Luiz Fuganti
Dúvidas? Problemas? Questões? Eu já recebi algumas no início, um participante tem uma preocupação semelhante com a que surgiu no final da aula passada sobre a questão do sujeito, sobre a questão da manifestação na linguagem. É uma questão que acho que vai ficar bem mais clara ao longo das exposições; hoje já vai dar uma boa liberada, eu espero, porque os estoicos estão num plano sem sujeito, num pensamento sem objeto – então eu acho que já vai ajudar bastante. Então é bom aguardarmos um pouquinho. Sobre a questão da semana passada, uma referência interessante para se forçar a pensar nesse sentido, nessa via é, quando se diz “eu afirmo”, ou “você afirma”, ou “tu afirmas” ou “ele afirma”, não dar muita importância ao signo eu, tu, ele, nós, etc. Não dar muita importância a esses signos ou então relacionar esse signo à quarta pessoa do singular, que em alemão se expressa pelo pronome neutro Es, em inglês pelo it, em francês pelo on, em português por a gente (fica meio esquisito “a gente”, por causa de seu uso ordinário que carrega um sujeito indiferenciado, mas, enfim, a língua acaba liberando, pela mesma partícula (homonímia), o puro sentido impessoal ou uma linguagem sem sujeito).
Participante: O “se”… funciona desse jeito? Como impessoal? “É assim que se faz” ?
O “se”. Sim: “se faz”, “se passa”. Sim. Pode ser. O importante é que o sentido esteja passando no signo de que ele se apropria – e é muito importante que esse signo seja imperceptível ou que ele dê o aspecto de imperceptibilidade – que é onde você assume uma alegre irresponsabilidade, onde você pode ser irresponsável. Onde se pode ser irresponsável porque não há como pegar um sujeito num signo que desliza e que se diferencia sempre de si mesmo. Não há como você responsabilizar uma forma e enclausurar a vida nessa forma. Eu acho que essa é a grande questão. É uma questão de poder. De ética, de potência e de poder – fazer o poder fugir e fazer a potência fugir do poder ou exonerar o poder.
Participante: Eu estou atrasada aqui, pensando na questão da liberdade. Qual o conceito de liberdade, calcada nos encontros?
É espinosista, para te dar bem resumidamente: liberdade é igual à necessidade. É um paradoxo, aparentemente, mas é bem isso. A liberdade é liberdade de efetuação de força, de efetuação de potência. A potência necessariamente se efetua; quando ela se efetua necessariamente ela é livre.
Participante: Então, nesse sentido, não há diferenciação entre cidadão e escravo.
A questão é saber de que cidadão e de que escravo você está falando. Nietzsche, por exemplo, tem um conceito de senhor e de escravo que não é o do Hegel, que não é o da tradição ocidental; e ele diz que escravo é todo aquele que está separado do que pode. Quer dizer, isso é uma linguagem espinosista. Aquele que é reativo ou que é ressentido, ou que tem má consciência, ou que é niilista – esse é o escravo. E o senhor é aquele que é capaz de afirmar a potência até as últimas consequências (quer dizer, “as últimas consequências” não, essa palavra “consequência” nem entra, é completamente inconsequente a afirmação – ainda que ele tenha uma positividade absoluta e saiba que essa inconsequência só é inconsequência negativa do ponto de vista do fraco, o fraco é que pensa assim). Mas isso vai ficar muito mais claro ao longo das nossas exposições.
Eu estou fazendo uma viagem por problemas e não por obras, ainda que às vezes dê a ilusão de que falamos de certas obras e de certos autores; demos praticamente 2 ou 3 aulas de Platão, umas 2 aulas de Aristóteles e vamos dar umas 2 de estoicos, mais umas 2 de Epicuro e Lucrécio; e vamos estar retornando com algumas questões, alguns problemas. Mas o que é fundamental não é “o estoico”, “Aristóteles”, “Platão”, “Epicuro e Lucrécio”; o que é fundamental é o problema que se põe no modo como eles veem o mundo. Como Foucault disse para o Hélio Pelegrino: “eu discordo totalmente não do que você disse, mas da sua maneira de encarar as coisas”. Quer dizer, a maneira de encarar as coisas é que interessa. É essa que é a questão. É nisso que eu insisto sempre quando falamos de modo de vida. Isso não é uma questão teórica, isso não é uma questão de se encontrar o lugar da verdade e, a partir desse lugar, falar a verdade. O importante é sempre se encontrar num meio, num jeito, numa atitude que é a própria afirmação.
É por isso que a questão da aula passada, “alguém afirma”, é uma ilusão – a não ser que você esteja realmente separado, a não ser que existam duas entidades. Quando a coisa se afirma, é a própria forma de expressar que já constitui a afirmação – a afirmação não é algo que você, a partir de um sujeito, afirmaria. A afirmação é a própria expressão da potência, é o jeito de ela se expressar. Então é nesse jeito, é nesse modo, é nessa maneira de ser, que está o segredo de tudo. É aí que ultrapassamos a representação. E é por isso que não precisamos de nenhum solo, de nenhum fundamento, de nenhum sujeito, de nenhum edifício representativo para nos situarmos no mundo e na natureza. Não precisamos de nenhum centro ou princípio ou fim a partir do qual esticaríamos um fio, uma linha, e efetuaríamos ou desenvolveríamos a nossa vida desdobrando a sequência de formas e funções a partir desse referencial – ou original, como fala Platão, ou original, como fala Aristóteles.
Participante: Eu não acompanhei o que aconteceu na semana passada, mas de qualquer forma, a mesma potência que se manifesta através de você e através de mim será de uma forma diferente. Não que haja um sujeito aí, mas eu sou um histórico biológico cognitivo; você é um outro histórico biológico cognitivo que vai filtrar ou vai canalizar a forma como isso se apresenta. Talvez seja a coisa mais próxima que eu possa dizer que esse sujeito é esse histórico biológico cognitivo que cria uma forma de expressar essa potência. Ele não é um pronome (eu, tu, ele) mas ele é um jeito dessa coisa acontecer.
É melhor usarmos um outro termo talvez, descobrir uma outra nuance nisso que você chama de sujeito. Podemos chamar de polo atrativo, ou de plano abstrato; mas sujeito dá a ideia de que há um substrato que subsiste apesar das modificações: eu vou me efetuando no mundo e essa efetuação é acidental. Aristóteles acredita nisso: há uma substância e as modificações que essa substância sofre são acidentais; então a minha diferenciação no mundo não altera em nada a minha substância. Isso é uma ideia de sujeito. E é essa ideia de diferença, inclusive, que ele cria na especificação, nos silogismos lógicos dele; quando ele introduz a ideia de diferença específica – que é o chamado termo médio que não tinha em Platão – ele acredita que esse termo médio, essa diferença específica, ao dividir o gênero em espécies, traz o gênero e ao mesmo tempo modifica o gênero. Ou seja, há um verdadeiro transporte do gênero na especificação; então: eu tenho a animalidade realmente em mim quando eu me torno um elemento racional e mortal, a animalidade vem comigo. Agora, o que eu pergunto: ao diferenciar a animalidade em racional e mortal, realmente modificou essa animalidade? Isso é uma diferença? Ou isso é uma identidade que subsiste em mim? Esse é o problema ontológico metafísico. Mantém-se uma substância ou uma identidade no gênero, essa minha animalidade é igual à tua. Isso não me interessa, isso é o senso comum que pensa. A animalidade em ato é sempre diferencial. Tudo que você encontra de animal são diferenças – diferenciais animais que não se comparam. É o que os megáricos dizem: se é diferente, é diferente; e se é idêntico, é idêntico; não venham fazer elemento de ligação forçada entre o diferente e o semelhante. É uma coisa em que eu não entrei ainda, no argumento soberano dos megáricos.
O que eu quero dizer, numa palavra: ao se efetuar, ao se realizar, ao se atualizar, algo de real se passa com você, uma diferenciação acontece; e essa diferenciação é ontológica, essa diferenciação é uma realização no mais puro sentido da palavra “real”. Se ela é uma realização, no momento em que eu me efetuo, eu me diferencio e eu constituo uma nova diferença. Eu não estou simplesmente dizendo: “olha, a minha substância ficou idêntica e uma diferença acidental aconteceu em mim; eu tenho a possibilidade de que várias diferenças acidentais se aglomerem em mim e eu, no fundo, sou o mesmo”. Ora, isso que é o tédio, isso que é a morte; como diz um pião amigo meu: “isso que é o fim da rosca”. É o fim da rosca você se acreditar sempre o mesmo nas relações que você empreende. Então para que estar vivo? Que sentido tem? O sentido é: quando você se efetua, você se torna diferente do que você é; mas se torna realmente diferente e não, simplesmente, acidentalmente diferente e se mantém a tua identidade. Então esse é o problema ontológico. Mas isso vai ficar claro ao longo das exposições.
É por isso que é impossível ter uma entidade que afirma um outro elemento. Não há essa distância porque a própria expressão é afirmação: se você se efetua de um jeito que expressa plenamente aquela potência, aquela afirmação é a própria expressão, não há diferença. Então não tem sujeito, não tem como ter sujeito. E isso mesmo gera algo que se põe no lugar do sujeito. Ou, nessas alturas isso já nem se remete mais ao sujeito – é simplesmente uma consistência que vai crescendo: você gera um corpo sem órgãos, você gera um plano de consistência a partir de afirmação. Afirmação de diferença. É a própria diferença que encontra a sua maneira afirmativa. E essa diferença nunca é de um indivíduo – ela se afirma no indivíduo. O indivíduo já é resultado de afirmações e diferenças.
Participante: Isso tem a ver com individuação?
Isso. É princípio de individuação. Aí não é o indivíduo.
Participante: em algum momento vamos ver isso aqui, a individuação?
Alguma coisa nós já vemos hoje. Então vamos fazer o seguinte: vamos direto aos estoicos e depois fazemos alguns embates com Aristóteles, com Platão.
Quando eu digo estoicos eu estou me referindo aos estoicos gregos. Os estoicos gregos se situam no século III a.C. E existem três grandes fundadores da escola estoica: Zenão de Cício (que é uma cidade de Chipre), Cleanto de Assos e Crisipo de Cilícia. São os três grandes pensadores que fundam a Escola do Pórtico. Estoico, em grego, significa pórtico. Zenão começou a ministrar as suas falas, as suas palestras, sob o pórtico – porque isso já dava uma ideia de que o profano se mantinha à distância do sagrado. É um saber “sagrado” (entre aspas, evidentemente, porque não tem nada a ver com o religioso: é um saber não ordinário – é neste sentido). É um saber que atinge aquilo de que geralmente os homens não se dão conta e nem querem atingir, que não interessa para uma vida utilitária cotidiana como a vida ordinária, que é entender a natureza como um todo. E talvez o estoicismo seja a primeira escola que realmente vê o universo, a natureza, como um todo – como um sistema até, por que não? Só que é uma ideia muito curiosa de sistema, não é um sistema como se entende um sistema fechado, como se entende uma estrutura; mas é como que uma visão completa do universo, na medida em que o indivíduo é parte do universo. E que não há nada, nenhuma realidade, fora disso que é apreendido. Então essa visão já se dá a partir de um momento em que as cidades gregas estão submetidas – não têm mais aquela liberdade de autodeterminação da pólis -, mas existe já uma submissão aos impérios – principalmente ao império macedônico de Felipe e de Alexandre.
A escola estoica surge com a morte de Alexandre – praticamente em 322 ou 324, se não me engano – fundada por Zenão. Não é o Zenão de Eléia, não é o Zenão de Parmênides; é Zenão de Cício, o cipriota. Ele teve aulas com vários pensadores socráticos, entre os quais Crates, discípulo de Antístenes, o cínico; também, se não me engano, frequentou Estilpon, o megárico. Quando dizemos pensadores socráticos, não são os que seguiram Sócrates; são os da época de Sócrates.
Euclides; enfim, relacionou-se com uma série de pensadores não ligados à Academia e nem ao Liceu, como p. ex., Diodoro de Cronos. Mas também frequentou alguns acadêmicos ligados à escola de Platão – Xenócrates e Polemon, por exemplo. Por outro lado, sob certos aspectos, renova a doutrina de Heráclito. De modo que Zenão teve, na sua formação, uma série múltipla de contatos que acabaram servindo para que ele gerasse algo absolutamente original. No fundo, o corte que Zenão e Crisipo efetuam na natureza, no pensamento e na visão do ser, já está sendo esboçado, já está sendo delineado, pelos cínicos – por Antístenes e por Diógenes. E é um corte na superfície. Nós já vamos entender que corte é esse.
Esse corte de superfície é uma maneira de ver a vida, uma maneira de se relacionar com o pensamento, uma maneira de se relacionar com a natureza, que não se volta para um idealismo – para um plano de ideias que estaria fora da natureza – e acredita que a felicidade estaria na virtude. E a virtude se conquista no exercício, numa askêsis: você adquire a virtude – no sentido latino mesmo, etimológico, de força. Então você conquista a força, você conquista a potência, no modo de viver.
Essa visão os cínicos já trazem, assim como a visão de cidadão do mundo: os cínicos – Antístenes, Diógenes – não têm casa, não têm cidade, não têm pátria, não têm vínculos sociais, não acreditam nas convenções sociais, não acreditam na lei como expressão de verdade e, de uma maneira ou de outra, já praticam um nomadismo despojado e se veem, se enxergam como cidadãos do mundo. Ou seja, essa ideia de cidadão do mundo – que implica uma série de nuances sociais, históricas, políticas – também dá uma certa condição de apreensão do universo como um todo. O universo não é mais aquela hierarquia que se dirigiria para o Bem, cuja multiplicidade estaria a meio caminho do caos e da ordem. O universo não tem mais essa dicotomia. Esses homens, esses pensadores, precisam encontrar uma base ou um critério não mais na sociedade, não mais na política, mas em si mesmos – no modo como eles atravessam a natureza, como eles vivem. O cínico, por exemplo, elogia que a sociedade construa os templos para que ele os habite, para que ele se sirva dos templos. Claro que existe uma série de anedotas, de deboches, de brincadeiras que eles fazem em função disso, mas eles são extremamente austeros na questão do modo de vida – e é uma austeridade que não tem nada a ver com o ascetismo platônico.
Existe uma anedota sobre Diógenes que foi posto, numa ocasião, num mercado de escravos – então Diógenes à venda no mercado. Chegou um comprador para Diógenes e perguntou o que ele sabia fazer; ele disse: “eu sei comandar homens; se você quiser um comandante de homens, me compre”. Ou seja, eles queriam ensinar a virtude não só no sentido de comandar, mas se comandar – fundamentalmente se comandar. E o que é se comandar? É não estar sujeito às paixões de modo aleatório, não ser escravo das paixões; mas, ao mesmo tempo, não excluí-las, não eliminá-las – compor-se com elas. É uma visão muito sutil. Mas eu vou abandonar essa espécie de desenho histórico, de pintura de quadro ou de pano de fundo, para entrar logo na questão que gera a filosofia estoica. E o que seria isso?
Essa visão de mundo ultrapassa a pátria, ultrapassa a cidade, ultrapassa a propriedade; despojada, de cidadão do mundo; e não vê uma hierarquia em relação ao Bem. Porque o Bem não se encontra fora do mundo, o Bem não é transcendente ao mundo; o Bem está na maneira de se efetuar no mundo. Isso gera uma percepção de que tudo faz parte de tudo, de que não haveria uma parte da natureza que seria má – exclusiva ou excludente – e outra parte boa ou atrativa a qual nós deveríamos seguir. A natureza inteira é perfeita, digamos assim.
O que um estoico diz que é real, quando ele vê o mundo? Ele diz: tudo o que é real que existe, que é um real existente, é corpo – nada além do corpo. Tudo que existe é corpo. Tudo que existe no espaço é o corpo – e nada além do corpo; tudo o que existe no tempo é o presente – e nada além do presente. Só o que existe são corpos e presentes – corpos no espaço e presentes no tempo.
De que são feitos esses corpos? Em Aristóteles nós vimos que eram indivíduos feitos de matéria e forma; para os estoicos são forças ativas e matéria que resiste ou matéria “passiva” – uma passividade entre aspas. Ou seja, são qualidades ativas e matéria passiva. Não há um corpo sequer que não seja composto de matéria e qualidade.
O que é uma qualidade ativa ou uma força ativa? É o que os estoicos chamam de alma. A alma estoica é uma força, é um pneuma, é um sopro vital; a alma estoica é um corpo. E tanto é um corpo que eles dão alguns exemplos: o medroso, ao sentir medo, se empalidece; o que sente vergonha, cora. E por aí afora. Você tem a “cor da alma” nos modos de se relacionar. A alma é corpo. Mas a alma, além de ser corpo, é uma força, é um pneuma, é uma qualidade ativa – ela não é forma, ela é força. O ato está na força e não na forma – isso é fundamental. E a matéria – agora usando os termos aristotélicos –, digamos que seria uma potência. Então você tem uma potência, que é uma matéria, em ato enquanto força. Uma força na matéria, uma força em outra força – que forma um corpo. Tudo o que existe são forças, ou são corpos, ou são seres. O que existe são seres.
O ser é – isso é uma herança de Parmênides – ou, ainda mais, de Heráclito. Por que? Porque Zenão estudou os antigos – ele afirma isso explicitamente: ter visitado os antigos e, dentre eles, Heráclito. Então ele como que encarna um renascimento do heraclitismo. Ele vai dizer que esses corpos, essas forças, essas qualidades, esses seres se unificam num ser primordial que é um fogo primordial. Tudo é fogo, tudo é um fogo primordial. Esse fogo primordial é a unidade de todos os corpos ou de todos os seres.
Nesse mesmo sentido, os corpos são causas – só o corpo é causa. Se tudo que existe é corpo, nada além do corpo pode causar alguma coisa. Como é que os corpos causam? Ou entram em relação? Dizem os estoicos: tudo está em mistura, tudo se mistura. E as misturas se dão ao acaso dos encontros, se dão num plano de contingência; não haveria um plano formal prévio, uma escritura do mundo, uma memória (como as formas ou modelos platônicos) nem um projeto (como as formas finais de Aristóteles) que diriam de onde o mundo vem e para onde o mundo vai – não haveria uma origem e nem uma finalidade. Os corpos se misturam sem origem e sem finalidade. Eles existem – são as únicas realidades existentes, atuais e estão numa relação de mistura.
A relação de mistura dos corpos gera tensões, estados e propriedades. As tensões, os estados e as propriedades são efetuações das forças ou das potências, são efetuações dos corpos. Então, na medida em que os corpos se misturam, eles agem e padecem. Se eles agem e padecem eles se efetuam, eles se modificam, eles se alteram, eles entram em metamorfose, e causam estados de corpo, estados de tensão, estados de ação e paixão. Então tudo o que existe no espaço é o corpo, mas o corpo em relação; e o corpo em relação é o corpo em mistura – o corpo em mistura que age e que padece.
E tudo o que existe no tempo é o presente. O que seria o presente? O presente é a medida da duração da ação e da paixão. Você tem uma paixão que se estende e você tem uma ação que se estende no tempo. O presente é o que dura a paixão ou a ação, o presente é o que dura o corpo. E esse presente, no limite, é um presente cósmico – há uma eternidade cósmica que envolve todos os corpos. Então os corpos, as causas, as forças se unificariam num fogo primordial e num presente cósmico. E os corpos, ou as partes dos seres, ou os vários seres que existem, são graus ou partes do fogo primordial, são tensões do fogo primordial. E eles são absolutamente atuais, eles são totalmente atuais. Então os corpos existem na mesma medida da sua atualidade – é por isso que eles são presentes, é por isso que o único tempo dos corpos é o presente. O presente é uma maneira de se relacionar com o tempo; e é a maneira dos corpos viverem o tempo.
Vamos introduzir um diferencial para deixar mais claro – ou para confundir mais. Os corpos são causas – só eles são causas. E vemos um diferencial aí: onde estava a causa em Platão? No modelo. Onde estava a causa em Aristóteles? Na finalidade, no ato final. Ou seja, a finalidade, em Aristóteles, é uma forma; o modelo, em Platão, também é uma forma, é uma ideia, é uma idealidade. E sempre genérica, sempre universal. Então o ato estaria nessa generalidade, nesse universal formal. Se eu digo que só os corpos são causa, e se o corpo é feito de pneuma ou força ativa e matéria passiva, eu estou dizendo que a causa é uma força ou uma matéria. A causa não é mais uma forma. E, na medida em que eu digo causa, eu também digo ato – ou a capacidade da atualização, porque vamos reservar a palavra “ato” para uma outra realidade, que é uma realidade não-existente.
Então, digamos, só os corpos agem e padecem. Os corpos são causas – uns através dos outros. Os corpos se efetuam. Mas além de serem causas e de se efetuarem, eles também são causas de efeitos de outra natureza que eles mesmos. Aqui está o corte que eles introduzem. Eles são causas de efeitos que não são corpos, efeitos que não são soma; esses efeitos são puros assomatas, puros incorporais. Não são corpos, são incorporais. Mas se tudo que existe é o corpo, o incorporal não existe.
Participante: Não é real.
Olha o que ela disse: “não é real”. Isso é o que Aristóteles diria. A realidade não se reduz à existência, para o estoico.
Participante: Se não é corpo, não é uma realidade.
Se não é corpo, não é uma atualidade, não é uma existência, não é uma realidade existente; mas é um outro tipo de realidade – e é aí que nós vamos chegar na sutileza do ultrapassamento do campo do possível de Aristóteles. Não é um possível, também.
Então os corpos, uns através dos outros, são causas de efeitos que não são corpos – são incorporais. Que não existem mas são reais. Que não agem nem padecem – porque só os corpos é que agem e padecem -; logo, eles são impassíveis. Que não são seres – porque só os corpos são seres – então eles são extra-seres. Cujo tempo não é o presente – porque só o presente existe -; se eles não existem, eles estão em um outro tempo que não é o presente; logo eles estão no passado e no futuro, mas nunca no presente. No passado e no futuro ao mesmo tempo, mas nunca no presente.
Participante: É um virtual?
É um virtual.
Esses efeitos não são propriedades, não são qualidades físicas – porque toda qualidade e toda propriedade, para o estoico, é física, é corpo. Olha a diferença de Platão e de Aristóteles. A Ideia platônica é aquela que tinha, em primeiro lugar, uma qualidade; e em segundo lugar era aquele que imitava e que recebia uma semelhança, decalcada da Ideia, que era uma qualidade: eu tenho a qualidade de Justiça, por isso eu sou justo – segundo o meu grau de semelhança a esse modelo que tem, em primeiro lugar, essa qualidade. Para o estoico, a qualidade ou a propriedade é um corpo, é físico; logo não é formal, é força ou potência. Mas esse efeito incorporal não é qualidade nem quantidade nem propriedade; ele não é um predicado do discurso; ele é um atributo incorporal. Ele é um atributo que se diz dos corpos, mas não é corpo.
Se essa realidade não existe mas é uma realidade, que modo tem essa realidade de ser realidade? Se não é uma existência, seria o quê? Seria uma subsistência? Seria uma insistência? Seria uma persistência? Uma insistência no futuro, uma subsistência no passado, uma persistência para que aquilo se incorpore.
Participante: É o eterno?
É eterno, também. Mas vamos avançar para você ter uma ideia de eternidade mais completa. Mas é por aí também.
Ele não é uma efetuação, portanto não é um fato – é um acontecimento. Se é um acontecimento e não um fato, é porque ele não tem espessura física. E se ele não tem espessura física, ele não só não chega a ser um instante físico ou um intervalo físico – ele é um instante subdivisível, é um instante que se subdivide. Exemplo: Santo Agostinho diz, do tempo, “quando eu penso no tempo, eu não entendo; quando eu não penso, eu entendo”.
Ou, de outro modo: o que houve há meia hora atrás é passado, o que vai haver meia hora na frente é futuro; o que ocorreu há 1 minuto atrás é passado, o que vai ocorrer 1 minuto na frente é futuro; o que ocorreu há 1 segundo atrás é passado, 1 segundo na frente é futuro; há 1 milésimo de segundo atrás é passado, 1 milésimo de segundo na frente é futuro. E você vai dividindo infinitamente o instante e você nunca pega o presente, o presente sempre escapa. É isso que é o aino, o tempo próprio do incorporal. Então há um outro tempo – que não o dos corpos – que é o tempo próprio do incorporal que os estoicos chamam de aino. O tempo dos corpos eles chamam de Chronos. Então você tem não uma leitura sucessiva ou excludente dos tempos – você não tem antes um passado, agora um presente, depois um futuro. Você tem duas dimensões simultâneas do tempo que acontecem no corpo e no incorporal ao mesmo tempo – elas coexistem. E essas duas leituras não se excluem, elas se complementam – ou elas têm a sua independência, a sua autonomia própria. O tempo presente é absolutamente autônomo, assim como o corpo é absolutamente autônomo. E o tempo aiônico, o passado e futuro ao mesmo tempo, também é absolutamente autônomo – ainda que haja uma pressuposição recíproca, ainda que haja uma relação, uma implicação entre eles.
Mas nunca uma implicação de causa e efeito. O efeito incorporal, uma vez que emerge do encontro dos corpos – ou que se destaca do encontro dos corpos – já é de outra natureza e por isso é que não há interação causal entre eles. O efeito vai remeter à causa mas de uma forma muito específica – não ao modo platônico ou aristotélico, como um ideal que causa o corpo, que dá ordem para o corpo. Ele vai se atribuir ao corpo de uma forma muito singular. Mas em vez de remeter à causa, ele vai remeter a outro efeito. Um acontecimento vai remeter a outro acontecimento. E os próprios acontecimentos vão ter maneiras de se relacionar entre eles, vão ter laços específicos, laços singulares. E os laços dos acontecimentos vão gerar uma lógica estoica.
A lógica estoica. Vai ser a apreensão da natureza dos laços dos acontecimentos ou das relações entre acontecimentos. E a liberdade é salva aí, nos acontecimentos, e também é salva nas causas. Você é livre de duas formas ao mesmo tempo: você é livre no corpo e você é livre no pensamento. É isso que está sendo dito. Como? O corpo se efetua. Os estoicos dizem – essa é uma máxima deles -: viva conforme a natureza. Já é uma máxima cínica. E os estoicos dizem a mesma coisa – viva conforme à natureza. O que é viver conforme à natureza? A natureza – ou tudo que existe – é corpo; o corpo é força, é causa; viver conforme a causa é viver conforme o que a causa quer. O que a natureza quer, o que a causa quer, o que o corpo quer, o que a força quer. E o que uma força quer? Se realizar, se efetuar – é só isso que ela quer. Não tem finalidade – a finalidade é a própria realização. Então você solapa, você tira aquele alvo final, aquele objetivo final desaparece e você tem simplesmente um “viver de acordo com a natureza” segundo a capacidade ou a potência que a força tem de se efetuar.
Então ser livre na causa é ser de acordo com a natureza. E o que é esse “de acordo com a natureza” é a necessidade da natureza. Liberdade e necessidade, para o estoico, é como em Espinosa. É uma necessidade da força se efetuar. Agora, como a força vai se efetuar é completamente aberto, é completamente virtual. Então é uma necessidade da efetuação no aberto, num campo aberto; é uma obra aberta, completamente aberta.
Participante: Com todo o constrangimento do mundo.
Com todo o constrangimento do mundo. O que é o constrangimento? É isso que não se entende quando um estoico diz “querer o acontecimento” – que é outra máxima estoica. O estoico quer o acontecimento. Em vez de ele negar, de ele rejeitar, ele chama o acontecimento: “venha!”. Ele ama a fatalidade que tem no acontecimento.
Participante: Aí, constrangimento não – é encontro, não é?
Constrangimento enquanto….
Participante:…. Enquanto encontro de forças.
Enquanto ainda a relação é extrínseca; enquanto você se sente constrangido a entrar ou fazer parte de uma situação. Só que no momento em que você percebe que é inevitável, que é fatal a força se efetuar – mas que ela não precisa se efetuar daquela forma em que se configurou o campo de relações, que ao se efetuar ela modifica o campo de relações –, você não só está de acordo com a natureza como você faz da imposição aparente, da pressão ou de um constrangimento aparente, uma liberdade.
Participante: O constrangimento muda também.
Muda de natureza porque você vê que é fatal que a força se efetue. Toda a força, ou todo corpo na natureza está em mistura, está em relação. E isso é que é o destino dos estoicos – não tem nada a ver com carma. Destino é o destino da causa. Qual é o destino de uma causa? Se efetuar. Agora, como vai se efetuar? Não está escrito; não tem uma escritura prévia nem final. Então não há carma. Destino estoico não significa determinismo mecânico de acontecimento. A liberdade está absolutamente salva num destino fatal. O fatal não é o possível e nem o impossível, não tem nada a ver com isso. Ele é o necessário.
Participante: Uma abelha. Ela tem uma determinação estrutural que é a determinação de abelha ou de um carrapato que quer chupar o sangue. Se ele não chupa o sangue, ele não está se efetuando.
Certo.
Participante: Para ele se efetuar ele tem que chupar o sangue. Para a abelha se efetuar ela vai ter que polinizar as flores. Tudo isso são corpos que se efetuam. No caso do ser humano, ele é altamente plástico – então tem uma diversidade muito grande.
Tudo na natureza é plástico. A abelha é plástica, a flor é plástica, a planta é plástica, a pedra é plástica.
Participante: Eu estou dizendo isso porque neste final de semana eu me peguei observando as formigas. É muito interessante porque o ato de ela se efetuar é uma coisa muito precisa, é uma natureza – a natureza de formiga. E eu fiquei pensando na natureza do humano.
A humanidade no sentido do essencial enquanto princípio de efetuação e de individuação do humano.
Participante: Isso. Como é que fica isso no ser humano? Você fala que tudo é plástico, mas a plasticidade do ser humano é brutal.
Vamos avançar um pouquinho que nós vamos começar a perceber; quando falarmos em devir e acontecimento, vamos ver exatamente o que você quer.
Participante: Você citou duas máximas. Tem uma máxima em que você já insistiu várias vezes que é “seja digno do que te acontece”. Essa máxima não é estoica., é uma leitura de Nietzsche?
É uma leitura que Joe Bousquet faz da vida e que Deleuze atribui a uma maneira estoica. De viver. O estoico diria isso. Se ele não disse, ele diria – porque é o modo estoico.
Participante: “Querer o acontecimento” e “viver de acordo com a natureza”. E depois colocamos aqui a questão do constrangimento. Eu estou falando isso por causa do ressentimento para com o acontecimento. Você está entendendo?
Deixe-me avançar para que essas questões se esclareçam.
Há dois incorporais puros. Um eu já disse: é o tempo, o aino, que é uma linha infinita de passado e futuro que vai infinitamente para o passado e infinitamente para o futuro ao mesmo tempo. Essa linha aiônica é um incorporal puro, digamos assim. Eu vou dizer incorporal puro porque existem efeitos incorporais e já vimos o que seriam esses efeitos incorporais. Incorporal puro é o aino – em relação ao tempo – e em relação ao espaço seria o vazio. Então o vazio é outro incorporal puro. O vazio, para o estoico, não é um nada; o vazio é real, assim como o tempo aiônico é real. Não existem; no entanto, são reais. Só os corpos existem, ou são atuais; os incorporais não existem mas são reais. Que realidade eles têm? A do virtual. São reais virtuais. E os corpos são reais atuais.
Participante: Não entram na categoria do possível, não é?
Não entram. Porque o possível é uma forma e o virtual não tem forma – ele tem a forma do vazio. O vazio e tempo aiônico envolvem todo corpo – não há um corpo sequer, não há um ser sequer que não seja envolvido por esse extra-ser puro que é o vazio e pelo extra-ser puro que é o tempo. Todos os corpos, todos os seres ocupam um lugar no vazio; logo, o encontro do corpo com o vazio gera um efeito incorporal: o lugar. Todo corpo tem um topos, uma topologia, uma força que se efetua num topos. Esse topos não existe previamente, ele é um efeito de encontro. E todo corpo no tempo é um corpo em acontecimento. Então o acontecimento é o efeito incorporal do corpo no tempo. O que é o acontecimento? É o corpo no tempo. Isso é um acontecimento.
Sinalizando: quem já leu Mil Platôs, ou então leu Foucault, ou tem alguma ideia do que seria forma de expressão e forma de conteúdo – o lugar dos estoicos é uma forma de conteúdo e o acontecimento é uma forma de expressão. São as condições de dizibilidade e de sensibilidade. A forma de conteúdo seria uma condição de sensibilidade – ou esse lugar, esse efeito incorporal lugar.
Participante: Qual platô? Qual volume?
Acho que seria o 4º, se não me engano.
Participante: terceiro.
É? Terceiro platô. Está lá nos Postulados Linguísticos. É o segundo volume da edição brasileira. Eu acho que é 4º platô.
Não há nenhum corpo que não esteja no tempo e no espaço, que não tenha um lugar e que não esteja em acontecimento. Logo: os corpos, ao se efetuarem, ao se encontrarem, não só se interpenetram, não só entram em relação de ação e paixão, não só se estendem e habitam o presente na duração da sua ação e da sua paixão, mas acontecem ou ocupam um lugar que está na superfície do ser, que está na extremidade do ser, que está no limiar ou na fronteira do ser. Na fronteira física, no limiar físico, mas que se destaca do físico como um ser sem espessura, como um extra-ser sem espessura. E esse limiar que entra no sem espessura, que é a fronteira do sem espessura, já funda uma superfície não mais física, mas uma superfície metafísica, uma superfície que estaria além da física, além do corpo.
Vejam bem, eu estou dizendo superfície metafísica; eu não estou dizendo forma metafísica de um outro mundo, eu não estou dizendo ideia – é uma superfície metafísica. Essa superfície metafísica emerge do encontro dos corpos no limite físico deles, na extremidade física deles, na fronteira física. O que é a minha fronteira física? A minha fronteira física é a pele. Dentro da minha pele existe o meu passado; fora da minha pele existe o meu futuro, existem os encontros, existe o fora. Então: fora e dentro.
O que separa os dois? A pele. A pele é o contato, é a extremidade; é por onde as coisas se tecem ou acontecem. É na pele que tudo se efetua. É nesse limite das membranas que tudo se efetua. Tudo se dá no plano das membranas. Tudo acontece em superfície. Mesmo que eu imagine uma célula profunda do meu fígado, do meu estômago – aquilo necessariamente se expressa em superfície, ela tem a própria superfície dela. Tudo se dá em superfície. O mais profundo – diria Paul Valéry – é a pele. O mais profundo é a pele. Ou Simondon: tudo cresce, ou se desenvolve, ou se desdobra no limite do vivo.
No limite do vivo você tem duas maneiras de apreender o ser, de apreender a vida, de apreender o modo de ser e de pensar. Você tem a forma platônica, a forma aristotélica, que seria: ao ver uma árvore, dizer “a árvore é verde”; ao ver um homem, dizer “o homem é um animal racional”, ou “o homem é um bípede sem plumas”, como diz Platão. Aí Diógenes, o cínico, cata uma galinha, depena, joga na academia de Platão e diz “eis o seu bípede sem plumas”. Essa forma de ver o mundo gera essas anedotas; é muito cômica porque ela quer paralisar o devir, ela quer ver sob um ângulo que seria o verdadeiro. Então você vê a coisa sob formas fixas. Então você diz “a árvore” – é uma substância, como diria Aristóteles, feita de matéria e forma – “é verde” – verde seria uma qualidade, uma propriedade da árvore. E toda a lógica aristotélica funciona assim: a substância e o atributo – só que o atributo aristotélico é uma propriedade fixa, é uma qualidade fixa, é uma quantidade fixa.
E as cinco vozes aristotélicas são instrumentos lógicos de que ele se serve – o gênero, a espécie, a diferença específica, o próprio, o acidente – para classificar ou para pensar dessa forma. Diz ele: é assim que se pensa. “O homem é branco” – um acidente; “o homem é um animal que ri” – é um próprio; “o homem é um animal” – é o seu gênero; “o homem é racional” – eis a sua diferença específica; “o homem é um animal racional e mortal” – eis a sua espécie. Então você tem formas fixas de atribuir ao sujeito.
Participante: E o “dotado de consciência”?
Por exemplo. Dotado de consciência, também. Tudo que você atribui a um sujeito, sem alterá-lo na essência, é uma forma representativa de pensar. Uma forma representativa porque você substitui uma realidade por uma forma e atribui essa forma a um sujeito supostamente real – mas que no fundo é uma pura ficção formal, também. Há uma série de anedotas. Quem estiver lendo Diógenes Laércio (Vida dos filósofos ilustres ou Vida dos homens ilustres) vai perceber o que sofistas, megáricos, cínicos, cirenaicos fazem com Platão, com Aristóteles, com os acadêmicos que veem e pensam assim a realidade.
E existiria uma maneira de ver o mundo assim: eu olho para uma árvore e digo “a árvore verdeja”, “o ferro avermelha”, “o homem enrubesce”. Existe uma forma que não seria uma forma fixa de ver as coisas; é uma forma em movimento, é uma forma em gerúndio – para falar sob o ponto de vista linguístico. É um ser em acontecimento, um ser em devir, um ser em ato se modificando, um ser acontecendo. Os estoicos dizem: “a faca – ou o escalpelo – corta a carne”. Ao cortar a carne, um atributo emerge no encontro da faca com a carne: é o de cortar – do ponto de vista da faca – ou de ser cortado, do ponto de vista da carne. Cortar – e ser cortado – é um verbo, é um infinitivo; e é um acontecimento que não modifica a natureza da carne, que não causa nenhuma alteração no corpo da carne, do ponto de vista do corpo. E que, no entanto, se atribui à carne ou se atribui à faca: cortar e ser cortada.
Outro exemplo: “o ferro, no encontro com o fogo, avermelha”. Se eu digo “o ferro está vermelho” ou “o ferro é vermelho”, o vermelho é apenas uma qualidade ou uma propriedade que o ferro tem de se avermelhar. Mas quando eu digo “o ferro avermelha”, esse avermelhar não pertence ao corpo do ferro e nem ao corpo do fogo. O avermelhar é um puro efeito incorporal que emerge no limite dos corpos como um extra-ser. Ele é um puro atributo.
“A água entra num vaso”, “o vinho como uma gota no oceano” – os corpos se interpenetram, um penetra no outro, um se retira do outro. As misturas que se efetuam causam modificações no corpo – modificações do ponto de vista do corpo – que são ações e paixões. Haveria boas misturas e más misturas. As boas misturas são as misturas que se compõem com aquele corpo; as más misturas são as misturas que destroem aquele corpo. Mas o acontecimento nem é bom nem é mau, nem é verdadeiro nem falso – o acontecimento é impassível e neutro, ele simplesmente emerge como um efeito entre duas espadas, como uma centelha entre duas espadas.
Participante: O avermelhar é um acontecimento?
É um acontecimento.
Participante: É uma tensão?
Sim e não. Ele não é uma tensão corpórea. Ele pode ser uma atração para o corpo, digamos assim.
Participante: Eu estou pensando nas tragédias. Estou vendo em todos os personagens das tragédias a emergência dessas coisas. Potências que entram no fluxo e de repente acontecem. Eles vão ao extremo e aí emerge a coação externa. Tensão nesse sentido. Emocionar-se é um incorporal?
A emoção não, o emocionar é.
Participante: Isso. Por isso falei como verbo. Tem a ver, talvez, com o que ele está falando que emerge numa tragédia?
Acontece sempre junto. Você tem as duas coisas simultaneamente. O que se passa no corpo são misturas – infernais ou divinas, não importa: tudo acontece, tudo é possível. De modo sempre passional. Você tem ação e paixão, dor e prazer, alegria e tristeza. No incorporal não. É por isso que o sábio estoico quer atingir a impassibilidade do incorporal. O Bem não está no alto, o Bem está no impassível; o Bem é você atingir uma serenidade tal que você não se perturbe nem com o pior dos acontecimentos. Mais do que isso – não é uma mera indiferença: que você deseje plenamente aquele acontecimento, mesmo que seja o pior. Chegar ao ponto do Joe Bousquet que diz: “aquele acontecimento existia antes de mim, nasci para encarná-lo”. Isso é que é ser digno do que te acontece.
Participante: Destino.
Destino e não carma. Não é uma resignação – muito pelo contrário, é uma vontade, é uma apoteose da vontade e não uma falência da vontade. Então é sutil a coisa.
Participante: Quem quer atingir, ou quem atinge a impassibilidade do incorporal? Neste sentido: que força é essa? O que quer esse que quer atingir? Quem atinge a impassibilidade do incorporal? O corpo, por exemplo?
O que atinge, o que quer a liberdade….
Participante: Dá para querer a liberdade?
Enquanto você não libera o duplo do acontecimento, você quer a liberdade. Como isso se dá? Querer a liberdade, enquanto você não atingiu o duplo, é querer realizar o que já é a tua própria natureza. Mas a tua própria natureza não é predeterminada, não é um determinismo, ela não é mecânica. Então o que é querer a própria natureza? É querer efetuar a potência que tem nela. Mas a potência que tem nela não é uma forma, então você não se obriga a uma finalidade, você efetua. Ao efetuar você tem a surpresa, você tem o novo, você tem o inédito. Porque toda a posição atual é inédita, não há uma posição atual que não seja inédita – ainda que o homem veja sempre como velho, como repetição.
Participante: É o ser autêntico, isso?
Sem dúvida. Absolutamente autêntico. Não há como não ser.
Participante: Mas posso perguntar o que já foi perguntado? No sentido do Nietzsche? Quem quer? Essa é uma pergunta que eu tenho faz tempo: quem quer o acontecimento, quem quer a liberdade?
A própria natureza.
Participante: Porque não é uma força. A potência quer se efetuar – isso é uma coisa.
A natureza tem paixão por multiplicidade. O que quer essa força que quer se efetuar, ou o que quer essa força que quer a liberdade? Quer se multiplicar, quer se diferenciar, quer gerar realidades, quer a modificação, quer a metamorfose. É isso que quer.
Participante: Isso, a força.
A metamorfose enquanto metamorfose. A força, a natureza, o corpo, o ser – tudo como sinônimo, por enquanto – quer a metamorfose, quer o devir. Ele é devir. Ele quer e ele é. Então, é como se o estoico dissesse assim: você já tem tudo, não te falta nada. Então o que mais você quer? Você quer se efetuar. Por que? Porque nessa duplicação, nessa dupla afirmação, você se torna pleno. Pleno em que sentido, se não te falta nada? Pleno no sentido de que você se torna a própria natureza brincante, a natureza que brinca consigo mesma, a natureza que se autoproduz. Enquanto eu (eu enquanto quarta pessoa do singular) não tomo parte da natureza, eu não sei o que a natureza em mim pode, eu não sei o que a natureza faz. Eu só sei os efeitos em mim, que a natureza produz em mim. Mas eu não me assumo como causa, eu sou uma mera paixão, eu sou um mero pathos. Já é muita coisa ser pathos, mas ser athos é tudo. Então ser pathos, aumentar o pathos o máximo possível, dilatar o máximo a capacidade de receber o mundo para aumentar o máximo o ato. Então é sempre uma relação de efetuação. Então eu atinjo aquilo que eu já era. Ao modo de Nietzsche: Ecce Homo – eis o homem – ou como se tornar aquilo que se é.
Continuando: todo o corpo é envolvido por vazio e por tempo; portanto, todo corpo ocupa um lugar e um acontecimento, necessariamente. Todo corpo está num topos – o ser é topológico na sua efetuação – e ele acontece. Logo, o corpo está necessariamente em devir; o próprio corpo é em devir, não há outra maneira do corpo ser. O corpo é em devir, é em mistura, é em efetuação, é em acontecimento. O acontecimento dos acontecimentos é o próprio devir. Mas o acontecimento, ou o devir, se parcializa. Ponha como exemplo os verbos: andar é um acontecimento; viajar é outro acontecimento; falar, olhar, comer, ouvir. Tudo que é verbo é o acontecimento que se ex-pressa na linguagem enquanto acontecimento, é o sentido do acontecimento na linguagem.
O acontecimento não é propriedade de nenhum corpo, o acontecimento é nômade e livre. O acontecimento não é um indivíduo e não é o coletivo; não é uma parte e não é um universal, não é uma generalidade. O acontecimento é aquilo enquanto acontece. “A animalidade em nós” é um gênero? É um indivíduo? Não, a animalidade enquanto animalidade. “A árvore arvorifica”: o arvorificar da árvore é o sentido essencial da árvore; há um sentido do arvorificar. O arvorificar é um sentido para uma árvore, é outro sentido para outra árvore, é outro sentido para outra árvore. Então uma árvore que tem uma quantidade de energia, uma qualidade e uma matéria, ao arvorificar ela dá uma cor, ela dá uma quantidade, uma qualidade, ela dá nuances para o acontecer, para o arvorificar. Então o arvorificar ganha uma intensidade. Todo ser, todo corpo, é uma intensidade; e todo corpo que entra em acontecimento dá a nuance da sua intensidade a aquele acontecimento. E ao dar a nuance da sua intensidade a aquele acontecimento, ele encontra a forma de expressão do seu próprio ser: o seu próprio ser se expressa no acontecimento.
É por isso que o acontecimento é tão visado e tão confundido com o fato. A sociedade tem o máximo de interesse em confundir, em reduzir o acontecimento a fato, a fato particular, e submeter o fato particular ao universal, a uma forma universal, a uma forma de lei. No momento em que você submete o fato a uma forma universal, você diz ao devir o que ele deve fazer – aquele fato tem que ser adequado a aquela forma. Quando eu estou no acontecimento puro, eu não vivo o fato; o fato é uma mera consequência, um mero efeito; eu não estou no fato, eu estou no acontecimento. E no acontecimento eu estou livre. Por que? Porque o acontecimento só é visto como acontecimento do ponto de vista da imanência da natureza. A natureza, no momento em que se expressa, ela acontece; e ao acontecer, ela não recebe nenhum limite de fora; não tem nenhum limite espacial de lugar, nem limite de tempo, dizer “olha, isso se dá nesse intervalo de tempo”. Mas a sociedade disciplinar, a sociedade de controle, uma sociedade que se funda no Estado, sempre vai recortar o acontecimento, reduzi-lo a fato e medi-lo por uma forma universal. Essa forma universal vem de uma ilusão gerada na superfície sobre o modo como vemos o acontecimento. Como vemos as coisas, como vemos os acontecimentos, é que nos dá a nuance, nos dá o segredo de viver em devir ou de se submeter a uma forma transcendente ao nosso ser em devir.
Então, a questão fundamental: apreender o acontecimento enquanto acontecimento é todo o segredo do estoico. É por isso que o estoico. diz: a salvação está na superfície, a verdade ou a realidade ou a salvação – se quiser usar esses termos escatológicos – está na superfície. Não está numa profundidade pré-socrática (como na anedota de Empédocles se encontrando com o Etna, ou seja, encontrar um elemento profundo do corpo que seria o elemento primordial), não está na altura platônica do modelo, ou na forma final do Aristóteles (naquele motor imóvel que é puro ato formal imobilizado, fixo e universal), mas está na superfície, está no modo como eu me relaciono, está na própria relação – na relação que constitui o acontecimento ou que é o próprio acontecimento.
Então o objeto do corpo e do pensamento agora é a superfície. A superfície do corpo é o encontro ou as misturas de corpos; a superfície do pensamento é o próprio acontecimento. O objeto do pensamento não é mais o modelo, não é mais o conceito universal de Aristóteles, não é mais a phýsis pré-socrática (ainda que haja uma transmutação do sentido de phýsis aqui). A phýsis ou a profundidade sobe à superfície. Tudo sobe à superfície, e ao subir à superfície você encontra a própria liberdade, você encontra o modo de efetuação. Então a liberdade está na relação, está no encontro; e a produção de liberdade e de realidade está aí também. Você produzir realidade, ou ser livre, ou ser eterno, é a mesma coisa. Isso tudo se dá na superfície, se dá na relação, se dá no acontecimento. O acontecimento é o sentido do pensamento e a maneira do corpo. O corpo se expressa; o corpo, que é um ser, tem uma maneira de ser. E o pensamento expressa o sentido da própria maneira de ser. Aí você começa a associar e a apreender o que quer esse corpo que se efetua; e quem quer nesse corpo, que natureza é essa.
Se o acontecimento não tem forma, é porque o acontecimento não é sucessão de instantes ou de fatos; o acontecimento é algo no devir. Se é algo no devir, toda forma, no devir, vira uma linha que tece, vira uma linha abstrata. Uma linha abstrata por que? Porque não é a concretude do corpo, é o sentido do tempo; é no sentido do tempo que a orientação do corpo se dá. Então todo corpo é envolvido por um acontecimento que se expressa na linguagem como o próprio pensamento; o pensamento é o sentido do acontecimento. E o sentido do acontecimento não é um signo linguístico; não é um objeto do mundo designado, não é um sujeito que se manifesta ou um signo de manifestação (como o eu, por exemplo) e não é uma significação, não é uma relação entre sujeito e objeto; não é nem um significante, nem um significado. O sentido é o que funda todas essas dimensões – o que funda o sujeito, o que funda o objeto, o que funda a significação é o sentido; ele é anterior a essa organização secundária, a essa ordem secundária do mundo.
Essa organização secundária se dá sempre que eu tenho uma figuração no corpo, como forma de conteúdo, e uma formalização do tempo como forma de expressão. Aí eu começo a ver o tempo e o espaço como instantes ou como figuras; instantes no tempo e figuras no espaço. Quando eu me relaciono com figuras e com instantes, eu me relaciono a coisas fixas, eu me relaciono a seres e não a devires; eu estou ligado à sucessão de instantes ou à conjugação de figuras, as conexões de figuras. Se eu entro em devir, o fato ou o acontecimento de entrar em devir já implica necessariamente uma abertura da forma de expressão e da forma de conteúdo; o lugar é um lugar móvel e o acontecimento é uma linha móvel e flutuante. Por que eu digo isso? É móvel e flutuante porque não é fixa; mas não é fixa porque a potência é suficiente para não se deixar limitar por alguma força externa. Essa força externa que viria dar a forma ou o limite de fora, vira um fantasma ou um brinquedo, na medida em que você reencontra essa imanência em você, na medida em que você é o próprio sopro, na medida em que você é a própria qualidade ativa, na medida em que você se torna a própria força ou que você é a própria força, você se encontra na própria força.
Por que há separação? Esse alguém que se encontra com algo que já é? Há separação porque geralmente vivemos o acontecimento como fato. Tem lá uma forma cristalizada e nos colamos a essa forma cristalizada; aí precisamos encontrar a força em devir que já éramos. Somos isso. Então, reencontrar isso, assumir isso, é que é toda a questão estoica, é a questão ética. E a questão ética estoica é então traduzida na máxima “querer o acontecimento”. O que significa querer o acontecimento? É querer os fatos? É querer o consumo? É querer encontros? É querer viajar e ver gente, encontrar pessoas, encontrar objetos e consumir objetos? Será que é isso que eles estão dizendo? Com certeza não é.
Então podemos a começar a ver o seguinte: querer o acontecimento é se colar à mudança enquanto mudança. Ao efetuar a potência, a potência – que não tem objeto, que não tem um alvo – gera o seu próprio alvo como efeito de superfície. Gerar o próprio alvo como efeito de superfície: que efeito é esse? Não interessa à potência encontrar uma superfície recortada, não interessa à potência encontrar um limite de tempo que vem de fora, não interessa à potência encontrar um limite de espaço. Mas interessa à potência ter um solo de efetuação, uma superfície, um plano, algum topos, algum território, algum plano onde ela como que toca o incorporal. Um incorporal que não mais encerra a potência numa forma, mas um incorporal que chama a potência para que, ao ela atingir o incorporal, tocar o acontecimento e aquilo entra em metamorfose contínua, entra em variação contínua. Atingir Algo em nós – e agora começamos a ver o que é isso que quer em nós – que se quer enquanto variação contínua. Se querer enquanto variação contínua não é atingir uma descontinuidade da variação; é variação contínua mesmo, o que Deleuze chama de desterritorialização absoluta ou diferença diferenciante, a diferenciante que se quer diferenciante, não a diferença que atinge um alvo. Nunca é isso.
Mas o que são os alvos, então? O que são esses territórios que construímos, o que são essas consistências que geramos? São modulações ou acontecimentos a partir de encontros singulares; então há como que uma geração, segundo um contexto de lugar e de tempo, de singularidade. Há uma geração de singularidade, há uma modulação da minha potência ou da minha variação, naquela condição de efetuação. Mas se eu estou na minha variação enquanto variação, na minha diferença enquanto diferenciante, eu não vejo mais a condição como um limitador; eu sou um co-ator, eu coajo com a coação; na coação que existia eu me torno um co-ator. E na medida em que eu faço parte é que tem um segredo ético. Como eu faço parte? Eu me insinuo? Eu faço parte pela metade? Ou entro como um todo?
Participante: Precipita? Hesita?
Eu precipito, eu excito, eu hesito – na medida em que aquela forma não é a expressão plena para minha potência – , eu lapido, eu subdivido aquele acontecimento, eu suspendo o acontecimento, eu encontro mil nuances que eu não encontraria se eu vivesse o acontecimento como um instante apenas, sucedendo a outro instante. Ao suspender o acontecimento, ao entrar no acontecimento enquanto acontecimento, eu dou, eu gero a expressão; a minha força, a minha potência é aquela própria expressão; aquilo é um deus, aquilo é uma realidade, aquilo é uma estrela dançante, aquilo é o que se expressou. A expressão e a potência se colam, a profundidade e a superfície viram uma coisa só. É isso que é a rostidade da natureza, é isso que é a máscara de Dionísio, é isso que são as máscaras dionisíacas, é isso que são os autênticos transportes dionisíacos da diferença que se diferencia – porque ao se efetuar, ao se diferenciar, realmente você se tornou algo diferente do que você era. E isso é produção de realidade, e não fingir um falso transporte, fingir que você mudou quando você está lá com uma identidade ligado a um solo que daria segurança e uma aparente consistência; e sim esse mergulho no acontecimento, esse desejar o acontecimento, esse querer o acontecimento – querer algo no próprio acontecimento, querer algo no que acontece.
Que Algo é esse que se passa no que acontece? O que se passa no acontecimento? Como diria Gilles Deleuze: um esplendor neutro. O sentido mesmo do acontecimento, o duplo do acontecimento. Esse Algo – e agora vem a resposta de “o que quer esse que quer o acontecimento?” – é a contra efetuação. O corpo quer se efetuar; a efetuação se dá na incorporação do incorporal, na efetuação do acontecimento; mas o acontecimento, na efetuação, vira uma parte, vira um particular; ou vira um coletivo, vira um universal. Ele é uma determinação, ele é um indivíduo, ele é um coletivo, ele é algo no corpo. Mas onde está a liberdade do acontecimento? Na abertura. No momento em que você contra-efetua, você retoma toda a potência que o acontecimento tem nele mesmo.
Participante: Você distensiona o arco.
Não, é o contrário. É o momento em que você o tensiona ao máximo. É como que você, ao suspender o acontecimento, você está no acontecimento puro. Você não está dizendo “ele tem a cor vermelha”, ou “verde”; ele tem todas as cores em virtualidade e você pode ir para cá ou para lá. E cada orientação, sentido ou caminho que você toma, é um mundo novo que nasce.
É você se liberar da efetuação no corpo. Joe Bousquet – que se feriu na guerra, recebeu uma bala na espinha e ficou paralítico – diz: “aquele ferimento estava lá antes da minha vida; nasci para encarná-lo”. O que é a encarnação daquele acontecimento? Fisicamente, a encarnação é uma imobilidade de locomoção do seu corpo; na contra-efetuação, ele abre novamente o acontecimento. E toda a vida que, aparentemente, a efetuação tinha roubado – que seria, por exemplo, matéria de ressentimento, matéria de acusação, matéria de negação de uma parte do acaso e da contingência, objeto de acusação da natureza ou da sociedade, “a sociedade é má” ou “a natureza é injusta”, “a vida é injusta”, “a existência é injusta” -, você retoma o acontecimento nele mesmo, no seu esplendor neutro, como a batalha de todas as batalhas, o acontecimento de todos os acontecimentos. E nesse retomar, nessa contra-efetuação, nesse contra-efetuar – ou seja, nesse desencarnar, nesse desincorporar do acontecimento – você retoma toda a virtualidade e liberdade que tinha nele.
Participante: Dessa forma, a efetuação é uma parada de fluxo? Porque se a contra-efetuação leva a desencarnar nesse sentido de liberar, então o efetuar é a parada de fluxo.
É e não é. É o paradoxo.
Participante: Por que não é o continuar no devir? Não é sucessivo – primeiro se efetua e aí depois…
É uma coexistência de corpo e de acontecimento, mas o que ocorre é o seguinte: no momento em que você entra na contra-efetuação, você – que não é mais uma identidade, que não é um sujeito, que não é um objeto – é uma singularidade nômade. Essa singularidade nômade é essencialmente plural; é por isso que o singular não é um ato, não é um indivíduo – singular não é oposto a plural. O singular já é plural. Singular e plural é a mesma coisa. Então é uma singularidade que não remete ao átomo, não remete ao indivíduo, não remete a uma fixação. Porque é esse o problema: é percebermos o acontecimento enquanto uma atomização do corpo. Aí sim é uma parada de fluxo – se você interpreta assim, é uma parada de fluxo. É por isso que o Joe Bousquet quer reencontrar o acontecimento; ele quer o acontecimento não mais como fato, mas algo naquilo que acontece. O que seria esse Algo naquilo que acontece? É a própria velocidade, é o próprio fluxo; retomar o fluxo. O que é retomar o fluxo? É ser a própria vontade, é ser a própria força em devir. A força em devir, ou a vontade em devir, não se congela numa capa, numa forma, numa efetuação externa do corpo.
A efetuação deixa de ter o caráter de incorporação física – você se libera de uma incorporação física. O terror de Hegel, por exemplo: Hegel acredita que o universal em si e para si é uma evolução em relação ao universal fora de si. Mas toda vez que eu tento efetuar ou trazer o universal para mim, fazer com que ele me sirva, é como se eu entrasse numa clausura, em uma forma aprisionante – eu sou isso mas não posso ser as outras coisas. Como se uma parcialização excluísse as outras. Todo o problema da contra-efetuação é eliminar a exclusão. É atingir a diferença inclusa, é atingir a disjunção inclusa. Síntese disjuntiva, disjunção. É um diferencial – mas é um diferencial que se você vive do ponto de vista de uma consciência, de um sujeito ou de um objeto, você entra numa via e exclui as outras.
No momento em que eu vivo o singular como plural ao mesmo tempo, eu entro em todas as vias e numa só ao mesmo tempo. Eu não excluo nenhuma delas. Eu só afirmo todas elas porque aquela em que eu entro, eu entro inteiro; e eu só entro inteiro se eu faço a contra-efetuação no acontecimento. É a questão de apreender o tempo nos dois níveis ao mesmo tempo: o tempo da duração do corpo e a subdivisão do instante ao mesmo tempo. Então cada efetuação de corpo traz, nela mesma, a subdivisão; e na subdivisão eu reabro e ao mesmo tempo eu habito, simultaneamente, as outras partes que aparentemente estavam excluídas.
Participante: Na hora em que há uma efetuação?
Na hora em que há uma efetuação.
Participante: A efetuação como um fato – e depois o reabre como acontecimento outra vez. É isso que você está falando?
Exatamente. Ele abre a tua vida. Porque olha só, geralmente vivemos esses dramas: “se eu for fazer isso com a minha vida, será que não estou perdendo outras coisas que seriam mais interessantes ou mais importantes?”. Esse é um drama existencial. É um problema ético: onde eu sou pleno e intenso? Nietzsche diz: “as virtudes são mulherzinhas ciumentas que brigam entre si”.
b>Participante: O homem sem qualidades.
É a questão do homem sem qualidades. As qualidades, ou as virtudes, são mulherzinhas ciumentas – a linguagem do Nietzsche – que brigam entre si e que não deixam nenhuma se efetuar. Ele diz: o espírito livre é aquele que é uma só virtude. O que ele quer dizer com isso? É que se é uma só virtude e você é uma única flecha, você é pura afirmação. Você é afirmação. Ao ser afirmação, é o modo de efetuação que é a própria afirmação. É por isso que o modo de efetuação, a condição de efetuação, se dá na superfície; e é uma superfície de expressão, ou de explicação, ou de desdobramento, ou de manifestação imediata da própria essência, da própria potência, da própria força. É nessa manifestação, nessa explicação, nessa expressão, que a potência se mostra inteira.
Participante: E aí está a virtude?
Essa é a virtude. É a única virtude. A ponto de o Nietzsche identificar ser e afirmação. E retornar: você só retorna na afirmação. É isso que é o eterno retorno. O ser do eterno retorno, esse retornar do eterno retorno, é você afirmar de modo tal a diferença que a diferença se expressa inteira. No momento em que ela se expressa inteira, ela se retorna inteira. Mas ela se retorna inteira enquanto diferença – logo, diferente do que se expressou.
Participante: Então o eterno retorno são contra-efetuações?
O tempo inteiro contra-efetuações. Efetuações e contra-efetuações; afirmação e dupla afirmação, Dionísio e Ariadne. É por isso que as bodas, o casamento, se fazem com o devir e não com o outro. É com o outrem e não com o outro. Não ame o outro, ame o que se passa no entre, ame o devir. É por isso que a revolução sempre é uma questão de entrar em devir. É por isso que a esquerda, ou os ditos revolucionários, que lutam desesperadamente para conquistar a maioria, estão já fracassando a revolução. Quando você conquista a maioria, você já perdeu o devir – porque a maioria é exatamente a forma de se separar do devir. E é isso que é entrar num devir minoritário; minoritário é o devir de todo mundo, é o devir dos povos, é o devir de qualquer ser – inclusive daquele ligado ao poder. Sempre é um devir minoritário – a maioria é um ninguém, como dizem Deleuze e Guattari.
Participante: Então toda revolução é marginal.
É na fronteira. A revolução é na fronteira. Marginal é estar do outro lado da margem.
Participante: É estar à margem. “À margem” é estar de fora.
Não é “na margem”?
Participante: não, é estar à margem.
À margem ainda é complicado. Eu acho mais interessante dizer na margem. Instalar-se na fronteira – é isso que é cavalgar os fluxos, montar numa vassoura de bruxa. Instalar-se na fronteira, é no acontecimento, é na linha que divide passado e futuro – é ali que você tem que se instalar. Em tudo, em qualquer coisa que você faça. É essa linha que você tem que habitar. É colar a linha do aion ao presente do seu corpo. Essa linha que subdivide é que faz da sua altura, da sua representação, uma superfície e uma expressão. Entrar em devir é isso.
Participante: É o presente, não é? Essa linha é o presente.
É o que Foucault chama de atual, que seria um presente. E o que Nietzsche chama de inatual, que é contra o presente instituído. É a mesma coisa.
Participante: A linha é o fio da Ariadne?
É, é o fio de Ariadne. Não é o fio de Teseu, que é o fio moral, que o Nietzsche diz: “enforquem-vos nesse fio”. O fio moral é aquele que te orienta: você entra no labirinto com a corda para voltar por ela mesma – você precisa de um guia, você precisa de uma referência. E Nietzsche diz: “enforquem-se nesse fio moral”. Ou seja, haveria um bom sentido, haveria uma orientação, haveria uma referência.
Dionísio é o próprio labirinto – ele mergulha, ele afirma o labirinto. E ele encontra o minotauro e o minotauro não é o Mal e nem o Bem.
Participante: Mas o fato dessa teia de aranha.
A teia é feita pelo fio da moral. A razão pressupõe a moral. É por isso que Nietzsche diz: o sujeito do conhecimento pressupõe o sujeito moral, pressupõe o ascetismo. Não ser moral e ser ético – e aí os estoicos te dão a dica: querer o acontecimento. Querer o acontecimento é dizer: a natureza inteira é um acontecimento; e querer o acontecimento é querer a natureza inteira – não separá-la em Bem e Mal. Não dizer que tem uma parte da natureza que é boa, outra que é má; uma parte que tem ordem, uma parte que é caos, desordem, irrealidade e ilusão. Tudo é ordem, tudo é realidade; a natureza inteira, para os estoicos, tem ordem. Platão dizia que não, Platão dizia que a imagem sem semelhança, que é o simulacro, deve ser recalcada no mais profundo dos oceanos, deve ser acorrentada e não deixar nunca subir à superfície. Porque o sofista que sobe à superfície, o simulacro que se insinua na superfície, é o corruptor dos mundos e das formas e das figuras, das coisas fixas, das orientações, da harmonia, da razão, do Bem, da lei, etc. Ele quer que o simulacro, que o sofista, que a arte, fique recalcada. Por que? Porque essa parte é o devir puro, louco – é o aion.
Aí vem Aristóteles e diz: não, tudo é substância e a substância é feita de matéria e forma. E a matéria está submetida à forma; logo, eu tenho que encontrar a forma na substância. Então tudo no mundo é substância, e uma forma que eu abstraio e gero o conceito – ou encontro a forma, a classificação daquele gênero de vida, daquele gênero de ser, que é a finalidade daquele ser. Então o mundo inteiro é uma grande finalidade e tende para aquela unificação universal que é o Bem. Agora, o acidente, em Aristóteles – que vive na substância, que depende na substância – é uma diferença desprezível; a singularidade é uma diferença desprezível. Logo, o acontecimento é desprezível. Aristóteles diz: o acidente é a última das realidades formais. Ou seja, há uma diferença acidental, que ainda é uma forma; mas é uma forma extrínseca, é uma forma exterior. E essa forma não tem a mínima importância.
Os estoicos dizem: tudo é acidente. E a substância do Aristóteles, eles dizem: é pura força e matéria; não tem uma forma em uma matéria, é força e matéria. As qualidades, as propriedades, a hierarquia entre as dez categorias – substância, qualidade, quantidade, movimento, lugar, etc. – nos estoicos vira tudo duas coisas: ser e devir, corpo e acontecimento. Só, mais nada. E todo acontecimento – que é acidental, na medida em que eu só sofro os efeitos de modo exterior – se torna essencial na medida em que eu tomo parte daquele acontecimento e quero aquele acontecimento. Eu libero a essência do acontecimento. Então a essência está no sentido do acontecimento. A essência vira um sentido – e o sentido é aberto, é uma linha aberta, é uma orientação no tempo. Uma orientação no tempo que vai em dois sentidos ao mesmo tempo – o sentido vai para o passado e para o futuro, não tem mais um bom senso.
Logo, Aristóteles recusa uma parte da natureza como acidental ou como material; Platão recusa uma parte da natureza como imagem-simulacro, imagem sem semelhança; uma série de filosofias, ou de sociedades, ou de modos de viver, recusam uma parte da natureza como sendo má. As religiões fazem isso direto. Até uma parte de sofistas, dos cirenaicos e de algumas escolas ditas socráticas recusam uma natureza e vivem no puro acidente; os estoicos vêm e dizem: tem a natureza e tem o acidente; as duas coisas se colam. A natureza no acidente, a natureza no acontecimento, a natureza e o artifício são, no fundo, uma coisa só. E essa Coisa, esse Algo, que os estoicos vão chamar em grego de to eòn, isto é, alguma coisa, ou um quelque chose, – modo como é traduzido para o francês – é um Algo que envolve o ser e o extra-ser, o corpo e o incorporal. Esse Algo, no fundo, é todo o plano de imanência da natureza. Então o estoico não se vê simplesmente como um homem social; ele se vê como um homem natural, ele se vê como parte da natureza; ele vê a natureza e todos os seres fazendo parte da natureza. E veem como a natureza se relaciona, como ela funciona.
As parcializações que a natureza produz na sua efetuação em devir nunca são parcializações que encontrariam um limite fora delas, como uma causa final aristotélica ou como uma ideia original platônica; nem como uma mera convenção – o ponto de vista de alguns sofistas ou até de alguns cínicos, de alguns cirenaicos, de alguns megáricos. Mas no acontecimento mesmo, no acidente mesmo, na convenção mesmo, eu encontro essências. Essências que não são agora formais, mas são linhas abstratas, são linhas de tempo, são processos de devir. Então você tem sempre uma força na matéria em acontecimento. É sempre isso que você tem. Essa natureza é completamente movente e auto movente; não tem nem princípio nem finalidade; o que ela quer é se efetuar e se contra-efetuar. Por que ela quer se contra-efetuar? É o modo de manter o querer livre, de manter a abertura do ser. O ser é essencialmente aberto. A contra-efetuação é a condição da abertura do ser.
Então a ética estoica diz: querer o acontecimento tal e qual, sem tirar nem por; ver no devir exatamente o que o devir tem: nem sobrevalorizando, nem subvalorizando, nem depreciando, nem dando mais valor do que tem, mas encontrar a justa expressão. Assim você encontra a justiça imanente à própria natureza. Não precisa de nenhuma instância, de nenhum juízo, você não precisa de nenhum referencial; a natureza dá a própria medida – a medida da capacidade de efetuação que ela tem, que ela traz. Isso vai gerar um problema ético que é selecionar, que é gerar uma superfície seletiva, inventar um filtro nas relações – um filtro que não seja uma teia de aranha moral. Selecionar como? Não é com a consciência, não é com o sujeito e não é recortando um monte de objetos e dizendo “é por ali, é por aqui”. Não é isso. É mais como um diagrama do que como um programa. É encontrar as linhas que mantêm a natureza sempre aberta e o ser sempre em devir. É esse modo ético de se construir uma superfície seletiva ou um plano de consistência. Então o problema estoico é esse: como se manter na superfície, como não perder o devir. Ou seja, como não se tornar reacionário. Revolução é revolução em devir. E não é pessoal, não é de uma pessoa ou de um coletivo; é de uma força em devir.
Participante: A ideia de autopoiésis não é mais ou menos isso? Você tem uma superfície membranosa, em termos de célula – estou pensando em biologia – e ela se autoproduz e ela está em contato com a natureza. A todo instante está se autoproduzindo. E ela nunca é a mesma, ela sempre se transformação.
Isso. E essa transformação não é uma ilusão.
Participante: Não, é concreto isso.
Absolutamente concreto. É uma geração de realidade, é o real que se autoproduz. É a substância espinosista. É a fábrica, é a usina. A natureza é uma usina. Natureza naturante que gera a natureza naturada, que não se separa da natureza naturante. É uma autoprodução constante. É isso que Espinosa chama de Deus. Olha que Deus interessante, esse.
Participante: Eles falam um pouco mais dessa seleção? Há algo que se possa ler sobre isso?
Existem critérios. O que dá para ler é que é complicado. A História da Filosofia do Émile Bhéhier; também a História da Filosofia do Châtelet, que tem um texto do Pierre Aubenque sobre os estoicos. Sobre a questão da seleção tem alguma coisa. Aí precisaria daquele texto que ainda está em francês, do Émile Bhéhier, chamado Crisipe. Esse texto tem que ser traduzido urgentemente. É um texto fantástico, é uma interpretação que o Bhéhier faz do Crisipo que é o mais brilhante dos estoicos – Crisipo é uma fera. E tem um texto também do Bhéhier que está em francês, La théorie des incorporels dans l’ancien stoïcisme. Tem um outro texto do Victor Goldschmidt, que aí já é um livro um pouco mais grosso; chama Teoria do tempo no antigo estoicismo. O Goldschmidt não atinge as nuances todas, mas ele libera um monte de análises muito interessantes, ele decompõe o estoicismo de uma forma muito interessante – bem sistemática, bem acadêmica até, mas muito interessante, ele libera muita matéria. Agora, quem é o artista do estoicismo, mesmo – o grande intérprete do estoicismo – é o Émile Bhéhier. Ele é quem resgatou com vigor essa ideia de incorporal, aquilo que os estoicos chamam lecton – o assomata, incorporal, é um lecton, é um sentido na linguagem. E isso aí o Bhéhier fez muito bem, ele pegou isso com uma sutileza incrível. E ele faz a comparação com o aristotelismo, com o platonismo. Então esse texto é muito importante.
Agora, existe uma obra belíssima que é completamente estoica, que é a Lógica do sentido do Gilles Deleuze. Essa obra é imperdível, essa é a grande viagem. Lógica do sentido é tudo.
Participante: Eu gostaria de ver a questão da ordem no caos. Acho que seria interessante trazermos isso.
Isso é objeto da nossa aula seguinte, porque é a questão que vamos lutar o tempo inteiro com o ocidente, é o nosso combate da dívida infinita, a dívida existencial. No estoicismo não tem isso – a natureza é perfeita. O ato está na força. E a força não tem dívida com nenhuma forma – a força é o que ela pode nela mesma. Então a força traz uma ordem imanente a ela mesma. O caos é o caos enquanto você vê de fora.
Participante: Uma outra questão é a da efetuação e contra-efetuação. Estou me lembrando do Arqueiro zen.
É completamente isso. É a contra-efetuação.
Participante: Pois é. Mas aí eu estou me lembrando do texto e da imagem e não vejo essa contra-efetuação. Eu vejo um movimento só. Eu vou até reler nessa semana. Mas eu não consigo ver essa contra-efetuação.
Ele não diz lá “a suspensão da ação”? Até ele diz uma coisa: suspender o pensamento. O que ele está chamando de pensamento? É um diálogo, a tagarelice dialética interior que temos, a consciência. Suspenda isso. Suspenda a consciência. Suspenda isso que se chama de “pensamento” e atinja o pensamento do próprio acontecimento. O arco, a flecha, o alvo e o arqueiro como uma única linha do aion.
Participante: Nem tem o alvo, na verdade.
Acabou o alvo. E acabou o arqueiro. Quer dizer, é uma linha. E você suspender o acontecimento – isso é uma contra-efetuação.
Participante: Suspender o acontecimento?
Você suspende o acontecimento. Você suspende a efetuação, você está na contra-efetuação.
Participante: Mas aí já não é efetuação, é fato. O que você vai suspender é fato.
No fundo é isso.
Participante: Por isso eu não estava entendendo. Não é bem o acontecimento, porque aí volta a ser acontecimento.
Isso. Eu acho que eu preciso marcar essa diferença. É isso mesmo. Você suspende o sensório-motor, suspende o fato, a encarnação, a incorporação.
Participante: Suspende a tensão do arco?
Mas aí você está na tensão máxima.
Participante: Mas suspende o sensório-motor!
Ah não, eu estou dizendo outra coisa.
Participante: Como tônus.
Você até está no tônus do corpo – então isso é uma efetuação – mas você está na contra-efetuação do tempo do acontecimento. Você está no tempo, você está naquele tempo onde o instante nunca entra no presente – ele se divide infinitamente; quando ele vai se efetuar, ele se subdivide novamente. Você distende.
Participante: Onde está a contra-efetuação? Isso eu entendo. É infinito isso.
Pronto, é isso aí – você entrou no infinito, acabou de entrar no infinito. Eis a liberdade. É tudo isso que temos que reconquistar. É o infinito na finitude.