Luiz Fuganti
Hoje eu pretendo fazer o seguinte: sintetizar, finalizando parcialmente Nietzsche. E estou com uma ideia de falarmos um pouco de Foucault na próxima aula; porque Foucault está um pouco abandonado e ele é muito importante. Poderíamos fazer uma coisa assim. Estou com uma dúvida no seguinte sentido: a minha ideia era dar a máquina de guerra com o Kleist na literatura; a questão de Hölderlin que envolve literatura também e a tragédia. Isso tudo eram intenções.
Participante: fenomenologia?
Fenomenologia, existencialismo, estruturalismo, física quântica, biologia molecular… foi só um sonho, um projeto estapafúrdio em função do tempo que temos. E se eu optar por realizá-lo, vai ficar tudo muito eclético, tudo muito rápido e acho que não vamos crescer muito, não vai valer muito a pena. E Bergson – talvez eu ainda dê uma aula. Ao menos uma para darmos uma situada nele.
Participante: ele é importante para o pensamento de Deleuze, não é?
Ele é superimportante. Podemos fazer o seguinte: dou uma aula a menos de Deleuze e dou uma de Bergson. Ou Bergson e Deleuze numa aula.
Então a questão seria, hoje, atingirmos o ponto de bifurcação que faz com que o produto da cultura – tal como Nietzsche o vê, o interpreta na Genealogia da Moral – não seja o homem superior.
O homem superior é um produto do niilismo e Nietzsche quer fazer uma autêntica crítica e uma autêntica transvaloração e transmutação do elemento genealógico da vontade de potência e de todos os valores; quer fazer essa diferença radical. Então o homem difere em natureza do que Nietzsche chama de super-homem; há uma diferença de natureza, não é que o homem vai ser ultrapassado e atingir o super-homem. É um diferencial, é uma outra postura. No fundo é uma mudança no mesmo lugar; ou – de uma outra forma um pouco ainda misteriosa, vamos ver isso melhor – destruindo o lugar, o lugar do homem que, no fundo, é o lugar de Deus. Nietzsche não quer simplesmente substituir o homem; ele quer acabar com o lugar do homem que, no fundo, é o lugar de Deus.
Então hoje vamos ver essa história e esse caminho: um é o efeito ou o produto de devires reativos, e o outro seria o efeito ou o produto de devires ativos. Diz Nietzsche que nós não sabemos o que é devir ativo, não sabemos o que é sentir de modo ativo, perceber de modo ativo, pensar de modo ativo.
Porque a terra foi tomada por devires reativos. Onde o homem passa, onde ele ocupa, onde ele se instala, não é apenas ele que está ou que entra em devir reativo; é toda a terra, são os vegetais, são os animais, são os elementos da natureza que o serve que entram em um devir reativo e, portanto, as forças ativas estão aprisionadas e submetidas a devires reativos.
Então vamos fazer hoje uma distinção entre forças – ou atividade e reação, que são funções ou qualidades da força – e devires, que já têm a ver com o elemento genealógico da vontade de potência.
É porque as forças são abstraídas em relação aos seus devires que não entendemos, que reduzimos a realidade aos seus efeitos, à sua atualização, e não apreendemos o plano virtual. A virtualidade está no campo da vontade; e não sabemos o que é a afirmação porque o virtual simplesmente não tem existência para nós. De fato, o virtual não existe, mas ele é real; e o homem reativo não apreende a realidade do virtual. Nietzsche não usa essa linguagem, o “virtual”, ele usa o termo afirmação. Então afirmar é algo que não tem a ver simplesmente com a atualização de forças; afirmar é toda uma condição, é toda uma atmosfera, é todo um modo que você não apreende a não ser no jeito de ser, no jeito de existir. É o modo de vida que faz com que a afirmação atravesse.
A afirmação, em Nietzsche, não é afirmação de alguém sobre alguma coisa; não é atributo de alguma coisa, não é propriedade de alguma coisa, não é a faculdade de um sujeito que afirma algo de um objeto. A afirmação é, em Nietzsche, o próprio ser. Em Nietzsche não existe o ser: o ser é afirmação. Não é uma afirmação do ser: o próprio ser é que já é afirmação. Então não há descolamento entre afirmação e ser. Ser é afirmar.
Agora, como é que essa história falha? Como é que a atividade genérica da cultura vai desembocar num produto falhado? Não é que ainda não atingiu o produto; já atingiu o produto – esse produto são os homens superiores, são os homens europeus, os homens democratas, os iguais, os homens racionais que se apropriaram e se apoderaram dos valores divinos, das idéias que estavam no outro mundo. Apoderaram-se disso e se desalienaram do divino: o homem superior já é um homem dialético, já é um homem hegeliano. Eu vou desenvolver isso tudo, sei que está abstrato agora, mas eu vou dizer exatamente o que é isso.
Então diz Nietzsche: esse produto da cultura, que deveria ser o indivíduo livre e soberano, é o homem superior. Ou, em outros termos, ele diz: de grega, a cultura se tornou alemã; de romana, virou judaica ou cristã; de renascentista, virou reformista; virou dialética, virou humanista, virou democrática, virou socialista. Então Nietzsche quer entender porque as forças ativas – que necessariamente atravessam a natureza, atravessam os homens, atravessam tudo – entram na aliança com o homem num devir necessariamente reativo. Aí Nietzsche se pergunta: será que o homem reativo é apenas um acidente na história? Ou será que ser homem é necessariamente ser reativo?
Nietzsche chega a essa conclusão: que a forma homem necessariamente é uma forma reativa.
Não que estejamos fadados ao desaparecimento, nesse sentido. Diz Nietzsche que o essencial é você encontrar as forças em você, ou no homem, que estão aprisionadas pela forma homem; essas forças é que têm que ser liberadas e gerar uma outra maneira, um outro tipo que não é mais o homem, com certeza não é mais o homem. Não é o homem que evolui, que se desenvolve, que se supera; é algo de outra natureza. Esse algo de outra natureza pode estar em nós ou nunca advir.
Então o que Nietzsche diz? O homem é essencialmente reativo e o que explica a essência reativa do homem não são apenas as forças reativas que estão dominando em relação às forças ativas; não são apenas as forças reativas que se apoderaram das forças ativas. Mas é o devir reativo. É mais em baixo o problema. E é o devir reativo que dá a essência reativa do homem. Mas não há devir reativo sem uma vontade de potência; é na vontade que a força está em devir. Não há devir sem a vontade; a vontade é o próprio devir.
Mas não há devir reativo sem uma vontade negativa – a vontade que nega, a vontade que tem a qualidade da negação ao invés da afirmação e que faz da negação não apenas uma maneira de ser, mas um poder de negar. Esse é o problema: o poder de negar é que gera um devir reativo no homem ou que define o niilismo.
O que é niilismo, então? Já esboçamos de modo resumido, mas hoje vamos desenvolver um pouco mais. Nihil não é não ser. Nihil é nada ou valor de nada. Valor de nada que a vida toma a partir de uma ficção. Não há outro fundamento na ficção que não seja a crença em outro mundo, em valores superiores. É o outro mundo ou o mundo suprassensível que é a essência de qualquer ficção – ficção que desqualifica ou que deprecia a vida. Então nihil ou niilismo é uma negação ou uma nadificação da vida em função de um outro mundo, do mundo suprassensível. O mundo da sensibilidade, o mundo do corpo, o mundo sensível, não é o mundo essencial, ele é o mundo aparente; porque o mundo essencial é o mundo suprassensível.
O niilismo faz exatamente isso: ele quer o outro mundo, ele quer o mundo suprassensível com todas as formas que o mundo suprassensível ganha – como Deus, o Bem, o Ideal, os valores superiores.
São formas do mundo suprassensível ou formas do outro mundo. O valor superior à vida é inseparável do seu efeito; o seu efeito é que a vida é inferior. É ao mesmo tempo que você diz que existem valores superiores à vida e que você desqualifica ou deprecia a própria vida. Então você nega a essência ou a realidade a este mundo, ao investir em valores superiores. Ao investir em valores superiores a vida inteira na Terra, ou toda a Terra, ou toda a natureza se torna irreal ou aparente. É a vida em geral que se torna aparente na medida em que eu invisto os valores superiores. E a vida, em particular, se torna reativa. Esse é o efeito.
E por que ela se torna reativa? Porque toda atividade ou afirmação da vida nela mesma não é tolerada ou não é suportada pela vontade de negar, pela vontade niilista. A vontade niilista não tolera outro tipo de vida, ela não aguentaria outro tipo de vida; ela só tolera o que é passivo, o que é reativo, o que é fraco, o que é impotente, o que está separado do que pode. Porque a atividade em si mesma seria irreal; a atividade só tem um sentido quando ela se submete aos valores superiores, às alturas platônicas ou ao Deus cristão, ao Deus judaico, aos monoteísmos enfim, ao Bem. Essa atividade, então, só é viável, só é valorizada na medida em que ela está submetida ao ideal do valor superior. Então ela é necessariamente julgada.
Então é também ao mesmo tempo que a vontade de negar só tolera as forças reativas e também necessita dessas mesmas forças reativas para instaurar o seu poder; ela desenvolve o seu poder na medida em que as forças reativas são jogadas contra as próprias forças ativas. Enfim, a vida reativa é atirada contra a vida ativa; ou seja, é a vida reativa que faz com que a vida seja negada. Ou seja, depreciada. Ou seja, reduzida à sua reatividade. A vontade de negar precisa da vida reativa para gerar um devir reativo em toda a Terra e em todos os homens através do ressentimento – desenvolvido através do tipo reativo, ressentimento que acusa (“você que age e que poderia deixar de agir, mas não o faz, é mau; portanto eu, que não ajo e que poderia agir, sou bom”). Então essa acusação do tipo reativo em cima do tipo ativo é o que é aliado da vontade de negar: a vontade de negar joga a vida reativa contra a vida ativa.
E é por subtração das forças reativas ou dos tipos reativos em relação às forças ativas – ou seja, as forças reativas deixam de ser agidas -, que as forças ativas ficam separadas do que elas podem.
E as próprias forças reativas, ao estarem separadas do que podem, entram num devir reativo e se voltam contra elas mesmas. É o nascimento da má consciência.
Então o ideal ascético, ou a vontade de negar, lança mão do ressentimento e da má consciência – ou, em uma palavra, do tipo reativo – para jogar o tipo reativo exatamente contra o tipo ativo. E assim gerar o triunfo da vontade de potência que nega, da vontade de potência que quer o poder e, ao mesmo tempo, das forças reativas; as forças reativas só triunfam aliadas com a vontade de negar. Não haveria triunfo das forças reativas sem a vontade de negar ou sem o devir reativo, em outras palavras.
Estamos aqui fazendo como se o tipo reativo fosse absolutamente separado da vontade negativa, mas no fundo tudo se passa no mesmo indivíduo. Às vezes mais num e menos em outro. O tipo de sacerdote é muito mais uma vontade de negar do que uma força reativa propriamente dita – ainda que ele esteja ali cheio de forças reativas, ou submeta a atividade a essa reatividade; mas o sacerdote é mais representante, digamos assim, da vontade de negar ou do ideal ascético. E o tipo ressentido, o tipo da má consciência, por exemplo, são mais ligados às forças, à vida que se torna fraca, à vida que se torna impotente. Mas, no fundo, há uma intimidade, há uma relação íntima entre a vontade de negar e as forças reativas ou os tipos reativos. Isso é fundamental marcar porque daqui a pouco vamos fazer uma análise de como é que o niilismo é vencido por ele mesmo, em função de um desenvolvimento.
Porque ele toma vários aspectos na história.
Então niilismo, em um sentido primeiro, significa valor de nada que a vida toma ou a aparência da vida, em prol de um mundo suprassensível ou de um outro mundo; ou seja, investimento na ficção de um valor superior e negação da vida na sua essência – a vida tem apenas aparência, a vida se torna uma grande irrealidade. Então é sempre por ficção que você nega alguma coisa: a ficção de uma vontade no outro que pode se separar da sua força e do seu efeito – que é aquele silogismo do cordeiro em relação ao lobo: “você que age, que poderia separar a sua ação do seu efeito, você é mau porque, no fundo, você tem um substrato, você tem uma vontade” – ou seja, a ficção de uma força separada do que ela pode, gera o ressentimento; a ficção de uma dívida que é signo de culpa gera a má consciência; e a ficção de outro mundo, que é superior, nega este mundo. É sempre por ficção que você nega o outro, que você nega a si mesmo e que você nega este mundo.
Participante: em resumo, você nega a vida.
Isso. Então esse seria o primeiro sentido de niilismo. O segundo sentido é o niilismo reativo. O que é o niilismo reativo? Essa vida, agora reativa, fraca, impotente, miserável, pobre, infeliz, reage contra a vontade de negar; reage contra os valores superiores; reage contra o outro mundo; reage contra Deus. Não necessita mais de Deus, não necessita mais de nenhum valor superior; agora ela quer apenas ficar com ela mesma. As forças reativas querem ficar com elas mesmas: sem a vontade de potência, sem Deus, sem o chefe, sem uma testemunha, sem os valores superiores. Apenas valores humanos. Então é uma reação contra Deus. Mas é a mesma vida – que é fruto já da negação original da vontade de negar – que reage ou ressente contra os valores superiores. Esse seria o segundo sentido de niilismo.
Isso vai desembocar numa coisa ainda mais terrível que é a descoberta de que esses valores humanos, de que essas forças reativas que apreendem agora a realidade que elas são, no fundo é a mesma aparência gerada pela velha vontade de negar. Isso vai desembocar no chamado niilismo passivo ou no homem que não tem mais nenhuma vontade – de preferência um nada de vontade a uma vontade de nada, a uma vontade de outro mundo. Nada de vontade, nada de valores superiores, valores humanos; mas quando se percebe que os valores humanos são ilusórios, nada de valores – nem divinos, nem humanos. Isso é o que Nietzsche vai chamar de niilismo passivo.
Então temos o niilismo negativo, o niilismo reativo e o niilismo passivo. Mas o niilismo ainda não está completo, ainda não chegou ao seu termo. Vai haver um ponto, um momento, em que a vontade de negar rompe a sua aliança com as forças reativas. E as forças reativas, rompendo a aliança com a vontade de negar, elas simplesmente não eliminam a vontade de negar; a vontade de negar agora vai se voltar contra as próprias forças reativas e vai destruí-las. Vai desembocar naquilo que Nietzsche chama, no prólogo do Assim falou Zaratustra, no homem que quer morrer. Ou seja, a vontade nega a própria força reativa. Então há uma autodestruição, um aniquilamento ativo; mas isso só é possível quando o ponto focal da vontade de potência, no seu elemento genealógico, mudar de aspecto – não for mais a vontade de negar ou a negação ficar a serviço da própria afirmação. É aí que começa a haver a transvaloração de todos os valores e uma autêntica transmutação do próprio elemento genealógico.
Então isso é um resumo, agora eu vou desenvolver um pouco mais essa questão.
Participante: como você denominaria esse último niilismo?
Niilismo ativo ou niilismo vencido por ele mesmo.
Participante: só pode vir como resultado desses outros três, não é? Não pode vir sem que essas outras desistências tenham se dado.
Participante: eles funcionam em estágios.
É, em estágios. Agora, esses estágios são inconscientes. Isso não significa que haja uma sucessão imaginária no tempo.
Participante: mas para que haja o niilismo ativo, necessariamente eu teria que ter passado pelos outros niilismos.
Olha, Cristo vai direto ao niilismo passivo. Cristo é budista. O budismo está muito mais avançado, ele está no final já do processo niilista, porque ele não tem o elemento da acusação: ele não acusa o outro e nem acusa a si mesmo, ele não acusa.
Participante: ele vai direto no ativo.
É o niilismo passivo, que vai desembocar no ativo, que vai desembocar no homem que quer morrer.
Participante: é porque são graus de desistência. Num primeiro momento é um niilismo porque você está mergulhado em tudo que é nada e você acredita nisso; depois é contra isso – é outra desistência – e aí investe no que você tem aqui; depois você nega até esse.
Porque você vê que esse não é nada.
Participante: ou seja, é uma terceira desistência.
É o eu. E aí o que é o eu? O eu não é nada.
Participante: vai chegar no suicídio agora, não é?
Mas você não tem força para isso. Nem para se matar. É isso que Nietzsche chama de o último dos homens. O último dos homens não consegue se matar; ele quer se afogar no mar, mas nem mar tem mais. O que é o mar? O mar é a vontade de potência, o mar é o virtual. Ele não encontra mais nem o virtual, ele não tem força mais para nada porque, no fundo, a energia da força ou a potência da força, vem da vontade. E ele não encontra. Ele é o homem tedioso, o homem entediado. Até que a vontade de nada vem e o invade de alguma forma – ou de fora, ou nele mesmo emerge, e aí o elimina.
Participante: então esse niilismo ativo só pode acontecer quando essas outras desistências se passaram. Não que seja hierárquico, mas não dá para entrar nele sem que já tenha passado por todas essas desistências.
Sem dúvida. Você pode ir direto nele porque você não chega nem a acusar, digamos assim.
Participante: vontade de nada, esse niilismo ativo, pode ser simplesmente não negar a morte.
Sim.
Participante: deixar morrer. Não reagir contra alguma coisa que venha acabar com a vida dele.
Exato. É uma vontade de um aniquilamento passivo. Morra passivamente: isso que é o nada de vontade; não tem vontade para morrer, você se extingue passivamente. Seria isso.
Participante: como se não existisse, nesse último, nenhum objeto. Sobre a questão dos estigmas, das doenças, da depressão: uma das interpretações sobre a depressão é que a pessoa não entra em contato com seu desejo, ela vai destituindo o desejo. E tem esse nome, como doença mais contemporânea, que é a depressão.
É o tédio. É o nada de vontade.
Participante: exato. Você pergunta “o que você quer? ”. Não é nem que eu não saiba, é que eu não quero nada. É diferente de não saber.
Participante: eu não quero querer.
Participante: eu não sei se é “eu não quero querer”. É “eu não quero”.
Não tem nem querer aí, mais. Você some, você entra em depressão mesmo. Eu não quero querer ainda é vontade de nada, ainda é “eu não quero”. Você ainda quer não querer.
Participante: então o que acontece? Como trabalhar isso, a vontade ou o desejo, quando você pega o fluxo e não vincula isso a objetos? Quer dizer, você vai trabalhando isso, desenvolvendo isso…
É todo o segredo. É o segredo do que Nietzsche chama de afirmação. E afirmação não é algo que se passa num discurso (“eu afirmo algo”), não é um sujeito que encontra uma propriedade ou um atributo e se auto predica ou que predica de alguém alguma coisa. A afirmação é o próprio ser que gera o devir, é o próprio ser do devir. Mas isso já é o final da aula.
Essa aliança entre a vontade de nada ou a vontade de negar e as forças reativas, ou essa relação entre elas se chama piedade – Nietzsche chama isso de piedade. A vontade de negar ou a vontade de nada é a vontade de negar esse mundo, de negar a vida ativa e ir em direção a um nada, a um outro mundo. Eles não dizem o “nada”, eles dizem Deus, o Bem, o Ideal; Nietzsche dá o nome logo, Nietzsche diz: é o nada. Vontade de nada ou de negar nega o quê? Nega as forças ativas. Mas ama, de alguma maneira, ou tolera, suporta e precisa das forças reativas ou dos tipos reativos. Então essa tolerância ou esse amor, Nietzsche chama de piedade.
A piedade é a tolerâncias pelos graus mais baixos da vida, pela vida no grau quase zero, por uma vida que não ameace, por uma vida que não é ativa. A vida ativa não precisa negar nada, ela afirma a sua diferença; é por isso que a vontade de negar não pode tolerar a vida ativa. A vida ativa simplesmente faz com que a vontade de negar desapareça. A vontade de negar não se desenvolve sem a vida reativa. Então essa aliança entre a vontade de negar ou a vontade de nada e as forças reativas é essencial: as forças reativas não triunfariam sem a vontade de negar.
Imagine nós aqui, um bando de impotentes: somos impotentes, fracos, estamos ameaçados e, ao mesmo tempo, não conseguimos reagir, apenas ressentimos. Tem aí uma atividade imensa fora que é o nosso pânico, que é a nossa ameaça porque se essa atividade se mantiver, somos destruídos, somos aniquilados. O que queremos? Ainda queremos nos conservar, queremos sobreviver, queremos nos manter. E como fazemos? Negamos a atividade do outro porque o outro não se separa da sua ação. Negamos o outro. Só que não consigo negar o outro com mais força porque eu não sou mais forte, eu sou mais fraco. Então o que eu faço? Eu me reúno ao outro fraco, e a outro fraco, e formo um rebanho; e me subtraio à ação das forças ativas.
O que faz a força ativa? A força ativa age a reação e precipita a ação. Eu roubo o solo da força ativa porque eu sou força reativa; eu roubo esse solo, eu não me submeto, eu não obedeço mais à força ativa, não me deixo ser agido. E me reúno a outros que também não se deixam serem agidos. E formamos nós aqui uma acusação: “eles, os maus”. Isso é ressentimento. Mas eu só acuso de modo a forma lizar e ser eficaz através da ficção de um outro mundo – que me é dada através da vontade de nada.
Então eu preciso dirigir a minha acusação, a minha formalização de que o outro é mau, fundado nessa ficção; e isso quem me dá é a vontade de nada – ou o sacerdote. Nietzsche diz: o sacerdote judaico.
Depois daquela bela civilização de nômades e até dos reis de Israel, vêm os ascetas, vêm os sacerdotes que geram esse tipo de ressentimento e que orientam o ressentimento.
Então a força reativa só triunfa se unindo, na subtração (não é na soma que ela fica mais forte, é na subtração), através da vontade de negar. Ou seja, não é que eu nego dizendo que eu nego o outro; não é que eu nego reagindo; eu não consigo reagir, eu não consigo me subtrair à marca que o outro deixou em mim. Isso é inconsciente. A marca se tornou sensível em mim. A marca se torna consciente. Tudo se passa entre forças reativas. Então a força só vinga se ela se aliar com a vontade de negar.
E, por outro lado, a vontade de negar só triunfa se as forças reativas se unirem e triunfarem junto. Ou seja, o triunfo de uma é o triunfo da outra, e vice-versa. É por isso que a vontade de negar só suporta a força reativa e ao mesmo tempo ama a força reativa porque é através do tipo reativo que ela vai jogar a vida contra a vida, ou a vida reativa contra a vida ativa. É isso que vai fazer a vontade de negar.
Até o ponto em que não há mais o que negar, que a vida inteira na Terra se torna reativa. E quando ela se torna reativa, a força ativa volta-se contra si mesma e aí vai esculpindo a sua interioridade. E aí o sacerdote cristão, que muda a direção do ressentimento ou da acusação – não é mais o outro, agora sou eu mesmo –, vai dar forma a essa coisa que era apenas material, que era apenas em potência, digamos assim, que era apenas latente. Assim como o sacerdote judaico vai dar forma ao ressentimento, que antes era só latente também. Então essa formalização é sempre através de uma ficção. O sacerdote cristão então vai inventar a dívida ligada à dor ou ao castigo: a dor vai ser um signo de castigo e de dívida, de expiação de dívida. Foi através da análise da cultura, que fizemos na aula passada, que esclareci esse aspecto.
Então a vontade de negar precisa do ressentimento e da má consciência para que ela triunfe. O que é a vontade de negar? A vontade de negar são as Igrejas, os Estados, os poderes que se destacam da própria sociedade. É isso que é vontade de negar, no fundo. Onde há Estado, onde há Igreja, onde há uma instância fora da sociedade que se apodere da sociedade e dos homens, isso se chama de vontade de negar ou vontade de nada. Que ao mesmo tempo acusa a vida, acusa o outro, acusa a si próprio, acusa o mundo e acredita em valor superior.
Agora, as forças reativas toleram cada vez menos esse Deus ou esses valores superiores, porque Deus não só é uma testemunha, mas ele também é um chefe. E as forças reativas, na medida em que triunfam, não precisam mais de Deus, não precisam mais do chefe. E toleram muito mal esse Deus bisbilhoteiro que vê a impotência e a miséria das forças reativas; esse Deus que está em tudo, que é onisciente, onipresente, onipotente, que vê tudo, que pode tudo, que vigia tudo. A força reativa não aguenta mais isso. Na figura do mais ignóbil dos homens, no Assim falou Zaratustra, você tem o assassinato de Deus. Deus tem várias maneiras de morrer. A morte de Deus é uma forma de Nietzsche que diverge das proposições especulativas: Deus existe ou não existe? Isso é a teologia toda, é uma parte da filosofia, que tem sempre esse problema ou, diria Nietzsche, esse falso problema; a existência ou a não existência de Deus é um falso problema. Portanto, a solução vai ser sempre falsa. Nietzsche diz: no fundo, essa proposição não é analítica, é sintética. É uma síntese da vontade de negar com o próprio tempo, é uma síntese de Deus no tempo; Deus morre na história.
Haveria cinco sentidos básicos da morte de Deus. Nietzsche vai dar umas 15 ou 16 versões dessa morte de Deus, mas cinco sentidos essenciais se destacam, que vão nos fazer entender como é que há o rompimento ou a ruptura entre a vontade de negar e as forças reativas.
Deus morre na figura do filho: agora é uma análise entre judaísmo e cristianismo. Nietzsche diz: o Deus judaico era o Deus de um povo, era o Deus de uma nação, era o Deus de alguns. Isso tudo são forças que se apoderam do sentido ou que dão um sentido a esse acontecimento, à morte de Deus.
Então existem forças que dão esse sentido, existem outras que dão outro sentido. Então vamos ver um sentido segundo certas forças. Então, segundo a vontade de alguns sacerdotes judaicos – e diz Nietzsche: esse é o golpe de mestre deles -, é separar o seu Deus – que é um Deus de um povo – para que esse Deus se torne o Deus de todos, um Deus universal. E como isso é feito? Através do assassinato, pelo Deus judaico, do seu filho. Então Cristo morre na cruz – na realidade condenado pelo próprio movimento do sacerdote judaico. Então o filho morre ou o pai mata o filho. Isso é um sentido. E o filho fica independente do pai.
Outro sentido: o filho mata o pai e renasce como Deus. O Deus judaico digamos que é o Deus do ódio, o Deus do ressentimento, o Deus bravo, é o Deus que mete medo, é o Deus carrancudo, é o Deus violento. Esse Deus que renasce na figura do filho é um Deus do amor, é um Deus bondoso, é um Deus não mais de um povo, mas um Deus universal. Então isso é uma outra interpretação, é um outro sentido que faz com que esse Deus fique independente do seu pai – o filho se torna universal. Isso não é Cristo, são as forças se apoderando da morte de Cristo. Porque Cristo mesmo é budista, ele não é nem uma coisa nem outra. Ainda estamos aqui no niilismo negativo.
Um outro sentido ainda, dentro do niilismo negativo: São Paulo se apodera da morte de Cristo e faz dessa morte algo que tem a ver com as forças reativas, algo que envolve as próprias forças reativas ou a dívida das forças reativas. Deus morreu por nós, Deus morreu pelos nossos pecados, Deus morreu pelas nossas dívidas, Deus – que era o credor – pagou as nossas dívidas. Um Deus louco que se prega na cruz para pagar a nossa dívida, que se tornou infinita e impagável. Portanto, diz São Paulo, olhem esse Deus que morreu por nós, que morreu por vocês; ele morreu para nos salvar, para resgatar a nossa dívida impagável – não tinha mais como pagar essa dívida, quitar essa dívida. Ele se pregou na cruz e quitou a nossa dívida. Assim a dívida ficou mais profunda ainda, mais infinita ainda. Então nós somos eternos devedores da morte da Cristo. E, mais do que isso, Cristo ressuscita. Cristo ressuscita e promete, a quem crê nele, a ressurreição também: a sobrevida para o tipo reativo. Ou seja, você só é salvo, você só retorna, você só ganha a vida eterna se você aceitar a reatividade, o tipo reativo em você; se você aceitar a culpa em você, se você se ligar a esse Deus ainda mais profundamente, através da dor e do sofrimento que te unem a ele. Desse modo você é salvo. Então esse é o terceiro sentido niilista da morte de Deus, dado por São Paulo.
Esse Deus, diz São Paulo, morreu por amor dos homens; mas esse amor esconde algo muito importante. Porque o amor não é o amor pela vida ativa, não é o amor pela afirmação; é o amor pela vida fraca, pela vida reativa, pela vida miserável, pela vida doente, pela vida fraca. É esse o amor. Portanto esse amor esconde um ódio mais fundamental, esconde um ódio à vida ativa, à vida afirmativa. É isso que esse amor esconde. É isso que o amor cristão esconde; é isso que a piedade e a fraternidade cristã escondem. Portanto, diz Nietzsche, nada de dialética, nada de dizer que esse amor é o oposto do ódio. Onde a dialética vê oposições, diz Nietzsche, o genealogista vê nuances, vê diferenças, vê uma série de aspectos a serem avaliados, a serem pesados, a serem interpretados. É preciso ver quem se apodera da morte de Deus e o que quer esse que se apodera da morte de Deus ao dar tal ou tal sentido à morte de Deus. O que quer São Paulo? É um ignóbil, é um dos mais ignóbeis dos homens, com certeza. Esse é. O homem do ódio e que fundou a Igreja cristã – não há Igreja sem São Paulo. São Paulo é a essência do cristianismo.
Participante: por que essa história pegou tanto?
A vida se tornou reativa na Terra, e a vida reativa precisa de ficção para vencer a vida ativa.
Participante: mas qual é a vantagem?
Vantagem para o tipo reativo que precisa se conservar. Ele ainda quer viver, ele ainda quer se agarrar à vida mesmo que reativa, mesmo que miserável, mesmo que doente; ele ainda quer viver. E ele só sobrevive se ele não deixar que a força ativa o destrua. Não que ela queira; só pelo fato de ela agir ela já provoca estragos incríveis nas forças reativas. Tudo por ficção também. Tudo se passa entre forças reativas.
Participante: mas por que essa força ativa não atua?
É a questão da afirmação. Onde está a afirmação? Sem afirmação a força ativa não devém, não há devir ativo. A afirmação é a condição e o princípio da vida ativa.
Participante: tem um livro da Clarice Lispector, A hora da esperança. Ela fala assim: tudo começou com um sim, com uma afirmação (afirmação é por minha conta). Uma molécula encontra com a outra e diz “sim” e aí a vida se faz. Esse livro é bárbaro.
O quarto sentido da morte de Deus: o homem se descobre como o assassino de Deus. Isso já estava implícito na interpretação de São Paulo. O cristianismo já é ateu na origem, os cristãos mataram Deus, nós matamos Deus, nós botamos Cristo na cruz, nós somos os mais ignóbeis dos homens. Isso significa, ao mesmo tempo, que nos pomos no lugar dele – não precisamos mais dele. Isso já é uma outra via, a via reativa mesmo; eu reajo a ele, eu não quero saber mais dele, eu me ponho no lugar dele. Não só me ponho no lugar dele: eu o mato, mas não o lugar e vou ocupar o lugar ainda quente.
Morreu, eu já me instalo lá – não deixo nem esfriar a cadeira. E não preciso mais dos seus valores, eu tenho agora os meus próprios valores.
E quais são os meus valores? Os valores que sobraram como vida aparente, como vida ilusória, como um melhoramento moral, digamos assim; porque eu, enquanto força reativa, enquanto tipo reativo, queria melhorar o mundo, queria eliminar o caos, o acaso que me ameaçava, e queria ficar apenas com o acaso pacífico e doméstico, reativo, no fundo. Então eu fico com a ideia de evolução, de adaptação, de progresso e de felicidade. A ideia de felicidade é aquela ideia onde eu não sou perturbado, eu não sou incomodado, onde não há de fato nenhuma atividade.
Melhor que isso: eu me apodero, eu monto um sistema utilitário que retira vantagem da própria atividade; eu submeto todas as forças ativas e todos os devires ativos a essa minha necessidade de felicidade. Eu quero me prover, eu quero prever, eu quero me alimentar, eu quero ser amado; aliás, eu quero ser alimentado, eu quero ser amado, eu quero ser provido e eu quero que haja uma precaução, de evitar que o pior venha. Então eu monto um sistema de poder e um sistema econômico, evidentemente: o capitalismo inteiro é montado em cima disso. Então eu tenho condições de me apropriar de uma coisa que me era negada, porque essa realidade era uma aparência; mas agora que eu sou o assassino de Deus, que eu reajo a aquele mundo como uma ficção – aquilo era uma ficção -, eu acredito que isso aqui não é aparência, isso aqui é uma realidade. Então eu vivo uma realidade e eu quero me apropriar ou me reapropriar daquilo que era propriedade de Deus.
É só lembrar do modelo platônico: o modelo platônico tem uma qualidade em primeiro lugar – a qualidade é de Deus em primeiro lugar; eu só tenho em segundo, em terceiro, em quarto, em quinto lugar. Eu não tenho o ser. Agora o assassino de Deus diz que tem o ser nele – é Kant e Hegel. O que Hegel faz? Hegel diz que o homem é alienado, que o homem está separado do infinito porque o infinito é um universal abstrato e o homem é apenas um ser finito. A questão do Hegel é atingir a liberdade ou o absoluto através da reapropriação do infinito. É assim que ele se desaliena. E ele faz do universal abstrato um universal concreto, uma propriedade do homem: ele se apropria das idéias – que antes eram de Deus, das idéias divinas, e agora são idéias humanas. Então aquela realidade que era de outro mundo agora vem para o homem. Então Hegel inventa uma antropologia cheia de teologia; uma ciência humana que se serve de uma ciência divina, dos valores divinos que agora são propriedades do homem. É assim que o homem se desaliena.
E é isso que Marx queria inverter, como se a dialética estivesse de cabeça para baixo. Não há dialética de cabeça para baixo e dialética direita, em pé: toda dialética é, necessariamente, de cabeça para baixo, inclusive a materialista. É uma visão absolutamente equivocada do que seria realidade em nós – agora, tipos reativos. Há uma evolução no idealismo alemão que diz o seguinte (e vejam que estou no quarto sentido da morte de Deus, que é o niilismo reativo: o ideal humanista ou antropológico, o homem no lugar de Deus, é se reapropriar, então, desses valores divinos – nada de valores divinos, só valores humanos. E os valores humanos são apropriados através de uma concretude do universal.
Hegel inventa lá a sua teologia e a sua antropologia que, em seguida, será denunciada por Bauer e por Feuerbach e, em seguida, por Skinner. Bauer vai dizer que o homem hegeliano não é um homem livre; essas apropriações hegelianas não são suficientemente humanas, ainda são abstratas, ainda são teológicas; e que o homem precisa atingir uma relação própria com esses valores humanos. A espécie humana, com os seus valores humanos. Feuerbach vai dizer que a espécie ou o homem não são livres ainda porque não são proprietários: eles precisam se apropriar das propriedades que antes eram divinas, dos valores que antes eram divinos, dos sentidos que antes eram divinos.
E Skinner vai dizer o seguinte: eu só sou proprietário quando eu não sou mais uma espécie ou não sou mais o homem em geral, eu sou um eu. Skinner vai substituir a questão que já era socrática e platônica – o que é alguma coisa – por uma questão do sofista ou nietzschiana, que é quem. Ao invés de “o que é”, é “quem”. Então Skinner diz: quem é esse homem que se apodera das propriedades ou dos valores que antes eram divinos e agora são humanos? Skinner diz: esse “quem” é o eu, é o eu em mim que se apodera ou se apropria desses valores. E esse eu é o único, é a única realidade; existe um livro de Skinner chamado O único e a sua propriedade. O que ocorre? Ocorre que Skinner não consegue se livrar da dialética e ele vai entender que essas propriedades do eu não são nada porque o próprio eu é um nada. Skinner leva a dialética na sua finalização, no seu acabamento; quer dizer, é aí que desemboca o hegelianismo, é aí que desemboca o niilismo. O niilismo desemboca no “não tem mais Deus; não tem mais nem o homem nem valores humanos, porque o homem no fundo é um eu, é o único que restou, e esse único é ilusório”. Então fica esse eu com o seu nada. É Skinner que descobre ou que revela, então, o produto do niilismo – que era a mesma força reativa, o mesmo tipo reativo que foi necessário para que a vontade de negar triunfasse, para que um Deus triunfasse, para que o Estado triunfasse. E esse tipo, mesmo com a morte de Deus, não se tornou ativo, não se tornou afirmativo, não se tornou mais real; a própria vida dele, que era uma aparência, continuou sendo uma aparência.
Esse tipo reativo, que é o mais ignóbil dos homens, necessariamente desemboca no último homem. O último homem é o homem que não quer nem valores divinos nem valores humanos, mas nada de valor. Nem vontade de nada, mas um nada de vontade. Esse homem é o que representa agora o niilismo passivo; é o resultado do desenlace niilista – vai desembocar necessariamente nesse homem. Então o homem superior de Kant, de Hegel, do idealismo alemão, mesmo de um certo movimento francês ou inglês, no fundo é esse nada, é essa aparência; é isso que eles chamam de realidade.
Esse homem não encontrou o sentido da afirmação, ele não soube encontrar o sentido de afirmar. Ele confunde afirmar com carregar. Ele, antes, se deixava carregar pelos valores superiores: o peso de Deus, o peso do ideal, o peso dos valores do outro mundo, que faziam da sua vida uma aparência dolorosa, dolorida, um homem sofredor; e que tanto mais se ligava a Deus quanto mais sofria e mais pesado ficava. Era o espírito de gravidade sobrecarregado por um Deus. Agora, esse homem que matou Deus não precisa mais desse Deus para que o carregue: ele próprio carrega porque ele só recolhe [TOOL TIP] o que ele chama de realidade. Mas o que é a realidade? Já é o produto do próprio negativo. E por que isso? Como é que ele vai sentir essa realidade, como é que ele apreende, como é que ele interpreta, como é que ele conhece essa realidade? Como é que ele sente essa realidade? Através das suas próprias forças reativas. O que as suas forças suportam? Como ele se sente vivo? Como os seus músculos fazem ginástica e carregam? Então ele confunde o suportar com a realidade: suportar é sinônimo de realidade. Então esse homem continua sendo camelo, continua sendo o burro que carrega – mas agora ele próprio se carrega. Ele não encontrou o sim à vida, ele não disse sim à atividade, ele não disse sim à afirmação; porque esse sim o deixaria leve – é um sim de criação, não precisa carregar nada. Ele encontrou o sim do burro.
Mesmo o sim do burro é um mistério para ele, segue sendo um mistério, evidentemente, porque o sim do burro, quando ele diz sim a isso, aí é Schopenhauer. Schopenhauer diz: o mundo como o véu de Maia, o mundo como vontade e representação. Vontade de representar, vontade de ilusão, vontade de aparência: a vontade quer uma aparência, quer uma ilusão, quer um nada. A vontade se nega na própria efetuação, ela se nega no nada, ela se nega na ilusão, ela se nega na aparência. E desemboca, novamente, num nada de vontade. Então são várias análises aí que têm sempre o mesmo resultado, sempre o mesmo processo. É super -rigoroso. Isso se passa em qualquer inconsciente.
O que você tem aí? Você tem uma ruptura entre a vontade de negar e as forças reativas: as forças reativas não precisam mais de Deus ou da vontade de negar. Agora, é Kant que diz: é a lei que funda o Bem e não o Bem que funda a lei. A lei é o próprio sujeito legislador; o sujeito legislador é autônomo e livre quanto mais solda o seu desejo, a sua vontade, à própria lei. É o imperativo categórico de Kant desenvolvido por Hegel, por Bauer, Feuerbach, Skinner. O idealismo alemão desemboca nisso aí.
Então acusar Nietzsche de não conhecer a dialética ou conhecer pouco Hegel é uma coisa estúpida, porque Nietzsche se refere direto a esse tal de homem superior, à dialética, à negação, à falsa afirmação – a todos os processos que a dialética cultua como sendo a representação do movimento, do desenvolvimento, do espírito objetivo, da própria história. Nietzsche diz: sem dúvida, isso tudo é real; é real como o produto do negativo, como produto do niilismo.
A vontade de negar é negada pelo ressentimento e pela má consciência das forças reativas. O que é o ressentimento, no mais ignóbil dos homens, o assassino de Deus? Ele não quer mais um chefe, ele não quer mais um pastor, ele quer um só rebanho – é a revolução francesa: um só rebanho sem Estado, sem rei, sem tirano. É a vontade geral, vontade democrática. Então é o ressentimento contra Deus; aquele ressentimento usado por Deus ou pela vontade de negar – para que triunfasse o seu poder e as próprias forças reativas -, agora as forças reativas vão contra ele. Esse é o ressentimento, é o ran cor. E o remorso e a vergonha, que é a má consciência do mais ignóbil dos homens. Porque Deus ainda perscruta os seus mais recônditos segredinhos sujos, a sua mais podre e miserável subjetividade.
Não há labirinto onde Deus não esteja e não veja. Então esse bisbilhoteiro tem que morrer.
Mas quem acredita nessa morte? Nietzsche não acredita. Nietzsche diz: mataram Deus, deixaram o lugar, botaram o homem reativo no lugar de Deus. O homem reativo agora descobre que ele é um nada, então não quer mais nem valores divinos, nem humanos; nada de valores, nada de vontade.
Antes um aniquilamento passivo, uma morte lenta e sem esforço nenhum. É muito penoso querer alguma coisa, é muito dolorido, esse homem não aguenta mais nada, não quer mais nada.
O que aconteceu com a vontade? A vontade não sumiu, a vontade não desapareceu.
Participante: ela irrompe aí? Ou ela pode, ainda assim, não irromper?
No eterno retorno necessariamente ela irrompe. Então a questão é o eterno retorno ligado ao niilismo. O niilismo na roda do eterno retorno é negado por ele mesmo. A questão é ligar a vontade ao retornar. Só retorna o que afirma, o que nega é expulso. O eterno retorno é seletivo. É absolutamente rigoroso, rigorosíssimo. É uma lógica implacável. Você não necessita de nenhuma ficção, de nenhum Deus, de nenhuma racionalidade, de nenhuma moral; é só pensar. A natureza se pensa.
Participante: quando o homem não quer, quando chega nessa condição de sequer querer, é uma condição reativa?
É uma condição passiva.
Participante: não é reativa?
Bom, não querer o que, não é? Se você não quer esse mundo e nem a si mesmo; quer dizer, você não tem nem o querer, mais – ele desaparece em você. Isso é o passivo, já – já é o niilismo passivo. O niilismo reativo é quando você reage contra os valores superiores.
Participante: ainda há uma força para estar jogando em alguma coisa.
Exato. É a afronta, é o embate, é a luta – isso que é o reativo, é o niilismo reativo. Agora, o passivo não tem mais força.
Participante: no momento do passivo, é possível que possa irromper a atividade?
Sim. Aí que vem o que Deleuze chama de ponto focal: é o ponto da mudança de elemento.
Que elemento é esse?
Participante: a vontade sempre existe, a vontade nunca desaparece.
Não tem como desaparecer. O poder quer fazer com que acreditemos que o virtual não existe.
Ele diz que o virtual é a minha memória ou o meu projeto; o virtual é o “possível”, como fez Aristóteles. Ele quer fazer com que acreditemos isso. Mas o virtual, independentemente de qualquer força reativa – apesar de nós – é real; ele não existe porque não o apreendemos na sensibilidade – a não ser na expressão sensível, ele se torna sensível.
Participante: ele não é suprassensível.
Ele é mais infra sensível do que suprassensível. Ele é imanente. É o próprio ser da vontade. A vontade é isso, a vontade é virtual; a força é que é atual. Mas não existe força sem vontade, porque a vontade é a própria relação da força. Onde está a relação? Você não pega a relação, a relação é virtual.
É isso que é a vontade. É por isso que a vontade não quer um objeto fora dela; ela já é a própria relação. Ou então o que Deleuze diz no Anti-Édipo: o desejo não tem objeto; o objeto do desejo é o próprio fluxo.
Participante: o que você consegue “pegar” já é o efeito.
Já é o efeito. Você só pega o efeito, exatamente. Agora, conhecemos a vontade através da vontade de negar. É engraçado isso.
Participante: a vontade de negar está presente na consciência. Toda aquela estrutura que você desenvolveu na aula passada.
Perfeito. E a consciência conhece o mundo. Mas o que ela conhece? Ela conhece o que paralisa, ela conhece a marca, ela conhece o fixo. É isso. Cristalizou. Mas isso já é efeito da negação, e a negação é qualidade da vontade. É por isso que você conhece a vontade no niilismo. E Nietzsche diz: é preciso então não conhecer a vontade, mas apreender a sua essência, o seu próprio ser. Ser a própria vontade. E ser a própria vontade já implica uma transmutação. Isso é um sentido de transmutação.
Eu estou no ponto focal, na mudança de elemento e de valor. Ou seja, eu não troco de valores porque todo valor existente até hoje é produto do negativo. Então eu não vou simplesmente substituir os valores; esses valores necessariamente são destruídos, eles desaparecem. E por que eles desaparecem? Porque o elemento da vontade não é mais o elemento que nega; não é o poder da negação que se põe no lugar ou a reação que se põe no lugar da própria negação. Não é mais isso. É o elemento da afirmação. O elemento da afirmação já está em outro lugar, ele inventa outro lugar, ele é uma topologia de superfície, digamos assim, para usar uma linguagem estoica.
E, na medida em que ele habita outro lugar, que o lugar não existe a priori a ele – o lugar já é efeito da sua expressão -, ele cria valores novos. Não só ele faz a transmutação de elemento – não é mais o elemento de uma vontade negativa, agora é o elemento de uma vontade afirmativa, o elemento diferencial que afirma -, mas ele faz também a transvaloração. Ou seja, ele cria valores; ele não muda de valores. É uma autêntica metamorfose e não uma transformação dialética hegeliana, não um desenvolvimento do homem que é superado, que se supera, em função de uma linearidade da história, de um desdobramento do espírito absoluto. Não é isso.
Participante: você pode falar um pouquinho sobre a metamorfose e a transformação?
A transformação é como se fosse o seguinte: vamos supor, você transforma o ódio do sacerdote judaico no amor do sacerdote cristão. Hegel diz que há uma transmutação, uma evolução do espírito absoluto. E o ódio seria a antítese do amor; o amor seria a tese, o ódio a antítese. Sempre uma relação de opostos e de contraditórios – eles se contradizem e um nega o outro. Assim como a flor nega a folha – o dialético diz isso. Você tem a folha, em seguida vem a flor que nega a folha. Quer dizer, é um falso movimento, é uma ficção, é uma generalização. Por que? Porque onde tem diferença, o dialético vê oposição, ele vê antítese. E quem vê antítese, quem vê oposição? É só o tipo reativo. É do ponto de vista reativo que você vê oposição. A dialética é completamente reativa, não há dialética ativa. Marx se enganou redondamente nesse sentido – ainda que a obra de Marx seja superinteressante, tenha um potencial revolucionário fantástico numa série de coisas; mas sob o ponto de vista da dialética materialista, é uma recodificação.
Marx, assim como Freud, sobre codifica os códigos que já estavam falidos e dá uma nova vida a esses códigos. Nesse sentido Marx é reacionário e Freud é reacionário. Revitaliza o velho, dá uma nova vida. Marx diz o quê? Skinner viu bem que esse eu, que tinha uma propriedade, era um eu ilusório; mas o eu de Skinner é um eu abstrato, um eu pequeno-burguês. Precisamos situar o eu pequeno burguês individualista de Skinner no eu coletivo, no eu histórico, no eu concreto. É isso que Marx faz.
E ele diz: assim esse eu vai se reapropriar dos valores humanos e dos valores divinos; esse eu vai se desalienar e vai ser livre de modo concreto. Vai ter uma liberdade em cima da propriedade, ele vai se reapropriar, literalmente. Então é a sequência do ressentimento. E a luta de classes está aí para nos mostrar isso. É por isso que Nietzsche diz: esse tipo de socialismo é um socialismo completamente reativo.
Participante: até aqui todos os valores são negativos. O que entra no lugar dos valores, então?
O elemento genealógico. O elemento é aquele elemento diferencial que gera o valor do próprio valor. É o quem, e o que quer esse quem. Esse quem é sempre uma vontade, é sempre Dionísio, é sempre algo que quer, é sempre um querer. E o querer avalia – ou seja, ele dá uma certa importância, um certo peso – e ao mesmo tempo uma direção, um sentido. Sentido e valor. É o querer que faz isso, é o desejo que faz isso. Então é esse desejo que é a gênese do valor. O valor não é anterior à vida, não existe valor em si, não existe valor superior à vida; a vida não pode ser julgada por causa disso. É a vida que avalia, ela que gera, ela que cria valores. Então quando eu habito esse elemento genealógico – que é o desejo, que é a vontade de potência, que é o querer -, esse elemento cria valores, necessariamente.
Participante: não deixa de existir valor.
Nunca. Gera o valor. Porque sempre existe uma orientação, uma afirmação, um peso.
Participante: a questão é como você fixa o valor em valores pré-estabelecidos, um valor que atribui realidade a você mesmo, que julga a você mesmo.
Participante: então é melhor enfocar o desejo do que o valor.
É o que Kafka descobriu no Processo, quando ele desmontou a máquina judiciária atual.
Participante: e qual é a diferença entre valor e sentido?
O sentido é sempre de uma força. Existe o valor do valor e o sentido do sentido. O sentido do sentido é se é ativo ou se é reativo; você vai encontrar sempre o ativo ou o reativo. O ativo é completa mente plural, é múltiplo; e o reativo é que vê dualidade, é o que vê oposição no ativo. Então se diz assim: “então isso é dualidade em Nietzsche? ”. Não é dualidade, porque o ativo já é plural; é o reativo que vê o ativo como oposição, como uma coisa dual, dicotômica. Isso do ponto de vista da força. Então o sentido é a direção atual da força; você vai interpretar um fenômeno como um sintoma de uma força que está se apoderando dele. Essa força dá o sentido para o fenômeno ou para o sintoma: através da apreensão da força é que eu interpreto o sentido. E sempre uma pluralidade de forças que se apoderam do fenômeno. O sintoma é sintoma sempre de uma pluralidade de forças que estão ali habitando aquela coisa.
Além das forças, existe a vontade – que é a própria relação entre as forças. A vontade avalia, ela dá o valor. E o valor do valor. O valor do valor é se é negativo ou se é afirmativo. Ou seja, o valor do valor são as qualidades da vontade de potência. O sentido do sentido são as qualidades das forças.
O valor do valor é da vontade de potência; e o sentido do sentido, ou o significado do sentido, seria a qualidade das forças. Mas do ponto de vista ativo e afirmativo, tudo é plural, não há dualidade; do ponto de vista reativo e negativo, tudo é pesadamente monista e dualista. É por isso que Nietzsche não é dialético; porque a afirmação é mais importante que a negação.
O que é afirmação em Nietzsche? Afirmação em Nietzsche não é uma maneira de ser, ela é o ser de todas as maneiras de ser. Ela é o próprio ser. Não é o ser que é afirmado em Nietzsche; o ser é afirmação. É o devir que é afirmado. Mas o devir, nele mesmo, já é uma afirmação; o devir já tem o ser nele, já tem a afirmação nele. Não há outro ser que não o devir. Ele já é uma afirmação. Mas existe a dupla afirmação, a afirmação da afirmação. O devir é Dionísio e o ser do devir é Ariadne, é a dupla afirmação. O devir é a primeira afirmação; o ser do devir é a dupla afirmação. O Uno do Múltiplo, a necessidade do acaso, o ser do devir, já são a dupla afirmação. O Uno, a necessidade e o ser são, em Nietzsche, o retornar. O retornar é o único mesmo, a única identidade, o único ser, a única necessidade do acaso, o único Uno do Múltiplo, o único ser do devir. É o retornar. Então o próprio retornar é afirmação.
Mas esse retornar é retorno de que? Retorno da própria diferença. E o que são as diferenças?
Se retorna a diferença, retorna sempre diferente do que era, nunca retorna o mesmo. O único mesmo é o próprio retornar, mas não o que retorna. É isso que a maioria dos nietzschianos não entende. O único mesmo é o retornar, é o único mesmo para todas as diferenças. É isso que é o ser unívoco, é isso que é a univocidade do ser: é um único sentido para todas as diferenças. Que sentido é esse? É o retornar.
Participante: é o conceito de autopoiese.
Porque é na afirmação do devir que a realidade se produz. É isso que o tipo reativo não apreende. É isso que o ser de Hegel, de Bauer, de Feuerbach, de Skinner, de Marx, não apreende. É por isso que eles desembocam no nada, no niilismo, no homem reativo, no homem passivo e até no homem que quer morrer. Por que? Porque não sabe mais onde está a realidade. Lacan disse isso há poucos anos atrás: o real é impossível. Por que é impossível? É impossível para o tipo reativo.
Participante: inventar é impossível.
Inventar é impossível. Porque Nietzsche diz: real? Crie o real, ele não existe! O real é criado, ele é produzido. Então, nós perdemos o sentido da produção, o sentido da experimentação, o sentido da criação. É por isso que a arte volta com toda a potência. Porque a arte não é moral; a arte é estética, ela não moraliza o acaso, ela não moraliza o devir, ela não moraliza as multiplicidades. A arte afirma o que vem – afirma o devir como ser do devir; afirma o Múltiplo ou a multiplicidade como o Uno, o ser unívoco dessa multiplicidade; e afirma o acaso como necessário, a necessidade do acaso. Tudo se dá no acaso como um jogo, tudo se dá no devir como uma dança e tudo se dá na vida como uma afirmação. É por isso que a alegria é inseparável de quem sabe jogar, de quem sabe dançar e de quem sabe afirmar. Necessariamente você afirma, você tem pensamento lógico na afirmação e você tem a alegria ética, a alegria do modo de ser implicado nisso. O eterno retorno não é mais apenas um pensamento, o eterno retorno agora é o próprio ser. É por isso que é autopoiético: ele produz realidade.
E é isso que falta o tempo inteiro a nós. É isso que Deleuze diz para Toni Negri: falta-nos acreditar no mundo; levar a noção de crença, como Hume faz, para o mundo. Acreditar no mundo – não no outro mundo ou em valores divinos ou humanos ou em nada de valores. Acreditar em algo que eu não posso pegar porque ele não existe, mas ele é real. É apreender o virtual: é no virtual que está a criação, que está a vida, que está a potência, que está a afirmação, que está o pensamento. E nós confundimos virtual com possibilidade, com memória e com projeto. Não é nem memória nem projeto; a enrascada do tempo que a ilusão de consciência produz em nós é que fixa o devir em um começo e em um fim, que dá bom senso ao devir. Mas o devir não tem bom senso, ele é caótico, ele é acaso, ele é pluralidade pura.
Saber afirmar o caótico, saber afirmar o acaso, saber afirmar as multiplicidades diferenciais é o grande segredo. Nietzsche diz que o homem superior não é burro apenas porque diz sim aos produtos do negativo e se deixa carregar ou ele próprio se carrega; ele é burro também porque não sabe dizer não. E o não é o efeito de uma afirmação. Há um duplo não na afirmação.
Participante: ele é um simulacro de afirmação.
Ele é um simulacro de afirmação e uma ilusão de afirmação. Tudo é simulacro para Nietzsche.
Eu estava dizendo que a arte é a única saída porque a arte é a mais alta potência de falso. E Nietzsche não acredita na verdade ou numa fixação de algum valor. Nietzsche sabe que toda vontade e toda força cria sentido e valor, ou maneiras de ser; e não há uma maneira que seja mais verdadeira que a outra.
Não há ponto referencial que avalie uma em relação à outra. Nietzsche avalia assim: o que pode sua maneira de ser? O que pode sua verdade? Se ela não pode ser negada, ela pode alguma coisa; se ela pode ser negada, ela merece sê-lo, ela vai desaparecer, ela não passa na roda do eterno retorno. Por que ela pode ser negada? Porque ela não soube afirmar. Encontrar a afirmação é encontrar a eternidade em você. É ser implacável, é atingir o plano de imanência. É o segredo da afirmação.
Então o eterno retorno ou o retornar não tem nenhum sentido se não for aliado à vontade de potência. Se você não aliar vontade de potência, eterno retorno e as forças, você vai interpretar a força como sendo uma diferença micro, menor; é um eu diminuído ao infinito. A diferença não se aloja em lugar nenhum, a diferença é eternamente diferencial porque é uma força atravessada por uma vontade de potência que retorna. Então a diferença é fabricada.
Neste sentido, tudo pode se tornar devir ativo. A questão é como gerar devires ativos. Esse é nosso problema ético, esse é nosso combate: fazer com que o virtual seja algo realmente presente, apesar de não existente. Ele continua sendo não existente. Mas o homem submetido é incapaz de saber que o virtual é real. Ele não consegue apreender porque ele tem medo de afirmar o acaso, de afirmar, de afirmar o caos, de afirmar a pluralidade, de afirmar os múltiplos sentidos ao mesmo tempo e as coexistências. Ele precisa de uma direção, ele precisa afirmar um sentido de cada vez, segundo uma origem e uma finalidade. É o homem do bom senso, é o homem medroso, é o homem covarde. Então é aí que eu já fracasso necessariamente a vida, porque a vida necessariamente é reativa. Eu estou na negação já aí porque eu não soube afirmar.
O que é a afirmação? Afirmação é criar uma atmosfera; é o palco onde necessariamente os deuses vão se encarnar. É saber, então, gerar aliados, criar elementos, fornecer algo para a paisagem e não chupar a paisagem, não recortar a paisagem, não ver só o que é bom, o que me serve, o que é mau, o que me é nocivo; o que é útil e o que é nocivo: essa é a postura moral. Aquele que cria aceita tudo que está e ainda dá mais alguma coisa, ele gera mais; ele realmente participa, ele contribui, ele é generoso. Ele realmente é solidário – isso é solidariedade. Solidariedade só existe para os fortes, o fraco nunca é solidário, ele não pode ser solidário.
Participante: quando você falou do virtual eu me lembrei da história do Bergson da semana passada. Podemos pensar o virtual no sentido de trazer o futuro para o presente?
Isso. É o passado e o futuro ao mesmo tempo. É a síntese do tempo. É aquele passar que envolve futuro e passado ao mesmo tempo, é a própria síntese do devir ou síntese do tempo ou síntese do eterno retornar. Esse que é o virtual. Então a questão é fazer do eterno retorno um retorno não do mesmo, mas de uma vontade que inventa, que gera, que cria – cria sentidos através da força ou gera um devir ativo para as forças, e cria valores ou maneiras de ser. Nesse sentido, a afirmação gera negações, ela gera não mais negações como o poder do negativo, mas negações como maneiras de ser da própria afirmação. No fundo, a negação é apenas uma das infinitas maneiras de ser da própria afirmação. A afirmação tem infinitas maneiras afirmativas e tem uma maneira negativa. A negação é sempre um efeito secundário – e um efeito de agressividade que não tem nada a ver com o ressentimento ou com a violência do ressentimento, com a guerra do ressentimento, com o ódio, com o rancor. O ser afirmativo necessariamente é agressivo; não porque ele quer ser agressivo, mas porque não há criação que não destitua valores estabelecidos. É simplesmente por isso. Mas ele não visa a destruição dos valores estabelecidos – isso é por efeito, é consequência. E, ao mesmo tempo, não há criação que não se subtraia às condições negativas da história. Toda história é uma condição negativa do devir, porque a história é o que está feito, é o que está pronto. E o devir é sempre o que é novo, o que é inédito, o que devém, o que emerge, o que cria, o que modifica. E a história é o que já está feito, o que já está pronto. É por isso que a história é sempre uma condição negativa.
Você pode interpretar a história como uma atividade histórica. Aliás, aqui há um esclarecimento a fazer: a atividade genérica da cultura é desviada, na história, pelas forças reativas e pela vontade de negar; e a atividade genérica gera uma ilusão, um simulacro de afirmação. Não é que não haja atividade, atividade sempre há; mas atividade independente da vontade de potência é uma visão abstrata. É isso que o Estado, que o capitalista, que todo o ser que tem interesse na atividade, fala sempre: a atividade está em tudo. Mas não há atividade senão da força ativa. Por outro lado, não há atividade da força ativa que não entre em um devir reativo, na medida em que está nesse rebanho humano. Então a atividade é uma atividade submetida ao devir reativo.
Então você tem homens fortes, belos, jovens, cheios de saúde, de força, de potência, de desejo, de alegria, e o devir deles é triste, o devir deles é reativo, o devir deles é negativo, o devir deles é a degenerescência ou a decadência no tempo. Porque o tempo é o tempo histórico, é o tempo das forças reativas, é o tempo da vontade de negar. Não é o tempo aliado da afirmação. É por isso que vemos as pessoas lutando contra a morte, lutando contra a decadência, lutando contra o envelhecimento, ao invés de fazer do tempo um aliado e se tornar um bruxo, como diz a Rita Lee. Eu a ouvi ontem na Rádio Rock; ela sendo entrevistada e dizendo assim: eu sou da turma do “deixa cair” e o meu antídoto é ser bruxa. E ela disse isso mesmo, ela usou essas palavras: fazer do tempo um aliado. Exatamente o que vivemos falando aqui sempre: o tempo como aliado e não o tempo como inimigo.
O homem do ressentimento vê o tempo sempre como inimigo, ele se ressente do tempo. É a primeira coisa, é o primeiro segredo: é o medo da morte. É por isso que ele nega o acaso, que ele nega o devir: porque ele tem medo de tudo, ele é o medroso por excelência, o cagão por excelência.
Então a atividade genérica é genérica porque ela não está ligada à vontade de potência; quando você liga a atividade à vontade e você muda o elemento da vontade, há uma transmutação – é a mudança do elemento diferencial, que agora é afirmativo. A atividade se alia com esse elemento diferencial afirmativo; se ela é afirmada, ela gera um devir ativo, ela gera devires ativos. Então toda a questão é essa. Nietzsche diz: não que não tenha havido devires ativos na história. Aí ele cita mesmo: de grega a cultura se torna alemã; ou de dionisíaca a arte se torna uma dialética do homem do conhecimento, uma dialética socrática ou de Eurípides; Roma é dominada pela Judéia; a Renascença é eliminada pela Reforma; e por aí vai.
Quer dizer, existem sempre devires ativos na história que são contra a história – sempre são contra a história. É o que Nietzsche chama de intempestivo. É contra a história porque, necessariamente, é inatual. Ou melhor, ele diz exatamente isso: é contra o presente, redimindo o passado em benefício, em prol – assim o espero – de um tempo por vir. O tempo por vir é o devir ativo, é o porvir mesmo, é o próprio devir ativo. E o devir ativo, necessariamente, não é presente, mas é real; aí sim é o futuro que você traz aqui e agora. Mas onde está o futuro? O futuro está exatamente na relação; e a relação é caótica, é plural, é múltipla. Então quando eu afirmo a pluralidade, o caótico, o acaso da relação, eu estou no devir. No fundo, não é difícil, no fundo é muito simples, é bem simples.
Participante: não é fácil.
Não é fácil porque o tempo inteiro somos solicitados a nos endividarmos. É a dívida que nos rouba o território, que nos rouba a superfície, que nos rouba a virtualidade. É a dívida que faz isso. É a dívida que diz assim: olhe, você deve, portanto, esse seu futuro já está fisgado; o seu futuro é pagar os juros de uma dívida.
Participante: então não tem futuro.
Não tem futuro, te roubaram o futuro. Rouba o território o tempo inteiro. O capitalismo vive disso. E agora pior, porque nós vivemos numa sociedade de controle. Ele não se exerce mais sobre indivíduos e massas, como era o poder disciplinar do início do sistema capitalista; ele se exerce sobre “dividuações” do indivíduo. O indivíduo se tornou “dividual”, o indivíduo é dividido – são fragmentos, são processos que nos atravessam, são fluxos, são ondas e partículas de ondas com uma cifra que modula.
Não é mais o molde, é a modulação no tempo, é a modulação no devir. Então o seu devir necessariamente é reativo porque ele está sendo modulado pela axiomática. A axiomática é sempre abstrata; e quando ela é abstrata, ela separa a vontade do que ela pode e a força do que ela pode.
Participante: o caminho virtual que eu tenho a percorrer no futuro, os fluxos a serem percorridos no futuro, estão tão determinados e tão reduzidos que eu perco a capacidade de prometer.
Exatamente. E não importa mais isso; importa que você seja capaz de rolar a sua dívida. É a moratória ilimitada, você rola a sua dívida. Rolar a dívida não é exceção, é regra – é a regra de todo o sistema atual da sociedade de controle. O poder de controle é esse.
Participante: agora me lembra a história do Kafka, do Processo. Era a questão de ele se implicar não naquelas armadilhas, mas ele se implica no próprio processo; ele desdobra isso, ele vai adquirindo cultura. Ele está se apropriando. Não é que o futuro está lá, já está aqui.
O que acontece no tipo reativo? Os seus nervos, a sua sensibilidade, já são um peso – o peso com o qual a realidade é avaliada. Então ele se sente real pelo próprio peso. Isso é a incapacidade de gerar real. E por que ele é incapaz? Porque ele está endividado. Ele recebeu realidade de alguma outra entidade – no caso é o dinheiro, é o crédito. Mas o crédito que ele recebe é sempre insuficiente e, no máximo, ele paga juros e rola o principal da dívida. Às vezes ele rola até os juros, mas você não pode rolar muitos juros.
Veja a Argentina, aí: todo mundo sabe que vai ter moratória, mas eles estão espremendo ao máximo; quando tiver moratória mesmo, aí é outro nocaute. Aí submete por mais um século: a vida inteira dos argentinos gerando. É por isso que nós, brasileiros, se a sociedade fosse realmente ativa e apreendesse o processo, iríamos saber que a nossa dívida pública é de 680 bilhões de dólares. Foi o que esse governo fez. Diz Deleuze: não há nenhuma democracia, nenhum humanismo, nenhum tipo de direito humano que não esteja atolado até a goela, até o talo com a geração de bolsões de miséria.
Você vê as universidades aí agora: fazendo greve, 70 dias já lutando para ter um miserável salário, um aumentozinho de salário miserável, estúpido, numa sociedade onde o adestramento das forças reativas é a coisa mais essencial que existe. O educador tem que ser um adestrador de forças reativas, ele tem que gerar atividade em nós, ensinar como se tornar ativo, se tornar afirmativo – isso que seria o papel do educador. O educador tem que ser a coisa mais valorizada do mundo. Um governo que se diz intelectual, gente do mais alto gabarito, aplaudidíssimo na França agora, esquerdíssima – esquerda civilizada. Essa coisa absurda. Tem um Malan, funcionário do FMI, que comanda tudo; e o Cavallo, na Argentina, não cai porque é funcionário do FMI. O cara demitiu o ministério inteiro e não demitiu o Cavallo. Um governo que não tem poder nenhum. Onde está o poder dele? Está no FMI.
O capitalismo gera dívida; se você não tem, ele te deixa endividado. Raul Seixas tinha nos dado uma ideia, já: vamos alugar o Brasil, nós não vamos pagar nada. Só que não somos donos do Brasil, o Brasil já deve de nascença, é uma dívida existencial, é uma dívida infinita, não tem como.
Então você vê os pataxós no Sul na Bahia: aquilo é um escândalo, é um absurdo.
Participante: a cultura, de grega, virou alemã. Como é o ativo e o reativo aí?
Os gregos inventaram uma sociedade fora dos códigos tribais, que ainda era uma atividade genérica e o indivíduo era submetido ao coletivo – aliás, nem existia indivíduo – e fora do Estado despótico. Eles inventaram na imanência das relações; ao problematizar as relações eles criaram valores e modos de auto regulação. Então a cidade-estado deles não era ainda um Estado transcendente – ainda que em seguida tenha se tornado transcendente, mas na origem não era. O que os sofistas ensinavam?
Que não tem verdade, que a arte é de superfície, é sentido de oportunidade, é a ocasião do tempo, é atmosfera, é o palco, é o jeito de se relacionar e efetuar as forças e as potências. Eles ensinavam você a pensar o tempo e o lugar como elemento que coexistia com os outros elementos. Então os gregos in ventaram relações múltiplas de força e regras de passagem para que tivessem um destino único. Esse destino único era problematizado; não tinha a sabedoria a priori dos sacerdotes, não tinha Deus, não tinha o déspota e nem a sabedoria mítica inconsciente que autorregula o mundo selvagem. Eles criaram um modo através do pensamento que problematiza o devir. Ou seja, os gregos tinham o sentido da afirmação, eles encontraram a imanência.
Depois da Idade Média, a Renascença reencontra isso também. Mas aí vem a Reforma…
Participante: é o trabalho do logos sobre o devir, pensar sobre isso.
Logos é discurso. A linguagem é apenas o veículo do pensamento. Mas o pensamento não tem nada a ver com o logos. O logos é o modo, é a máquina de expressão que você tem para gerar devires ativos ou reativos.
Participante: o lance é quais as forças que sustentavam a palavra.
Isso. Quem está por trás? Quais as forças? O que quer essa força, o que quer essa vontade. É a questão nietzschiana. Nietzsche inventou um método que substitui a outra pergunta do significante despótico, inventada por Sócrates e por Platão, e que tem inspiração no déspota divino dos Estados bárbaros, que era “o que é?” ou “o que significa?” – a verdade, a essência, o objeto geral, o universal.
Nietzsche diz: quem? E o que quer esse quem? Aí, ao perguntar o que é o Belo, o sofista diz para Sócrates: quem? Quem é Belo? Mas quem não remete a um simples exemplo no mundo como Sócrates acusava, Sócrates ironizava – “não estou me referindo a nenhum exemplo no mundo”. O quem remetia a quais forças que fazem uma realidade bela? De que ponto de vista a realidade é bela? De que lugar?
Como ver o mais nobre, o mais belo, o mais elevado, o mais leve, o mais alegre? Descubra o elemento, o ângulo, a posição, o sentido – é isso que o sofista Hípias dizia para Sócrates. E é isso que foi esmagado através da dialética socrática.
Então havia um devir ativo lá entre os sofistas. Platão misturava o sofista com velho, jovem, com embusteiro, como se o sofista não valesse nada. Nietzsche redescobre isso, diz: o real, ou a vontade de potência, é a mais alta potência do falso. Mais alta potência do falso é descobrir o sentido, o valor, a maneira de ser naquele tempo, naquele espaço, com aqueles elementos. É sempre única, é sempre singular. Então essa maneira, se é única, não pode remeter a outra, não pode ser comparada, não pode ser verdadeira ou falsa, ela é o que é. Ela é aquilo. Então ela é anterior a esse julgamento de verdadeiro ou falso. É por isso que Nietzsche diz: é a mais alta potência do falso. Tudo é falso, tudo é criação, tudo é maneira de ser. Não há a referência onde eu tenha que me projetar ou introjetar.
Participante: então o fluxo, ou a força, na verdade… a questão não está na forma. Quando entramos no fluxo, inventamos formas.
Isso. A questão não está na forma. A forma é a condição negativa. É por isso que história é condição negativa. A forma é a figuração no corpo e a formalização no discurso. É isso que é a condição negativa. Então você pode até usar isso como um simulacro, até imitar se você está mais fraco, mas já é outra força que vai dar uma enrabada naquilo depois. Então é essa que é a questão, é você gerar um efeito de simulação. Isso que é o simulacro. É por isso que Platão odiava simulacro. Porque o sofista gerava esse efeito de semelhança ou de identidade. Já é a arte das máscaras, a potência dionisíaca.
É Dionísio falando já, é Dionísio inteiro; Dionísio se mascara e se traveste das mais variadas maneiras e são infinitas.
Participante: de dizer “estou em todo lugar” e de se multiplicar, e tal.
Ele é sucessivo e simultâneo ao mesmo tempo. E ele tem o dom da ubiquidade. Ao mesmo tempo ele é alegre, ele é leve, ele é dançarino, ele é jogador, ele é mascarado. Ele é tudo isso. Todo o contrário do Deus cristão que é pesado, que é triste, que carrega. Ou da dialética hegeliana: o trabalho do negativo, sério. Aqui não: é a mais bela irresponsabilidade, alegre, dançarina, leve.
Participante: isso porque a afirmação dele é afirmação das diferenças.
Isso. Só pode ser isso. É necessário, não tem outro jeito de ser. É por isso que é impossível ver Nietzsche como um homem triste, não tem como – apesar de todo o sofrimento dele. Ele diz: eu fui crucificado, ele até assina “O crucificado”; apesar de tudo que ele se ferrou, se fodeu literalmente, apesar de tudo ele diz: eu vejo alegria em tudo, eu vejo alegria na luz, na cor. A arte redime tudo, a arte redime qualquer sofrimento, a arte é o sentido alegre do trágico. Não tem tristeza na tragédia. Quem vê tristeza no trágico é o tipo reativo. Por isso que esse filme que vimos aí nesses dias é lamentável, um filme piedoso: olhamos aquele Nietzsche lá, temos piedade do Nietzsche. É difícil. O devir ali é reativo; ainda que se passem algumas atividades, algumas afirmações, mas o geral é reativo. Não é um julgamento, mas é o que passa; estimula isso, estimula a piedade.
Participante: será que o homem é o tipo reativo?
Ele é porque ele tem o devir reativo; é o devir que é a essência do tipo reativo do homem. Então você não entende o tipo reativo se você não o jogar no tempo, no processo, no devir. É o devir, é o tempo, é o processo que dá a essência do tipo. Então por isso que o homem é essencialmente reativo: porque o homem nasce da ficção de Deus. Não existiria homem sem essa ficção, sem a ficção do outro mundo; o homem é produto disso. O homem é essa forma, o homem agora se apoderou dela, ele introjetou, dizendo: esse eu é a única realidade. Mas esse eu já é efeito dessa ficção de outro mundo. É por isso que o homem é essencialmente reativo: porque esse outro mundo nega esse aqui de baixo; então ele não consegue se livrar dessa negação matando Deus, simplesmente, ou não querendo mais Deus, mais chefe, mais Estado, mais pastor, e dizendo que a lei está nele como faz Kant com seu imperativo categórico. Ele não se torna mais livre, mais ativo e mais afirmativo por causa disso. Ele não se torna senhor porque ele matou o seu senhor: ele continua sendo escravo. É por isso que Nietzsche diz: o devir do homem é reativo.
Acontece que o homem é o que? Quem é esse homem? Esse homem é o produto do negativo.
Mas haveriam forças ativas no homem? Com certeza. Forças ativas no homem. Então vamos liberar as nossas forças ativas. Destrua o reativo em você e libere o ativo. É por isso que existe uma ambiguidade aí nesses kamikazes: ao destruir um monte de forças reativas ali, você libera uma atividade, sem dúvida, você libera uma condição. Só que você destrói. Então há o aniquilamento: o aniquilamento ainda está dentro do niilismo.
Participante: é uma destruição ou é uma metamorfose? Quando você fala “destrói as forças reativas”…
No fundo é uma metamorfose. É uma destruição das formas de poder ou dos tipos reativos que constituem rebanhos, poderes, Estados, sabedorias, todos esses estratos. Isso é destruído.
Participante: isso é uma dissolução. As formas se dissolvem.
Perfeito. E aí gera um devir ativo das forças reativas.
Participante: porque senão traça destruição-construção.
Como se aquilo fosse uma substância do mal, não é? Mas com tudo que eu falei, não tem como interpretar assim.
Participante: o devir é reativo apesar do homem?
Sempre. No fundo, tudo é ativo e tudo é afirmativo na natureza. Só que os poderes ou as formas reativas, os tipos reativos dão a ilusão de que essa atividade não existe, que a única atividade é a atividade da reação. Confunde-se atividade com reação. Então quando você reage, quando você faz grandes movimentos, estardalhaço, o sujeito olha para você e diz “é um cara ativo”. E atividade não tem nada a ver com isso. Atividade é até silenciosa. Diz Nietzsche: os acontecimentos que realmente movem o mundo são imperceptíveis e andam com passos de pomba. Demora um tempo para serem percebidos. A morte de Deus ainda está esperando outros sentidos; é um acontecimento grandioso, barulhento, mas existem sentidos silenciosos ainda, moleculares.
Participante: se a natureza per se é ativa, é afirmativa da vida, e o homem é um ser que está na natureza, ele seria o tipo reativo presente na natureza.
Isso. E que faz com que a natureza entre num devir reativo. O homem é a doença de pele da Terra, diz Nietzsche. Agora, isso não significa que o homem, como força, esteja condenado; é o homem como forma.
Participante: que volta na questão de que a forma é um efeito. A forma homem é um efeito de um devir reativo; o devir reativo existe apesar do homem?
O devir reativo existe quando um ser é incapaz de estar em devir. Há uma virtualidade do próprio devir reativo; quando ele se atualiza? Diz Nietzsche, em relação ao homem do ressentimento: é quando a faculdade do esquecimento não funciona, quando essa faculdade de amortecimento em relação ao real não funciona. É quando as impressões da excitação viram marcas na superfície e a superfície já marcada codifica todo o devir; então não há devir que passe através de uma marca que não se torne devir reativo. A reação ou a reatividade é sempre quando a figuração domina, a forma domina, o figurativo domina, o que fixa domina. É uma ilusão de tempo. Então, no fundo, existe uma ilusão no próprio plano de imanência; essa ilusão faz com que percamos exatamente a afirmação. Perdemos o que não existe, mas que sempre foi real e continua sendo real; perdemos isso. Isso que é a superfície metafísica, isso é talvez o que os estoicos queiram dizer com aion – que é passado e futuro ao mesmo tempo e nunca é presente. Mas é real. Insiste num futuro e subsiste em um passado ao mesmo tempo, mas não se atualiza nunca. E não pode se atualizar, porque se se atualizar fixa o devir, fixa a excitação, gera a marca. É por isso que o aion é tão importante. Você tem que ter as duas leituras simultâneas no tempo. É ter o sentido do fluxo, é estar montado no fluxo.
Nietzsche diz o seguinte – aliás, isso foi uma coisa em que eu insisti pouco: saber rir. Não só saber dançar, saber jogar, saber afirmar, mas isso tudo é saber rir. O que é saber rir? É saber rir inclusive das nossas desgraças. Se você jogou mal uma vez, não vá levar isso muito a sério; mas o homem ressentido leva tudo muito a sério. Leva a sério e se ofende facilmente. Tudo dói, tudo fere. É o cu de chumbo que Nietzsche fala. Então, quando o cara é muito sério, não tem humor… o signo é humor ou ironia. O humor é o mais inocente dos assassinos; porque é o riso que dissolve qualquer marca, o riso dissolve tudo e nos libera do nosso peso. Não só os outros, mas nós. Não é o mau riso que as comédias veiculam em 99% das peças de teatro que tem por aí, ou até de filmes; não é esse riso. Esse é o riso deboche em cima de uma claudicação de uma vida frágil, que está em devir ativo ou afirmativo; claudica e aí há um riso em cima disso. Esse é um mau riso, esse é o riso do ressentimento, isso é uma ironia. O humor não, o humor é o riso em cima das forças reativas que querem se apoderar de mim e com o riso elas simplesmente são eliminadas, sem eu acusá-las. É só não levar a sério, é ser irresponsável.
Participante: a ironia é boicote puro.
É um embate dialético, contra.
Participante: você suga a atenção, de onde a tua atenção poderia estar alimentando o devir.
Nesses dias tivemos um evento. Veio um mágico que era um mágico zen. Eu nem sabia o que era um mágico zen. Mas eu achei incrível a capacidade que ele tem de desviar a atenção; e a nossa atenção é totalmente consciente, é atualizada, ela está no atual e num movimento de tempo, ela tem uma certa frequência perceptiva. Enquanto ele desviava a atenção, o que mais importava se passava de modo imperceptível. Essa era a mágica dele, essa é a magia zen. Ou seja, é assim também que somos capturados; porque onde a coisa se passa de fato, onde o devir se passa, não estamos. E existe um texto literário que chama A fera na selva, do Henry James: é um acontecimento que o cara quer viver, ele busca isso, e vive isso como sendo o futuro, como em vias de acontecer, e a coisa está se passando e ele não apreende; quando se passou não tem mais como voltar, já foi. Ele perdeu o acontecimento.
O Kafka tem um enunciado que diz assim: a lei te apanha quando você a busca, e te deixa ir quando você a abandona. Ou seja, deixe de acreditar em ficção e entre em devir. Não acredite no Édipo, não acredite nessas coisas tolas. É a crença no mundo – que no fundo não é crença, é o virtual que é real, mas que não apreendemos porque não pensamos. E pensar não é pensar com o cérebro ou com o discurso. Não é algo que afirma de algo: é a própria afirmação que está ali. O que é a afirmação? É uma pura presença não existente. O pensar é o puro virtual: ele não existe, mas é real. Algo está se passando e eu não estou apreendendo porque ele está ali… nunca é consciente, não pode ser consciente.
Participante: aprender o virtual o que é? É por sensação, é por outro canal?
É o segredo da afirmação: saber afirmar é dizer “passe o que se passar, venha o problema que vier, venha o pior dos males, e seja bem-vindo. Quando você atingir isso não no discurso, não no cérebro, mas na postura de vida mesmo, quando isso for um ser em você, você pensa. É o pensamento pensando em você, aí o pensamento se apodera de você. Não é um sujeito que pensa: é pensamento sem sujeito sempre. O inconsciente é isso, o inconsciente é atividade – ainda que haja inconsciente reativo também. A marca é um inconsciente que deve ficar recalcado, é reativo; para que a superfície e o devir não sejam solapadas. No fundo, quando você está no virtual e no pensamento cessa a dicotomia entre consciente e inconsciente, não importa mais, porque você já está no fluxo. O átomo é consciente ou inconsciente? A molécula pensa, a partícula pensa. Diz Nietzsche: as ilusões e as confusões começam quando a vida se torna orgânica, mas na vida inorgânica, a percepção é precisa, absolutamente precisa.
A vida orgânica é que gera um conjunto que já apreende a imagem invertida como sendo a causa quando, na realidade, é um efeito. O efeito conjunto vira causa numa visão ilusória de consciência. Então, na nossa consciência, pensamos que pensamos, ou achamos que a consciência é a causa, porque temos essa atenção global.