Luiz Fuganti
Hoje eu vou fazer um percurso que eu não sei até que ponto é árduo – é o que nós vamos ver – mas é um percurso que tem as duas linhas, a linha desconstrutiva e a linha construtiva; a desconstrutiva diz respeito, evidentemente, ao juízo e a linha construtiva é exatamente aquilo que emerge na ausência do juízo. O que emerge? Como seria o pensamento sem o juízo? Como seria uma psiquê sem o juízo? Como seria um corpo sem o juízo? Podemos dizer que o juízo é a instância privilegiada da negação, é exatamente o que opera a máquina de morte em nós. E ele foi, ao longo dos séculos, se refinando; além de linhas que levaram à sua emergência – linhas que acabaram, segundo certas conjunções, segundo certas sínteses, provocando a sua emergência -, ele teve desenvolvimentos e refinamentos.
O juízo nasce no momento em que algo se destaca como um terceiro elemento entre as relações que deveriam ser diretas. Falamos de uma forma rápida sobre a questão dos blocos móveis de dívida, ou das dívidas feitas por sociedades selvagens ou primitivas, como elemento ou mecanismo que constitui as suas relações. Então o modo como o tecido social das sociedades primitivas é fabricado – ou ganha consistência – é através de dívidas, de promessas ou de inscrições no corpo e na linguagem que fariam com que os corpos que se endividam fossem os próprios credores daquilo que eles assumem como dívida. Então haveria uma ligação imediata entre devedor e credor; o credor não se destacaria da sociedade como uma entidade separada, o credor não encarnaria a figura nem dos deuses, nem de um deus, nem de um Estado, nem de uma lei. O credor seria sempre uma relação de aliança. Então as sociedades primitivas funcionam através de relações de parentesco e de aliança, filiação e aliança – são os dois modos que tecem o pano social das relações. E essa realidade ou esse diagrama de relações se fundamenta exatamente nos blocos móveis de dívida, cujos credores são sempre os membros da própria sociedade.
Então haveria uma relação de devedor e de credor sempre em desequilíbrio; mas o que é típico dessa relação é que é uma relação material e finita; mesmo que seja uma relação de prestígio, mesmo que seja uma relação que gera uma mais-valia de código, mesmo que tenha esse aspecto espiritual na própria relação, é uma relação finita porque ela é pagável: a cada promessa cumprida você tem a quitação da dívida. E na medida em que você quita a dívida, uma nova relação é estabelecida; a sociedade está permanentemente em desequilíbrio; esse desequilíbrio é que mantém a sociedade aberta e em expansão. Então a dívida tem uma função de fortalecimento, de crescimento e de expansão da própria sociedade.
Num determinado momento – que não vem ao caso fazermos agora a gênese histórica, é com o nascimento do Estado que isso se dá – algo se destaca, uma entidade se destaca e o credor passa a ser algo separado da própria sociedade; o credor passa a ser ou um deus ou um homem que acede ao estatuto divino. Geralmente é isso que ocorre. Os deuses homéricos ainda não têm crédito, geralmente os deuses homéricos se queixam muito dos homens, eles são mais como que brinquedos dos homens – ainda que muitas vezes, nas suas narrativas, eles usem os homens como brinquedos divinos. Mas há um jogo lúdico aí e não há uma relação de dívida e de crédito entre os homens e os deuses. Mas aos poucos – como na tragédia de Sófocles, por exemplo – já percebemos que os deuses se tornam credores; por exemplo Apolo, na questão do Édipo-Rei, já é um deus que julga: junto com os homens ele se eleva a uma instância de tribunal.
O que acontece quando você se relaciona com uma instância fora da relação direta, ao modo de um juízo ou de um tribunal? Acontece que você recebe lotes, você recebe destinos, você recebe uma parcela da realidade que te cabe, você recebe uma parcela do Ser; o seu quinhão seria aquilo através do que você vai fazer a sua vida boa ou má, de acordo com o que esse quinhão, o que essa parcela de destino, o que esse lote te levaria a fazer. Então haveria um lote, haveria uma quantidade e uma qualidade de destinos, haveria uma determinada parcela de realidade que se adequaria ou não a aquilo que você deseja, a aquilo que você sonha, a aquilo que você projeta – ou a aquilo que o deus projeta para você, ou o Estado projeta para você, uma lei projeta para você. Então haveria sempre uma relação com o seu destino e o que se adequa à realização do seu destino.
Geralmente o destino traz uma marca, uma dívida, um dever que levaria a cumprir uma Forma ideal, e essa Forma ideal viria de fora, viria do deus. Então ao mesmo tempo em que você tem uma parcela do Ser, esse Ser é acoplado, é soldado a um dever, a uma Forma final, a uma finalidade. Então você recebe uma parcela de destino para cumprir a sua finalidade na Terra. Seria mais ou menos isso que ocorre. E haveria sempre uma defasagem entre o desejo, o sonho, o projeto, e aquilo que de fato se cumpre. Mas sempre que eu recebo uma parcela de realidade de um deus, um lugar, um tempo e um elemento que se cumprem segundo essa Forma do deus, eu sou julgado na medida em que esse conteúdo preenche ou não preenche a Forma esperada pelo deus – a finalidade implícita, escrita ou impressa nessa Forma ideal prévia. E ao mesmo tempo eu julgo, na medida em que o meu desejo está de acordo ou não com essa Forma final. Então haveria um julgamento objetivo – ou de minha parte ou da parte de um juiz. Ou eu julgo, ou sou julgado.
O cristianismo inventa uma forma mais sutil de juízo: as minhas próprias ações ou paixões, os conteúdos existenciais que me constituem como um ser existente, todos esses conteúdos já são juízos, já são julgamentos em si mesmos. Então o modo como eu os realizo – e do ponto de vista cristão necessariamente a realização é sempre dolorosa, é sempre sintomaticamente um sintoma de expiação -, em cada movimento que eu cumpro, eu sou julgado. O julgamento já é a minha própria má consciência, ele já está implícito na minha própria subjetividade. E esse julgamento agora se relaciona diretamente com Deus, que tem uma relação espiritual comigo. Deus ou o juízo não estão mais fora, não é uma instância que se destaca e que observa se eu cumpri ou não a finalidade; esse Deus imediatamente se liga a mim exatamente pelo fato de eu expiar a minha culpa com a dor: na medida em que eu sinto dor, mais eu me ligo a Deus. Então o juízo e o juiz estão soldados num só e se encarnam na minha própria má consciência.
Participante: essa má consciência é instalada?
Ela se instala. Ela é instalada na medida em que ela é estimulada já por um certo contágio de seres que já estão separados do que podem. É necessário sempre pensarmos o seguinte: nunca o juízo, ou o sistema de julgamento, se instala sem um ser estar separado do que pode; é porque você está separado do que pode que você começa a julgar e se sente julgado. Sempre. Não tem outra condição. A condição é que nós temos uma dívida em relação à divindade, e essa dívida é uma dívida infinita; e para que essa dívida infinita tenha alguma relação de pagamento ou de efetivação da sua contraparte, é necessário também que tenhamos uma duração infinita; ou seja, é necessário que a nossa alma sobreviva após a morte, é necessário que a nossa alma seja imortal. Então o sistema do juízo pressupõe uma dívida em relação à divindade e ao mesmo tempo uma duração infinita da alma ou uma alma imortal, porque assim ela pode ser julgada e pagar eternamente os seus pecados.
Participante: você diz que precisa ter alguém separado do que pode para que isso se instale; mas me passa pela cabeça: não precisa isso se instalar para separar alguém do que pode?
É junto. Essa questão da gênese implicaria que fizéssemos uma certa passagem pela relação histórica, como é que isso se dá na história. Como é que os impérios nascem? Como é que uma sociedade despótica emerge? Como o Estado, finalmente, emerge? Você tem sempre uma condição desfavorável, como se fosse algo latente; então você está, em latência, separado daquilo que você pode. Mas isso não significa que você esteja atualizando aquilo.
Participante: e muito menos a má consciência.
Não tem nada disso. Você simplesmente está constrangido por uma certa situação desfavorável. Mas aí alguém de fora vem e formaliza isso com uma velocidade tal que você é incapaz de reagir. É por isso que o Nietzsche diz: “os homens de olhar de bronze” – são exatamente os homens que vêm armados com as armas de bronze e subjugam as comunidades autóctones.
Participante: que já estavam separados do que podem por razões…
Exatamente. Em A muralha da China Kafka fala de modo muito ressonante com o que Nietzsche diz na Genealogia da Moral: que eles chegam com uma velocidade tal que a comunidade não sabe nem dizer se é bom ou se é mau – quando vê, ela já está subjugada a aquele tipo de relação. E ali eles vêm formalizando, ali eles atualizam uma coisa que estava latente. E nesse instante vai nascer a condição do ressentimento; o ressentimento é isso, você identifica o inimigo mas você não consegue reagir, você acaba servindo ao inimigo.
Esse ressentimento vai se espalhar tanto na Terra que, quando emerge o cristianismo, você já não tem mais a quem acusar; o ressentimento se espalhou tanto que daí São Paulo vai interpretar exatamente a morte de Cristo na cruz como sendo exatamente uma culpa de todo homem; então a culpa já não vai mais estar no outro, já não vai mais estar fora, mas vai estar em você. Isso vai ser o modo como o sacerdote cristão vai se servir para separar as forças ativas do que elas podem e, pior do que isso, fazer com que essas forças voltem-se contra si próprias. Porque essas forças ativas não desaparecem; na medida em que elas ficam separadas do que elas podem, elas se voltam contra si próprias e passam a esculpir a interioridade. E quanto mais elas esculpem a interioridade, mais elas multiplicam a dor; e quanto mais multiplicam a dor, mais elas se sentem ligadas ao divino.
E aí você vai ter uma posição dupla: você vai ter a posição dos homens do ressentimento que querem o poder na Terra; e a dos homens que vão abdicar do poder, que vão se ligar a um certo budismo ou à própria figura de Cristo que não quer o poder mas simplesmente abdica das relações de força que vêm da Terra – seria um niilismo passivo, um niilismo budista. Vai ter um São Paulo da vida, vai ter um João de Patmos, vai ter uma série de sacerdotes cristãos que vão fazer questão de espalhar mais ainda o ressentimento e a má consciência para que uma máquina de poder se instaure na Terra com moldes espirituais. E esse poder vai ser fundado exatamente na vontade ou no desejo de julgar; o desejo de julgar é que vai fundar o poder do cristianismo. A Igreja nasce exatamente com a invenção de um tribunal; a Igreja não existiria sem esse juízo e sem esse juiz que agora é o sacerdote cristão.
Participante: você falou da questão da dívida, que seria uma dívida dos homens para os deuses; seria uma coisa muito anterior ao cristianismo?
Entre os gregos já começa a aparecer isso. Se você lê as tragédias de Sófocles… em Ésquilo ainda não tem isso. Em Sófocles já tem e em Eurípides pior ainda, Eurípides já é a dialética inteira instaurada, ainda mais que ele é super-contaminado pelo próprio Sócrates. Mas em Sófocles já começa a aparecer o tribunal divino e humano; as nossas ações são trágicas não porque elas são desastrosas, mas porque elas são julgadas. É o juízo que é trágico. Essa tragédia depois tem um segundo momento, que é o próprio tribunal cristão.
Participante: quer dizer, uma cobrança dos deuses. E um castigo?
Segundo a distribuição dos lotes; você tem sempre uma avaliação errada, você tem sempre uma cegueira em relação à realidade, e essa tua ação acaba sendo desastrosa. Mas ela, imediatamente, é objeto de julgamento porque o teu quinhão não lhe permitia fazer tal ação; então, segundo o quinhão que o deus te deu, mais a Forma que deveria ser preenchida através desse quinhão, é emitido um julgamento. Édipo é isso, Édipo-Rei e Édipo em Colona é exatamente isso.
Mas os homens vão desenvolver essa postura do juízo como algo verdadeiro em si mesmo; a verdade vai se colar a essa maneira de se relacionar com o real, a verdade vai passar sempre por uma Forma que se destaca das efetuações presentes. As efetuações vão ser sempre julgadas por uma Forma que estaria fora da própria efetuação; e se a efetuação não se encaixa nessa Forma, ela tem que ser punida e se ela se encaixa, ela é recompensada. É o sistema das punições e das recompensas.
Participante: Édipo foi punido porque ele transgrediu aquilo que o Estado estabelecia.
Agora, o que está estabelecido, evidentemente, no fundo é fruto de uma conjunção de forças que constitui aquela formação social; e o que ameaça aquela formação social acaba sendo uma Forma desfigurada do que seria esperado do indivíduo. Só que isso é projetado para um deus, para uma lei, para um Estado. Mas evidentemente que existem condições imanentes que levam a aquela posição.
Participante: mas Édipo ousou transgredir; embora ele não soubesse que era o pai dele, mas houve a transgressão e ali ele foi punido de qualquer forma. Existiria uma forma de ele fazer essa transgressão sem ser punido? Em termos mitológicos ele foi punido, mesmo. Como é isso?
Não tem como: se você está no sistema do juízo, necessariamente você é julgado, necessariamente você é punido, porque você já está relacionado a uma instância fora de você.
Participante: já está enfraquecido.
Necessariamente já está separado do que pode. É por isso que ao sistema do juízo vamos opor o sistema da crueldade. A crueldade é uma outra coisa, o combate é uma outra coisa. A crueldade é no sentido de que uma dívida, que é estabelecida numa relação, tem que ser paga; e uma vez paga, ela desaparece e ela desenvolve uma nova relação que já é mais poderosa, mais forte, mais expansiva do que aquela relação anterior. A crueldade serve exatamente para que você não fique culpado, para que você não se sinta em falta; ao contrário, para que você incorpore uma realidade e fique mais forte.
Participante: ser cruel é um ato de respeito porque você fala com o lado mais forte do outro.
Respeito pela vida e um fortalecimento da vida, exatamente. Você incorpora uma força da vida. Então se você simplesmente reage a uma força, porque aquela força te ameaça, você já está necessariamente julgando, a tua postura já é de julgamento; agora, se você incorpora essa força, você habita uma realidade maior. Mas ao incorporar essa força, você necessariamente trava um combate, você entra em devir; ao entrar em devir, você incorpora isso e você ficou mais forte. É cruel porque te modifica, mas é uma modificação que faz com que o teu ser ultrapasse os próprios limites. Então o sistema da crueldade se opõe ao sistema da piedade ou do juízo. O juízo é sempre piedoso, o juízo é aquele que diz: “você é ignorante da sua ação, ou você não sabe necessariamente todas as consequências, os efeitos das suas ações; agora, as suas ações necessariamente são danosas, em vários aspectos; então é necessário que uma instância se apiede de você, te imprima um castigo exatamente para te resgatar, para te salvar” – essa é a postura cristã, essa é a postura ocidental.
A educação, a ciência, o pensamento na universidade é exatamente isso, ele faz isso o tempo inteiro, ele te dá, generosamente – no fundo é piedosamente –, uma Forma; e essa Forma é que te resgata do caos em que você se encontra ou da situação endividada em que você se encontra. Então você tem que procurar, ao máximo, se adequar a essa Forma. É por isso que a criação de valores não interessa para a universidade ou para as instituições que estão ligadas aos poderes; a criação é sempre uma usurpação, a criação é sempre uma crueldade, uma violência com os valores estabelecidos. Quando estamos aqui afirmando que a crueldade libera a vida da dívida – ou faz da dívida, ou da dor, uma função de futuro – é porque exatamente ela tem o mecanismo de incorporar as forças. Você é um centro de forças que incorpora forças através das relações.
O sistema do juízo faz exatamente o contrário, ele impede que as forças sejam incorporadas; e mais: as tuas próprias forças devem ser separadas dessa vontade – até existe uma série de nomes que são frequentemente usados para isso, como voluntarismo, por exemplo: “o cara é muito voluntarista, vai de acordo com a sua força, com o seu poder”, quando, na realidade, o sujeito moral deve ser orientar por uma Forma a priori, uma Forma verdadeira, e os seus impulsos e a sua vontade devem estar subjugados a essa orientação moral ou a essa orientação lógica ou científica. Necessariamente, se você é um homem de bem, você deve estar separado do que você pode. O homem de bem é assim. Então necessariamente você vai ser mau se você não se submeter ao que uma instituição, ou alguém, ou uma lei, ou deus esperar de você. O sistema de juízo quer, exatamente, julgar; e o sistema da crueldade quer fazer vir à existência. A crueldade quer gerar, quer criar, quer gerar realidade; o juízo quer julgar o que já está produzido.
Participante: eu queria contar uma coisa que aconteceu ontem comigo que foi muito cruel e muito marcante. Tem uma alemã lá em casa, amiga da minha irmã que foi fazer intercâmbio; e a menina fala um inglês super bom, estávamos conversando em inglês. Ela ia viajar pelo Brasil, pela natureza, e estava contando que não conseguia estar no mato sem parar de pensar onde ela ia estar depois, se ela estava agindo certo ou errado. E logo depois a gente começou a falar assim: foi bom, super bom, foi good. E ela disse assim: em português existe bem e bom e eu não entendi a diferença, porque em inglês é good, é tudo a mesma coisa. Aí fiquei meia hora para explicar e eu tive que apelar para a filosofia e acabei dando uma aula de filosofia para ela. Foi legal. Eu fui explicando que o Bem seria a essência de uma coisa, uma substância; e ela disse “que bom, eu entendi!”. Eu perguntei: “por que você achou bom?”. “Porque é inteligente”. “Você não sentiu uma coisa boa?”. Ela disse “não sei se eu senti alguma coisa”. Eu falei: “se você sentiu alguma coisa boa, isso é o bom; o Bem é essa essência”, e tal. Aí comecei a explicar como isso tem a ver com o modo de pensar, de julgar as coisas. Não existe bom na cabeça dela, existe o Bem – o tempo todo ela tem que classificar se a coisa é bem ou mal. E aí no final disso tudo ela disse “que bom!”. Eu falei: “o que você quer dizer com isso?”. Ela ainda não sabia dizer.
O que ocorre é que você tem sempre algo que te guia fora e esse algo é o Bem, é uma substância – dado ou pelo que você deseja idealmente (o “meu ideal”), ou por algo que te diz qual é o ideal que você deve seguir. Não importa se vem de você ou se vem de alguém de fora, mas você projeta fora de você; então é sempre uma projeção. Na medida em que existe a projeção, é porque eu já estou separado do que eu posso; se eu projeto eu já estou separado, porque quem não está separado do que pode não projeta, entra em devir. Já experimenta, já está no movimento. E o projeto, para quem está ligado ao que pode, não é nunca uma Forma ou uma figura, não é nunca algo a que você deve se adequar; é uma força, é um pólo, é um campo atrativo que você tem lá. Aí não é mais projeto; então você tem uma relação de força, você tem algo que atrai. E esse algo que te atrai e que te espera e que você quer encarnar, é exatamente o que te faz entrar em movimento, em devir. Se você tem isso, não tem como julgar, porque isso não tem forma, o juízo está excluído de cara aí. O que é mais difícil é exatamente você estar ligado ao que você pode e não cair no juízo, no julgamento.
Participante: essa potencialidade me deixa um pouco dúvida. Como você sabe quando você está separado e quando não está?
Participante: juntando… podemos apreender mais o sistema da crueldade? Entendê-lo mais, para pensar como isso se expande e se produz.
Eu vou responder isso muito rapidamente, porque isso já é objeto da aula de Espinosa, que acho que na aula que vem nós já entramos, se der. O signo mais imediato para você saber que você está ligado ao que você pode, é quando você se liga a uma força, ou alguma força, alguma realidade exterior se relaciona diretamente contigo e forma uma força maior – você se sente mais forte. E o signo imediato disso é a alegria – você se sente alegre, imediatamente; o seu desejo é expressão de alegria. Não é prazer, é alegria – é anterior; porque o prazer já é coisa de órgão, já é secundário. A dor e o prazer são elementos secundários. A alegria e a tristeza têm a ver diretamente com o aumento e a diminuição de potência, é uma coisa imediata. Então você não tem juízo que vá dizer “eu estou indo no caminho certo ou no caminho errado”, não tem nada disso. Já é imediato: quando você tem alegria, você já tem a expressão imediata da coisa. Não tem uma instância que se separa de você e julga; é o próprio acontecimento. Se você é mais alegre, você ficou mais forte; se você é mais forte, você ficou mais capaz de receber outras forças – na linguagem de Espinosa, você aumentou a capacidade de ser afetado, de ser modificado. E ao mesmo tempo você aumenta a sua capacidade de modificar o que está fora de você. Então essa é a relação direta com as forças, não tem uma Forma que se interponha entre as forças.
Participante: na medida em que existe uma Forma, há a separação. Que é o budista: o cara faz uma pergunta e tem uma resposta absurda para a coisa, exatamente para indicar a ruptura de qualquer Forma.
Participante: e a crueldade tem aí a função de dar chance do fulano se encontrar com as forças?
A crueldade tem a função exatamente de limpar a superfície.
Participante: é isso que eu queria entender.
Participante: eu li a biografia de Einstein, e a produção dele mostra nitidamente que quando garoto ele já desconfiava de qualquer força do Estado, de qualquer autoridade vinda dos professores. Quer dizer, na adolescência, aos 11-12 anos, ele já desconfiava de qualquer força e qualquer autoridade vinda de professores e principalmente do Estado. Ele colocou bem isso. E aos 16 ou 17 anos ele renunciou à cidadania alemã; ele disse “não quero ser cidadão alemão, eu quero ser um cidadão totalmente livre”. E aos 16-17 anos ele já estava elaborando a teoria da relatividade, com uma produção altamente criativa. Mas justamente quando ele entrou em devir, em alta potência. E depois aos 20-21 anos de idade ele estudava Espinosa e ele teve uma ligação muito forte com essa filosofia. É um questionamento que eu faço com os meus alunos, queremos entender por que Einstein conseguiu chegar em tamanha criação. Patinou muito.
Participante: e no fim da obra ele escreveu um livro Como Vejo O Mundo onde ele diz “por uma cultura moral eu apoio o Estado”.
Ou seja, esse “depois” na realidade estava ancorado ao primeiro “não” dele – não ao Estado, não à cidadania alemã. Esse “não” era apenas um julgamento, era uma transgressão. Quer dizer, “era apenas isso” evidentemente que não, senão o cara não chegaria a criar o que ele criou. É como o Max Planck que se ressentiu da própria teoria quântica. Eu prefiro desenvolver isso mais quando falarmos de Espinosa e Nietzsche, porque aí vamos ter elementos para ter uma velocidade boa nisso. Se eu começar a falar aqui muito rapidamente sobre isso, vai gerar muita confusão. Eu acho melhor voltarmos.
Participante: vamos voltar à crueldade?
A crueldade, na verdade, tem a ver com combate; ela tem a ver com a capacidade que desenvolvemos – ou que nos é estimulado por sistemas cruéis – de entrar em contato com outras forças, que outras forças se apoderem de nós. Então na medida em que elas se apoderam de nós, é como se elas nos enrabassem; elas se apoderam de nós e formam uma realidade mais poderosa. É isso que ocorre, geralmente. Então, o que seria essa crueldade, na essência? A crueldade nada mais é do que você se relacionar com forças que te deixam mais forte, é só isso. Você pode travar o combate contra algo que te enfraquece – por exemplo, algo que vem de fora como um juízo, você trava um combate contra o juízo; mas não é possível você travar o combate contra o juízo sem você travar o combate ao mesmo tempo em você mesmo. Porque na relação que você tem com o juízo, algo já está te separando do que você pode.
O que seria o contraponto? O contraponto é exatamente você se ligar ao que você pode. E o que você pode? Você é uma pluralidade de forças que se liga com pluralidade de forças; a força se liga com força; a força não investe uma Forma, a força investe uma força. Isso que seria o sistema na essência. Um exemplo: o que é um ritual de passagem numa sociedade selvagem? Um jovem que vai virar guerreiro… Antes de tudo, jovem é um atributo nosso, eles lá têm outros atributos. Então o sujeito vai de um estado ou de um atributo para outro atributo. No momento em que ele ganha o atributo de guerreiro, ele só ganha o atributo de guerreiro se ele encarnar o ritual de passagem. O ritual de passagem tem um duplo registro, uma dupla inscrição: uma na linguagem oral, na fala; e outra no corpo, você tem a visualização de crueldades exercidas sobre o corpo. Então você produz dor no corpo. É cruel porque gera dor. Você vai fazer com que os órgãos, ou que uma certa superfície de corpo, responda a determinadas forças; então você vai formar, na superfície, uma memória que é registrada no corpo, na carne e, ao mesmo tempo, na palavra ou no espírito. Vai ter esse duplo registro.
Como você faz a memória no corpo? A memória no corpo é feita através da dor; a dor é o equivalente de uma lembrança, de uma memória ou de uma promessa. Então para você ser guerreiro, você tem que incorporar a condição de um guerreiro; e essa condição implica exatamente o atributo que te faz guerreiro. A condição e o atributo passam a ser a mesma coisa: a condição de você ser guerreiro e a capacidade de ser guerreiro são a mesma coisa. Essa capacidade é produzida no corpo e na linguagem através de uma memória; a memória não simplesmente de marca, mas uma memória de vontade, uma memória que é função de futuro, é uma memória de futuro, é uma vontade de futuro. Então você está produzindo uma cultura, você cultua uma determinada maneira de ser, um determinado modo de existir. Então aquele culto só é possível porque você põe aquilo no futuro; e para você por aquilo no futuro, é necessário você produzir uma memória, é necessário você produzir um homem que seja capaz de prometer. E esse homem que é capaz de prometer e cumprir o que ele promete acaba quitando a sua promessa, ele acaba pagando a sua promessa, na medida em que ele observa o que o ritual de passagem imprimiu no corpo e na linguagem dele.
Participante: o que isso tem de diferente do sofrimento para pagar depois, do cristianismo?
A diferença essencial é que os rasgos na carne, os furos, os vários rituais de tortura em relação ao corpo geram uma dor que é quitada na medida em que você encarna a função produzida ali. Você produziu uma função, existe uma dívida em relação à sociedade ou a esses deuses imanentes, a essa superfície de registro inconsciente – o que Nietzsche chama de atividade genérica da cultura -, existe ali uma dívida em relação a esse plano, só que você encarna esse plano, você é o próprio credor dessa dívida, na medida em que você se torna um guerreiro. Ou seja, o crédito é seu: “eu virei guerreiro”. Então eu quito a minha dívida na medida em que eu cumpro a promessa. Então a dívida está paga, eu não devo mais nada; e eu era credor da minha própria dívida. No cristianismo não: a dívida se destaca, é de uma entidade fora. E ao mesmo tempo ela se torna espiritual: uma dívida existencial jamais vai ser paga. Daí a interpretação de São Paulo dizendo que o próprio deus se pregou na cruz para quitar a dívida dos homens – ou seja, Cristo morreu pelos nossos pecados. Então é preciso que um deus louco se pregue na cruz para pagar uma dívida infinita impagável. E, no fundo, é pura arapuca de novo. Por que? Porque essa quitação é apenas aparente, é o que diz Kafka; esse pagamento é aparente e no fundo ele é adiado. Lawrence diz a mesma coisa: o nosso destino é adiado. Que destino é esse nosso? É aquele onde nós vamos ser julgados. Ele é sempre levado para a frente. É como a morte, a morte é adiada ao máximo. Então a nossa vida em direção à morte é o mesmo sistema do juízo que nos espera no final.
Participante: você está dando exemplo da coisa dos ritos de passagem. Eu me lembro de Um homem chamado cavalo que é exatamente isso, o cara é içado e se ele aguentar a dor de ser içado por aqueles ganchos no peito ele poderia ser considerado… Ele não é índio, mas ele observa primeiro isso sendo feito nos índios. E para aquele branco ser aceito pelos índios ele tem que fazer.
Ele tem que ser um forte.
Participante: é. Aí, quando ele é içado, de fato ele é.
Então, o sentido da dor, aí, é um sentido exterior. A dor é um prazer da tribo; aqueles que estão olhando, estão fazendo festa. Não é isso que ocorre geralmente? O ritual de passagem é uma festa para a tribo. Por que? Porque eles estão produzindo uma potência. Isso é pura crueldade. Então a dor é objeto de prazer de alguém. No cristianismo é tudo ao contrário: você vê alguém sofrendo você morre junto, você se apieda junto.
Participante: você quer parar a dor dele.
Quer parar a dor, não suporta. Faz exatamente o contrário. Por que? Porque criaram um sentido interno da dor, inventaram um sentido espiritual para a dor, inventaram – como diz Nietzsche – a máquina imunda.
Participante: vamos puxar o rito de passagem para a nossa vida. Não estamos numa tribo, como é que podemos transformar essa crueldade? O que para mim está difícil de concatenar é a ideia da crueldade ligada à alegria. Como é possível perceber a crueldade estar no mundo contrapondo o juízo, e isso ser uma atitude de alegria. Isso de repente é uma atitude de alegria talvez para quem olha de fora, os outros membros do bando; mas para aquele que passa, como é que isso aumenta a potência, aumenta a alegria?
Participante: tem uma dor que é considerada super legal pela nossa cultura que é a dor de parto. Cada vez menos, querem anestesia, etc., mas tem uma grande parcela que diz “que legal, eu quero passar por isso, não quero ser anestesiada”.
Participante: bom, eu não posso dar à luz. Então como é que eu faço?
Participante: quando você está cama e aí alguém vem e arranca a pele das tuas costas. Dói para caramba mas é muito bom.
Participante: quem faz isso? (risos)
Participante: a alemã.
A questão essencial para se entender a crueldade é exatamente entender o sentido da dor. A dor é um instrumento de subjugação das nossas forças reativas, das nossas forças de regulação e de conservação. O corpo se conserva e se regula; e a conservação, a regulação ou a organização necessariamente são forças reativas. As forças reativas têm a sua função nobre enquanto forças reativas, mas elas não podem subjugar as forças ativas. Vamos supor: eu tenho fome e porque eu tenho fome eu não vou fazer mais nada enquanto eu não comer. Ora, isso é a força reativa em mim dominando o resto da minha vida. Um outro exemplo: o caçador guaiaqui, segundo uma descrição do Pierre Clastres: ele vai à floresta e caça um pássaro, por exemplo. Ele não pode comer o pássaro, ele tem que levar o pássaro até o centro da aldeia e esse pássaro vai ser distribuído ou redistribuído; se ele comer o pássaro, ele vai ser punido. O que ocorre? Que lei é essa, que código é esse que eles estão inventando? É aí que entendemos a diferença entre uma lei reativa, uma lei negativa ou uma lei moral, e uma lei que é uma regra de expansão da vida, como diria Hume, uma regra de passagem. É essa a diferença. O que ocorre? Essas sociedades tribais inventam regras para que o alimento seja redistribuído, as funções sejam redistribuídas; se ele comer a caça, aquele tecido social não se mantém porque os filhos não comem, as mulheres não comem, outros membros da aldeia não comem. Então ele tem que entrar num ritual de passagem – aí vai ter um ritual próprio para ele se tornar caçador e o caçador vai ser obrigado a reprimir as forças do estômago, a subjugar as forças do estômago com uma determinada dor, alguma crueldade que faça com que ele domine aquela força e dê um outro sentido para a sua caça ou para a sua produção que é a obtenção do pássaro ou do alimento. Então ele vai dar um outro sentido para aquilo. O outro sentido é em função de uma atividade, de uma expansão e de uma conservação da aldeia e não mais do estômago dele. Agora, se ele atender imediatamente ao impulso orgânico, ele não se constitui e nem sobrevive.
Participante: e aí eu posso dizer que ele está separado do que ele pode ser? Se ele comer a comida, ele se separa do que ele poderia ser?
Isso, ele se enfraquece.
Participante: ele começa a poder ser a partir do ritual de passagem, a potência dele se realiza através desse ritual de passagem.
Ele sozinho não se mantém.
Participante: um exemplo disso para nós eu acho que é o obeso quando consegue parar de comer e emagrecer e aguentar a fome. A alegria que essas pessoas têm. Ou com droga, heroína, quando consegue largar. Eu acho que é meio parecido com essa vivência de controle de força e de expansão da vida. Porque o obeso, quando recupera um corpo decente, passa a poder viver de novo.
Participante: mas que ação isso está tendo em quebrar o juízo?
Não tem juízo nisso.
Participante: você citou Espinosa nessa referência à alegria. E a vida de Espinosa é uma vida absolutamente cruel e é impossível alguém conseguir imaginar aquele homem sorrindo diante de tudo que ele passou. E de repente isso surge como sendo um exemplo de alegria.
Mas Espinosa tem um contentamento…
Participante: é isso que não está colando, a dor com a alegria?
Participante: não, o juízo do mundo, o juízo moral da vida. Quando estou falando disso eu estou me colocando no lugar dele e no lugar de todo mundo aqui, que nós enfrentamos muito de juizo aí fora. Como quebrar isso e manter a alegria? Ser cruel dentro, com capacidade de romper fora e mantendo a alegria?
Participante: é a alegria que quebra.
Participante: é ida e volta. A quebra dá alegria, também.
Participante: não sei se a alegria é algo que vem depois ou antes.
Participante: alegria tem a ver com a força, com o aumento de potência. Alegria não tem a ver com a dor.
Alegria é superior a prazer e dor – primeira coisa. Prazer e dor são ligados a órgão, a um corpo, um estado de corpo ou estado de alma.
Participante: quer dizer, não é a dor que dá alegria. Não é isso.
Mas o que é a dor? A dor é um sentido ou é um signo de que tem algo problemático. É só isso que ela é. Ela é um sinalizador, ela orienta a ação. E na medida em que ela sinaliza ou orienta ou ilumina a ação, ela leva para a alegria, necessariamente, ela leva para a superação daquela situação, daquele impasse. A dor é uma situação de impasse, sempre, é um problema; mas o problema, no fundo, é sempre positivo. Então se você orienta a solução do problema segundo um ultrapassamento dele mesmo e não simplesmente como um signo de imperfeição, um signo de culpa, um signo de dívida, aí você necessariamente vai para a alegria. Porque você aumentou a potência.
Participante: não é só a dor física. Aí você está falando de problema…
É físico e psíquico ao mesmo tempo.
Participante: as psíquicas talvez sejam até piores.
Participante: mas essas são corporais ao mesmo tempo.
O selvagem não tem a noção de indivíduo, ele não é um indivíduo. E nem coletivo. Ele se confunde numa superfície de registro que é ele e ao mesmo tempo não é ele, aquilo o atravessa o tempo inteiro. Então aquele código que o proíbe de comer a caça imediatamente é a superfície de registro mesmo; aquele tecido social, aquele plano social que compõe a sociedade, que se encarna nele também. E aquele plano que se encarna nele é o próprio deus que está nele. Aquilo é deus, aquilo é o princípio social, aquilo é o plano de composição, aquilo é o plano de imanência, aquilo o atravessa necessariamente. Então não tem como ele dizer “eu me proibí algo porque no futuro a tribo vai ter um prazer maior”. Não tem nada a ver com isso, é relação imediata; não tem uma instância nele enquanto indivíduo, enquanto pessoa, e a tribo lá fora. Aquilo atravessa, é o inconsciente mesmo agindo ali. Inconsciente ou consciente seria um falso problema.
Participante: será que não tem a ver com desapego ao próprio corpo?
É. Por que? Porque você não é proprietário dos seus órgãos. É desapego de tudo. Você é nômade. As forças te atravessam, elas se apoderam do seu corpo.
Participante: é o contrário das sociedades de agora.
Exatamente o contrário.
Vamos estabelecer um corte aqui e vamos fazer uma coisa que é exatamente onde eu estava resistindo um pouco para entrar, mas eu vou precisar entrar e vocês vão ter que ter um pouquinho de paciência. Porque agora nós vamos fazer a distinção entre um pensamento nômade e um pensamento sedentário; um pensamento que vai pelo lado do juízo e um pensamento que vai pelo lado da crueldade; um pensamento que não precisa de nenhuma referência, de nenhuma instância, e ao mesmo tempo produz realidade, e um outro pensamento que se adequa a uma realidade já pronta e que precisa de uma instância fora dele para existir e se distribuir no espaço. Vamos chamar um de pensamento da analogia e outro pensamento da univocidade.
Hoje eu quero falar um pouco de um pensador cristão que, na realidade, gera uma abertura contra o próprio cristianismo; é um pensador chamado Duns Scot. Duns Scot foi o primeiro pensador que fez o seguinte enunciado: o ser é unívoco, todo ser é unívoco. O que é ser unívoco? O ser se diz num único e mesmo sentido para qualquer elemento do qual ele se diga; no caso, como ele é cristão, esse ser se diz de Deus e das criaturas num mesmo sentido. Então o ser de Deus e das criaturas é, literalmente, realmente, o mesmo. É o mesmo ser. Isso é uma posição que daqui a pouco voltamos nela para se entender melhor e ao mesmo tempo levar para outras distinções que vão desembocar no espinosismo. Espinosa vai produzir o plano de imanência mais puro, pode-se dizer, o plano de imanência mais transparente. E o plano de imanência é, necessariamente, um plano que esconjura ou que expulsa o juízo; não há lugar para o juízo na medida em que não há lugar para nenhuma transcendência. Então o ser que é transcendente, no fundo, é o próprio lugar do juízo; não haveria juízo se não houvesse a transcendência do ser. E não há transcendência do ser se o corpo e o pensamento não estiverem separados do que eles podem.
Como é que o pensamento ligado ao ser transcendente faz a distribuição de realidade? Vimos no início que o juízo é instaurado na medida em que ele distribui lotes, distribui destinos, distribui lugares, tempos e elementos para cada ser. Então o ser ligado a essa transcendência, o ser analógico, o ser transcendente, vai ser repartido, vai se repartir entre os indivíduos do mundo; então cada indivíduo, ou cada espécie, ou cada realidade, vai ter uma parte da realidade do ser. É isso que ocorre. Então esse ser é repartido, é distribuído. É todo o contrário do ser nômade: o ser nômade se distribui num espaço nômade que não se reparte. Não tem como ter cerca, não tem como ter propriedade, não tem como ter lotes num ser nômade. Mas o ser analógico, o ser transcendente, faz exatamente o contrário.
Nós vimos, com Aristóteles, que havia uma tentativa de representar a diferença, fazer com que a diferença, com que a singularidade, com que o que é diverso fosse submetido a um sistema de representação, porque a diferença – para Sócrates, para Platão e para Aristóteles – representa o Mal. O Mal seria exatamente aquilo que difere e que não entra em conjunção, que não entra em harmonia ou que não entra em convergência com uma unidade. Então, evidentemente, já há uma pressuposição moral para se negar ao Múltiplo uma plena realidade; o Múltiplo, o plural, o diferente, já é inferior por natureza. E por que ele é inferior por natureza? Porque ele age diretamente no movimento e não tem nenhum intermediário.
Sócrates, Platão e Aristóteles fazem o movimento das alturas: eles inventam um plano transcendente, um ser transcendente fora da natureza, que seria um valor superior, ou o ser superior da natureza. Um ser superior porque a própria natureza seria inferior nela mesma. Na medida em que ela é inferior nela mesma, ela precisaria de uma ordem que a conduzisse para o bom caminho; essa ordem exterior na realidade desqualifica a própria natureza como sendo insuficiente nela mesma. A natureza não teria uma ordem imanente, uma ordem própria que se bastasse a ela mesma. Na medida em que a natureza não obedece a uma forma exterior, ela necessariamente gera crimes, gera injustiças, gera crueldades, gera impiedades, gera uma ação desastrosa e trágica. Esse é o pressuposto moral que está na base do sistema aristotélico ou em qualquer sistema ligado à analogia ou à transcendência do ser.
Aristóteles então, a partir já das delimitações platônicas da identidade e da semelhança, que se dão nas imagens-cópias, vai inventar mais duas cabeças da representação, que já vimos rapidamente aqui, que é a oposição dos predicados e a analogia do juízo. Através desses quatro elementos, ou dessas quatro cabeças da representação, Aristóteles vai submeter a diferença a esse elemento representativo. Então Aristóteles submete a diferença à identidade do conceito, à analogia do juízo, à oposição dos predicados e à semelhança na percepção; então não tem uma diferença no mundo, uma singularidade sequer, que não deva ser mediada por esses elementos da representação. Aí Aristóteles vai chegar na diferença menor possível como um objeto de razão, que seria a espécie especialíssima; por exemplo “o homem é um animal racional”: é a diferença mínima à qual ele chega.
E haveria as diferenças máximas; nas diferenças máximas ele encontra dez tipos de realidade no ser; o ser se diria sob dez sentidos diferentes. Um que é substancial, a própria substância; outro é a quantidade; outro é qualidade, outro é movimento, etc. Ou seja, ele chegaria a dez realidades máximas distinguíveis, o que é chamado de dez categorias. O ser, em Aristóteles, se diz sempre então em dez sentidos diferentes: o sentido da substância, o sentido da quantidade; ou seja, a quantidade é ser, a qualidade é ser, a substância é ser, o movimento é ser, isso tudo é ser. Mas o ser não se diz em um único e mesmo sentido dessas categorias; ele se diz sempre num sentido diferente. Haveria, então, uma analogia de proporcionalidade: segundo o senso comum, o senso ou o sentido que é comum do ser, distribui para a substância uma parte do ser, na qualidade distribui uma outra parte do ser, na quantidade uma outra parte – de modo que este ser se diz em dez sentidos distintos. E com valores distintos: a substância seria o sentido primeiro do ser, a qualidade seria o sentido segundo do ser, a quantidade seria o sentido terceiro do ser – haveria uma hierarquia dos sentidos do ser.
O ser seria sempre análogo – ou seja, se as próprias dez categorias não têm o mesmo ser umas em relação às outras, que dirá então os gêneros e as espécies? Pior do que isso, que dirá o ser físico, o indivíduo físico? Ou seja, haveria uma hierarquia, o valor supremo de substância que vem sendo degradada até o ponto mais ínfimo da matéria. Então o indivíduo, que é feito de matéria e Forma, teria o sentido mais baixo do ser; o ser que ele tem é um ser nunca primário, é um ser secundário, terciário, quaternário, etc. Quer dizer, é um ser ínfimo em relação à realidade desse ser último que seria a substância.
A hierarquia é o que se chama a analogia de proporção; ou seja, através de uma faculdade gerada por um ser separado do que pode, que é exatamente a faculdade do bom senso, eu distribuo hierarquicamente as qualidades do ser; através de uma outra faculdade gerada por esse mesmo ser impotente, que é a faculdade do senso comum, eu distribuo proporcionalmente o ser para essas várias maneiras de realidade. O que eu não tenho nunca é um ser que seria o mesmo para todas as diferenças. A diferença de uma substância, a diferença de uma quantidade, a diferença de uma qualidade, a diferença de um gênero, a diferença de uma espécie, a própria diferença específica, o indivíduo: nenhum desses elementos tem o mesmo ser.
Isso se funda racionalmente numa postura moral – é por isso que Nietzsche diz que o sujeito do conhecimento pressupõe o sujeito moral; o sujeito moral é aquele que acredita que o mundo deve ser julgado, que há uma parte boa do mundo e uma parte má do mundo. E como o mundo é julgado? Através desse sistema de mediação da própria diferença; eu tenho a representação que submete a diferença desde as espécies ínfimas até o gênero generalíssimo – o gênero generalíssimo é uma categoria e a espécie ínfima é a última espécie, a espécie especialíssima. Então a diferença, a singularidade, a diversidade, a intensidade vão estar sempre julgadas por esse plano representativo, que vai do mais ínfimo de uma espécie ao máximo de um gênero. Então é nesse sistema de representação que vai estar o plano de organização dessa realidade; essa realidade tem que se rebater nesse plano de organização. Esse plano de organização, ou esse sistema de representação, é o que vai distribuir os destinos, os espaços, os lugares, os tempos e os elementos que cabem a cada um. É esse sistema de representação que vai lotear o teu destino. E é esse sistema de representação que vai dar a forma final à qual o teu quinhão, o teu lote, as tuas ações, as tuas paixões, o teu pensamen-to devem seguir.
Esse basicamente é o sistema do juízo ligado à filosofia, ligado à razão, ligado à ciência. E nós acreditamos que isso tudo é neutro, que isso tudo tem valor de verdade em si; mas no fundo isso é completamente parcial, isso é absolutamente redutor – reduz qualquer diferença e singularidade a uma Forma sempre genérica ou universal. Porque a diferença mínima que esse sistema vai atingir é a diferença específica; então, no melhor dos casos, eu me especifico como um ser racional. Essa minha especificidade é que vai ser a minha realização. Então eu não vou ter nenhuma diferença individual que valha a pena ser valorizada; o que é individual é necessariamente desvalorizado. Isso é o sistema de Aristóteles.
O cristianismo, evidentemente, vai inventar algo que vai atingir o indivíduo; e, do ponto de vista filosófico, racional ou científico, vai desembocar no sistema de Leibniz e no sistema de Hegel, um com o infinitamente pequeno e o outro com o infinitamente grande. É quando a representação finita, orgânica, vai conquistar um sentido orgiástico, um sentido de uma falsa embriaguez que atingiria o infinitamente pequeno ou o infinitamente grande. Esse infinito, na representação, é sempre designado por uma Forma, é sempre expresso por uma Forma. Então a representação nunca ultrapassa a Forma. E é a Forma que vai estar dando realidade, que vai estar julgando a intensidade, que seria anterior à própria Forma. Sempre você vai ter uma Forma anterior – por mais que ela se adeque ao seu micromovimento, ao seu microgesto, à sua micrológica, à sua microidéia, essa Forma vai ser algo superior à própria intensidade que a deve encarnar. Então o sistema de juízo vai estar aí também, necessariamente.
Vemos que esse sistema é necessariamente sedentário porque ele distribui os destinos ou as realidades a partir de Formas fixas; os lotes, os quinhões, os destinos ou as Formas que os seres devem obedecer são Formas prévias e fixas. Mesmo no infinito há uma fixidez da Forma; sempre que a Forma for anterior à força, for anterior à intensidade, ela necessariamente é fixa – ainda que dê a ilusão, por ser micro, de estar em movimento. O movimento é sempre o movimento de uma Forma a outra Forma. Assim como a dialética hegeliana ou as mônadas do Leibniz.
Voltando: Avicena é um filósofo árabe do século X. Avicena, diz a lenda, leu 40 vezes a Metafísica de Aristóteles e não entendia porque Aristóteles não atingiu a essência – Avicena diz que Aristóteles não atinge a essência, olha que fórmula interessante que o Avicena descobre. Ele diz o seguinte: Aristóteles diz que a Física tem como objeto o indivíduo; então a Física conhece o indivíduo fisicamente ou a substância física. E a Lógica conhece a espécie que subsume o indivíduo – o indivíduo entra sob a espécie, a espécie abarca o indivíduo. Então o objeto da Lógica é sempre uma espécie e a espécie é um universal. Então o objeto da Lógica ou da razão é um universal, é uma essência universal; e o objeto da Física seria uma essência individual – mas é a própria substância individual, é a parte: a Física seria a parte e a Lógica seria o universal.
Avicena diz: mas existe algo que não é nem particular, nem universal; não é nem físico nem lógico; e mais, ele é anterior ao físico e ao lógico. É uma essência que é neutra – é neutra porque nem diz respeito ao físico nem ao lógico, é uma essência neutra que tem uma realidade pura antes de qualquer determinação física ou determinação lógica. Essa essência é indeterminada, nesse sentido – ela é neutra. Exemplo: você tem o animal como gênero ou como um universal; e você tem um animal físico como um boi, por exemplo; mas a animalidade não é nem o físico nem o lógico, a animalidade é algo anterior ao físico e ao lógico. Então é porque tem animalidade que existe o animal físico e o animal lógico. A mesma coisa o homem, o homem individual físico e o homem lógico como animal racional; mas a humanidade seria outra coisa. Ou então o branco: o branco, enquanto um elemento físico, o branco enquanto cor lógica, e a brancura, que seria a própria essência do branco.
Então não é por acaso que Avicena não entende a Metafísica de Aristóteles; ele chega à conclusão de que Aristóteles não atingiu o conhecimento metafísico – porque o objeto da Física é a substância física, o objeto da Lógica é o universal lógico, mas o objeto da Metafísica é a essência neutra. Então Avicena vai dizer que haveria um terceiro estado da essência ou uma essência pura que seria essa essência neutra. Que antecede a qualquer estado – estado físico ou lógico. Então há algo anterior. É prévio. Não é nem individual, nem universal.
Duns Scot vai transportar essa qualidade da essência de Avicena. Duns Scot nasce em 1266 e morre em 1308. Ele chama João – ou John – Duns Scot. Duns é uma cidade da Escócia e Scot porque é da Escócia. É João de Duns da Escócia, no fundo. Ele é um teólogo franciscano e ele vai fazer uma crítica à chamada “razão do pecador”. Duns Scot tem um objetivo: ele acredita que ele pode ver Deus cara a cara, de frente, porque ele sabe que nós, na nossa essência, não perdemos a nossa pureza, a nossa inocência; nós estamos num estado de pecador, essa é a tese de Duns Scot.
Enquanto estado de pecadores, enquanto peregrinos, nós não somos capazes de ver Deus cara a cara ou de ter a intuição direta das essências. O nosso intelecto tem a mesma natureza que o intelecto do anjo. O intelecto do anjo não vê por imagens, não pensa por imagens ou não intelige por imagens; o intelecto do anjo é intuitivo, vai direto na própria essência; a inteligência e o intelecto se confundem, têm o mesmo ser. Duns Scot acredita que o nosso intelecto é da mesma natureza que o intelecto do anjo – olha que coisa interessante.
Nessa época a escolástica já está bem desenvolvida e o tomismo impera. O que é o tomismo? É a filosofia de São Tomás de Aquino – que no fundo é a filosofia de Aristóteles, interpretada por Avicena e Averrois, que o São Tomás modifica e põe a serviço da fé. Mas o ser de São Tomás é um ser análogo, é um ser por analogia. Duns Scot diz: ora, se o ser fosse análogo, seria impossível haver comunicação de Deus com as próprias criaturas; só é possível haver uma comunicação entre Deus e as criaturas, e só é possível Deus ter criado o mundo, se o ser de Deus e o ser das criaturas for o mesmo. Portanto, o ser tem que ser unívoco; é necessário que o ser seja unívoco, é necessário que o ser se diga num único e mesmo sentido – de Deus e das criaturas.
Participante: ele já está preparando terreno para Espinosa.
Está preparando terreno para Espinosa. E ele vai fazer uma distinção clara entre Metafísica e filosofia e teologia, uma coisa é a Metafísica, outra coisa é a teologia. A Metafísica tem como objeto primeiro – e isso Avicena tinha já elaborado – o ser; o ser seria o objeto primeiro da Metafísica. E a teologia tem como objeto primeiro Deus. Aí ele vai fazer uma distinção entre a teologia em si, a teologia negativa, a teologia positiva, etc.; a teologia negativa é quando você conhece Deus por saber o que ele não é, e a positiva é quando você dá alguns atributos que pertencem a Deus. E a Metafísica não se liga à fé, a Metafísica se liga puramente ao intelecto ou à razão.
Mas Duns Scot diz que a razão, no caso a razão aristotélica, necessariamente é uma razão de pecador. Por que? Porque a razão precisa da imagem para atingir a intelecção ou o conceito. É exatamente como funciona a razão aristotélica, é por abstração de imagens ou de fantasmas sensíveis que você obtém a Forma universal, é assim que Aristóteles opera. Então você precisa do sensível do corpo para atingir o universal. Voltando: Duns Scot diz que é necessário que o ser se diga em um único e mesmo sentido de Deus e das criaturas, para que haja comunicação entre Deus e as criaturas. Esse ser é neutro, da mesma maneira que Avicena dizia que a essência era neutra, ou que o terceiro estado da essência era neutro. O ser é neutro porque ele é indiferente ao finito e ao infinito; a Metafísica pensa, no máximo, o ser infinito e o ser finito – ela não pensa Deus porque esse não é o objeto dela, o objeto dela é o ser. O ser infinito é um ser já determinado, é um ser que tem um modo; o modo de ser infinito é Deus e o modo de ser finito é a criatura.
Mas Duns Scot diz: antes de ter o modo, tem o ser puro; esse ser puro é neutro; então o ser, enquanto ser, é unívoco, ele se diz num mesmo sentido. Então o ser do infinito e o ser do finito são o mesmo. Isso seria um ser unívoco. Ora, o finito são todas as diferenças do mundo; tudo o que faz parte do mundo ou da natureza é dito finito. Duns Scot está dizendo que esse ser se diz, de todas as diferenças do mundo, do mesmo modo que se diz de Deus. Olha que coisa incrível. Só que ele mantém o ser neutro porque se ele dissesse que o ser fosse afirmativo ou até seletivo, ele estaria incorrendo num panteísmo; como ele é um cristão, ele tem que manter o ser transcendente. Então o ser é transcendente, mas ele é unívoco. Enquanto neutro, ele fica ainda transcendente. Em Espinosa esse ser vai virar imanente. Depois vamos ver como é que ele se torna imanente. E em Nietzsche esse ser vai se chamar eterno retorno. Espinosa faz do ser neutro de Duns Scot um ser afirmativo; e em Nietzsche o ser afirmativo se torna seletivo e produtivo, que vai ser o próprio eterno retorno.
Participante: Duns Scot deve ter vivido muito perto do tempo do Francisco. Século XI, XII… o cara estava ali, era primeira turma. Não dos que queimaram Francisco, mas dos que foram queimados.
Exatamente. Então você tem aí o ser enquanto ser que se diz num único e mesmo sentido do infinito e do finito. Esse ser tem ainda maneiras de se apresentar; ele não se apresenta apenas enquanto ser, ele se apresenta já enquanto ser qualificado e ainda assim se mantém unívoco. Por exemplo, Duns Scot vai dizer que existem elementos, que existem qualidades que são superiores às categorias de Aristóteles, que estão além das categorias de Aristóteles. Ele vai chamar de os transcendentais. E esses transcendentais vão se dizer também num único e mesmo sentido do finito e do infinito. Exemplo: verdadeiro. Deus é verdadeiro no mesmo sentido em que o finito é verdadeiro. Belo: Deus é belo no mesmo sentido que o finito é belo. Bom: Deus é bom no mesmo sentido que o finito pode ser bom.
Participante: mas isso é uma analogia?
Não, é no mesmo sentido.
Participante: é um espelho? Eu não estou entendendo essa comparação.
Participante: é que não é uma comparação.
O ser que se diz de um e se diz do outro é exatamente o mesmo. E esse ser ora é verdade, ora é beleza, ora é bondade.
Participante: mas há uma contradição superforte, aí. O mesmo que é infinito e é belo é o que é finito e é belo. Aí quebra a razão.
Não. É aí que Duns Scot inventa uma coisa fantástica chamada distinção formal. Olha como é que a diferença começa a ser afirmada. Porque toda a nossa questão é exatamente ver o modo de afirmar a diferença sem ter que mediá-la por uma representação, sem ter que julgá-la. O que Duns Scot faz? Ele inventa uma distinção formal que não é numérica, nem apenas de razão, mas que é real. O que é isso?
Em filosofia, todo mundo sabe que a distinção real, segundo Aristóteles e outros que vêm após ele, é sempre uma distinção numérica; então eu me distingo realmente de você, mas apenas pelo número. Tradicionalmente, pois, eu, que sou um indivíduo e os outros indivíduos, que são outras tantas entidades diferentes, só se distinguem realmente pelo número. Formalmente um homem não se distingue realmente de um outro homem pois pertencem à mesma espécie. Esta distinção formal seria apenas uma distinção de razão, portanto não real. Assim esta distinção formal ou de razão seria aquilo que constituiria a essência ou a espécie ou a definição de um ser, como por exemplo a diferença entre racional e mortal e não seria numérica porque não divide uma espécie em racional e outra mortal.
Mas o que Duns Scot inventa é uma distinção formal real, que não é numérica, pois não divide o ser ao qual ela se atribui em dois, mas é real, pois o atributo formal que qualifica deste modo o ser faz com que ele se expresse de modo único e irredutível, isto é, faz com que o ser se expresse numa maneira realmente diferente, que o faz realmente diferente, sem que ele se divida, enquanto ser, em dois ou mais.
Exemplo : Vênus é um ser. Vênus se apresenta de manhã e nós dizemos “Estrela da Manhã”; Vênus se apresenta de tarde e nós dizemos “Estrela da Tarde”. Estrela da Manhã e Estrela da Tarde são duas qualidades expressivas de Vênus, mas isso não divide Vênus em dois, é o mesmo planeta com atributos expressivos diferentes. A distinção entre Estrela da Tarde e Estrela da Manhã é uma distinção real – realmente o ser se expressa de modo diferente naquele atributo. É diferente. Então essa diferença é real. Mas essa realidade não divide o ser em dois; o ser se expressa de múltiplas maneiras, distintas maneiras – realmente distintas – sem dividi-lo. Do mesmo modo o ser de Duns Scot: você tem um ser que se expressa através de formas ou de qualidades formais realmente distintas entre elas.
É o que Espinosa mais tarde vai chamar de atributo – o atributo de Espinosa é isso. Espinosa vai dizer que existe o atributo pensamento, existe o atributo extensão, e que cada atributo é infinito no seu gênero – enquanto atributo ele é infinito nele mesmo. E o atributo é autônomo; assim, o pensamento enquanto pensamento é autônomo em relação ao atributo extensão, que é o corpo – o corpo tem a sua autonomia, também. Só que Duns Scot mantém uma certa eminência de um atributo em relação ao outro: os transcendentais têm alguma hierarquia, alguma eminência, que é o modo de Duns Scot manter a transcendência e não cair em um panteísmo, que o levaria para uma fogueira, ele seria queimado com certeza.
Então o que ocorre? Você tem um ser que se exprime, em suas qualidades, em sua pluralidade de formas – que se distinguem entre si mas não dividem o ser em vários. Além disso, além da distinção formal, Duns Scot vai dizer – e aqui está uma coisa fantástica – que existe a distinção modal. Olha o modo como a diferença vai sendo afirmada! Isso devolve uma inocência incrível, redevolve a inocência: num meio cristão cheio de culpa, de julgamento, de processos condenatórios, você tem alguém que inventa um princípio de individuação que vai dizer que o indivíduo é perfeito, tem a sua perfeição própria. Ele vai chamar isso de haecceitas ou hecceidade – hecceidade é o princípio de individuação em Duns Scot. É uma modalidade intrínseca do ser. Dois modos, os modos mais gerais do ser: infinito e finito. O infinito é um modo do ser e o finito é outro modo do ser. Então essas modificações do ser são o que faz algo ser o que é; essa modificação seria determinada pela última atualidade da Forma; a Forma vai se efetuando a um ponto tal que no seu último ato, na sua última atualização, ela encontra uma matéria – que não é uma pura potência como era em Aristóteles, como era em São Tomás – mas é uma matéria que tem um mínimo de ato, é uma potência que tem um mínimo de ato. Uma potência em ato, como Espinosa vai dizer depois. Então é o máximo de potência com o mínimo de ato. Essa é a matéria do Duns Scot. No fundo, é essa matéria que é a modalidade intrínseca de Duns Scot.
Esses modos intrínsecos do ser, ou essas matérias com um mínimo de ato, encontram a atualidade última da Forma e geram o indivíduo; então o indivíduo é gerado a partir do encontro da modalidade com o último ato da Forma. Claro que, no fundo, isso não basta, Duns Scot não foi suficientemente longe. Por que? Porque o princípio de individuação não tem nada a ver com Forma – mesmo que seja o último ato da Forma. É que ele precisava salvar o cristianismo dele. Então, o que ocorre? Você tem um ser que tem diferentes qualidades expressivas e uma pluralidade de modalidades intensivas. O próprio Duns Scot diz o seguinte – olha que coisa interessante: os graus de intensidade do branco ou da brancura são os modos ou as modalidades intrínsecas do branco; então a modalidade intrínseca, ou o princípio de individuação em Duns Scot, não é nem matéria nem Forma, como ficam brigando os aristotélicos e os tomistas; é uma intensidade. Nem matéria extensa nem a Forma compreensiva, mas é uma matéria intensiva, é uma quantidade intensiva, é uma modalidade intrínseca intensiva. É isso que dá a individuação.
Só que Duns Scot, na medida em que cai na Forma, fica preso ao indivíduo. Então, individuação não é indivíduo, mas Duns Scot cai no indivíduo. Então ele vai conseguir pensar o indivíduo, mas não a individuação enquanto individuação. E toda a nossa questão é pensar a individuação enquanto individuação. O que nos faz ser o que nós somos, que só a nós nos atravessa? O que é isso? É um princípio de individuação que não é o próprio indivíduo, que não é um universal, que não é uma parte, que não é individual, que não é coletivo, que não é público, que não é privado, mas que é anterior. A isso nós vamos dar o nome de singularidade. A singularidade não é o indivíduo. Há algo anterior ao indivíduo que gera o próprio indivíduo, assim como gera o próprio universal. Esse algo anterior necessariamente se encontra ligado a esse terceiro estado da essência que é – agora sim, nós vamos dar o nome de singularidade. Esse terceiro estado da essência se chama singularidade. Então a singularidade não é nem individual, nem universal; nem geral, nem particular; nem pública, nem privada; nem coletiva, nem individual. A singularidade é anterior ou posterior a esses elementos.
Agora, essa singularidade tem dois aspectos: um é o próprio princípio de individuação enquanto intensidade pura, sem forma; e a sua qualidade expressiva é o próprio acontecimento. Então
você tem uma intensidade e um acontecimento. Não há intensidade que não esteja em acontecimento, e não há acontecimento que não esteja ligado à intensidade. Isso é só para sinalizar por onde nós vamos.
Agora, vocês imaginem a distribuição de um ser unívoco. Se o ser se diz diretamente da diferença, ele não se diz hierarquicamente, ele não se diz analogicamente, ele não se diz segundo certas proporções; ele se diz inteiro enquanto ser daquela diferença. Então a relação entre a diferença e o ser é imediata; não precisa de juízo, não precisa de autoridade, não precisa de instituição, não precisa de nada – a relação é direta. Então isso dá o que Artaud chama de anarquia coroada: o que é coroado, agora, o que está no poder agora, é a própria anarquia; e essa anarquia tem a ver com uma capacidade de afirmar a diferença enquanto diferença, a diferença nela mesma, e não uma diferença mediatizada por um sistema de representação ou por um plano de organização. A diferença enquanto diferença, na medida em que é afirmada, tem o ser. A diferença enquanto diferença é devir; e afirmação do devir é o próprio ser. Ser do devir é a própria afirmação. Mas isso já é Espinosa, isso já desemboca em Espinosa. O que eu quero marcar aqui é o seguinte: aqui não é um ser que é repartido entre indivíduos, mas as próprias diferenças, que são até anteriores aos indivíduos, é que se distribuem num ser aberto, infinito e nômade. Não há como recortar um lugar, dividir um antes e um depois na estrutura do bom senso e dizer “esse é o tempo”; e o elemento ou o quinhão ou o lote que vai encarnar esse espaço e esse tempo. Não tem como você fazer essa distribuição sedentária. É por isso que esse pensamento é um pensamento nômade.
Participante: então, cada processo de individuação é todo o ser.
É todo o ser. O ser, você já traz o infinito em cada efetuação. É por isso que não haveria o falso problema de você escolher entre uma opção melhor e abandonar as outras opções que seriam piores ou menos boas. Esse processo é o processo moral, é aquele que escolhe o melhor e evita o pior; a moral faz assim, a moral pensa que ela vai ganhar realidade… é como a aposta do Deus de Pascal, da existência ou não existência de Deus. Ou as várias apostas: quem aposta, sempre aposta “ah, eu vou por aqui porque aqui eu ganho mais do que ali”. Você nega uma parte do acaso. Na medida em que você afirma a diferença enquanto diferença, é todo o ser, na sua infinidade, que habita aquele investimento. Então não vai haver essa falsa dicotomia, essa falsa dualidade entre uma escolha boa, que evitaria o lado ruim, ou uma escolha errada que faria com que você perdesse a parte boa do acaso.
Participante: nem eu sou um repositório de culpas que eu tenho que expurgar para chegar até Deus.
Acabou o remorso aí porque não tem como errar, você está sempre na afirmação. É por isso que o segredo é saber dizer sim.
Participante: se todo o ser se manifesta através de mim, dela, de você, etc., não há juízo. É apenas a diferenciação que faz a singularidade.
E olha que paradoxo aparente: o único Mesmo, o único igual, a única identidade, o único Uno, é esse afirmar. Só que ao afirmar a diferença, você diferencia a própria diferença; então o que está no fundo de tudo é a própria diferença. A diferença se diferenciando sempre na afirmação do ser. Então, onde nós nos comunicamos? Na afirmação, é aí que ressoa – é por isso que é ressonância.
Esse ser, no fundo, é o plano imanente, porque o ser me atravessa, e atravessa o outro e ele não é de ninguém, ele é nômade. Ele é o mesmo ser, mas na afirmação de uma diferença, ele é sempre singular; então aquilo é sempre diferente, mas ao mesmo tempo é a mesma afirmação que passa. Então esse é o nosso plano de imanência, é aí onde tudo se tece. Então o plano de composição se dá a partir do plano de imanência, é aí que as coisas se compõem. Então a composição se dá quando eu afirmo; ao afirmar, é uma força que se incorpora ou uma força que eu modifico; se eu modifico aquela força, eu também saio modificado; e se a força me modifica, aquela força também é modificada. É o que diz Heráclito: nunca você entra no mesmo rio.
Participante: é um mundo de encontros e movimentos…
Pura diferença o tempo inteiro. Então esse eterno retornar é o eterno retorno da diferença, o próprio ser se chama retornar. E o que o retornar produz? A repetição. Ele repete o que? O jogo, ele te devolve o jogo. Mas o jogo é sempre lúdico e diferente. Sempre. Então isso é que é o eterno retorno de Nietzsche. Só que aqui eu dei um salto, é claro – saltei Espinosa.
Só que, agora, vai haver uma hierarquia e vai haver uma ordem nesse mundo nômade? Sim. Como? Em Nietzsche, o eterno retorno é seletivo; seleção e hierarquia; ele é uma roda que gira e exclui de si mesmo o que não sabe afirmar, os meios quereres – os meios quereres não retornam, são expulsos. A moral não retorna, a moral só acontece uma vez; a negação só acontece uma vez, o cristianismo – felizmente – só acontece uma vez.
É aí que você tem a igualdade de seres – e podemos aqui até fazer uma imagem cômica: uma formiguinha é tão poderosa quanto um elefante, desde que a formiguinha afirme plenamente a sua diferença, assim como o elefante afirme plenamente a sua diferença. Se o elefante estiver separado do que ele pode, ele é um fraco; e se a formiguinha estiver ligada no que ela pode, ela é forte. Quer dizer, há uma hierarquia, sim; a hierarquia é “quem fica separado do que pode vale menos do que quem está ligado ao que pode”. Vale menos no seguinte sentido: não pode subjugar o forte, não pode gerar um sistema de contágio, de ressentimento, que leve o forte a ficar separado do que ele pode. Então é por isso que você tem um critério de distinção. Nem toda diferença pode ser afirmada.
Participante: como é que é????
É por isso que esse movimento que se dá ultimamente nos Estados Unidos – ser ecologicamente correto, politicamente correto, etc., “respeite todas as diferenças, não importa o que elas façam”… Ora, uma diferença miserável, uma diferença que alimenta a fraqueza, que precisa de um referencial exterior para se manter viva, não merece ser respeitada.
Participante: mas como é que você chama isso de “uma diferença”? Essa não seria de fato uma diferença.
Não seria uma diferença, mas o sistema chama de diferença. É hipócrita, absolutamente hipócrita. O sistema produz indivíduos que são diferentes apenas numericamente, no fundo é uma massa; mas o sistema nos impõe isso. Inclusive há uma mistura aí, há uma ideia de que se você não respeita certas diferenças, você pode ser fascista, você pode ser nazista.
Participante: mas isso é moral de novo.
Moralismo de novo. Então o critério é sempre a capacidade de afirmar. E a capacidade de afirmar é sempre dadivosa, como diz Nietzsche, ela é sempre generosa. Então aquele que afirma não tem necessidade de se apropriar de nada; ao contrário, se ele afirma, ele se compõe com as forças e, na medida em que ele se compõe, ele está no plano de composição – a afirmação é condição para que o plano de composição aconteça. A afirmação é o plano de imanência onde as composições de força se dão. Na medida em que se compõe, aquela realidade é maior e gera mais realidade. Quanto mais realidade ela gera, menos ela precisa do poder. Ela não precisa de poder, ela já é a potência – e a potência não precisa subjugar, não precisa diminuir, não precisa excluir, ela não faz isso, ela faz o contrário.
Participante: é por isso que é nômade? Porque vai passando? Porque para você julgar você tem que parar nessa realidade, ficar lá…
Se separar dela, fixar. Reparte os limites: o que você faz aqui, “ah é isso, tem essa forma tal”. Aí você já rebate aquela forma segundo essa forma ideal e se se encaixa tudo bem, você é premiado, e se não encaixa você é culpado, você é punido. Esse é o sistema de julgamento. Então a forma dá a forma do lugar em que a ação aconteceu, ela dá o tempo – e o tempo é sempre cronológico, ele tem uma origem, um meio e um fim – e o elemento que habitou aquele tempo e aquele lugar. Essa forma é a forma do juízo, é a forma de um plano de organização que, no fundo, é um muro que se ergue no meio das relações.
Participante: nessa hierarquia nômade, se é ela que prevalece, o forte ganha espaço, o forte se torna mais forte. E o fraco? Torna-se mais forte?
Não. O fraco simplesmente vai desaparecendo. A roda expulsa o fraco. Porque o fraco mesmo já não é mais uma realidade. É o que Nietzsche diz: o que pode ser negado, merece sê-lo. Então você não tem mais o juízo, você tem relação de potência.
Participante: essa negação do que pode ser negado é uma coisa cruel?
Isso é crueldade. A crueldade é exatamente isso. Porque o que pode ser negado em nós, deve ser negado. Esse é o primeiro combate.
Participante: então primeiro você tem que combater a si próprio.
A si próprio. Isso é que é fazer da sua vida uma obra de arte.
Participante: o que precisa ser reconhecido não merece ser reconhecido.
O que precisa ser reconhecido é porque não tem realidade por si próprio, não se autocoloca, não se autopõe, não se autoafirma.
Participante: aí vai existir só a partir de um reconhecimento externo.
É como o senhor de Hegel. O senhor de Hegel só existe se o escravo se ajoelhar e se agarrar à vida, dizer “eu quero viver, não me mate, mas eu te reconheço como superior”. Aí o senhor se vê senhor nos olhos do escravo. Nietzsche diz: que senhor é esse, que precisa do escravo para ser reconhecido como senhor? É outro escravo. Ou seja, a interpretação nazista do Nietzsche é exatamente segundo o modelo do senhor hegeliano; Nietzsche, Lawrence, Artaud não se cansam de denunciar: sempre que você precisa de uma referência exterior, você está na impotência; e esse poder é o poder do negativo, que acaba sendo expulso pela própria roda do eterno retorno.
Participante: esse eterno retorno exclui mas inclui, não é? Ele é cruel, ele chama o seu lado mais forte, e o mais fraco tem que morrer e se torna mais forte.
É o que Nietzsche chama de transmutação de todos os valores: na realidade você se transmuta. Quando você mata o homem em você, você não aniquilou a realidade em você; você simplesmente liberou a realidade para que realmente ela possa se autoproduzir; matar exatamente aquilo que impede a potência de estar ligada a ela mesma.
Participante: o eterno retorno não exclui o ser, ele exclui o fraco.
Ele exclui o que nega. Ele nega a negação. É isso que ele faz: o eterno retorno nega a negação. O que pode ser negado, merece ser negado. Ou seja, a natureza é justa na imanência. Aí você tem uma justiça contra o sistema de juízo.
Participante: mas é um juízo.
Participante: juízo imanente.
É uma justiça, mas não é o juízo. É imanente. É isso que os juízes deveriam começar a fazer: entrar num sistema de jurisprudência. A jurisprudência é pensar a relação singular…
Participante: mas aí perdem o poder!
Se quiserem entrar em devir…
Participante: isso eles não “deviam fazer”; a sociedade é que devia fazer com eles, aí sim.
Participante: o que é jurisprudência?
Jurisprudência é quando você gera uma regra segundo uma situação inédita e singular; você gera aquela regra para que aquelas ações se repitam de modo a não ser nocivo para a vida. A vida se expanda segundo aquela relação.
Participante: pelo costume? Pela ética?
Você inventa um costume, um hábito, uma regra. Só que a regra, o hábito, o costume ou a lei se torna reativo no momento em que ela passa a imperar por ela mesma.
Participante: e a lei serve para ser transgredida, não é?
Aí é a lei que é inventada para ser transgredida, porque é o poder que inventa uma lei para que os mais fracos obedeçam e para que ele se sirva dessa lei exatamente para efetuar o que ele quer efetuar, e impedir que os outros efetuem aquilo que roubaria uma parte dele. Então a lei é feita exatamente para instaurar uma barreira de poder que faz com que uma parte fique subjugada.
Participante: mas essa lei de costume também é para ser transgredida, só que abertamente, estão constantemente mudando.
Aí precisa ver que grau essa sociedade atingiu de liberdade, porque se a sociedade se cola aos costumes, necessariamente ela é reacionária, ela é reativa. Porque o costume está lá enquanto ele está expandindo a vida; no momento em que ele começa a diminuir e a se instituir como sistema de julgamento, em que ele perde a imanência e ganha um destaque transcendente como um valor em si, acabou, vira inimigo. Então esse é o critério sempre, é não deixar que nada se destaque para julgar a vida. Aí o que você tem? Você tem que a afirmação de uma intensidade gera sempre uma forma extrema de ser; mas a forma extrema de ser não é um limite, ela é até onde a potência vai; e quando a potência vai a esse extremo, necessariamente a potência se compõe com outras potências e ganha novas formas expressivas. Então a forma expressiva é sempre modo, nunca é um limite. Não tem como você formar um juízo ali. O juízo só existe quando você fixa aquela forma expressiva num modelo – fixa e destaca, separa. Aí o juízo nasce.
Então, como é que produzimos juízos em nós mesmos? Com os nossos sonhos, por exemplo. Sonhamos ou projetamos; então queremos tal coisa, mas há sempre uma distância entre o querer e o poder, “eu quero mas eu não posso”. Aí vão ter certas condições de efetuação desse meu desejo, e as condições necessariamente vão frustrar o meu desejo. Eu fui julgado pelas condições – essa é a má consciência cristã, eu fui julgado. Se eu fui julgado, eu fui frustrado, eu sofri uma dor e eu estou na falta. Aí eu sonho de novo e projeto; o futuro está lá, eu estou aqui. Nunca chega, é a cenourinha na frente do burro, você é a eterna falta. E o nosso atual modo é a axiomática do capital que inventa essa fissura que nunca chega. Então necessariamente nós estamos no juízo enquanto estivermos na axiomática do capital. A axiomática é que funda atualmente essa distância e faz com que tenhamos projetos e memória; enquanto estivermos presos entre o projeto e a memória, não estamos em devir, não habitamos o presente, não habitamos o movimento.
Participante: entre o projeto e a memória só tem uma coisa, que é a realização, é a ação.
É a ação, é o movimento, mas a direção agora tem que ter um outro sentido. A direção tem que ir inteira na afirmação do aqui e agora. No momento em que ela vai inteira na afirmação do aqui e agora, o passado e o futuro ganham um outro sentido; no momento em que eles ganham um outro sentido, eles viram linhas abertas: a finalidade não está no futuro e nem a origem no passado, e nem vice-versa; são linhas abertas que tecem um diagrama. Então no lugar do projeto você tem um diagrama.
Participante: e a cada passo esse projeto pode ir para um lado, para outro, para trás, para frente. Essa direção “perde a frente”.
Isso, perde o bom senso e perde o juízo. Não há loucura negativa para quem sabe afirmar: pode afirmar sem medo de enlouquecer. A ordem é imanente.
Participante: separar a loucura da doença.
A loucura sim, mas a loucura nômade. Quanto mais loucos, melhor.
Participante: mais leve.
Mais leve. Mas nunca a loucura que leva você a se tornar um trapo. Porque a loucura que leva você a se tornar um trapo é a loucura produzida ou fixada a partir de um sistema de valores; é sempre uma referência, uma ideia fixa que faz com que o seu devir seja julgado e você acaba acreditando que o seu devir é culpado. Quando você acredita na culpa, a tua loucura vira entidade – você vira paranoico, vira esquizofrênico. É na culpa, é na dívida. Esse é o grande segredo, essa é a pedra de toque.
Participante: e como funciona! Você atinge esse ponto, acaba a depressão, acaba a paranoia, acaba tudo.
Nietzsche diz: “a pedra de toque de todo heraclitiano é a hybris; aquele que entendeu a hybris, entendeu o seu mestre” – diz Nietzsche, em relação a Heráclito. E o que é a hybris? A hybris é a desmesura, é a forma extrema de tudo que é. É o que o próprio Nietzsche chama de super-homem. O super-homem não é uma entidade – não é que eu, enquanto homem, me tornei um super-homem. Não é nada disso. O super-homem – na realidade até é meio equívoca essa palavra – é o tipo superior de tudo que é. E o que é o tipo superior de tudo que é? É exatamente aquilo que afirma tudo plenamente; afirmou plenamente aquilo, você está na forma superior daquilo. Essa forma superior necessariamente te devolve o retorno, que se autocoloca, que se autopõe – é uma autopoiesis, é uma autonomia real. De fato você tem autonomia assim. Sem sujeito, sem identidade, sem ego. Incrível.
Porque há uma pluralidade dessas forças e cada uma faz um deus em mim. Então eu sou habitado por uma pluralidade de deuses, digamos assim. Tudo é divino. Então eles se atravessam e se põem.
Isso gera uma consistência. Não uma identidade, mas uma pluralidade. Eu sou uma população. É por isso que é impossível se sentir só, não tem como se sentir só – mesmo que você esteja sem relação com nenhum ser humano. Não tem como se sentir só. Um exemplo fantástico disso, numa obra literária, chama Sexta-feira Ou Os Limbos Do Pacífico, do Michel Tournier. É uma paródia do Robinson Crusoé, do Defoe.
Participante: e tem o filme, que é lindo. É bárbaro. O livro é maravilhoso, mas o filme é bárbaro. É fiel ao livro.
Vi. O filme é lindo.
Participante: eu estava falando para ele (outro participante) que ele devia ler o Foucault, O uso dos prazeres nº 2. Ele vai adorar, porque ele adorou a história de dobrar a força. Tem que ler isso no Foucault.
Foucault vai encontrar a saída entre o saber e o poder nesse fora da força; é a força em nós que não se liga a um código moral, a um código social, que seria um saber, ou a um poder que impõe esse saber; ela começa a se relacionar com ela mesma, ela se dobra. É uma força que se volta para si não para esculpir uma interioridade, mas uma dobra.
Participante: com que função?
Função de estilizar a própria existência, fazer da sua vida uma obra de arte.
Participante: não sei se tem a ver com o bom combate, que não sei se Paulo ou Pedro é que fala…
Absolutamente não tem nada a ver. É combate sim, mas o combate de Paulo certamente é um mau combate, é acabar com as forças ativas em nós, esse é o combate dele. O combate, na realidade, é entrar em devir. Numa relação de amor, necessariamente há relação de combate. Porque na relação você incorpora uma série de forças que te modificam e que você modifica; e isso é combate. Mas é um combate que não é a guerra de Estado, que não é a guerra violenta. É o combate no sentido de Kafka. Kafka diz: as posturas do corpo são importantíssimas e expressivas porque elas antecipam, elas se preparam, elas precipitam, elas retardam um juízo ou uma ação que pode te destruir. Então a postura gestual do corpo já é fundamental. É sempre a postura de uma relação de força contra; mas, para você ter uma relação de força contra, você tem que ter uma relação de força entre. E a relação de força entre são as forças que se dobram a si próprias. No fundo, o combate principal é o combate com você mesmo. Esse é o fundamental.
Eu fiz umas viagens meio duras, mas eu acho que foi importante: a questão da univocidade, da distinção formal e da distinção modal – são elementos fundamentais para entendermos Espinosa e depois entender Nietzsche. Que é o modo que você tem de fazer com que a diferença se expresse sem mediação, com que a diferença não seja julgada; que a diferença tenha relação direta com o ser. Então é essa que é a questão. Então aqui também é um combate que fazemos, um combate contra a analogia. Quando falamos em univocidade, é isso: o ser é o mesmo, se diz num único e mesmo sentido. Ou seja, nós não precisamos de nenhum saber prévio, de porra nenhuma; o que precisamos é começar a entrar em devir. É o imediato: Deus está conosco! (risos) – para encerrar ao modo de Duns Scot. Duns Scot queria ver Deus de frente, cara a cara. Ser anjo: ser anjo é ter o pensamento intuitivo; vai direto na potência, ele não vai na figura ou na forma. A figura ou a forma já é efeito, mas a potência é essência. Vai direto na essência – é isso que é o pensamento intuitivo. E ele diz que é essa a nossa natureza, mas que estamos num estado decaído. Então a nossa questão é, como não somos cristãos, sabemos que esse estado decaído nosso é modificável aqui e agora; podemos liberar já, limpar a superfície e voltar a fazer com que o intelecto do anjo aja em nós.