Luiz Fuganti
Eu vou fazer um resumo bem sintético mesmo de algumas coisas principais que vimos na aula passada. Leibniz tem uma postura, a partir da década em que ele vive, muito singular porque digamos que com o Renascimento e o final da Idade Média, houve uma quebra, um desmanche, um desmonte dos princípios ou da ideia de princípio que ordenava aquele cosmos fechado, aquele cosmos finito do mundo cristão. Depois, com Erasmo e Montaigne – que são os adeptos de um ceticismo na medida em que não há centro mais no mundo, não há mais nenhuma dimensão, nenhuma orientação à qual se apoiar ou se referenciar – vai haver uma crise de fundamento das coisas, de princípio das coisas; e vai ser Descartes que vai primeiro fundar essa ideia de modernidade em cima de um princípio que se aloja no cogito ou no eu humano. Descartes começa desconfiando de tudo, desconfia do mundo, desconfia de Deus, ele vai desconfiar da existência de tudo; e – através de um método de instauração de dúvida metódica – vai chegar a uma ideia de que o eu é a primeira ideia que subsiste num mundo sem centro, num mundo sem referência, num mundo sem orientação. Através da dúvida metódica e hiperbólica ele vai chegar numa verdade mínima: eu não posso duvidar desse eu que duvida; e se eu duvido, logo eu penso; e se eu penso, logo eu existo. E daí ele funda o cogito em cima de um ser que duvida e liga o pensamento à dúvida.
Evidentemente Espinosa vai desmontar isso como uma ficção, como uma ilusão de consciência e vai instaurar um outro princípio que é a Natureza Naturante ou a Substância. Já Pascal vai por uma outra via e vai instituir um jogo de aposta na existência ou não existência de Deus; e pela aposta Pascal vai chegar à ideia de que é mais vantajoso que Deus exista e que você acredite nisso do que ele não exista ou você não acreditar nisso. Porque se você não acreditar e ele existir, você perde a eternidade.
- Participante: é uma questão de probabilidade.
É uma questão de probabilidade. É o mau jogador, diz Nietzsche – é um apostador. O jogador autêntico não aposta, ele mergulha e afirma tudo que deu.
- Participante: ou é um suicida.
Depende. No caso do jogador pleno não, ele nunca é suicida. Ele encontra o sentido da afirmação, encontra o fio da afirmação.
E Leibniz vai ter uma outra postura muito interessante, já ligado a uma coisa barroca. O que é o barroco do ponto de vista religioso? É uma tentativa de retomar aquilo que o Renascimento destruiu, e também a Reforma. É uma reação, digamos assim, da Igreja e de outras instâncias. Mas no caso de Leibniz vai acontecer uma coisa interessante: ao invés de ele se ligar a um princípio, ele vai multiplicar os princípios; ele vai encontrar, o tempo inteiro, múltiplos princípios. E vai afirmar isso de uma forma tal que os princípios vão ser deduzidos do mundo atual ou dos objetos atuais; se há uma situação atual, é necessário que haja um princípio para ela. Olha que ideia interessante.
Então ao invés de cair na falta de princípio ou num mundo ilusório, ele vai afirmar que para tudo existe uma razão ou existe um princípio. Isso é uma postura afirmativa e ao mesmo tempo é uma postura complexa, até ambígua, mas Leibniz joga muito com os valores estabelecidos e com os poderes estabelecidos. Na verdade, ele atinge uma posição muito interessante; e essa posição fica muito clara quando revelarmos o que é liberdade para Leibniz, em oposição a condenação. Vai haver um plano dos condenados e um plano dos homens livres ou das mônadas livres.
- Participante: esse princípio é sempre a posteriori?
Ele é a posteriori na dedução; mas na medida em que você o atinge, ele se torna a priori.
- Participante: e daí o acaso?
Vamos centrar antes na física e na metafísica dele para daí termos uma ideia real sobre o acaso. Ele inventa uma ideia de jogo, mas ele não se liga muito a essa ideia de acaso.
- Participante: você cortou a fala que você ia fazer de Descartes e Pascal e até Montaigne.
Montaigne e Erasmo. Eu senti que não ia dar tempo, nós precisamos priorizar algumas coisas mais interessantes. Senão ia virar um curso de história da filosofia. Eu situei alguma coisinha.
- Participante: porque isso é a modernidade, essa questão de sem fundamento, sem princípio. É fundamental o que acontece nesse vendaval.
É. No fim da Idade Média se acaba com a ideia de cosmos finito ou universo fechado e a representação finita. Descobre-se o infinito. Só que uma vez que se descobre o infinito não tem mais centro. Aí você tem Giordano Bruno, você tem Copérnico, Galileu, que ajudam a desmontar a estrutura geocêntrica e heliocêntrica e aí o centro do universo escapará até de nossa galáxia. Isso também desmonta os modelos de pensamento que se fundavam no centro fixo, porque neles havia uma hierarquia aristotélica em função dos mundos lunares, sublunares, sobre lunares, etc., em função dessa abóbada centrada na Terra. Existe uma obra muito interessante para se entender isso que chama Do mundo fechado ao universo infinito, se não me engano, do Alexandre Koyré. Está traduzido pela Editora Forense. Ali ele explica muito bem essa passagem. No nosso caso agora vamos seguir, numa outra oportunidade falamos disso.
Então o que é interessante no Leibniz é que, ao invés de assumir o mundo sem princípios – como vai ser o caso de Hume (que vai dizer que não existe nem uma Substância) e depois de Nietzsche (que esfacela tudo mesmo, e a única coisa que vai sobrar é a potência de afirmar) -, ele vai multiplicar os princípios. Uma coisa muito interessante que ocorre. Uma vez que não há mais princípios, que se destruíram os princípios medievais… ele não acredita nesse princípio do Descartes; e Espinosa ele não entende, ele nem estudou mesmo. Então ele vai pela via própria dele e começa a modificar os princípios a partir do que existe no mundo.
Mas vamos dar um corte aqui e vamos voltar para o sistema dele; aí entendemos isso a posteriori. Vimos, na aula passada, que o ponto de inflexão é como que a origem de tudo, é uma espécie de gênese estática do indivíduo e do mundo; essa inflexão, digamos que seja o primeiro contato do mundo e do indivíduo; é esse puro meio, essa pura ideia de meio. E esse ponto de inflexão na realidade é uma linha, porque ele é um ponto em movimento. E uma linha infletida é uma linha que tem um mínimo de desvio, tem um mínimo de curvatura, não é uma linha reta, não há linha reta no universo. Diz Leibniz: tudo se resume a uma curva e à sua tangente; entre a curva e a tangente há uma bifurcação e há um ponto de contato. Esse ponto é um ponto em movimento, é um ponto que desliza ao mesmo tempo para o Dentro e para o Fora.
Essa inflexão forma uma curvatura e essa curvatura tem um lado convexo e um lado côncavo. O lado côncavo cria a ideia de lugar, a ideia de ponto de vista, que é um puro topos, mas é um topos vazio; ele vai ser ocupado por uma mônada. E a parte externa ou o Fora ou o lado convexo é a parte que toca no mundo ou na matéria. E Leibniz vai entender o mundo como um edifício de dois andares; o lado da matéria é o primeiro andar ligado à sensibilidade, ligado ao corpo, ligado à sensação, ligado à matéria inorgânica, etc.; e o lado interno ou o lado da dobra côncava é o segundo andar.
Mas são dois andares de um mesmo mundo.
Existe sempre uma confusão em relação a Leibniz porque ele vai afirmar muito fortemente a ideia de que esse mundo em que vivemos é o melhor dos mundos possíveis; mas muitos intérpretes vão dizer que esse é o melhor dos mundos possíveis porque ele se referência ao mundo absoluto; relativamente a outros mundos e ao mundo absoluto, esse mundo é o melhor possível, mas haveria esse mundo do melhor e o mundo absoluto. Na verdade, Leibniz só tem um mundo, não tem o mundo absoluto. O melhor dos mundos possíveis já é o mundo absoluto.
Então há um único mundo que tem dois andares, ele funciona em dois planos; e o que divide esses planos é exatamente essa curvatura, essa linha abstrata que simultaneamente se volta para o exterior e para o interior. Ao mesmo tempo ela faz as redobras da matéria, do exterior, e as dobras da alma ou as concavidades da alma no interior. E essas dobras interiores vão formar o lugar, o campo onde vai se instalar a mônada e esse campo é um ponto de vista. Então esse ponto de vista é sempre o ponto de vista de um sujeito ou de um eu – você pode até usar a palavra eu e sujeito, no caso.
Mas o ponto de vista produz o ângulo da mônada, do eu ou do sujeito; não é que o sujeito se instala e direciona o ponto de vista: o ponto de vista já é dado pela posição, aquilo já é uma posição de desejo ou uma posição de espírito. É uma posição da mônada – a mônada se instala naquele ponto e vai dar a unidade a todas as dobras que foram produzidas na alma. A mônada é a unidade das dobras. A mônada é o que vai dar unidade ao infinito. A mônada então é um princípio de unidade.
Mas o mundo também vai ter um princípio de unidade. E Leibniz vai dizer que o mundo é uma série infinita. Uma série infinita implica que há uma pluralidade infinita de subséries. E as séries são feitas de pontos singulares e pontos ordinários (singular, aqui, é sinônimo de extraordinário): você tem o singular – um ponto relevante, um ponto de destaque – e daí você tem os pontos ordinários. De um ponto singular a outro ponto singular há uma série de pontos ordinários. O mundo é feito disso, é feito de uma pluralidade de pontos singulares ligados por pontos ordinários.
E uma série desemboca necessariamente na outra, há uma continuidade das séries, segundo uma regra – a de compossibilidade ou a de convergência, digamos assim. Vamos dizer que antes é convergente, para depois usar esse outro termo, compossível. Então as séries tendem a uma convergência e essa convergência forma o conjunto de todas as séries ou uma única série infinita. Isso, para Leibniz, é o mundo. E o melhor dos mundos possíveis é essa série infinita formada de uma pluralidade de subséries.
O que é importante marcar é que as séries são feitas ou são compostas ou são constituídas de realidades singulares que se alteram ou se transformam na vizinhança de outras singularidades; então uma singularidade, que vai se comunicar através de uma série, se repetindo em pontos ordinários até uma outra singularidade, ela muda, ela se transforma e entra numa outra série. O mundo é feito de pluralidades infinitas de séries nesse sentido. Então tudo se comunica, ou tudo é contínuo, no interior desse mundo que converge, essa pluralidade de séries que atinge o conjunto ou fecha o conjunto do mundo.
O mundo é anterior ao indivíduo, o mundo é anterior à mônada; mas, o que é muito importante, o mundo não existe fora da mônada. A mônada inclui ou envolve ou dobra o mundo inteiro; não há indivíduo sequer que não expresse inteiramente o mundo. Ou seja, eu trago o mundo inteiramente dentro de mim. Uma mônada ou um indivíduo qualquer vai sempre expressar o mundo de modo absoluto.
- Participante: trago o melhor dos mundos possíveis, não é?
Exatamente. E aí vai ter inclusive uma discussão teológica aí em relação a Adão pecador e Adão não pecador. É necessário ter antes o mundo em que Adão peca para depois ter Adão pecador.
Mas vai ser possível um Adão não pecador? Vai, desde que o mundo já seja outro. E isso vai dar uma discussão entre o que é liberdade e o que é condenação. Faz-se muita confusão em relação a Leibniz porque acredita-se que o que ele chama de divergência ou de incompossibilidade elimina os outros mundos inteiramente; isso é uma visão estreita ou de um ponto de vista de um condenado. Aí sim elimina.
Nesse sentido ele se assemelha muito a Espinosa, que era a questão da liberdade e do livre arbítrio. A liberdade é igual à necessidade, mas na medida em que aumenta a potência, a sua liberdade é outra, o seu mundo é outro, a sua visão é outra. E você vai aumentando a realidade. Em Leibniz é a mesma coisa, ainda que ele use outra linguagem, outra visão. Mas a questão em Leibniz é fazer com que a expressão do que ele chama de zona clara da mônada seja inteiramente de um presente vivo; ou seja, o presente vivo que te habita tem que se expressar inteiramente, tem que ser inteiramente vivo. Quando ele é inteiramente vivo, você se desloca no plano dos mundos possíveis. E aí o que era incompossível antes se torna absolutamente possível. Então é essa virtualidade ascensional.
- Participante: é semelhante ao que diz Espinosa.
É semelhante ao que diz Espinosa, ainda que eles usem linguagens absolutamente distintas.
Mas o sentido é o mesmo.
- Participante: isso que é fascinante. Você trouxe a influência não plotiniana dele, não é?
Neoplatônica. Plotino é neoplatônico.
- Participante: parece que tem uma influência cabalística também, você trazendo essa questão.
Vamos ver. Sim e não. Eu acho mais não do que sim. Vamos avançar um pouco mais.
O indivíduo não vem de uma forma genérica que é especificada e dividida. Em Platão e em Aristóteles você tinha especificação de gênero; Aristóteles é que vai fazer um sistema científico de classificação e de especificação. Então o princípio de individuação era instaurado a partir de uma diferenciação de gêneros em espécies, até atingir as espécies especialíssimas; e o indivíduo tinha sempre uma diferença acidental e aí tinha sempre uma disputa: a diferença acidental do indivíduo é de uma forma acidental ou é de uma matéria? Então há uma briga imensa na Idade Média para se ver o que individua ou não. E vai desembocar, inclusive, naquela questão dos universais, aquela querela dos universais: a escola nominalista vai dizer que os universais são meros nomes imaginários; e os tomistas e outros vão dizer que os universais são realidades essenciais e que o indivíduo é que é um mero acidente. Então vai haver uma disputa. O que é real? Se só existe o indivíduo e o conceito universal é um mero nome ou só existiria o universal e o indivíduo é um mero acidente.
Leibniz vai dizer: o conceito é real e o indivíduo é real, mas o conceito é individual. Ele vai dizer isso. Bérgson já vai dizer isso: uma ideia para cada singularidade – em Espinosa é a mesma coisa, você tem um conceito sempre singular, é sempre uma ideia justa para cada modificação. Leibniz diz de uma forma diferente, já com outro sistema, mas que o indivíduo é real no plano metafísico e no plano físico, no plano do conceito e no plano físico. No plano do conceito ele é uma mônada e a mônada é que dá a individualidade para o indivíduo, porque a mônada é o princípio de unidade. O indivíduo sem a mônada não seria nada.
O que é o indivíduo? O indivíduo é produto de encontro de singularidades subsumidas na mônada; há uma pluralidade de singularidades. Então vamos supor: Adão. Você tem a singularidade de ele ser o primeiro homem, de ele habitar um jardim, de ele pecar, de ele ter uma companheira que é fruto da sua costela – enfim, podemos até brincar com essas ficções mitológicas, mas é um exemplo claro do que seria uma singularidade: uma singularidade é sempre um acontecimento, uma singularidade não é um ponto matemático, não é uma figura, não é um indivíduo; ela é sempre um acontecimento e um acontecimento envolve um conjunto de séries, um acontecimento é um encontro de várias séries e onde elas se cruzam gera-se um ponto singular. Esse ponto singular é toda uma atmosfera e uma conjunção de séries, uma convergência de séries. Ora, isso é uma singularidade.
Então a singularidade não é um ponto atômico, é uma conjunção de séries. E o indivíduo é um composto dessas singularidades; ou seja, o indivíduo envolve as singularidades que, por sua vez, envolvem uma pluralidade de séries. O indivíduo é isso.
Mas o que vai dar a unidade, ou a regra de unificação para essa singularidade, vai ser a mônada; então a mônada é o princípio de individuação do indivíduo, junto com as singularidades.
- Participante: a mônada seria a convergência dessas séries.
A mônada vai garantir que essas séries sejam envolvidas, sejam dobradas, sejam incluídas; há uma inclusão do mundo no indivíduo. O indivíduo inclui o mundo inteiro nele mesmo e essa inclusão só é possível por causa da mônada. A mônada habita o segundo andar do indivíduo, mas a mônada envolve o primeiro andar nas redobras da matéria e se dobra ou se multiplica nas suas dobras ou nas dobras da alma. Existiriam as dobras da alma e as redobras da matéria no encontro das singularidades com a mônada. Aí que você forma o princípio de individuação. Mas o que é fundamental marcar é que isso é sempre em acontecimento. A mônada está em movimento no mundo.
- Participante: esse acontecimento Adão é eterno, ele ressoa nessas séries infinitamente.
Neste sentido sim, mas ele é eterno do ponto de vista de uma simultaneidade das séries.
Deus habitaria simultaneamente todas as séries e todos os acontecimentos das séries, que são as singularidades. Mas daí é um outro ponto de vista. Não temos elementos ainda para falar sobre a eternidade. Vamos avançar um pouco mais.
Então a regra de individuação estaria simultaneamente na mônada e no mundo. O elemento não localizável da mônada é o seu nascimento e a sua morte: você não sabe quando vai nascer e quando vai morrer. Essa regra é uma regra não localizável; essa regra vai estar na convergência das séries ou na divergência das séries. As séries convergentes formam o mundo – que o indivíduo inclui –; o indivíduo inclui esse mundo e, ao mesmo tempo, ele expressa esse mundo. As séries divergentes formam o mundo inacessível para esse indivíduo; ou seja, esse mundo, do ponto de vista do indivíduo, é impossível; e do ponto do mundo, ele é incompossível com o mundo atual. E o mundo atual é o melhor dos mundos possíveis; então os outros possíveis, as outras possibilidades de mundo seriam incompossíveis com esse mundo atual.
- Participante: estaria antes do nascimento e depois da morte?
Se você se fixar em um ponto de vista, num plano, numa amplitude de percepção desse mundo, se você fixar aí, você vai afirmar que os outros mundos são impossíveis – impossíveis e incompossíveis. E tudo que é divergente é impossível e é incompossível. Se você se fixar. Aqui está o segredo do leibnizianismo, porque o homem livre vai se deslocar. E os comentadores não entendem isso em Leibniz.
- Participante: então isso está relacionado à não fixação? Você até usou um termo para essa declinação que vai ocorrendo…
Uma inflexão, um clinâmen, um desvio.
- Participante: e essa tendência é o que é a coisa. Essa mudança.
Essa tendência é a origem das singularidades, porque uma numa inflexão emite-se uma singularidade; noutra inflexão, outra singularidade. Então o mundo é uma emissão de singularidades.
- Participante: então é uma mudança de percepção.
Vai haver isso. A percepção é da mônada. Vai mudar a percepção, vai mudar o mundo, vai mudar tudo. Essa é a sacada, mas aí já do ponto de vista da mônada. Do ponto de vista da inflexão, você inclui a inflexão a partir da mônada; a mônada é como que um campo atrativo, um campo magnético que atrai a matéria e redobra a matéria na sua convexidade, e dobra a alma na sua concavidade. É no mesmo movimento que isso se dá – as redobras da matéria e as dobras da alma. E cada dobra é uma singularidade. Agora, você pode multiplicar infinitamente as dobras até você atingir a variação pura, até você atingir aquele elemento onde você não curva mais. Você atingindo aquela curvatura mínima, você está no tempo puro ou na variação pura. Você não está numa variável, nem constante nem variável, mas variação pura. Você é uma variação pura. Aí você cola a matéria com o espírito nessa variação pura; aí você acha esse centro, o que no Taichi eles chamam de centro – mas é sempre acentrado esse centro.
- Participante: é o iluminado.
É o ponto absolutamente iluminado, esse ponto é iluminado. Ele é princípio de luz.
- Participante: fácil de chegar, não é?
Se fosse muito fácil, como diz Espinosa, como é que a maioria dos homens ia negligenciar isso? Mas as coisas difíceis são difíceis, raras, e ao mesmo tempo que você as atinge…
- Participante: deve ser uma delícia.
É a recompensa.
Então olha só: temos essa linha do mundo, que é o princípio do mundo e onde nasce o indivíduo, também, que é uma curvatura infinita ou uma variação infinita; em cada ponto dela você pode encontrar uma singularidade. Ou seja, numa dobra uma singularidade surge e ela é ao mesmo tempo exterior e interior. A singularidade vai delimitar a formatação do indivíduo; o conjunto de singularidades é que vai produzir o envoltório para o indivíduo. Então essa dobra vai ser feita de um conjunto de singularidades. Mas essas singularidades são ao mesmo tempo externas e internas, elas fazem com que o mundo seja um contínuo em relação ao indivíduo. É por isso que eu incluo o mundo inteiro e expresso o mundo. Há uma continuidade. Esse contínuo é dado por uma regra de convergência; essa regra de convergência é do mundo, ela não é localizável no indivíduo. Uma ideia fácil, aí, é essa em relação à morte, por exemplo: você não sabe o momento e o lugar da sua morte, não está em você essa regra, ela não é localizável no indivíduo. É uma regra do mundo.
- Participante: a menos que você resolva se suicidar.
Mas isso vem do mundo também, é uma relação com o mundo, é na relação. Vamos avançar.
- Participante: o conjunto de singularidades vai construir a ideia de mônada.
A mônada é uma singularidade especial. Ela envolve ou subsome as outras singularidades.
Ela seria a razão da unidade do indivíduo: eu sou um indivíduo em função da mônada em mim. A mônada é o estado da unidade. Ela é o princípio de inclusão: é a mônada que atrai as dobras e as redobras ou que mantém o envoltório das dobras e das redobras. É a mônada que mantém as singularidades alimentando ou sustentando o indivíduo; se não tem a mônada, não tem indivíduo. A mônada é o atrator das singularidades, digamos assim.
- Participante: aí a ideia de superior, nesse caso do andar de cima, o segundo andar. Porque sem isso não existiria nada.
Olha, a ideia de eminência se desfaz na medida em que a mônada, ou esse segundo andar, vai habitar a essência em acontecimento. A mônada é uma essência em acontecimento.
- Participante: então a importância passa a ser o acontecimento.
O acontecimento. Destitui aquela velha eminência metafísica – alma superior ao corpo. Porque o acontecimento é princípio do mundo, é mundano. E ao mesmo tempo ele é metafísico. Ele é físico e metafísico ao mesmo tempo. É difícil ficarmos associando outras ideias para entender Leibniz, é melhor entendê-lo nele mesmo.
- Participante: é, mas reflexão da metafísica te leva justamente a não entender nada.
Por isso estamos trazendo outras linhas de pensamento. Agora, não adianta nada buscarmos o recurso dessa velha metafísica para estudar um que está destruindo essa metafísica.
- Participante: mas o que você está trazendo é a questão da individuação. Individuação é alma, nesse sentido.
Nesse sentido é: o princípio de individuação é a alma, o eu ou o sujeito em Leibniz.
- Participante: e esse indivíduo pode ser coletivo, pode ser uma tribo, pode ser qualquer movimento. Pode ser uma pessoa, não é? O grego tem uma ideia de pessoa humana.
- Participante: você comentou que a mônada é uma singularidade especial porque ela subsome as outras singularidades, o que dá a caracterização do indivíduo, quando as outras mônadas estão em associação, não se formaria uma supermônada que dá uma outra? Estou tentando estender essa ideia.
Leibniz vai destituir a ideia de um grande espírito universal, ele não lida com essa ideia. Tudo que existe é o indivíduo e há uma pluralidade de indivíduos. O mundo só existe nos indivíduos, ainda que o mundo seja anterior aos indivíduos. Por que? Porque a existência é do plano dos indivíduos.
Então na existência só os indivíduos existem; na virtualidade ou na essência, o mundo e a mônada existem. Mas a relação de existência se dá no mundo, sendo expresso por um indivíduo, o mundo incluído e se expressando no indivíduo. Isso dá a dimensão de existência em Leibniz. Na alma você chama isso de atualização: a mônada virtual se atualiza. E na matéria, a matéria possível se realiza.
Realização da matéria e atualização da alma, ou atualização do virtual e realização do possível. Isso dá a dimensão existencial: a existência é o plano do atual e do real; e há o plano do virtual e do possível, ou da mônada e da matéria.
Na medida então que o indivíduo inclui o mundo e expressa o mundo, você não vai ver, no indivíduo, o mundo inteiro expresso nele; você vislumbra uma mínima parte, uma região – Leibniz chama de departamento ou cômodo de uma casa, por exemplo. Já que você é uma arquitetura que tem dois andares, ou então você imagine como sendo uma cidade, você vai estar habitando uma rua numa casa, isso é apenas uma região ou um departamento do mundo inteiro. E isso é o que ele chama de parte clara do indivíduo; o indivíduo se expressa numa parte clara, ele expressa uma parte do mundo e essa parte do mundo que se expressa no indivíduo é a parte clara.
Mas geralmente o que ocorre? Ocorre que a parte clara não é a presença viva inteira do indivíduo, a parte clara é apenas um efeito da presença viva do indivíduo. Isso que ocorre geralmente. E nisso se incluem os condenados. Ou seja, você não expressar inteiramente o que está envolvido no indivíduo ou o presente vivo faz com que você veja de modo apenas parcial – ainda que seja sempre um ponto de vista, mas é um ponto de vista relativizado ou parcializado a partir de algumas dobras da alma e algumas redobras da matéria; e todas as outras dobras e redobras não aparecem ali, não se expressam ali. Então você fica reduzido a uma parte ínfima do seu ser. E você pode variar, você pode expressar mais ou menos do mundo incluído em você.
Na medida em que você expressa uma parte do seu presente vivo, da sua vida, você só se conecta com uma parte das séries do mundo, você não atinge nem o infinito das séries. As séries são -algumas séries – finitas na extensão; você as estende, você anda por elas até um certo ponto, e tem uma hora em que elas se fecham e vira um círculo vicioso. Então se a minha alma inclui o mundo, mas o que se expressa nela é apenas uma parcela mínima, essa parcela mínima é que vai ser vivida como expressando o mundo. Mas vai expressar que mundo? Vai expressar o mundo que ela pode.
Então o mundo dela é completamente estreito, limitado.
- Participante: e é o que acontece.
O que a alma pode? O que o eu, o sujeito ou a mônada pode? Cada dobra da alma é uma inflexão incluída e, ao mesmo tempo, é uma tendência ou um motivo. Você pode dizer: uma vontade, ou um impulso. É uma tendência que tende não a um objeto exterior. Por que ela não tende ao objeto exterior? Porque ela já é a dobra de uma singularidade e a singularidade não é o objeto, a singularidade é o acontecimento. Então ela tende para o acontecimento. A dobra tende para o acontecimento.
E cada dobra da alma é uma tendência para um acontecimento. Então eu tenho uma infinidade de dobras na alma que podem querer o acontecimento.
Mas se eu me relaciono com um mínimo de dobras e expresso um mínimo de dobras, o meu mundo se limita a aqueles acontecimentos que encerram de modo que a realidade que o acontecimento vai ficar prisioneiro do objeto – você vai encerrar o acontecimento no objeto. O acontecimento vai virar um fato ou um objeto. Você vai perder o movimento na medida em que você vai ficar naquele círculo vicioso, você vai ficar num único movimento circular, num círculo vicioso. Você não ganha a linha abstrata, a linha do tempo, a linha da dobra, a linha daquela curvatura ou daquela variação infinita, aquela variação pura. Você entra numa variável. Você se torna uma constante e subsome variáveis, mas você não entra em variação, você quebra o devir.
Então o que ocorre? Na medida mesma em que eu me reduzo a poucas inclusões de dobras, eu entro num círculo vicioso de um mundo possível completamente estreito. E tudo o que não se encaixa nesse mundo é divergente; e tudo que diverge é incompossível; e tudo que é incompossível é também impossível para o indivíduo. Então o indivíduo passa a perder ou reduzir a realidade a aquele mundinho estreito em que ele vive. Então a divergência das séries, como uma contradição de existência, começa logo cedo se você está reduzido a isso aí; ela começa a reproduzir a contradição logo nos primeiros planos e efeitos de realidade. Se você tem um lastro um pouquinho maior, você vai um pouquinho mais longe, abre um pouco mais, mas logo o mundo se fecha; aí você vai um pouco mais, um pouco mais, um pouco mais, e o mundo se fecha. Está sempre numa clausura.
O que muda aí? O que pode alterar essa relação ou esse destino que te leva a uma condenação, a uma redução de realidade?
- Participante: clausura e condenação são termos que se aproximam, neste caso?
Neste caso são sinônimos.
- Participante: e você traz outro termo que me toca também, que é claudicação.
Claudicação é a questão da inflexão, é no ponto de inflexão que ela se dá. O que é a claudicação? Do ponto de vista do impotente, ela é uma negatividade: você teme claudicar, você teme o que é problemático ou o que te gera insegurança. Mas do ponto de vista ativo, a claudicação é uma potência, porque você aumenta o tempo do acontecimento e quanto mais você o dilata, mais aberturas você encontra, mais entradas e saídas você encontra, mais singularidades você encontra. Então você pode evitar uma ação impulsiva, digamos assim, e reduzir a gravidade daquela ação, suspendendo o acontecimento e percebendo que ele te dá muito mais do que aquela única opção de impulso. Ele te abre a realidade. A claudicação está ligada com isso aí, com a inflexão e a valorização da inflexão. Valorizar a inflexão ou a suspensão do acontecimento é subdividi-lo e encontrar as micro dobras. Cada vez mais no infinito você vai subdividindo e encontrando dobras que são microfísicas, micrológicas e micro metafísicas, digamos.
- Participante: na prática seria aquela coisa da serenidade, não é? Essa coisa de suspender o acontecimento. Quando você vai por impulso, você está cego, claro.
O impulso geralmente está ligado à ansiedade ou à impotência.
- Participante: mas está ligado também à vontade.
A vontade no seu mais baixo grau. O impulso cego, eu estou falando, o impulso sem distância. Você se queima e aquela coisa de ação e reação imediata, sensório-motor. Isso é o ponto mais baixo da vontade.
- Participante: mas eu estou falando de impulso da alma, da vontade.
Mas a alma é uma dobra que é simultânea à redobra da matéria também; dependendo você pode ter o mesmo tempo de reação de uma matéria imediata, ação-reação sem intervalo, sem distância. O homem livre e sereno institui a distância. A distância é habitar o tempo próprio das mônadas.
- Participante: mas é porque ele se apropriou da inclinação.
Ele se colou na inclinação.
- Participante: e dobrou as forças.
- Participante: é uma percepção maior de realidade nesse momento. Essa coisa de perceber mais saídas, mais opções, sei lá.
Sem dúvida.
Então, na medida em que você vai afirmando a tendência ou a dobra ou o acontecimento da mônada, você vai redobrando mais a matéria e dobrando mais a alma – é ao mesmo tempo que isso se dá. Mas você pode gerar mais dobras e redobras na atividade; se você não é ativo, você não aumenta essas dobras e redobras. Então é na atividade que você vai aumentando essas distâncias, esses tempos, essas dobragens que fazem com que você acumule potência e tendências; você enriqueça e crie mais tendências. Quanto mais dobras e redobras você fizer nos encontros, mais você acumula essas tendências, mais você inclui essas tendências, mais você intensifica ou aumenta o seu presente vivo, a sua duração.
- Participante: me parece um fortalecimento da própria mônada. A tendência da dobra ocorre fortalece a própria mônada. É a própria razão de ser dela, de se dobrar.
É. É isso mesmo.
- Participante: a própria razão de ser dela é dobrar-se; quanto mais ela faz isso, mais ela se afirma.
Sim, é um moto contínuo. Agora aí entra uma coisa sutil, que é o seguinte: quando você diz que é a mônada que quer, você ainda está em um motivo subjetivo, em um motivo ou impulso que vem apenas do sujeito. Ele é interno, sem dúvida.
- Participante: não. O fato de ela dobrar-se faz com que ela continue fazendo isso. O fato da própria mônada dobrar-se é o motivo dela existir, ela dobrar-se – porque se ela não o fizesse ela não seria uma mônada.
Sim, sim. Ela é uma singularidade atrativa. Agora, o que é ela em si mesma?
- Participante: ela não tem opção.
Ela não tem opção. Ela em si mesma já é o princípio de curvatura; não é que ela vai fazer a dobra, ela já é isso. Então não há distância. E o fato de ela ser isso ela já é algo em acontecimento.
Então toda dobra que ela fizer nela mesma gera uma outra singularidade ou uma outra tendência, um outro motivo. É por isso que há múltiplas vozes ou uma pluralidade no eu; ou seja, o eu não é mais um eu, ele é um nós, ele é um elemento povoado de uma pluralidade de vozes ou de tendências. Em cada dobra há uma tendência, há uma voz.
Haveria uma ilusão ligada a essa motivação, a essa tendência, que seria o seguinte: a mônada buscaria ser preenchida por um objeto no mundo. É como numa balança – tem um prato mais pesado aqui, que afunda, e outro que sobe. O objeto no mundo equilibraria essa tendência, esse peso de matéria ou de dobra na alma. Leibniz diz: isso é uma ilusão porque, primeiro, não é um peso, é uma potência, e é uma potência em acontecimento; e o acontecimento não é o contrapeso da balança, mas ele é o campo atrativo propriamente dito. É como se houvesse um duplo campo atrativo: o da mônada e o do mundo. O tempo inteiro isso. Então há o princípio de convergência das séries e o princípio de inclusão da mônada.
É na qualidade desse jogo que você vai ser livre ou condenado. É nessa relação. A regra desse jogo tem a ver mais com o cálculo do que com o jogo do Nietzsche, por exemplo. Ela não é um lance de dados. Mas na medida em que ela se inclina, em que ela tende, a cada tendência, a cada inclinação, ela gera um novo encontro com uma nova singularidade. Porque a inclinação, essa tendência, faz com que a singularidade se desdobre. Então você tem uma dobra e uma desdobra. O tempo inteiro isso. Você tem um envoltório e um desenvolvimento, você tem uma implicação e uma explicação. Esse movimento vai fazer com que ao cabo de um movimento, um novo acontecimento emerja; e quando emerge um novo acontecimento, emerge uma nova dobra e uma nova redobra ao mesmo tempo.
- Participante: é sempre ambíguo.
É sempre ambíguo. Ou seja, aparentemente você está incluindo, numa convergência, mais mundo em você e por isso você se torna mais real; mas na medida em que você inclui, você desloca a percepção. O que é o acontecimento? É a mudança de percepção. Mudou a percepção você, já com esse novo conjunto de tendências, o mundo que você vê não é mais ou mesmo que era antes daquela dobra ou daquele acontecimento. E cada acontecimento gerado no encontro das tendências – ou da efetuação das dobras nos desdobramentos ou no encontro com o mundo – gera um acontecimento. Então, no fundo, é uma filosofia do acontecimento; e a sua ética é a ética do afirmar o acontecimento, a ética de querer o acontecimento. O tempo inteiro é isso.
Nessa medida mesma você começa a ver que a divergência não tem mais o caráter negativo que ela tinha do ponto de vista fixo de uma modificação. Se você tem um conjunto de dobras e você está reduzido a esse conjunto de dobras, você tem uma espécie de espelhamento do mundo no indivíduo e na mônada; esse espelhamento é fixo enquanto você não está em acontecimento. Na medida em que você não está em acontecimento, o mundo possível e o melhor dos mundos possíveis é esse que você vê, não se altera nada, você vê esse mundo sempre. O homem do ressentimento, o homem submetido aos valores estabelecidos, o homem que funciona por referenciais exteriores ou por plano transcendente de organização necessariamente vê sempre o mesmo mundo – ele vê um mundo opaco, um mundo chapado, um mundo chato, sempre. Ele nunca vê o novo, ele vê o tédio.
Por que? Porque ele não habita exatamente essa variação que gera o acontecimento.
Temos uma ilusão de acontecimento porque acreditamos que as coisas se sucedem via instantes e via imagens: uma imagem sucede uma imagem, um instante sucede um instante. E apreendemos apenas as variáveis exteriores ao tempo. Quando você atinge a variação plena, você está na variação intrínseca ao universo; e na variação intrínseca, você necessariamente não sai do campo do acontecimento. E se você não sai do campo do acontecimento, a tua percepção varia o tempo inteiro, o mundo muda o tempo inteiro. Você se modifica e modifica ao mesmo tempo, ainda que estes sejam elementos spinozistas – o afeto enquanto potência de afetar e ser afetado.
Mas em Leibniz esse movimento das tendências e de afirmação de tendências faz com que o melhor dos mundos possíveis não seja uma finalidade de um sujeito moral e bem-comportado que atingiria o Bem; Leibniz abole o princípio do Bem, afirma o melhor dos mundos possíveis porque o melhor é apenas efeito do mundo que já é. O mundo é tal e qual – mas ele é tal e qual você o habita, também. Então você tem o mundo melhor que você merece. Você atingiu esse mundo melhor segundo a capacidade de dobragem que você tem, de inclusão do mundo e de expressão do mundo que você tem. Então o possível, no fundo, ele se fixa e congela o que você pode. Então você cai na posição do dever: você “deve” algo e você pode segundo essa forma fixada fora. Leibniz diz que essa posição é a posição dos condenados, é a posição de Adão pecador.
Adão pecou porque Adão foi suficientemente preguiçoso, suficientemente apressado. Usei dois termos aqui: preguiça e pressa. São a mesma coisa, a pressa e a preguiça. É como ler um texto: se você lê muito rápido, está com preguiça de viajar, de entrar. Exatamente, é este sentido. Então o tempo de relação com as coisas é fundamental, é a chave, é o segredo das coisas. Quando você entra no tempo, quando o tempo se torna imanente e interno, você está nesta variação intrínseca; quando o tempo é exterior, você está na sucessão de instantes, você está na sucessão de imagens, na sucessão de figuras. Você está no campo dos objetos.
Então a questão de Adão pecador é a questão da pressa em comer a maçã sem ver as outras virtudes da maçã. Seria mais ou menos isso.
- Participante: a condenação não está no comer?
Não. Você se autocondena.
- Participante: está no modo como você come o conhecimento?
No modo, exatamente. É o modo como você se relaciona. Então a justiça em Leibniz é imanente também; não tem mais o Bem como princípio único, fora do mundo. O melhor dos mundos é um efeito da tua postura. Então é o melhor porque você apreendeu aquilo.
Há, evidentemente, então, uma evolução da alma, uma evolução da mônada no sentido em que Deleuze fala do Proust, em que há um aprendizado. Ou que ele fala na outra passagem: que tudo é uma longa preparação – como também diz Henry Miller acerca dos artistas, sábios e pensadores, que passam a vida como polidores de lente, à maneira de Espinosa, até um dia a lente ficar perfeita e percebermos o quanto este universo é maravilhoso. O índio Dom Juan também faz da vida um aprendizado, uma preparação para o salto. É a mesma coisa. Longa preparação para uma passagem ou como que um último ato; e o último ato é o ato da morte. E o condenado é aquele que vai ser definido em última instância, em Leibniz, como aquele que tem ódio a Deus. E na morte ele revela inteiramente o ódio dele a Deus: é o medo, é a covardia, é o pânico, é o desespero – isso é uma expressão de ódio a Deus, uma expressão de ressentimento, uma expressão de incapacidade de apreender o modo como a natureza funciona. Então haveria um ato selado, ele diz, no nascimento e um ato selado na morte. O homem livre é aquele que chega diante da morte e afirma a passagem como uma comunhão com Deus, digamos assim – posição do Leibniz, ele fala em Deus desse jeito.
- Participante: seguindo esse raciocínio, uma vez que o homem livre é uma pessoa que já afirma, ele sempre vai afirmar, inclusive a morte.
É por isso que é uma evolução da alma: você vai evoluindo. Ao mesmo tempo que você involui – não é uma evolução no sentido daquele progresso ordinário em que você vai atingir um ponto tal.
Você evolui ao mesmo tempo que você involui. E o que é involuir? É ter mais e mais dobras. A involução é isso. No fundo a morte é uma involução, você involui; a tua alma racional, segundo Leibniz, se torna uma alma sensitiva. E, segundo ele, você pode atingir a ressurreição do corpo – dependendo do ato que você vai ter, que você vai comungar na hora da passagem. A questão, na realidade, é a seguinte: em vida, ou na evolução da sua alma, você só dobra verdadeiramente, você só está verdadeiramente em acontecimento se Deus está presente no acontecimento. Há como que uma colagem: Deus é que dobra em você, mas você é Deus se dobrando. No fundo é isso. Quando você se distancia da dobra, ou ela está numa zona escura e não numa zona clara e iluminada, a dobra se dá apesar de você; e não tem a presença, não tem a atenção ali, não tem um presente vivo naquele movimento.
Então tudo – agora sim – que é eterno é eterno não porque entendeu o passado, entendeu o futuro e a sequência inteira dos acontecimentos; é eterno porque é co-presente a todas as dobras. É aí que está a eternidade. A eternidade é uma co-presença. Então Deus, nesse sentido, é presente em todas as dobras, redobras da matéria e do espírito, da matéria e da alma.
Nesse sentido, diz Leibniz, é preciso imitar Deus. Como você imita Deus? Você encontra exatamente essa presença na sua tendência; em cada tendência uma presença. É aí que você vai atingir um movimento de co-presença nas tendências. As tendências coexistem de modo iluminado, de modo ativo; e quanto mais você aumentar a coexistência, mais você aumenta a parte clara da mônada ou do indivíduo. Então é um jogo de claro-escuro mesmo, é um jogo barroco. E aumentando a parte clara, você aumenta o seu presente vivo; e quanto mais você aumenta o seu presente vivo, mais você aumenta a sua eternidade. Então é o princípio da eternidade. A eternidade é no modo como você vai clareando o seu indivíduo.
- Participante: você trouxe dois princípios antes: você trouxe o princípio de curvatura e o princípio de eternidade. Tem mais algum?
De inflexão; pluralidade dos mundos, sendo que apenas um é compossível; pluralidade das séries numa série infinita; de individuação; emissão de singularidades; mônadas. Ele vai multiplicando.
O que é fundamental marcar em Leibniz é que dependendo da maneira como você vive – e por isso há um maneirismo em Leibniz -, da maneira como você dobra ou não no encontro ou no acontecimento, você aumenta a realidade nas tendências e a simultaneidade das séries. Se você está reduzido a uma certa região clara do indivíduo, você vai ver sempre a vizinhança daquelas séries que você inclui e envolve com a pluralidade de séries divergentes a ela; e essas divergências vão ser incompossíveis com aquele seu mundo, então você precisa excluí-las, há um princípio de exclusão na medida da impotência: quanto mais impotente você é, mais você exclui.
E vice-versa: quanto mais você aumenta a potência, mais você inclui – até o ponto em que você faz da divergência uma inclusão. Mas você só faz da divergência uma inclusão – e aí sim você é realmente livre – quando você tem uma pluralidade de séries que se efetuam simultaneamente, inclusive na divergência. Por que? Porque a divergência vai se dar em níveis distintos de realidade. Então você vai começar a multiplicar os mundos ou multiplicar as séries no mundo. Então você circula simultaneamente em vários níveis, em vários planos, e envolve uma pluralidade de séries cada vez maior. No momento em que você atinge uma simultaneidade mínima de séries divergentes, você ganha o impulso à liberdade, você se torna capaz de multiplicar cada vez mais; você entra em ascendência, há uma ascendência de potência e de liberdade, na medida da simultaneidade e não da sucessão das séries. Então você tem que sair do regime de sucessão e fazer da sucessão também uma potência, mas com a simultaneidade delas, ao mesmo tempo. Você vive a coexistência das séries – e coexistência não apenas de séries convergentes, mas de séries divergentes que formam platôs distintos, níveis distintos de realidade.
- Participante: o que ele chama de série é tudo que acontece?
Série, na realidade, é o movimento – no espírito e na matéria. Mas a série, na realidade, é o que está entre o espírito e a matéria. A série envolve os dois ao mesmo tempo. A série está inclusa na dobra e na redobra, ela ressoa nos dois planos ao mesmo tempo, ela ressoa nos dois andares ao mesmo tempo. Na realidade o que existe sempre são duas séries, no mínimo, sempre; nunca tem uma série sozinha. Tem uma série no andar de baixo e no andar de cima. E o que circula na série são as singularidades, ou um elemento que é sempre acentrado; esse elemento ora é convexo, ora é côncavo, ou simultaneamente os dois ao mesmo tempo. Ele é o elemento paradoxal. E é ele que gera o acontecimento, no fim. O acontecimento é a mudança de percepção ou de ponto de vista – há sempre um acontecimento ali. Ou seja, numa circulação mínima de uma série a outra, já tem um acontecimento. Necessariamente há uma modificação mínima, uma dobra mínima. Então, uma ressonância das séries.
Quando você habita esse elemento paradoxal, é na realidade quando a tua mônada é puro acontecimento, quando você está habitando essa linha da variação pura. Aí você está nesse elemento paradoxal. Você é um centro acentrado e você circula nos dois campos simultaneamente, no corpo e no pensamento. É aí que você começa a incluir as séries divergentes: quando você é capaz de ressoar nos dois planos ao mesmo tempo. Mas aí essas duas séries se multiplicam, porque em cada movimento você vai ter no mínimo duas séries. Mas no movimento, você encontra necessariamente uma outra série. Quando uma série se bifurca em outra, há um novo caminho ou uma nova bifurcação de uma pluralidade de outras séries.
Então em cada bifurcação você encontra um rizoma, você encontra uma ramificação. O jardim dos caminhos que se bifurcam, numa obra chamada Ficções, do Borges, é um exemplo desse tipo de labirinto no tempo. Eu acho que seria até interessante que vocês leiam esse texto para ajudar a pensar essa história de rizoma no tempo, de labirinto no tempo.
Em cada bifurcação ou ponto singular você tem convergências de séries, você tem divergências – séries que só tangenciam e bifurcam – e você tem conexões entre singularidades. Convergências, divergências e conexões: é esse o modo como a natureza opera, ela só opera assim; ela não opera por gêneros, espécies, classificações, identificações, semelhanças. Ela opera nas convergências, nas divergências e nas conexões. Síntese conjuntiva, síntese disjuntiva e síntese conectiva. Ela só produz operando essas sínteses.
- Participante: na sequência de raciocínio, quando você falou da convergência das séries gerando singularidades – aquele ponto do espaço que era a mônada, você fazia o recorte e aquele ponto é a mônada. O que não consegui captar é como é que fica a mônada quando ocorre a divergência. Parece que há uma diminuição dela.
Há uma diminuição da área clara nela, na medida em que ela não afirma a tendência, na medida em que ela não está em acontecimento, na medida em que ela está reduzida às dobras produzidas de fora. Então quanto mais ela estiver submetida a este movimento, mais ela se condena a uma diminuição de potência e a uma redução de seu mundo. E mais, necessariamente, ela odeia o acontecimento, mais ela cai no ressentimento.
- Participante: isso está claro, mas eu não consigo captar a ideia da divergência. Por que, por exemplo, quando ocorre a sucessão das séries e elas divergem, você ainda continua na afirmação. Não sei, acho que vamos tocar o conceito de liberdade, aí. Nessa passagem ficou estranho.
A série que se bifurca é sempre uma curva e uma tangente, uma curva e uma tangente – e você tem aquela bifurcação mínima.
- Participante: isso não é divergência, é uma bifurcação.
Mas é divergente, você diverge o sentido. Mas você pode fazer com que essa divergência redobre a matéria e dobre a alma; se você souber afirmar as duas coisas ao mesmo tempo, você está na liberdade, você inclui o divergente. Mas isso é uma primeira postura, é uma primeira inclusão.
Porque aí você está na sua série, digamos assim, com a sua singularidade; então você é um atrator e tem uma série de outras séries que convergem até a tua mônada e você inclui essas séries do mundo. Na inclusão, você estabelece uma continuidade quando você a expressa novamente; então há uma circulação contínua dessas séries; mas há um círculo montado aí e esse círculo é delimitado exatamente pela regra das séries que convergem – em relação à tua singularidade. Então há uma convergência nelas. As que não convergem, as que divergem, digamos assim, enquanto eu estiver fixado nesse nível de realidade, eu entendo essa divergência como uma exclusão: “isso não diz respeito ao meu mundo, isso ameaça o meu mundo, isso nega a minha vida, isso é uma oposição, isso destitui a minha potência”. Mas destitui que potência? Na realidade, destitui a fixação de um ponto de vista, porque aquela divergência ameaça o meu ponto de vista. Por que? Porque a mônada está fixada, ela não está em acontecimento, ela está reduzida a uma convergência.
Quando uma série divergente toca na vizinhança da minha singularidade e a minha singularidade é capaz de circular simultaneamente na minha série e nessa série divergente, eu faço uma outra dobra na alma e uma outra redobra na matéria; eu acho ou encontro um aliado, essa série é uma aliança, é uma nova aliança. E na medida em que essa série se conecta à minha singularidade, ela passa a multiplicar a dobra interna da alma; na medida em que ela dobra internamente a alma, ela dobra também uma quantidade de potência, de energia. E essa quantidade aumenta ou desloca o meu ponto de inflexão.
- Participante: é como se você estivesse caminhando, não é? Porque mecanicamente, ao caminhar você tem que deslocar o centro de gravidade, para você poder andar – se você não fizer isso, você não anda. Eu estou querendo sentir isso que você está dizendo. É mais ou menos o caminhar. O que eu senti nessa fala agora foi assim: quando eu trago para mim a divergência, a sensação de liberdade fica clara porque mudou a percepção.
- Participante: é coisa de compreensão mesmo, não é?
- Participante: isso, você passa a compreender mesmo.
- Participante: você fala do aliado. Então eu acho que é coisa de compreender o outro ponto de vista.
Não é apenas compreender, é movimento simultâneo.
- Participante: que posição é essa que ora ama o paradoxo, ora odeia o paradoxo?
O paradoxo é a paixão do pensamento; ele não é a contradição do pensamento, ele não é a negação do pensamento. É a paixão do pensamento. E a paixão é sempre ambígua porque pode te reduzir à impotência e pode te abrir para uma realidade muito mais poderosa do que a identidade ou a contradição deveria reduzir. É por isso que você pode amar ou odiar o paradoxo.
- Participante: identidade e contradição – dois pilares, um platônico, outro aristotélico. Poderia ser divergência – maravilhoso, estaria nesse movimento. Agora, tem horas em que a convergência e a divergência, quando toca as séries…
Você tem aqui uma linha de inflexão. Essa aqui seria uma linha de variação pura que, necessariamente, vai ter fim. Gera um campo interno, um centro não ocupado; mas esse centro vai ser ocupado pelas mônadas. Uma mônada ocupa cada centro gerado numa linha infletida. E o centro é definido pela equidistância dos raios ortogonais às tangentes – se vocês quiserem ter uma imagem matemática da coisa. Você tem o raio ortogonal à tangente da curva. Essa parte é a parte côncava, leva a se formar o campo ou o ponto de vista da mônada; e a parte que é convexa é a parte do mundo. E cada movimento deste tende a se multiplicar; então você tem um conjunto de espirais. E você vai gerando, nos intervalos, novos campos de atração e repulsão – e aí geram-se também novas curvas e micro curvas tanto em sentido vertical quanto em sentido diagonal, em sentido horizontal.
Você tem uma pluralidade.
Imagine o olho de um furacão. O que faz o olho do furacão? Ele vai arrastando tudo. Mas ele vai redobrando a matéria. E há um princípio de unidade nele; aquele princípio de unidade, o que faz eu dar um nome a um furacão – o furacão tem nome próprio, é Virgínia, é Cassandra, é qualquer coisa. Você tem um exemplo claro, físico, na natureza, de redobra de matéria com uma unidade. Mas como é que essa unidade é gerada? Existe um campo de forças: existe um conjunto de elementos aéreos, de temperatura, de umidade, de luz do sol, de aquecimento da Terra, de obstáculo – tem uma série de elementos que geram um campo singular. Então a singularidade, no fundo, é uma atmosfera, ela não é um ponto atômico. A mesma coisa essas mínimas dobras que você vai tendo, porque essas curvas, se você as aumentar e subdividir, você vai ao infinito; e cada uma delas é uma dobra.
O que ocorre? Numa dessas dobras você tem uma singularidade, mas a singularidade não é o ponto, ela é como um furacão, ela é catastrófica, digamos assim; e ela é gerada por uma multiplicidade de séries que convergem até ela. Mas essas séries chegam até aqui através de pontos ordinários, ou seja, pontos que se repetem; você tem esses pontos ordinários que geram essa singularidade, que é um ponto extraordinário. Mas essas séries desembocam em outras singularidades que, por sua vez, são formadas por outras séries. Essa singularidade, em relação a essa, vai ter uma linha de convergência através de uma série, mas tem uma pluralidade de outras séries que divergem. Na medida em que o indivíduo ou a mônada é capaz de incluir essas outras séries que não se comunicam com essa única série aqui, aí ela inclui o divergente, ela faz com que essas outras ressoem aqui também. Quanto mais singularidades você incluir, mais real e mais eterno você é.
- Participante: esse pedacinho em que você falou da inclusão da divergência eu não captei.
Isso aqui, essa dobradura, na realidade, é simultaneamente efeito e causa. Isso aqui, no fundo, é igual ao corpo sem órgãos, é o próprio campo de imanência. São nomes, não adianta ficarmos no significante, vamos para o sentido. Aqui existe uma pluralidade de forças ou de séries. Você aumenta um desses pontos aqui; esse ponto é efeito de uma pluralidade de séries que convergem até ele e que criam esse campo, digamos assim. O olho do furacão. A singularidade se comunica, necessariamente, com outras singularidades. E em cada termo de série existe uma singularidade, você encontra singularidade em todos os pontos. Você leva a série até o limite dela; na vizinhança, ou no seu último ponto, inicia uma outra singularidade. Só que essa singularidade que se inicia já é efeito de uma pluralidade de outras séries.
Agora, eu posso me relacionar com essa singularidade apenas via essa série aqui, essa série que acaba convergindo comigo, apenas via uma única linha; então eu ainda estou na exterioridade da singularidade, é como se eu visse um instante fora de mim. Mas eu só incluo essa singularidade no meu mundo quando eu envolvo todas essas outras séries aqui e as dobro. Só que essas dobraduras todas que eu envolvo aqui, e simultaneamente, me ligam com esses outros mundos que eram incompossíveis com o meu mundo.
- Participante: é totalmente topológico, isso.
Totalmente topológico. Então eu envolvo um outro plano de realidade, eu incluo um outro mundo. É o que Don Juan chama de ponto de aglutinação: há um ponto que aglutina. É a mônada.
- Participante: buraco negro.
Aqui está mais para buraco luminoso. Mas ele tem esse lado também de buraco negro e ele pode ser um buraco negro quando você não é capaz de fazer esse movimento aqui, você só fica nos instantes exteriores dos acontecimentos; então o acontecimento vira um instante: eu derrubo essa fita no chão – foi um instante que se sucedeu a instante, ela estava aqui, depois estava ali, depois estava ali. É como imagem de cinema em que você pega uma imagem, sobrepõe mais uma, mais uma, mais uma; se você tem essa visão espiritual, você está na exterioridade do tempo. Mas se você apreende o movimento próprio do objeto, você faz com que esse tempo seja intrínseco e imanente, aí você não está mais na sucessão de instantes. Aí você apreende essas outras séries que fazem aquele instante singular. Aí esse acontecimento envolveu uma pluralidade de outros nele mesmo; agora, se eu fico na exterioridade dele, ele é apenas um instante para mim, eu faço dele mais um fato da minha vida que eu posso consumir ou rejeitar.
É difícil, mas simples, ao mesmo tempo. Se vocês perceberem na vida de vocês, em cada momento, em cada relação. Na música, por exemplo: você entra numa música; deixe a música se tornar essa linha aqui. É quando você deixa de resistir à música: não resista mais, deixe que ela invada completamente. Isso que é o corpo sem órgãos. O corpo sem órgãos é a música na música, é o som no som, é o puro som – você se torna puro som, elemento sonoro absoluto. E esse elemento sonoro é que vai fazer as suas inflexões, ele vai enviar as nuances – a melodia, o ritmo, a frequência; ele é que vai modificar. É o modificador no modificador, é o diferencial na diferença. Esse elemento está em qualquer coisa que fazemos.
Então isso eu acho que é simples, mas é um exercício.
- Participante: em alguns momentos você tem essa sensação.
A questão ética aí é tê-los cada vez com mais frequência de modo tal que eles se tornem simultâneos e daí você não perca mais o fio da liberdade.
- Participante: porque, na verdade, é muito raro. Esse exemplo que você deu da música. Em alguns momentos.
É raro porque nos fixamos a formas.
- Participante: a fixação é clausura.
É a clausura no sentido negativo, porque essa clausura da mônada, na realidade, é uma potência. É como o olho do furacão. O que é o olho de um furacão? Ele é uma potência, é uma energia; agora, você vai encerrar o furacão como? Numa imagem você pode encerrar, mas não encerra. Então é isso que precisa reencontrar na natureza. Então quando Leibniz diz que é o melhor dos mundos possíveis, ele está dizendo que o melhor é o efeito do mundo que é. E o mundo que é, é o máximo de potência. O mundo é o máximo de potência.
- Participante: independente de nós.
Independente de nós e apesar de nós. Agora, aí sim ele vai ter uma tese, inclusive polêmica, em que ele vai dizer que os condenados acabam deixando mais realidade para os livres; então para uma proporção de homens livres vai ter um outro tanto de condenados. Uma zona escura. É uma tese polêmica dele, isso.
- Participante: não entendi isso.
- Participante: é uma condição?
- Participante: então tem um tanto de liberdade e alguns se apropriam dessa liberdade.
É aí que você atinge o melhor, aí você vê o efeito do que é melhor. Você observa isso facilmente na existência: uma aranha que põe mil ovos, sobrevivem 3 ou 4. A mesma coisa em relação à percepção, em relação ao homem, em relação à existência humana: você atinge uma quantidade de realidade, se você é livre, que o condenado deixou. Mas não precisa, na realidade não é uma condição, haver um condenado para que você atinja a sua quantidade de realidade.
- Participante: é, porque aí teria um limite de liberdade.
Não tem isso. É assimétrico, mesmo. Mas o que ele diz é que o homem livre pode ainda abarcar a quantidade de liberdade do condenado.
- Participante: é como se sobrasse.
É. Ele se apropria, ele envolve aquele mundo também. Aquele mundo que não foi envolvido e explicado e expresso, ele também pode envolver. É uma tese que eu não estudei ainda a fundo; quando eu tiver desenvolvido isso bem, eu dou uma outra palhinha dessa coisa. Mas, no fundo, Leibniz tem muita ambiguidade, ele não chegou a desenvolver a obra dele de uma forma plena, como Espinosa desenvolveu. Mas, ao mesmo tempo, ele atinge pontos implacáveis e você vê que são geniais, aos quais não falta nada – ainda que a obra dele seja uma obra inacabada e que o que é mais interessante na obra dele não tenha sido publicado em vida. Ele era um homem de fachadas, segundo Deleuze – ele fazia muito conchavo, muita aliança, usava muita máscara; um homem muito flexível no meio político, no meio religioso, não feria os valores estabelecidos, mas ele não publicou a obra mais interessante, também – já é uma publicação póstuma.
- Participante: esses homens condenados ou esses modos, maneirismos condenados, é que são o suporte para a libertação.
Não, de modo algum. Não é suporte.
- Participante: essa é a tese do cristianismo.
- Participante: exatamente. É devido à sacação do cristianismo que eu posso compreender o anticristo, de Nietzsche. Com essa explicação, essa dobra se explicando, falando desses dois mil anos de cristianismo, que eu posso sentir a proposta de liberação.
Sim, o que você pode dizer é o seguinte: que nessas limitações, ou nesses mundos limitados a uma certa compossibilidade, a uma certa convergência, você toca os limites e os ultrapassa. Então aí você pode dizer que você necessita de uma certa quantidade de condenados, ou de mundos onde se dá o pecado, por exemplo, onde se dá a condenação, para gerar um mundo livre. Mas é como que uma ocasião; não é um princípio nem uma condição, é uma ocasião de você redobrar mais. É nesse sentido que Leibniz vai desenvolver. Então na ocasião de haver condenados, você pode multiplicar ainda mais as suas dobras, mas não é uma condição nem um princípio. Eu acho que o Leibniz não falaria essa bobagem, porque aí ele está introduzindo o negativo na vida. Eu acho que não é esse o caso. O caso de ocasião, ocasião assim – uma questão de atmosfera, de oportunidade, de acontecimento mesmo, é um puro acontecimento.
- Participante: o conceito de vida é expansão e….? Quando você fala vida, o que você está afirmando? É a situação? Porque nesse caso aqui é pura expansão.
Foi o que eu disse aqui na maior parte do tempo: que a questão era de evolução, de expansão, de aumento de realidade. Você abarca mais potência, você inclui mais potência. E quanto mais você inclui, mais acontecimentos você gera. E o que é o acontecimento? É exatamente a emissão de singularidades, ele emite singularidades. E quanto mais singularidades são emitidas, você multiplica as vias de entrada e saída de alguma coisa – porque uma singularidade já é uma pluralidade de entradas e de saídas. Então é infinito mesmo, você está em contato com o infinito, você reconquista o infinito. Agora, você se fecha num mundo finito quando, na vizinhança de uma singularidade, você fica no ponto ordinário dela; ao invés de você atingir o ponto extraordinário, ao invés de você atingir o duplo do acontecimento, você fica naquele ponto ordinário dela. O que é o ponto ordinário? É aquilo que se repete. E é daí que vem a ideia de universal, por exemplo: a ilusão de universalidade vem da repetição de um ponto ordinário; se repete tanto que você acredita que aquilo é universal.
- Participante: a expansão traz a ideia de extensão, não é?
Extensão sim, mas é também intensidade: você se estende e você se intensifica.
- Participante: tem duas escalas aí – geométrica e aritmética.
Você pode resumir numa única palavra: é uma amplitude. Na medida em que você se amplia ou inclui mais realidade, você se estende e se intensifica ao mesmo tempo.
- Participante: latitude e longitude, vertical e horizontal.
Isso. Latitude e longitude. É uma amplitude. Você aumenta a latitude e aumenta a longitude, você aumenta a intensidade e aumenta a extensidade, a extensão. Você aumenta as redobras e as dobras – as dobras com as intensidades, as redobras são as extensidades. As redobras da matéria e as dobras da alma. Então é latitude e longitude, naquele sentido de Espinosa; aumenta a potência de afetar e de ser afetado; quanto mais você aumenta, mais níveis simultâneos você frequenta. Mas não são nem níveis, essa ideia de nível é uma imagem pobre porque na realidade são ‘n’ dimensões. A ideia de nível, fazemos uma imagem no espaço cartesiano – onde tem profundidade, largura e altura – e você fica com camadas. Na realidade eles se dão em todas as direções porque a singularidade não tem baixo, alto, lado esquerdo, lado direito, fundo; ela tem tudo. Então nisso a física quântica dá conta, aí é um aliado fortíssimo entendermos como funciona a física quântica para vermos o que é esse universo leibniziano.
Então eu acho que o que Leibniz traz de muito interessante é essa visão das séries, a visão da divergência, da convergência, da incompossibilidade, da compossibilidade, das dobras do ser.
Porque a ideia de dobra faz com que você ultrapasse os fragmentos ou as partes de matéria ou de espírito como sendo partes imagéticas ou instantâneas; ao invés de você ter um enclausuramento e uma figura ou um objeto, você tem um movimento numa dobra. Então a dobra é uma parte ou uma partícula, mas é uma partícula que não é um ponto atomizado, ela é um movimento infletido que tem um tempo, ela tem um tempo imanente nela mesma; e nesse tempo ela envolve uma potência. Por isso que a ideia de dobra é extremamente revolucionária nesse sentido.
- Participante: por isso a imagem de furacão, com um centro que se move e se desloca. Só que o que surgiu aqui com a questão da divergência, quando eu falei do elemento paradoxal, remete à questão do buraco como câmara clara ou câmara escura, ou um buraco negro ou um buraco luminoso. Se aproxima de uma linguagem do Castanheda. Isso que faz esse centro acentrado ser assustador e fascinante, paradoxal.
Leibniz tem uma ideia que ele acredita que o vazio é uma ausência de realidade e ele quer preencher tudo. E como? Nas mínimas dobras: tudo se dobra, preenche, implica, inclui e expressa.
Na medida em que eu me relaciono com algum instante, com algum acontecimento, e eu fico na exterioridade dele, eu fico no ordinário do acontecimento que é o fato. É o que o jornalismo trabalha: o fato, a notícia. É uma coisa recortada, é uma coisa opaca. Então ele diz que isso gera a ausência ou o vazio; a abertura do ponto, o buraco luminoso seria exatamente quando aquilo é o acontecimento, aquilo entra em acontecimento. E o acontecimento traz as outras séries que o produzem ou que coexistem com ele; aí sim eu estou na pura luz, o buraco se torna luminoso.
- Participante: branco.
Não é nem branco, é luz mesmo, pura luz. A luz aí não tem nem cor, a cor já é uma dobra da luz.
- Participante: porque a luz também pode ser negra.
A luz vem de uma fonte escura. O que é o buraco negro, por exemplo? Ele não tem superfície, ele não tem o ponto. Você não apreende o ponto de inflexão.
- Participante: ele não tem os três níveis lá, não é?
Ele está numa velocidade tal que não conseguimos apreender a vizinhança da sua singularidade, a vizinhança onde ele se expressaria; então tudo o que cai nele, entra numa velocidade e numa dimensão tal que ele não se mostra para nós.
- Participante: ele não se explica?
Ele se explica, ele se expressa, mas numa dimensão completamente desconhecida por nós.
- Participante: fora das três dimensões.
As três dimensões estão fora há muito tempo, as três dimensões não são nada. São ‘n’ dimensões. Assistam um filme chamado Solaris, do Tarkowski; vão ver o que é uma matéria se dobrando com ‘n’ dimensões.
Na aula que vem entramos em David Hume, que é um inglês que vai acabar com os princípios. Leibniz ainda multiplicou os princípios; em David Hume é puro desejo e crença, o universo vai ser isso para ele. E paixões.