações em profundidade? Não diriam apenas respeito aos efeitos a posteriori de modos mais profundos de composição e decomposição de tempos, movimentos, devires vitais com seus cortes e suas continuações? Não seriam tanto as maneiras boas quanto as más labirintos, passagens diretas ou indiretas para intensificar os devires do vivo? E ainda mais: haveria uma atribuição mais sutil em relação aos próprios modos de assimilar, digerir e transmutar o que é investido como bom ou repudiado como ruim? E se práticas de maldade alegre fossem meios mais refinados de evolução, transmutando maneiras frouxas de viver, gerando distâncias e tensionando relações flácidas antes que a vida entrasse em franca decadência?

O que então em nós de alguma maneira pode ser dito bom ou ruim? Haveria realmente em nós algo de bom que nos dignifica ou algo de ruim que nos torna indignos? Se sim, qual seria o estatuto ou ser desse bom ou desse ruim? Seria esse algo em nós constituinte de nossa alma, de nosso espírito, de nossa essência? Haveria potência boa ou má na essência? ou seja, constituída por um ser do mal ou um ser do bem? Toda lógica punitiva que promove a criminalização da vida pressupõe essa crença. Pressupõe tanto a atribuição de uma zona demoníaca à existência quanto um plano teleológico de resgate que a transcende. Assim, torna-se natural pressupor a identificação do intensivo com o demoníaco. A natureza desnaturada, decaída, tomada como essencialmente carente de uma dimensão plena ou suficiente de realidade. Pior, a natureza degenerada empenhada em enganar e perverter! A natureza não se basta, não bastaria! E como se não bastasse, ainda poria tudo a perder! Mas perguntamos: para quem a existência careceria de perfeição, de realidade plena e idealmente acabada? E se afinal essa lógica punitiva e sua política de criminalização da vida se revelasse na verdade um grande negócio, um empreendimento próspero e lucrativo, cuja matéria prima fosse a reprodução e proliferação das paixões tristes?

Essa visão depreciativa que introjeta o mal na essência do vivo e que atribui à existência uma imperfeição, uma insuficiência de ser continua atravessando e condicionando nossas sociedades: ela é na verdade o sustentáculo de todas as nossas políticas de ódio; ódios praticados em nome de povos, raças, nações ou pátrias; grupos, minorias, maiorias, classes ou castas; gêneros, propriedades, familias, valores ou de deus, do bem; portanto é também o sustentáculo de todas as práticas de compaixão que não só não se opõem ao ódio e à inveja lançados contra os tipos bem logrados, alegres, potentes e livres, como completam, não sem mascará-la, uma empresa de vingança inconfessável e institucionalizada sobre a fruição criativa dos afetos.

Mas entendamo-nos sobre este ponto. Como explicar essa tendência e a insistência de indivíduos, grupos e sociedades inteiras em cultivar o que apequena a vida no homem como meio de sobrevida? Qual sentido haveria em introjetar a contradição no seio do vivo, em pôr a vida triste enfraquecida contra a vida alegre e potencializada? Se não suportamos as forças da alegria que nos ofendem com seus excedentes, é preciso contê-las e se possível detê-las, aprisioná-las! Há sempre um modo de extrair prazer e gozo quando se está afundado e se ‘vive’ na impotência: é aderir aos modos de viver da impotência! Como goza e é recompensado um aguilhoado? Repassando o aguilhão! Tornando o outro um seu igual. Senão como suportaria ele uma infelicidade só sua, não compartilhada, não distribuída, não proliferada, sem que fizesse explodir e explodir-se com o sistema? Quem é suficientemente elevado para não sentir inveja e não querer diminuir tudo aquilo que o excede em generosidade e exuberância criativa? É preciso tratar toda essa tendência, todo o conjunto de seus mecanismos, aparelhos e dispositivos como disparadores que fazem a vida humilhada conquistar poder, extrair prazer, lucrar intimamente, conquistar reconhecimento, vantagem afetiva e reproduzir seu poder ao tomar parte de um poder de excluir, que não só pode como geralmente coincide intrinsecamente com o crescimento do poder do capital. Toda a nossa vontade de negar ou pôr sob sursis a dimensão necessária da existência intensiva, todo esse desejo decadente de enquadrar, de reconhecer, de identificar – senão de cultivar – um ‘outro’ sem intencionalidade como ‘causa intencional’ do mal que o acomete, de fazer existir uma suposta fonte responsável por tal mal, para só depois poder dizer e ver a si como um dos bons e que se quer ‘oposto’ a esse outro maligno encontra aí, nesse gozo possível, nessa alegria triste de miseráveis, seu sentido. A eleição de algo que seria em nós então apreendido como oposto a esse mal, e por isso mesmo nos habilitaria como legítimos participantes do bem e autorizados delatores desse mesmo mal – nós como bons, como homens de bem: como isso seria possível sem que antes pudéssemos apontar para um outro e denunciar toda a crueldade de um desvio inconseqüente, sem tornar a diferença intensiva, desprovida de boa intenção, causa do mau que nos renega e nos nega provisão, mas sobretudo sem extrair um lucro inconfessável de todo esse processo de rebaixamento que, ao mesmo tempo que nos empodera, retro-alimenta todo o sistema? Por qual razão, como nota Nietzsche, na Genealogia da Moral, no caso do que ele denomina moral dos nobres, ao invés do homem começar por afirmar as maneiras de existir que o torna uma potência criadora e livre, cultivar modos próprios de crescimento e fortalecimento, pô-los em relevo, isto é, começar por afirmar o que há de bom partindo de si, e nesse sentido ativar as mais interessantes forças de composição, fruir os resultados do devir, gozar o aumento da potência de existir, se alegrar com a invenção de variações expressivas das forças de criação que nele fervilham -, por qual razão ele prefere ou é levado a tomar o caminho contrário e começar por desqualificar um outro, fazer de um outro a causa dos seus males, sofrimentos e misérias? O quê nele, qual zona cega, qual fixação, qual covardia o faz começar por ver em tudo o que ele não é, isto é, em toda a diferença que dele difere, um não-eu, uma oposição que poderia contradizer sua vida, e por meio dessa interpretação projetada nela denunciá-la como virtualmente má até que ela prove o contrário e se torne conciliadora? Por meio desta negação a priori, ele se arvora o direito de emitir vereditos, pretende-se autorizado a juiz e legítimo intérprete da verdade, serve ao mesmo tempo de sentinela, abrigo e tutor dos malogrados, entupidos de paixões tristes. Por quê, por qual razão não se problematiza antes as maneiras de viver que nos fazem cúmplices do enfraquecimento e rebaixamento da vida em vez de logo se apressar, se precipitar em buscar responsáveis pelo malogro dos infelizes? É preciso desconfiar dessas escapadas, desses que se desviam de si, de suas responsabilidades com o que há de ativo e criativo na vida, e se refugiam, se vitimizam, se entregam na empreita de erigir um outro como a fonte do mal.

Precisaríamos sim, e com a urgência dos que não deixam para depois, problematizar as saídas e escapadas inventadas por esse tipo de existência. Que exemplo de ser poderia ser extraído de um comportamento cujos pensamentos e sentimentos, na presença de certas dificuldades ou impossibilidades, se apressasse em representar e fazer do mundo ou do outro aquilo que o nega ou a ele se opõe? Que faria de um outro fonte de misérias, infortúnios e sofrimentos que não pode transpor, para só então, por uma terrível e malévola inversão, converter-se em um bom, justo, útil, veraz? Que sonho ou utopia se projetou assim tão longe desse comportamento infeliz do homem, para isolá-lo e encerrá-lo no cultivo de seu posto de juiz inquestionável, ocupado em lustrar e adornar sua redoma protetora, enterrada já tão funda que nem se pode sequer suspeitar ser fruto nascido da árvore da impotência, uma planta quimérica plantada sobre o ‘nada’ para vencer este outro nada que se tornou sua vida? Sequer se imagina, em sonho ou pesadelo, que de alguma maneira essa insuficiência de ser não é natural e também não simplesmente emergiu originalmente em algum ponto da história, mas é uma falta criada e recriada a cada momento, que não pára de se insinuar no querer, inocular-se na consciência e ressurgir a cada momento em que se reproduz a dependência no horizonte de nossas vidas em cada relação que se estabelece pelo fato de se estar vivo: nos pequenos gestos, nos regimes corporais, sexuais, alimentares, de higiene, nos modos de mover e usar a sensibilidade, nos modos de usar a linguagem, nos modos de investir ou abandonar, de projetar ou introjetar os afetos e tudo o que nos acontece nas relações que estabelecemos com o mundo e os outros, nas práticas de registro e pensamento, o tempo todo, a cada momento de nossa vida presente, essas zonas de desqualificação da vida não param de emergir e solicitar nossa cumplicidade.

Zonas de desqualificação da vida que se confundem em nós com as zonas de vitimização. De alguma maneira, sempre que a nossa vida está, por algum mau encontro, sendo separada do que pode não consegue jamais, enquanto assim permanecer e usar mal o que de mau lhe acomete, vislumbrar na matéria do que lhe acontece um combustível de criação que transmuta toda coação em força aliada na produção de uma nova maneira de viver. Ao contrário, esse tipo de vida toma aquilo que lhe acontece como algo de imerecido ou merecido, conseqüência de uma falta ou de um mérito, seja de si ou de um outro.

Joe Busquet, interrogando a fatalidade de seu destino supostamente desgraçado, em vez de acusar, envenenar, lamentar-se ou simplesmente se conformar dizia: os acontecimentos de minha vida estavam ali antes de mim, à minha espera, me fazendo sinal – nasci para encarná-los! À espera do melhor de mim…não evidentemente a espera apenas de um melhor de mim já dado, mas da emergência de algo em mim ainda por vir, que cada vez mais se põe à espreita ativa e toma parte do e no fazer algo daquilo que é fatal em nós, algo de nós que está por nascer, por vir, como um tornar-se filho de nós mesmos através do acontecimento que nos faz violência. Dispor-se, simultaneamente pôr e extrair algo de nós, uma duração outra da espera que espreita no tempo e escava o presente eterno. Espreita sem esperança. Erigir o ponto de vista necessário que dignifica através de nós todo acontecimento, ao invés de acusá-lo como imerecido, ou até louvá-lo como um merecimento compensatório. De pouco serviria tomar o acontecimento como recompensa em vez de castigo: exprime apenas a outra face da moeda, o mau jogador que se embrenha na aposta, a péssima maneira de usufruir dos favores do acaso; pior talvez do que aquela que acusa. Como diz Nietzsche em seu Zaratustra: “amo aquele que se envergonha quando o dado cai a seu favor e se pergunta: não serei acaso um trapaceiro?” Porque na acusação ainda podemos ver claramente o ódio manifesto, enquanto que na atitude que exprime um amor a ele, enquanto lhe é favorável, apenas adia esse ódio que certamente, cedo ou tarde, aparecerá com o advento das situações desfavoráveis. O que significa dizer: estamos com sorte ou azar? somos vitoriosos ou fracassados? E a quê ou a quem se ama ou se repele exatamente? E por ‘quem‘ esse algo outro é ‘amado’ ou ‘repelido’?

Então existe em nós uma postura – ou antes uma impostura -, promovida como normal: é aquela que faz do acontecimento uma chaga. São nossas chagas que tornam a vida repugnante, diz Deleuze, é quando assim ressentidas, as utilizamos para envergonhar o homem. Então sentimos vergonha de ser homem. E elas proliferam a cada vez que colocamos o dedo na ferida, ou quando um homem interpreta o que lhe acontece como imerecido, quando não consegue processar, digerir o que lhe acomete, nem se subtrair ao indigerível, marca ou tirania de um estado afetivo do desejo que o capturou na insuportabilidade de um sentimento que se apoderou dele seja pela tomada primeira da mente, seja pela tomada primeira do corpo, mas sempre e simultaneamente tornando cativo o elemento primeiro de seu querer.

Quando fugimos ou nos ausentamos de nós mesmos, e abandonamos nossa potência de fazer a diferença entregando-a a sorte de um tutor ou, o que é o mesmo, não tomamos conta da parte que nos cabe, quando nos ocupamos em buscar culpados, desperdiçamos o melhor do que nos acontece, trabalhamos contra nós mesmos. O que é fazer a sua parte?

Não existe vida na natureza, em qualquer recanto desse universo ou seria impossível nele existir um tipo de vida que não tivesse uma potência imanente a sua própria. A potência é imanente e está necessariamente dada. Não há qualquer falta na vida! Mas como então a falta se estabelece? De que é feita essa falta que se torna dominante no horizonte da humanidade? Quando acreditamos que de alguma maneira é preciso melhorar a existência, reformar a existência, adaptar o mundo à nossa vontade, podemos encontrar ao menos uma pista do que exatamente se passa, uma vez que essa investigação não caberia nesse artigo.

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