Luiz Fuganti
Participante: Eu queria que você falasse um pouco de signo, significante, etc.; como você usa muito, existem horas em que eu sinto falta.
Seria bom falar só o suficiente no sentido de Aristóteles; depois nós vamos ter outras ocasiões para falar sobre uma espécie de uma classificação de signos.
Participante: Regimes de signos, podia ser?
São regimes de signos mas, ao mesmo tempo, são dimensões da linguagem. Numa hora o signo remete ao mundo, em outra remete ao eu, em outra remete a deus, em outra remete ao sentido; em uma hora se fala de imagem, em outra se fala de símbolo, em outra se fala de significante. Podemos dar isso em doses homeopáticas.
Participante: Quando você fala, “signo significante”, você fala com muita naturalidade.
Achando que as pessoas estão sabendo do que eu estou falando. Por exemplo, o signo no corpo do selvagem. Um signo, uma marca…. o que é isso? Você fala: não é significante.
Vamos ver uma coisa muito simples. Nós estamos usando o signo de uma forma muito genérica: o signo substitui a coisa – signo representativo. Em Aristóteles estamos usando como substituição: signo de uma coisa é a coisa sem a coisa, digamos assim; é a coisa no signo.
Participante: Mas quando você diz: “esse é um signo que não representa nada”.
Aí o signo é uma imagem ou é alguma coisa da própria coisa que expressa algo nela mesma. Então você tem um signo que é posição de desejo: o desejo se expressa através do signo mesmo. O signo aí se torna uma maneira de ser e não mais uma substituição, não mais uma representação. Ele não está substituindo a realidade, ele está veiculando a realidade.
Participante: E por que chamamos de signo, se ele não está no lugar de nada?
É porque ele é uma forma de expressão, ele é uma expressão, ele é um campo expressivo. É por isso que é um signo.
Participante: Aquele exemplo do selvagem, das marcas do corpo como signos que não representam nada. Você fala disso às vezes mas você nunca contou isso.
Eu vou ser muito breve porque senão eu vou mudar a aula. Inscrição no corpo, escritura no corpo, é você marcar o corpo do mesmo modo que você marca o gado com ferro quente. É algo bem elementar.
Participante: Aqueles objetos que os índios usam no nariz.
É uma inscrição no corpo.
Participante: Tatuagem?
É uma inscrição no corpo. Isso tudo é inscrição no corpo. É escritura direto no corpo, não é escritura linear que representa um significado; é escritura enquanto desenho, é escrita ampla, é um desenho no corpo. Uma agulha que atravessa o nariz, um elemento pontiagudo que rasga a carne – isso tudo são escrituras no corpo. Essas escrituras no corpo têm a função de marcar uma passagem, elas fazem parte de um ritual de passagem; então, em vez de você simplesmente fazer uma prova escrita ou verbal como se faz numa escola, você escreve no corpo e associa isso com enunciados também. Ao mesmo tempo você tem um campo visível inscrito no corpo e um enunciado se articulando com isso – então você tem um discurso articulado a essa passagem. Então o signo conota, é uma conotação. É como se o corpo e o dizer estivessem contíguos naquele acontecimento. Não um representando o outro. Isso é outra aula, é necessário falar sobre a superfície de registro no mundo selvagem. É antes da emergência do significante, aí não tem significante. Nem significante que se destaca da cadeia, nem significado privilegiado. O significante e o significado vão surgir com o mundo despótico; quando há o Estado, aí vai haver o signo que representa e que salta de uma cadeia, que se destaca como signo significante.
Então vamos resumir novamente o sistema aristotélico; aí falamos um pouco sobre a linguagem no sistema aristotélico e seguimos na questão da representação. Aristóteles tem um problema que já é algo que se diferencia bem da questão platônica, porque o problema de Aristóteles já é organizar a representação – no sentido literal: produzir uma representação orgânica. Por que uma representação orgânica? Porque a diferença tem que entrar no conceito, ou ela tem que entrar na razão, ela tem que entrar na lógica. Em Platão isso é feito ainda de modo muito bruto, digamos assim: a diferença é uma coisa maldita e, ao mesmo tempo, ela tem uma vocação dócil – ou de ascensão – que levaria a receber uma marca produzida pela Ideia, onde faria da diferença uma imagem ícone, uma imagem cópia. No caso platônico, essa diferenciação é dada pelo grau de participação em relação ao modelo, ou pelo grau de semelhança espiritual que a imagem adquire ao se relacionar internamente, espiritualmente ou de modo incorporal com o próprio modelo. Então a diferenciação é dada segundo a aproximação da imagem até o modelo; e essa aproximação vai dar o lugar da imagem no espaço – ou do limite espacial que seria o lugar – e vai dar um limite no tempo – que é uma forma de limitar ou fazer parar o devir: introduzir o devir entre paradas e repousos. Ainda é uma maneira bruta de se dominar a diferença. Platão dispõe da identidade e da semelhança: a identidade liberada no modelo – porque a Ideia platônica é o que é idêntico a si mesmo – e a semelhança de uma imagem ao modelo, uma imagem que adquire a semelhança através de uma participação eletiva, obtendo como efeito prático uma seleção, uma seletividade a partir desse grau de aproximação. Então você tem uma classificação das diferenças: os lugares, os tempos e os elementos – que seriam as próprias imagens ícones – submetidos às regras, às relações e às proporções constitutivas da essência do modelo, da essência da Ideia.
Aristóteles já busca desenvolver esse mecanismo representativo platônico – que Platão apenas fundou, que Platão apenas delimita o solo e seleciona o solo sobre o qual a representação pode ser edificada. Então Aristóteles vai edificar o conjunto da representação sobre as bases platônicas. E quais são as bases platônicas? Identidade e semelhança. Aristóteles vive já numa época onde os sofistas não são ameaças, ele não tem mais a mesma relação que Platão tinha com os simulacros; e Aristóteles é mais positivo, ele é mais pacífico, é menos paranoico. Aristóteles acredita que a forma ou que a ideia já está na coisa real do mundo; então Aristóteles não acredita nas ideias platônicas separadas, ele acredita na ideia ou na forma já agindo na coisa. É por isso que Aristóteles vai privilegiar a ideia de substância: a ideia de substância é a de uma coisa feita de matéria e também de forma – a forma já está na substância, a forma está na coisa. E essa forma que habita a coisa vai ser o objeto do conhecimento. O conhecimento se dirige agora para o mundo, ele vai buscar a forma na pró-pria coisa existente no mundo, no indivíduo realmente existente no mundo.
O indivíduo vai ter uma forma também e não vai ser simplesmente, como em Platão, uma simples sombra, um simples efeito de um simulacro, na medida em que eu invisto no outro uma semelhança que é reflexo de uma imitação interior em relação ao modelo. Então esse reflexo no mundo, em Aristóteles, já vai ser um reflexo perfeitamente positivo: a imagem vai ter uma positividade, a imagem em Aristóteles vira uma substância. E a substância tem uma parte material, que é a parte inconsistente (sob o ponto de vista do conhecimento), é a parte que não pode ser inteligível; mas há uma outra parte que faz parte do indivíduo, há uma outra parte que também compõe a substância, que é uma parte inteligível, que é a forma. Então a forma é o que daria o caráter universal ao individual. Eu não conheço o indivíduo; eu conheço o universal do indivíduo, só. É por isso que a representação em Aristóteles é uma representação finita: ela só atinge o universal da espécie, ela não atinge o individual, ela não atinge o acidental, ela não atinge a diversidade; ela atinge uma diferença ainda submetida ao universal. Seria uma diferença mínima mas ainda excessivamente geral, excessivamente universal. É a diferença que Aristóteles consegue respeitar.
Então há uma diferença que é submetida à espécie – à espécie especialíssima, no caso: seria a diferença menor; e uma diferença maior que seria a diferença dos últimos gêneros, gêneros generalíssimos ou das dez categorias aristotélicas. Então haveria uma relação da obra aristotélica ou do pensamento aristotélico em relação à diferença; uma relação com a própria diferença do ponto de vista do conhecimento ou da lógica ou da representação, que subordinaria a representação a essas relações lógicas, a essas relações representativas. Seria o modo de dominar a diferença ou a singularidade, seria o modo de domesticar a diferença, porque a diferença é demasiado selvagem. E Aristóteles já vê de um jeito muito mais fácil, de um jeito muito mais equilibrado, de um jeito muito mais natural, uma organização da própria diferença, na medida em que ela se torna mediatizada, na medida em que ela se torna representada. Então a diferença, que seria uma coisa selvagem, demoníaca, má, monstruosa, na medida em que é mediatizada, na medida em que é representada, na medida em que é substituída no conceito, ela se torna uma diferença tolerável, equilibrada; e, mais do que isso, ela se torna um critério bom, benéfico e harmônico da explicação da pluralidade do mundo, da multiplicidade do mundo. O mundo é múltiplo e há uma realidade desse múltiplo; esse múltiplo não se reduz simplesmente a uma unidade genérica. Mas o máximo que Aristóteles faz de concessão a essa realidade diferencial, a esse múltiplo, é a realidade da diferença específica; e a realidade da diferença específica é uma diferença submetida à identidade no gênero ou à oposição dos predicados. Daqui a pouco eu explico um pouquinho melhor isso.
Então, o que Aristóteles quer? Ele quer, agora, desenvolver a representação que Platão fundou; ele quer desenvolver uma lógica que em Platão ainda era demasiado genérica ou então até grosseira sob um ponto de vista dialético. Porque Platão tinha um outro problema, que vimos muito bem: o que Platão queria não era dividir gêneros em espécies, como quer Aristóteles; mas era separar as boas das más imagens, ou os verdadeiros dos falsos pretendentes. Queria fazer essa divisão. É como se Platão dissesse assim: vamos eliminar e recalcar as más imagens, os simulacros, e vamos nos relacionar só com as imagens cópias. E Aristóteles só vai se relacionar com imagens cópias., porque Aristóteles acredita que a forma já está no indivíduo.
Participante: Qual é a diferença? Como Platão e Aristóteles conseguiram fazer a diferença entre simulacro e cópia? Como eles distinguiam o original da cópia para chegarem a essa mínima diferença na cópia? Qual é o limiar que escapa que se torna simulacro?
Platão diz assim: o mundo, a natureza, os corpos, o devir – tudo são imagens, tudo se compõe de imagens; são os eidolons. Aristóteles vai dizer que são substâncias ou indivíduos; Platão vai dizer que são imagens. Imagens que são corpos com almas e, no caso do homem, uma alma triparti-te: a alma sensual, a alma corajosa e a alma que se separa do corpo que é a alma intelectiva. Já é uma herança xamânica.
Participante: Por que imagem?
Imagem é uma presença no corpo; imagem é o que você capta através do mundo sensível do ponto de vista da alma sensual e da alma corajosa; do ponto de vista da alma intelectiva, da alma racional, a imagem já vira uma forma, a imagem já é uma imagem ícone. Então há uma diferença aí. A imagem circula desde o sensível até o inteligível; em Aristóteles o inteligível inteiro vai ser fundado numa imagem sensível.
Participante: Isso está mais perto de como nós vemos o mundo.
É, Aristóteles está mais próximo de nós. Agora, para você ter uma ideia do que seria imagem: imagem é exatamente o que não é ideia. A ideia é a realidade que está fora do mundo; e a imagem é um reflexo da ideia, a imagem é uma realidade segunda, terceira, quarta; a imagem é uma organização de matéria subjugada por uma forma – vira uma imagem. Agora, se essa imagem – que é uma organização de matéria e forma – vê a forma no outro, se relaciona com o outro no mundo – mundo físico, corpo, até na outra alma sensível, na outra alma corajosa – essa imagem se relaciona com o simulacro. Porque ela não se adequa a uma forma inteligível universal.
É incrível: eu falei disso muitas vezes e eu achei que estava absorvido; e nós nos surpreendemos com como as coisas acontecem. Eu estou falando aqui como se todo mundo soubesse o que é imagem e simulacro. É importante isso. Eu falei disso nas duas aulas antes da última, falei direto nisso.
Participante: Mas a minha pergunta é porque ele chama de imagem. Eu estou entendendo até agora.
Indoloide em grego e eìdos. Eìdos é um aspecto, digamos assim; se você quiser ver etimologicamente, precisa ver o grego. Eìdos é um aspecto do real. Mas em Platão esse aspecto é o aspecto por excelência, é aquilo que é comum a todos; mas por isso mesmo também é aquilo, ao mesmo tempo, que não está na coisa, que está fora, que transcende a coisa. Porque você pode ver: em outros gregos, eìdos tem outro sentido: o de modo de ser, maneira de ser, figura, aspecto exterior, aparência, semelhança, etc…. Mesmo em Aristóteles, eìdos ou morphé – ele iguala eìdos e morfhé (forma) – a forma já vai estar nas coisas. E em Platão, eìdos é no sentido socrático: a coisa mesma é o objeto geral que não está na coisa sensível, mas que está sobre esta coisa.
Participante: Isso é a forma.
A ideia ou a forma, no caso.
Participante: Isso eu entendo. A imagem é que não entendo.
A imagem é tudo que está no mundo. A imagem é o indivíduo – é a mesma coisa. O indivíduo, o espaço, o tempo; o mundo inteiro são imagens.
Participante: É tudo que não é ideia, não é?
Exatamente. Tudo que não é ideia é imagem – é isso aí. São os dois opostos. E o aspecto da ideia é o que dá semelhança à imagem; daí a imagem vira uma imagem ícone. Ícone é exatamente a semelhança numa imagem que era apenas estética, apenas sensível. Estética é de sensibilidade: estética, em grego, significa sensibilidade. Então o que é apenas sensível recebe uma semelhança; mas não uma semelhança sensível de outro corpo sensível: uma semelhança espiritual a um modelo que está fora do mundo. Então essa imagem sensível vira uma imagem cópia de uma forma que vem do modelo; então é uma semelhança espiritual. É por isso que é uma imagem ícone.: é um ícone por causa disso. Agora, o simulacro subverte, nega não só o modelo como a cópia; e, pior do que isso, o simulacro dá um efeito de semelhança e de identidade. A identidade está no modelo, a semelhança está na relação da imagem com o modelo; mas o simulacro – que é uma imagem sem semelhança -, ao se relacionar com outro, gera para o outro um efeito de semelhança; isso é que endoidece Platão. Ele é um farsante, ele é um embusteiro.
Participante: Por que você falou que para Aristóteles não existiam simulacros?
Porque Platão ainda é demasiado sensível às turbulências, às agitações na cidade em decadência; na época de Aristóteles a pólis já está submetida aos impérios – já está submetida ao império macedônico, ao império de Felipe, depois de Alexandre (inclusive Aristóteles vai ser preceptor de Alexandre, é amigo de Felipe). Então você não tem a decisão do destino da cidade na mão de homens ditos livres, você não tem mais disputas, você não tem mais turbulência; existem submissões dos partidos da cidade ao próprio império. Isso é uma ordem que vem de fora, que está apaziguando – ou determinando os destinos – de fora. Então isso seria um aspecto social e histórico da coisa. Mas, por outro lado, Aristóteles tem uma outra visão: ele não vê motivo para que a ideia fique separada do corpo. Ele diz: a ideia está no corpo; não é impossível eu conhecer algo no indivíduo ou algo no mundo; não é impossível porque os movimentos no mundo, ou os devires no mundo, ou as imagens no mundo, não estão tão enlouquecidas quanto Platão supunha, porque elas têm uma maneira de se comportar. E Aristóteles vai lançar mão de certos modelos. Por exemplo, dois operadores essenciais: ato e potência. São ideias de sentido do movimento, orienta-se o movimento. E o movimento ou o devir está submetido a um princípio ou um fim. Então essa submissão no mundo já dá uma certa tranquilidade a Aristóteles de que o mundo é inteligível, é conhecível, porque tem uma ordem imanente nele mesmo. Olha só: uma ordem imanente – Aristóteles está projetando uma forma no mundo, acreditando que o mundo tem uma ordem imanente a partir de uma forma. Mas é uma ilusão de imanência, evidentemente.
Participante: Por isso a igreja vai pegar Aristóteles?
Com certeza. No século XIII Aristóteles vai se reencarnar em São Tomás, digamos assim. Antes ainda em Averrois (se não me engano no século XI ou XII) e depois, através deste, em São Tomás. Essa altura da Idade Média, ou esse Renascimento grego que se dá no século XI e XII, começo da chamada baixa Idade Média, se dá, em grande parte, porque se redescobre a filosofia, através do que eles vão chamar de “O Filósofo” – “O Filósofo” é como será chamado doravante Aristóteles. Não vai existir outro filósofo: quando você diz “O Filósofo”, você se refere a Aristóteles. E Aristóteles vai ser o grande filósofo da Idade Média que vai fazer a ponte entre a confusão sensível do mundo e a fé, através de uma ligação racional; vai submeter a razão à fé. É evidente que a fé vai ter ainda um valor superior, mas a razão vai estar a serviço da fé, vai se submeter a razão à fé. E Aristóteles vai ter um papel fundamental porque, na realidade, o saber dele é todo em cima dos sentidos; a ponto de um inimigo do São Tomás dizer que Aristóteles invoca um saber de pecador porque é um pensamento que se funda nas imagens. E o Duns Scot diz que o pensamento autêntico e puro é um pensamento sem imagem, ao modo do intelecto do anjo: o anjo vê diretamente a coisa e é capaz de ver deus cara a cara. Isso para Duns Scot; São Tomás não, São Tomás precisa da intermediação do sensível.
Aristóteles a mesma coisa. Então Aristóteles funda a lógica inteira dele em cima de fantasmas sensíveis. Mas fantasmas sensíveis que não são simulacros.
Então, voltando à questão do mundo pacífico aristotélico: os indivíduos, para Aristóteles, já são imagens ícones, ainda que ele chame de substância. Imagens ícones: a imagem é uma matéria e o ícone é uma forma. É a substância: matéria e forma. Vamos desenvolver essas ideias. O mundo é feito de indivíduos ou de substâncias. O que é uma substância? Substância é aquilo que existe em si e subjaz às mudanças; e as mudanças são os acidentes, aquilo que muda no mesmo sujeito, no mesmo substrato. Há um substrato que não muda desde o seu nascimento até a sua morte – ele não muda; e o que muda nele são acidentes. Então, Aristóteles diz: no mundo existem substâncias e acidentes; a substância é o que existe em si, o que não muda; e o acidente é o que existe em outro, na substância, são as modificações da substância. No século XVII Espinosa vai dizer que os indivíduos não são substâncias, são só modificações, são só modos.
Participante: O corpo seria um acidente?
O corpo físico é um acidente; mas na medida em que ele é organizado, em que ele tem funções, ele tem formas, ou atualizações, ou atos, que estão atuando nele; as formas estão nele, imanentes nele. Mas a realidade vem sempre da forma, a causa vem sempre da forma, a causa nunca vem da matéria; a matéria é sempre um sintoma de irrealidade, é sempre um sintoma de degenerescência, de degradação. Nisso Aristóteles é completamente platônico. Aliás, quase em tudo Aristóteles é platônico, ainda que ele se queira bem diferente de Platão; ele simplesmente avança muito mais, na medida em que ele edifica o sistema da representação em cima das bases platônicas. Aristóteles é completamente platônico.
Então, a matéria é elemento de degenerescência; mas a matéria tem um outro nome; Aristóteles chama de potência, a matéria seria uma potência. E a forma seria um ato. Como é que explicamos isso de forma simples? Se estou com o olho fechado, eu tenho a visão em potência; se estou com o olho aberto, eu tenho a visão em ato. Se eu estou dormindo, eu tenho a vigília em potência; se eu estou acordado, eu tenho a vigília em ato. É algo muito simples. Só que tudo é relativo neste sentido porque, dependendo do grau de organização da matéria, você vai ter atos sob certos pontos de vista e, de outros pontos de vista, aqueles atos viram meras potências. Por exemplo: a madeira tem a sua matéria e o seu ato, digamos, como a árvore; mas do ponto de vista do escultor, a madeira é uma mera matéria que ele vai esculpir e produzir uma estátua; então a estátua seria o ato da madeira do ponto de vista do escultor. Então os acidentes geralmente se relacionam com a matéria; e os atos geralmente se relacionam com a forma. Então são outros operadores que Aristóteles lança mão.
Vamos começar a gerar relações ou modelos em movimento. Um artesão ou um carpinteiro que faz uma casa. Aristóteles vê a natureza do seguinte modo: ela opera segundo quatro causas, segundo quatro agentes, segundo quatro modos de realização ou de atualização – esse é o modo como a realidade se faz, se fabrica, se produz. Como a natureza produz? Assim, com quatro causas. Uma causa é a material, outra causa é a eficiente ou a mecânica, outra causa é a formal e a outra causa é a final. No caso do carpinteiro que quer fazer uma casa – esse é o propósito dele; então ele vai fazer uma casa de madeira, por exemplo. A madeira seria uma causa material; ele mesmo, carpinteiro, é causa mecânica ou eficiente; a ideia de casa é a causa formal; e a outra casa, final, é a utilidade da casa, para que serve essa casa. A utilidade, para que serve, essa função da casa, dá um signo, dá um indicador para nós: Aristóteles é absolutamente orgânico, é absolutamente utilitário, na medida em que ele submete o saber à função, à utilidade. E nesse sentido ele é absolutamente platônico também. Por que? Porque Platão põe o usuário no ponto mais alto da hierarquia; o usuário é que sabe, o usuário é que filosofa, o usuário é que tem o saber da coisa.
Participante: E o que não serve, o que não tem uma utilidade? Não existe?
O que não serve, o que não tem uma utilidade daquele ponto de vista, é um acidente. É um acidente de percurso que deve ser simplesmente eliminado – eliminado ou desconsiderado.
Participante: Uma criação artística é um acidente?
No caso, sim. Ele vai fazer com que a técnica esteja a serviço de uma atualização ou de uma realização de uma substância, de uma realidade que ele acredita existir pronta, em ato, mas que se encarna na medida em que você tem uma matéria, você tem uma causa eficiente; você gera as condições materiais para que ela se encarne, para que aquela forma se encarne. Tudo está pronto em Aristóteles,você não cria as ideias; uma espécie é espécie sempre: a espécie humana é do mesmo jeito sempre. É por isso que Darwin rompeu com o aristotelismo; e é por isso que essa classificação aristotélica servia tanto ao sistema imobilista da igreja, à representação imóvel da igreja ou das espécies: o boi é sempre o boi, o cavalo é sempre o cavalo, o pássaro é sempre pássaro, o homem é sempre homem. Sempre do mesmo jeito – as coisas são estáticas. Quando Darwin afirmou que o homem vinha do macaco, ora, você está dizendo que uma espécie vem de outra espécie – para Aristóteles isso é o fim da picada. Porque Aristóteles vê as formas fixas, os saberes fixos, as espécies fixas. Mas não é por isso que Aristóteles é menos atual: ele é completamente atual.
Participante: É de uma outra maneira, mas é o que fazem as pessoas acreditarem, mesmo.
Aristóteles faz o seguinte: Platão monta o plano por excelência de transcendência e Aristóteles efetua esse plano na organização do corpo e da alma. Esse plano abstrato platônico e concreto aristotélico vão servir a qualquer tipo de poder transcendente, é uma máquina perfeita – claro que com sutilezas, variações, modificações; mas o esquema formal é o mesmo em todos os casos.
Então você tem a madeira; a ideia de casa; o carpinteiro ou o artesão ou o construtor; e a utilidade, o uso ou a finalidade da casa – são as quatro causas aristotélicas. A natureza inteira funciona sempre assim: vai da potência ao ato, da matéria à forma. Isso do ponto de vista sensível. Mas do ponto de vista racional, do ponto de vista do pensamento ou da representação, é o ato ou a forma que está indo enformar a matéria, dar forma à matéria. Então o ato é sempre anterior; o ato tem uma eminência no sentido lógico, no sentido do tempo e no sentido da substância. O ato é que é a forma da coisa; o ato, no fundo, é a causa final; o ato está no topo da hierarquia; o ato é a coisa acabada, é a coisa já final. A causa eficiente dá uma ideia de atividade – que mistura a matéria com o ato, que gera a ideia de ação; então uma coisa é a ação, outra coisa é o ato. A ação é uma formação de uma realidade ou de uma substância. Então você tem um sentido: do indeterminado da matéria à determinação das formas, do indeterminado ou do indiferenciado da matéria à diferenciação na forma. Mas que diferenciação é essa? Essa diferenciação é suficientemente eficaz ao ponto de não se deixar substituir, de ser a própria realidade? Ou é uma diferenciação simplesmente representada, substituída, organizada, apaziguada, domesticada, submetida? A determinação aristotélica, que são os atos últimos da forma, são, no mínimo, universais específicos. No mínimo isso: a diferença absolutamente submetida à espécie última. No caso “homem”: não tem nenhuma espécie abaixo do homem – é uma espécie especialíssima, espécie última. A diferença está aí.
Quando você entra na diferenciação de um indivíduo com o outro – por exemplo: eu me diferencio de você –, essa diferença já não quer dizer mais nada; essa diferença é acidental, é uma diversidade, simplesmente. Então eu tenho que levar em conta uma diferença que se submete à semelhança, à semelhança entre nós: nós somos semelhantes. Então a diferença está submetida, em sua parte menor, à semelhança. E à semelhança onde? Na percepção. Porque é através da percepção – ou do senso comum – que eu vou distinguir uma espécie da outra. E as outras diferenças não têm a mínima importância.
Então você tem um sentido, sempre, do indeterminado ou da matéria até a forma – a forma ou o ato é uma causa final. Você tem uma hierarquia, você tem esse sentido – e esse é o bom sentido, isso que é o bom senso: a origem e a finalidade. E você tem o senso comum que é captar, na realidade, apenas o que é semelhante; ou diferenciar, no máximo, uma espécie de outra. É o máximo a que você leva a diferença.
Na aula passada vimos o seguinte: de um lado está o mundo físico, feito de indivíduos ou substâncias, que são matéria e forma; a substância existindo em si, o acidente existindo na substância – o acidente precisa da substância para existir, a substância não precisa do acidente, ela existe por ela mesma. Assim funciona o mundo. De outro lado você tem uma representação do mundo; você tem uma alma que representa o mundo ou que espelha o mundo. É isso que precisamos saber: como é que essa alma representa ou espelha o mundo, como é que ela substitui o mundo? Que estatuto ela tem? Ela é eminente em relação ao mundo? Aristóteles diz que sim porque ela é pura forma, a forma tem eminência em relação à matéria. E você tem uma linguagem que significa ou simboliza essa alma. A alma é o receptáculo dos conceitos; então a linguagem significa ou simboliza o conceito. Isso no melhor caso, quando você tem uma linguagem já a serviço da lógica; mas você tem também a linguagem que simboliza ou significa as partes inferiores da alma: a parte sensitiva e a parte vegetativa. Então a alma espelha ou representa o mundo do modo sensível, do modo vegetativo e do modo lógico – são as três maneiras da alma representar o mundo. E o mundo é dito segundo a relação da linguagem com a própria alma: a linguagem se remete à alma, a linguagem manifesta, significa ou simboliza o que a alma recebe do mundo. Então: a alma espelha o mundo e a linguagem diz a alma – é essa que é a relação.
Mas haveria algo muito curioso nisso tudo, que é uma espécie de metafísica. Então você tem o mundo físico dos indivíduos, o mundo lógico da representação e o mundo metafísico. O que seria isso? Aristóteles vê o desenvolvimento da lógica como o desenvolvimento das demonstrações: raciocinar é demonstrar, raciocinar é desdobrar, é analisar – você vai da síntese à análise, você desdobra, você desenvolve. Então a demonstração aristotélica vai ser regulada pelo que ele chama de silogismo. Mas a demonstração aristotélica, ou o silogismo aristotélico, empaca – ou emperra ou hesita – no momento em que o silogismo científico ou racional deve ter premissas não só verdadeiras como necessárias: você só faz uma conclusão na medida em que você tem duas premissas verdadeiras e necessárias. O que é o silogismo? O silogismo nada mais é do que a conclusão necessária de duas premissas necessárias; é a relação entre uma premissa maior e outra premissa menor – uma relação necessária que gera, necessariamente, a conclusão. Isso que é um silogismo racional (porque você vai ter silogismo dialético e silogismo retórico – Aristóteles vai dizer que tudo é silogismo, mas que o silogismo que vale, o silogismo válido para a razão universal é o silogismo cujas premissas são verdadeiras e necessárias). Exemplo: “todo homem é mortal” é uma premissa necessária, é necessário que todo homem seja mortal, é uma premissa maior; “Sócrates é homem” é a premissa menor, é necessário que Sócrates seja homem – Sócrates não é outra coisa, Sócrates é homem; logo – a conclusão – “Sócrates é mortal”. É uma conclusão necessária a partir de duas premissas necessárias.
Só que se eu me reportar à necessidade e à verdade de “todo homem é mortal” e “Sócrates é homem”, isso vai me levar a outro silogismo – e assim indefinidamente, ao infinito. Isso inviabilizaria a ciência porque sempre há uma petição de princípio, uma petição de fundamento: o que funda aquele silogismo? O que me faz dizer que “todo homem é mortal” como base última da minha demonstração? Então você sempre encontra uma anterior. E o problema, então, seria encontrar os primeiros princípios. Os primeiros princípios são encontrados quando Aristóteles descreve as dez categorias; as dez categorias – que são substância, quantidade, qualidade, lugar, posse, movimento, etc. – são obtidas através de uma intuição intelectual, de uma indução sensível, ao mesmo tempo que uma intuição intelectual. Então não mais uma dedução, uma demonstração, mas uma indução e uma intuição. Faz o movimento contrário.
Os primeiros princípios vão ter, simultaneamente, um aspecto sensível e um aspecto intelectual. Como é que esses princípios são estabelecidos? Eles são estabelecidos através de duas faculdades que geram duas funções. Quais são essas duas funções necessárias para que se atinja esses primeiros princípios – não só como sentido comum como também sentido primeiro? A primeira das funções é uma distribuição: eu vejo o mundo e o real com diferenças últimas, diferenças absolutamente genéricas, além das quais eu não consigo ver outras. É o que Aristóteles chama de gênero A generalíssimo. Por exemplo, eu não consigo ver algo mais geral do que substância – é um dos gêneros generalíssimos, é uma das categorias. Esse modo de não ver algo mais geral do que a própria substância dá um sentido de distribuição de realidade: eu estou distribuindo um ser para a substância, a substância tem um ser. Ao mesmo tempo, eu vejo uma outra generalidade generalíssima que é a quantidade: tudo tem quantidade. Então é outra categoria ou um gênero generalíssimo, um gênero último além do qual não há um gênero maior do que ele. A qualidade é a mesma coisa, o movimento é a mesma coisa, e por aí vai. Então esse modo de ver ou de apreender intuitivamente as categorias se cola, ao mesmo tempo, à sensibilidade; então há aí um casamento entre o sensível e o intelectual.
Participante: Você coloca que Aristóteles parte da percepção do mundo sensível, das substâncias sensíveis – que são os seres humanos e as coisas. Como ele fez para garantir que essa linguagem tivesse uma univocidade? Para conseguir construir? Poderiam ser não 10 categorias, mas 20. De onde ele tirou, como ele fundamenta todas essas categorias que você começou a falar (movimento, substância, etc.)? Qual é o fundamento último que vai dar a univocidade? Porque já que tudo parte da percepção, ele poderia perceber 10 categorias mas eu poderia perceber, pela minha intuição, perceber mais 2 ou mais 3. O que faz com que ele feche e diga que são 10? Qual é o fundamento último? Onde está essa verdade, como ele fundamenta isso?
No juízo. O que é o juízo? O juízo tem duas faculdades essenciais: uma que distribui a comunidade das coisas através do nosso senso comum; ter senso comum é ter uma faculdade essencial ao juízo; não existe juízo sem senso comum. O que é senso comum? É o sentido comum das coisas. Eu digo que há uma comunidade entre essas categorias últimas (substância, qualidade, quantidade, etc.): eu estou distribuindo o ser. Mas essa distribuição é proporcional, é o que os medievais vão chamar mais tarde de analogia de proporcionalidade. O ser tem um aspecto distributivo de analogia de proporcionalidade. O outro aspecto, a outra função e a outra capacidade: é necessário que eu distinga o que é primeiro e o que é segundo e o que é terceiro; essa função remete a uma outra capacidade que eu tenho, que é a do bom senso – eu dou um bom senso ou um sentido primeiro a alguma coisa. Isso nós temos a partir do quê? Da nossa consciência. A consciência é o órgão comum. É por isso que é uma representação orgânica. A consciência é o órgão que distribui a comunidade do ser e que hierarquiza o ser através dessas duas faculdades – bom senso e senso comum. Então o saber aristotélico é totalmente um saber de consciência, é totalmente um saber subjugado ao juízo, que tem essas duas faculdades essenciais.
O que constitui o juízo é bom senso e senso comum; sem bom senso e senso comum não há juízo. O juízo tem essas funções. É por isso que sempre que nós vemos uma comunidade de realidade em coisas diversas, estamos distribuindo o senso a essas coisas e dando uma comunidade de senso – um senso comum – a isso tudo. Ao mesmo tempo dizemos: “mas existem sensos ou sentidos que são mais importantes do que outros” e hierarquizamos os sentidos em direção a uma finalidade ou a uma origem. E essa maneira de hierarquizar as coisas é o bom senso. Assim Aristóteles diz que a substância é primeira no mundo, em relação aos acidentes; que o ato – ou a forma – é primeiro em relação à matéria. Isso tudo é modo de dar bom senso às coisas, o bom sentido, o sentido fundamental; é a maneira de ele hierarquizar as coisas. Assim, também, ele vai ver uma hierarquia e uma distribuição nas dez categorias; ele vai dizer: o ser não se confunde com as categorias, mas, ao mesmo tempo, o ser se diz em dez sentidos diferentes, em dez sentidos equívocos. Mas é uma equivocidade especial, é uma equivocidade analógica, de analogia ou de proporção: há uma proporção na hierarquia e há uma proporcionalidade na distribuição. São os dois aspectos fundamentais da analogia: analogia de proporção na hierarquia e proporcionalidade.
Analogia de proporção na hierarquia porque substância primeiro, aí vem a qualidade em segundo, a quantidade em terceiro, etc.; há uma hierarquia entre a substância – que só ela, no fundo, é substancial – e as outras nove categorias que são acidentais; haveria uma relação hierárquica entre as categorias. Isso é uma analogia de proporção – proporção de realidade do ser: o ser é distribuído proporcionalmente, segundo as categorias. E a proporcionalidade é a distribuição interna do próprio ser na categoria; ou seja, o ser é quantidade, o ser é qualidade, o ser é substância, mas ele se diz – internamente – de modo diferente. Então haveria uma diferença genérica além da diferença específica; essa diferença genérica é a diferença última. Esses são os limites da representação: você tem a diferença genérica e a diferença específica. É onde a diferença opera.
Então olha só onde está a diferença: a genérica me leva até a analogia do juízo – analogia de proporção e de proporcionalidade; então eu tenho a diferença submetida à analogia que, no fundo, é um modo de submeter à identidade. Mas eu chamo de analogia de juízo. Então eu submeto a diferença à analogia do juízo. Por outro lado eu submeto a diferença à identidade indeterminada do gênero: eu tenho um gênero indeterminado – gênero em potência, digamos assim – e eu vou atualizando ou dividindo o gênero com as diferenças específicas. Assim: “animal” é um gênero; diferença específica: “racional”. “Animal” é o homem em potência; no momento em que entra a diferença específica “racional”, vai dar “animal racional”; mas ainda tenho “animal racional homem” ou “animal racional deus”, então eu ainda tenho que fazer um acréscimo: “animal racional e mortal” – aí eu atinjo o homem, a espécie homem. Então eu venho atualizando, com as diferenças específicas, o gênero; então a diferença específica é um ato e o gênero é uma potência. Você tem então esse mesmo esquema de ato e potência – que estava lá no mundo físico – no mundo lógico também.
Participante: E qual é o ato do homem?
O ato do homem é a razão. O ato é a presença do ser.
Participante: “O que pode a filosofia?” é uma das perguntas que você faz.
Neste caso, a filosofia serve ao Estado, ela serve ao poder. Por que? Porque ela está submetendo a diferença à representação. O pensamento livre do Estado pensa como expressão de corpo, como expressão de desejo, como expressão de vida; ele arrasta a vida, ele guia, orienta, esculpe, cria, inventa caminhos, cria canais – isso que o pensamento faz. A mesma coisa a vida, quando entra no pensamento: ela tira o pensamento de lugares comuns. Então há uma aliança aí entre pensamento – que afirma a diferença enquanto diferença porque tudo é diferença, no fundo – e a vida. Então há uma distância aí em relação a esse tipo de atitude; e isso é o que pode a filosofia – ou, de forma mais abrangente, isso é o que pode o pensamento. Porque o pensamento é arte também, o pensamento é ciência, o pensamento é invenção, é criação – ou de sensações, de afetos, de novas percepções; ou de funções; ou de ideias ou de conceitos. Tudo é pensamento. Mas o pensamento livre, ou nômade, ou afirmativo, está diretamente ligado com a própria natureza – que é puro movimento, que é puro devir, que é pura vida. E a vida, o movimento e o devir não existem sem a diferença. A diferença é imanente à vida – viver é diferenciar-se; estar em devir é diferenciar-se. Então o que seria necessário seria atingir o conceito de diferença enquanto diferença, o pensamento da diferença na própria diferença. Então é atingir o diferencial na diferença.
Mas Aristóteles não quer isso, não. Aristóteles quer submeter a diferença, ele quer criar uma identidade na diferença; a diferença tem que se submeter a uma identidade e abandonar o seu diferencial. Ou melhor, submeter o diferencial à identidade, submeter o diferencial a uma causa formal ou a uma causa final. E como ele faz isso? Inventando as diferenças específicas e as diferenças genéricas. Então o que pode a filosofia de Aristóteles? Ela pode organizar uma representação que capture a diferença, que submeta a singularidade e a conduza para os destinos que a representação previamente prescreveu. Então é como se houvesse uma escrita divina: ao desenvolver a representação, eu desenvolvo a escrita divina, eu abro o livro da natureza – que seria uma escrita formal, feita de causas finais – e todos os seres tenderiam, de modo natural, para as suas causas finais. Então você deve encontrar o seu lugar natural, o seu tempo natural e a sua forma natural; todos os seres têm o seu quinhão natural, o seu destino natural – que envolve um tempo, um lugar e uma forma final, uma causa final, uma finalidade. Tudo tem uma finalidade – é assim que Aristóteles vê a natureza.
Ora, se eu tenho uma máquina dessas – uma máquina que funciona muito bem – e um poder se apodera dessa máquina, quem vai dizer a finalidade?
Participante: Quem se apoderou da máquina, sem dúvida.
É por isso que é uma máquina que funciona. E Aristóteles seria um dos primeiros funcionários do Estado, como diria Nietzsche. O filósofo como funcionário do Estado.
Participante: Por que acreditamos nisso?
Porque somos entupidos de bom senso e senso comum. Porque funciona conosco já naturalmente, acreditamos que isso é natural em nós. Porque, na medida em que estamos separados do que podemos, acreditamos que a causa, o nosso princípio, está na nossa consciência; que a consciência é causa de movimento, é causa de cessação de movimento, é causa de alteração de rumo – eu mudo, eu faço isso, não faço isso, faço aquilo, não faço aquilo –, como se a consciência comandasse o corpo.
Participante: Tudo bem, são séculos disso. Mas por que se acreditou, naquele momento? No momento em que foi inventado?
Porque isso interessa, isso é útil, é interessante. Isso libera de ameaças. A vida que está fraca, a vida doente, precisa se proteger; e isso é uma forma de se proteger. Isso é uma forma reativa de existir, isso é uma forma doente de existir; isso é uma forma que diz assim: “dá um tempo”. E aí você mete uma malha representativa e mantém uma distância do mundo porque você não suporta o mundo ativo. Você cria essa demanda, ou essa necessidade, a partir do momento em que você está separado do próprio devir. Na medida em que você não suporta mais a diferença se fazendo – em você, nos outros, em tudo, atravessando tudo -, a diferença se torna um monstro, a diferença se torna uma ameaça, a diferença se torna um mal. E você precisa representar a diferença, você precisa dar forma à diferença, você precisa dar uma parada, um limite, um repouso a essa diferença. Você precisa classificar essa diferença e você precisa ordenar essa diferença. Aristóteles é um grande classificador; a vontade de Aristóteles é classificar. Platão tinha a vontade de selecionar boas das más imagens, verdadeiros dos falsos pretendentes; Aristóteles só encontra agora indivíduos com formas ou imagens ícones. E o que ele quer fazer agora é classificar isso que ele encontra. Ele já encontra um mundo equilibrado e pacificado; ele encontra já o mundo natural, ele encontra indivíduos que tendem para a sua finalidade. O homem tende para a racionalidade; a criança é o homem racional em potência. Tudo tende. Tudo tem a sua potência e recebe essa forma. Essa forma às vezes é interna e às vezes é externa. O artista que cria a escultura: ele imprime a forma, de fora, na matéria. A vida, que tem alma, traz a forma na alma – a alma é uma forma. O ato está na forma; a realidade, ou a realização, está na forma; a causa está na forma, a causa está na alma, a causa está na consciência, a causa está no juízo. A causa está no espiritual, no incorporal. O incorporal é superior ao corpo.
Participante: Consciência, para ele, é sinônimo de juízo?
Ele não vai usar esses termos, mas é como funciona em nós: é a consciência, é o juízo.
Participante: Então, imagine que isso – essa viagem que nós estamos fazendo – é uma ficção, uma invenção. De repente, hoje você resolveu contar uma história para nós. E essa é a história; como uma câmera, estamos assistindo a um filme. E essa é uma história contada. Poderia ter sido Platão ou duas semanas atrás. Então, se é uma ficção – porque ela foi construída e inventada, se formos desdobrar esses fundamentos todos talvez dê num vazio ou dê num nada, aqueles 10 passa para 18 – fica infinitamente vazio, não tem origem. Se é uma ficção, e se não tem uma trajetória de evolução – primeiro isso, segundo aquilo -, por que será que ela tem um poder de criação de um eu (consciência), de uma sensação de território, de fundamento, como um nascimento do mundo. Quer dizer, cada um tem o direito; eu posso chegar aqui e criar uma história, uma lógica, etc. Como isso foi introjetado? E onde engancha essa absorção – que até temos dificuldade de acompanhar porque é tão espelhado o que pensamos quando você fala; eu fico olhando e digo “não, você está sendo claro; a questão é que deve ser tão espelho que não dá para termos uma distância e um descolamento”. E às vezes eu olho para dentro e digo “não, agora eu entendi”. Mas é difícil nos separarmos disso, nós somos também isso, nós estamos nisso. Então se é uma ficção, por que ela ganha esse caráter de real, ao ponto de que nos confundimos e nos misturamos e nos fundimos e não percebemos a qualidade ficcional disso, a invenção. Ele foi um grande criador: bárbaro. Porque nós não olhamos só como invenção? Essa é a diferença… estou voltando à história do simulacro e da cópia.
É porque tudo se passa em dois planos ao mesmo tempo. Tudo é real. Platão cria uma ficção, mas a vontade dele é bem real, é completamente real, completamente imanente à natureza.
Participante: A potência de vida está nisso.
Está aí. Ou seja, Platão é um ser da natureza, Aristóteles é um ser da natureza. Acontece que eles recortam algo no mundo, na sua maneira de ser, de viver, de existir, de pensar; eles recortam um jeito, um tipo, uma maneira, que valoriza ou privilegia ou hierarquiza certos elementos, certos valores, e destitui ou desqualifica outros. Desqualifica certos aspectos do real e valoriza outros aspectos do real. Problema: o que é valorizado nos leva mais longe, aumenta a nossa liberdade, aumenta a nossa potência? Ou nos submete, diminui, faz do mundo um mundo mais chato, faz da vida uma vida tediosa, faz de nós vítimas de instrumentos de poder? Ou outras coisas quaisquer. A questão sempre é uma questão ética. Nietzsche diz: nós nunca vamos saber a verdade de uma verdade porque não há um critério, um lugar privilegiado, que interprete aquela verdade sob um ponto de vista absoluto – aliás, um lugar fora dos pontos de vista. Seria um lugar absoluto e isso é outra ficção – foi a ficção que o ocidente inventou, que Platão inventou, um lugar privilegiado que seria o absoluto, fora de todos os lugares, fora de todos os tempos e de todos os espaços, fora de todos os pontos de vista. Nietzsche diz: isso não existe. Então temos que sair desse campo ficcional de um falso saber, ou de uma teoria aparentemente científica, e jogar essas ideias – esses convites que nos fazem para investir o nosso desejo – para o campo das forças. O que essas ideias podem? O que valem esses valores? Para onde eles nos levam? O que quer essa vontade que inventou essas ideias? Que valor tem o valor da verdade, por exemplo? Quem quer a verdade? E o que quer esse quem que quer a verdade? Aquele que quer a verdade acredita que existe a mentira, que existe o falso, que existe o erro, que existe um mundo errado; Platão queria a verdade das ideias para dizer: “imagens, sigam as ideias!”. E quem não segue deve ser eliminado. Porque quem segue as ideias vai se harmonizar, vai se limitar, vai se qualificar, vai adquirir uma qualidade que gera uma unidade social, gera uma harmonia, gera um Bem, gera uma paz, etc. Já é um desenvolvimento. Platão acreditava nisso. Aristóteles, a mesma coisa; só que Aristóteles vai dizer: não precisamos mais nos esforçar absolutamente para atingir um mundo inatingível porque aquele mundo está aqui, nos corpos; as ideias estão nos corpos. Então é só olhar direito. Olhar a semelhança na percepção não é mais de uma alma que se separa do corpo e se assemelha a um modelo fora do corpo; a semelhança está no próprio corpo, está na percepção; alma e sensível se casam. Então a percepção com semelhança obtém essa forma no mundo. E com essa forma nós vamos ser melhores, nós vamos ser mais bem organizados, nós vamos ser homens de bem, nós vamos ser pacíficos, nós vamos nos desenvolver, nós vamos formar uma comunidade a partir de uma racionalidade. Porque a racionalidade tudo unifica, a racionalidade é universal; e o que é universal está acima da disputa das partes ou das discórdias; universal é um valor superior às diferenças porque tudo que é diferença gera negatividade, gera discórdia, gera o mal. Então a diferença é um monstro, a diferença tem que ser subjugada. Então é uma visão de mundo. Quem vê a diferença como monstro já inventa uma máquina…
Participante: Para sair matando.
Para sair matando os monstros. Ele coloniza tudo ou elimina.
Participante: Quer dizer, a potência dessa ficção platônica, aristotélica, tem a ver com “a força está na semelhança e na classificação” e não “a força está na diferença e na infinitude dos desdobramentos dessa diferença”. Essa é a isca….
Que ele nos faz morder.
Participante: O que eu quero dizer é o seguinte: qual é a sedução? Qual é a isca que nos cativa e que adoecemos nessa percepção que continua repetindo? Essa é a questão. Mas tem uma coisa. Quando falamos “fictício”…. A questão é que é uma máquina. Eu acho que é aí que ela está escorregando: ela está pensando no fictício como uma coisa da carochinha, uma historinha que não tem efeito. E na verdade isso é uma máquina; usando o mito, usando coisas fictícias, mas é uma máquina. Ela não está pensando como máquina, ela está pensando como historinha versus “o que é real”.
Isso. Deixa eu explicar um pouquinho isso porque eu acho que essa é uma questão fundamental mesmo. Platão é real; a ficção dele não é real; mas o efeito, ao investir a ficção, é real.
Participante: Se torna real.
Isso. Então ele produz realidade através de uma ficção. É um simulacro também – Platão elege um simulacro como sendo uma imagem ícone. fundamental. É o simulacro dele.
Participante: E é uma potência.
Então, na realidade, tudo é simulacro, tudo é artifício, tudo é ficção. A natureza não é nem real, nem fictícia; ela é fantástica, ela produz no fantástico. Como diz Bergson: ela é uma fabulação.
Participante: Então, se tudo é simulacro, todo simulacro que quer prevalecer é perverso. Porque ele anula os outros.
Exatamente. Ele exclui, ele é excludente; ele diz: eu sou mais importante, logo o resto é menos importante. Ele desqualifica.
Participante: Ou seja, se tudo é simulacro, todo simulacro que quer se tornar o todo, exclui todos os outros. Então ele se torna perverso.
Há um risco nisso, porque não somos iguais na forma, não somos iguais na imagem, e há uma hierarquia.
Participante: nas forças, não é?
A hierarquia é a seguinte: tudo que afirma a força plenamente, ou a diferença plenamente, é igual – igual na capacidade de afirmar a força, de afirmar a diferença. Então: essa igualdade é positiva. Assim, uma formiga ou uma pulga é tão poderosa quanto um elefante.
Participante: Nesse sentido, você acha que existem dois homens iguais?
Existe. Nesse sentido, sim. Nietzsche diz: só o igual pode ser amigo ou inimigo, só entre iguais a amizade ou a inimizade. Isso é o que ele chama de guerreiro ou aristói, ou aristocrático; o aristocrata é um aristocrata de espírito, um aristocrata que é afirmativo – afirma a sua diferença até as suas últimas consequências; ele não lida com as consequências – ele afirma a diferença, as consequências são efeitos. Então ele afirma plenamente a diferença.
Participante: Isso é dado? É fatal? “Eis um homem afirmativo”, “eis um homem reativo”?
Não é dado. As condições estão aí, você tem que assumir o comando.
Participante: Então existe um simulacro superior: um simulacro que respeita as potências. Existe um simulacro que pode se colocar no lugar.
Isso! Mais do que respeita, porque não é uma ideia moral, ele afirma. Esse simulacro é o que chamamos univocidade do ser. Estou enfatizando aqui a analogia porque a analogia é uma má ideia; o ser análogo é um ser do impotente. Porque eu não tenho o mesmo ser do Ser, o meu ser é inferior, o meu ser é análogo. O ser unívoco não: o ser inferior e superior é o mesmo. O que é o ser? O ser é a pura afirmação, a afirmação já é o ser. Adiantando um pouquinho: como Nietzsche diria, o ser é o eterno retorno. Retornar é o ser de toda diferença; toda diferença, no seu ser, retorna. É o retornar que é o ser de uma diferença. O retornar é que é o ser do devir. E só retorna quem afirma a diferença plenamente. Porque a afirmação, a efetuação, o ato de afirmação é o que me dá o retorno do diferente. Não daquela diferença do mesmo jeito que era diferente, mas agora já diferente daquela diferença que era. Ou seja, esse afirmar é que é o diferenciante da diferença. Então ser unívoco – essa unidade de toda a natureza – é uma unidade que diferencia o que é já diferente. Então ela afirma a diferença. Tudo na natureza é diferença. Então, essa capacidade de afirmar a diferença é que é ética, guerreira, aristocrática; que não tem nada a ver com a vulgaridade na igualação das formas ou das imagens. É por isso que não tem que se respeitar qualquer diferença, não; é a diferença do ponto de vista de um elemento que se autodiferencia e afirma essa autodiferenciação. É o que fala Artaud: anarquia coroada.
Participante: Educar, falando de escola, seria afirmar a capacidade de produzir a diferença, dos educandos.
É isso aí. O que ocorre é o seguinte: nós ainda raciocinamos ou pensamos em termos de identidade, em termos de juízo; na hora em que um participante falou aqui “mas existe uma condição dada para você afirmar plenamente sempre, ou não?”, não é mais você aí. Não há mais uma identidade; é algo que se apodera de você e afirma. É por isso que a ideia de morte é uma ficção, porque nós nos colamos ao corpo, nós nos colamos a uma casca, e nós investimos, nos agarramos a essa casca como se fosse uma coisa fantástica; quando a vida está se servindo dessa casca, ela passa por essa casca. Assim como um caramujo abandona o seu caracol quando aquilo já está demasiado apertado para ele; assim é a vida, assim é o pensamento, assim é tudo. Então, tudo que se passa em nós não pertence a uma identidade egoica, não faz parte de uma consciência, não faz parte do senso comum, não faz parte de um bom senso, não faz parte de um juízo.
Participante: Portanto, quando Aristóteles gerou essa identidade específica, respeitando quase uma diferença, ele gerou uma clausura e quase um corpo que definiu uma morte.
No fundo ele está simplesmente valorizando algo que se passa em nós. Um participante disse: mas ele está descrevendo ou inventando algo que diz muito respeito à nossa realidade. Claro! Por que? Porque, como fala Nietzsche, nós vivemos sempre segundo uma imagem invertida. O que é a imagem invertida? É a ideia do efeito como causa: o que é efeito tomamos como causa. Esse modo de se relacionar é de quem está separado do que pode. E toda vez que você toma o efeito como causa, você funciona assim. O modelo aristotélico cai como uma luva. É por isso que Aristóteles não é um filósofo qualquer, é por isso que Aristóteles é Aristóteles, e é por isso que Platão é Platão. Platão descreveu um plano fantástico de transcendência que é o modelo de toda transcendência, é o modelo fundamental; ele atingiu o modelo fantástico de transcendência. Aristóteles vem e diz: eis como funciona isso no aqui e agora, na existência, no nível do homem – a coisa mais pragmática.
Aí vêm as sociedades disciplinares do século XIX e vão levar a coisa ainda mais longe, elas vão dizer assim: o fantástico dessa máquina representativa é o saber do individual, é atingir o indivíduo; então a representação do infinitamente pequeno e do infinitamente grande atinge o próprio indivíduo; então o indivíduo é objeto do saber; agora você é um ser em potencial, em potência, que pode ser um criminoso, que pode ser um trabalhador, que pode ser um educando, que pode ser um Édipo. Você tem mil potências aí, mil “virtualidades”.
Então o saber tem que ser sobre o controle individual, eu preciso controlar o indivíduo – os movimentos do corpo, os gestos, os tempos do gesto, o lugar do gesto; e eu faço uma máquina de encerramento – que pode ser uma escola, uma família, um hospital, uma fábrica – e ali, nesse espaço de encerramento, eu vou limitar os lugares, segmentar os tempos e produzir um corpo, uma alma e uma discurso para isso. Então eu vou ter um saber, agora, que tem como objeto o indivíduo, os gestos, os micromovimentos e as micrológicas, mas ainda na representação – então eu levo a representação para o micro. Isso é o fundamento da sociedade disciplinar.
É muito mais sutil porque nós não estamos mais naquela exterioridade genérica ainda – ainda que seja demasiado humana essa generalidade de Aristóteles -, nós não estamos mais nessa generalidade onde muita coisa ainda se passa. A sociedade capitalista precisa de microcontroles. Então ela inventa um novo saber, ela inventa uma outra máquina – fundada, claro, na máquina platônica, na máquina aristotélica – e é por isso que essas máquinas são nossas, elas continuam sendo nossas, nós nos servimos delas; só que damos outros sentidos a elas, vamos mais longe: nós as submetemos a saberes mais poderosos ainda.
Participante: Voltamos à história da isca e da atualização dessa história ou dessa máquina. Por que isso foi se tornando uma máquina sofisticada? Por que não decaiu, não foi perdendo a potência? Ela foi aumentando. O capitalismo como um efeito ou como um desdobramento disso. Fiquei pensando numa coisa: a morte do eu. Agora é que estou entendendo quando Nietzsche fala que o homem deve morrer. É como se pegamos um sistema ou uma história onde nós estamos mortos, na verdade. Então como nós vamos assinar a nossa própria morte? Daí que eu acho que é a sofisticação. E daí que eu entendo agora talvez a questão da psicanálise quando fala tanto da questão da morte, sofistica um pouco mais isso. Mas eu fiquei pensando: nós estamos assinando a nossa própria morte. Porque estamos falando de um efeito; nesse sistema não existe. Nesse sentido é uma ficção; tem uma força mas a manifestação, ou a performance, acaba tomando o lugar; mas por isso que é uma ficção e não é.
D. H. Lawrence diz o seguinte: o espírito santo da vida está abandonando o homem. E Bergson diz: se o homem se reduzir à inteligência ou ao cérebro, ele vai se tornar uma sociedade igual à abelha ou à formiga. As sociedades das abelhas ou das formigas vivem num círculo vicioso, num beco sem saída; há milhares – ou milhões – de anos que as sociedades não encontram uma nova linha, uma nova invenção: elas estão num círculo vicioso, digamos assim. E ele diz: no caso do homem a mesma coisa porque o homem submete o pensamento ao órgão ou ao cérebro; e o cérebro, ou a inteligência, tem uma função prática, orgânica – tem a função de organizar a nossa prática. Mas o pensamento não se submete a essa organização – ao contrário, o pensamento está muito além dessa organização. Então as funções nobres que a inteligência, o cérebro, têm, é para liberar o pensamento e a vida para outras coisas mais nobres que não as organizações; esse mundo organizado é o mundo do hábito, o mundo de uma repetição mecânica, até – que é necessário para se conservar o corpo, digamos assim. Mas inventar um corpo, inventar um pensamento, já é movimento de outro tipo de força. E as forças que nos constituem enquanto homens ativos e afirmativos são forças que não devem estar submetidas ao cérebro enquanto organizador da prática, ou a essa inteligência orgânica; mas sim liberar, ligar essas forças com outras que arranquem o homem desse beco sem saída.
Então é a mesma questão. No fundo é exercitarmos em nós mesmos um modo de ultrapassar em nós o senso comum e o bom senso, sem medo de enlouquecer, sem medo de entrar em regiões desconhecidas e perigosas – porque são nessas regiões que a vida se passa; nós só vivemos realmente se entramos em contato com regiões perigosas, regiões inéditas, regiões estrangeiras. O bom senso e o senso comum dão nos personagens de Fassbinder, dão naquilo, naquela coisa entediada, vulgar, sem saída, cansada, impotente, que um dia se dá um tiro ou sai dando tiro em todo mundo. Então é você começar a exercitar o estranho em você. É criar novas sensações, é criar novas percepções, é criar novos pensamentos, novas funções para o corpo.
Participante: Criar pensamentos, novas funções, novos conceitos é o sentido do filosofar.
Sem dúvida.
Participante: Filosofar com arte, não é?
Ou do artista que é artista mesmo.
Participante: Estou dizendo filosofar no amplo sentido de estar no mundo, na vida.
Sem dúvida.
Participante: Mas é um modo artista, um modo artístico de estar no mundo.
Nietzsche diz que é a mesma coisa, o artista e o filósofo se confundem.
Participante: Mas você acha que a arte, a poesia, é um grande aliado para habitarmos isso? Para conseguir arrancar a vida desse bom senso?
Eu acho que a arte e a poesia são apenas nomes antes de entrarmos direto em contato com o devir, porque quando você entra em contato com o devir não importa mais os nomes, não importa se você faz arte, se você faz pensamento, se você faz filosofia, o que se faz. Importa que você está em devir, que você está acontecendo. Isso pode não ter nem nome para a nossa sociedade: eu estou, de repente, inventando uma coisa que ainda não tem nome. Tudo bem, você pode até usar o nome “arte”, o nome “filosofia”, o nome “pensamento”, o nome “criação”, como um instigador, como uma enzima que abre as canais, ou que acelera aberturas, ou que acelera reações que estão emperradas. Você pode até usar esses nomes. Mas esses nomes estão por demais carregados por sentidos estereotipados. Então às vezes é bom nem nomearmos, às vezes é bom sentirmos o que se passa quando o novo é gerado. E estimular isso.
É saber valorizar o tempo do acontecimento, o tempo próprio daquele acontecimento; é fazer com que aquele tempo próprio seja um pacto que gere realmente uma nova entidade; e que essa entidade não seja um outro cristal, uma outra cristalização, mas que essa própria entidade já seja uma potência em movimento. Então, no momento em que você se torna acontecimento, em que você entra em devir, o próprio resultado do devir é uma obra que é um movimento ou uma potência em ato – a própria obra já é uma potência em ato, ela já sai produzindo outros efeitos. É como um livro que você lança: você lança um livro e vai ter uma pluralidade de leitores, aquele livro já não é mais de quem lançou. E quem lançou o livro não era Um, não era um eu, não era uma consciência; era uma pluralidade que atravessava aquele ser que gerou aquela pluralidade de elementos. E no encontro ou na conjunção com os elementos ou com a pluralidade do outro, leitor, vai gerar um novo mundo.
Então, no fundo é o seguinte: tudo se resume ao modo de ser, ao modo de vida, ao modo de sentir, ao modo de pensar. Existe um modo – ou existe um tipo de homem, existe um tipo de ser – que toca em coisas prontas e que recebe efeitos prontos; e existe um tipo que toca e vê a coisa mudar e não vê a coisa, nunca, se fixar ou se cristalizar, ele vê sempre a coisa em mudança. Então são tipos de homem.
Nietzsche dizia: tipo ativo e tipo reativo. O tipo ativo é o tipo que está sempre colado ao devir; então, ao tocar algo, se você toca e aquilo gera uma abertura, você é modificado e ao mesmo tempo você aumenta a capacidade de se automodificar: além do que você recebeu, além do que você já foi modificado, você aumenta a capacidade de se automodificar e a capacidade de modificar o mundo. Nesse momento você está ou fazendo arte, ou fazendo filosofia nômade, ou fazendo algo que realmente interessa; você está se sentindo, você está sendo eterno. A eternidade só existe aí, nessa produção.
Participante: E aí está a alteridade.
A alteridade no sentido de que você não está fechado em si mesmo, você está em relação; mas essa alteridade não é o outro enquanto um outro sujeito, enquanto um outro objeto; essa alteridade é o que se passa entre, é o que está no meio ou na superfície; a alteridade é a própria relação e não outro termo. Então esse cuidado tem que ter também, porque se você entra no outro, você entra numa outra imagem, numa outra forma, num outro objeto, aí você cai de novo.
Participante: Aí é o simulacro que quer se valer, é uma armadilha.
É um simulacro que se diz ícone.
Participante: Tem uma coisa interessante: no instante em que você se torna o próprio devir – que é a capacidade de produzir essa filosofia nômade, novos conceitos, e se tornar uma obra de arte – você não mais se pertence.
Não mais se pertence.
Olha só o que Aristóteles faz, o movimento da diferença aristotélica: quando você tem lá um gênero, que é em potência, e vem a diferença específica dividindo o gênero em espécies. Aparentemente a diferença produz espécies intermediárias – que viram gêneros, sob outro ponto de vista – e transportando realmente a realidade do gênero. Aparentemente ela está produzindo e transportando aquele ser do gênero: então eu tenho a animalidade em mim. Mas, no fundo, o que Aristóteles faz é um falso transporte. Por que é um falso transporte e é uma falsa realização? Porque a diferença, ao dividir o gênero em espécies, fica sempre a mesma, ela não se modifica. Entendeu o que é afirmar o mesmo da diferença?
Não é retornar à mesma diferença – aí não acontece nada. Você só entra em devir na medida em que, ao afirmar a tua diferença, você já é outro. Então aqueles que dizem que em Nietzsche o eterno retorno é o eterno retorno do mesmo, são uns idiotas, uns hipócritas, uns imbecis, porque não tem absolutamente nada a ver; quando você afirma a diferença, necessariamente você já é outro – a realidade se fez em você, ela se produz em você de fato. É por isso que você é eterno: porque se produz algo de novo. Porque senão, não se produz nada, eu simplesmente represento, eu encarno outro papel, eu represento papéis; a máscara vira uma representação – aí não adianta nada. Quando eu entro numa ficção ou num simulacro, e encarno aquilo de fato, aquilo mudou a minha realidade, eu estou em outro lugar, em outro tempo e em outro elemento; não tem como representar, não tem como substituir, aquilo já está em outro lugar.
É por isso que o ser imperceptível, o devir imperceptível do homem livre, é isso – porque o homem livre, realmente, não está numa casca, não está numa ideia, não está num eu, não está alojado numa consciência, nem no bom senso, nem no senso comum. Ele escapa o tempo inteiro porque não é ele enquanto forma, enquanto sujeito, enquanto objeto; é algo que se passa nele e esse algo que se passa é nômade. São singularidades nômades; literalmente: singularidades nômades. E quanto mais aquilo se passa, mais aquilo se modifica. E se se modifica, não há como reconhecer, não há como fazer a recognição, não há como ter nem memória, nem projeto. Não tem como. Não há poder no mundo que submeta o homem livre. Espinosa dizia isso: você pode prender um homem. Toni Negri fez uma obra sobre Espinosa na prisão. Olha a obra que ele fez. Ele está lá aparentemente preso com o corpo, mas totalmente livre.
Participante: Eu estava te ouvindo, entendo bem o que você está falando, e estava pensando: e por que esse tipo de pensamento – o pensamento deleuziano, por exemplo, que é isso que você está falando – está produzindo o que está produzindo? Isso eu comecei a me perguntar. Aí tem uma frase tua que você fala bastante, Deleuze fala bastante: “você afirma a diferença”. Quando você fala “você afirma a diferença”….
Esse você é um simulacro.
Participante: Pois é. Mas não é aí que a coisa degringola? Eu entendo o que você está falando, é lógico – você está falando da força se afirmar.
Quer ver o que é afirmar? É quase como você deixar que a coisa se afirme em você.
Participante: Mas é você quem deixa ou deixa de deixar? Esse é o problema.
Isso! É e não é. É, no sentido em que você é uma composição; na hora em que você fala enquanto eu, enquanto consciência, você é um corpo organizado e você é uma alma organizada. E essa alma organizada e esse corpo organizado têm um poder; são forças reativas, são forças que têm a sua função nobre, como diz Nietzsche – elas são forças que preservam, conservam, regulam, sobrevivem, têm hábitos; elas tornam a vida quase mecânica, digamos assim, mas elas mantêm um instrumento da vida. O corpo orgânico e a alma orgânica, ou o órgão – por exemplo, o olho que vê é um instrumento da visão ou de uma percepção que se passa através do olho. É como se eu dissesse o seguinte: em vez de eu ver a luz, a luz vê através de mim; é isso que é eu deixar a vida passar em mim, é isso que é eu afirmar. Afirmar é o seguinte: não é o eu que afirma, na realidade – o eu se torna agido, ele é agido. A luz age meu olho, o som age o meu ouvido.
Participante: Sim, mas é um convite para que a consciência deixe que isso aconteça. E justamente ela é quem quer o contrário.
É, aqui existe uma ambiguidade. O que se passa? Na realidade, as minhas forças ativas – que eu também tenho, eu não sou só uma organização – estão submetidas à organização; as minhas forças ativas, aquilo que me faz entrar em devir, está capturado pelo estrato de um plano transcendente – platônico, aristotélico ou do próprio capital. Eu invisto o meu desejo, invisto as minhas forças ativas, eu as submeto a aquele recorte de devir – porque o devir é necessário, eles não eliminam o devir, não se elimina o corpo, não se elimina o desejo, não se elimina as paixões. Tudo se torna a serviço de algo. Então algo que se passa em mim, eu ponho a serviço.
Participante: Eu ponho?
Eu ponho, porque vira um eu. O poder, ao me rebater nisso, ele forma um centro em mim. Esse centro em mim não importa se ele está em mim ou se ele está lá fora – não importa mais se é dentro ou se é fora, se é inconsciente ou se é consciente, se é subconsciente ou subliminar, não importa onde ele esteja, o que importa é que o centro atravessa de um jeito tal que ele canaliza as forças que se passam em mim – as que eu recebo e as que eu emito. Ele canaliza isso. No momento em que ele canaliza ele forma o centro – o centro do sujeito moral, do sujeito lógico, do sujeito religioso. Ele forma um sujeito, ele forma um eu. Então a questão é: esse sujeito, esse eu, se forma como? Ele precisa de algo em mim, ele precisa de algo que se passa em mim, ele se serve de algo essencial que se passa em mim. O que é esse algo essencial que se passa em mim? É a pluralidade de forças que me atravessam e que me compõem – eu tenho uma composição e tenho forças que eu recebo e que eu emito. As que me compõem são forças ativas e reativas; as ativas são as que ousam, criam, modificam, alteram, inventam, fazem dobras; as reativas são as que mantêm, conservam o que eu conquistei. Então eu tenho sempre esse jogo.
No momento em que eu ponho as forças ativas a serviço de uma demanda, eu estou submetendo – eu, aí eu me torno um eu, um eu no sentido reativo, não mais um eu como simulacro – o meu devir a planos transcendentes de organização; eu estou vendendo a minha vida, eu estou trocando a minha vida e o meu pensamento. E eu não estou produzindo realidade. Por que? Porque na troca, eu apenas sirvo às diferenças que se passam, mas eu não entro em processo de diferenciação real que leva a termo a diferenciação e que se torna outra coisa; eu sou sempre o mesmo que me repito. É por isso que eu sou fraco, é por isso que eu não sou eterno, é por isso que eu sou um ser mortal, nesse sentido.
Então deixar-se afirmar, ou se tornar afirmativo, é, em vez de investir numa proteção, num mundo que tem ausência de ameaças, num mundo que vai me deixar e me conservar vivo e que vai me reconhecer – em vez de eu investir nisso, porque isso já é a força ativa submetida à visão reativa –, eu começo a investir naquilo que muda, naquilo que se diferencia, a partir daquilo que se passa em mim mesmo. E aquilo que diferencia o que se passa em mim mesmo vai gerar, necessariamente, um incômodo, gera uma inquietação, gera uma série de cápsulas ou de encapsulamentos; é como um corpo estranho no meu organismo: o que o meu organismo faz? Ele cria uma cápsula. Assim a sociedade faz com as nossas singularidades.
Participante: E a consciência também.
E a consciência também, porque a consciência já é resultado de um encontro. Se o meu encontro com a sociedade é um encontro de submissão, a consciência que eu tenho é a própria consciência do valor social. E eu submeto as minhas forças a isso.
Então, de modo muito genérico, a coisa se passa assim. Agora, nós precisaríamos analisar os modelos de Espinosa, de Nietzsche e, daqui a pouco, nós vamos chegar aos modelos dos estoicos e de Epicuro e Lucrécio – que são, já, maneiras de vermos como não é um eu que afirma, mas é já a própria postura ou disposição dos afetos, das forças que nos atravessam, que são já o modo afirmativo por excelência. O modo não é um modo de um eu, de um indivíduo, nem um modo universal, mas é um modo singular; é um modo que funda o indivíduo, que funda o coletivo, mas não se submete nem ao individual nem ao coletivo. O singular é isso; o singular não é um átomo, mas é a conjunção de elementos que fazem com que as forças se passem sem se enclausurar no indivíduo ou no elemento coletivo.
Aristóteles até tenta. O que é a realidade do animal? É a animalidade. O que é a brancura enquanto brancura? É a essência do branco. A essência do animal seria a animalidade. Só que Aristóteles não vê nada além do indivíduo físico e do conceito lógico, ele fica nesses dois estados da essência. Vai precisar de Avicena – Avicena que lê 40 vezes a Metafísica de Aristóteles: falta uma essência, ou falta um outro estado essência; ou melhor, falta a essência em estado puro. A essência em estado puro é a essência neutra. Avicena vai dizer isso. Então, nem o indivíduo físico, nem o conceito lógico, mas a singularidade pura. Avicena descobre a singularidade pura. E esse ser da essência de Avicena, que não é nem um ser físico nem um ser lógico, vai ser o ser do acontecimento para o estoico – o acontecimento vai ser isso. E também vai ser o ser do Duns Scott, o ser unívoco da afirmação. Então, no fundo, o único acontecimento de todos os acontecimentos é a afirmação – esse é o grande acontecimento. Que em Nietzsche vai virar o retorno.
Participante: No nível microscópico, a ciência do século XX foi ver que era isso, não é?
É. Se você vê a física quântica, se você vê a biologia molecular. Ainda que muitos biólogos moleculares queiram ver no código genético uma estrutura ao modo de uma linguagem: tem uma série de cientistas que sempre rejeitam ou não têm coragem suficiente para ver como a realidade funciona, eles tentam sempre jogar uma forma lá, ou uma estrutura. Mas se você vê como nasceu e se desenvolveu a biologia molecular, a física quântica, ou uma coisa muito interessante – para a qual damos ainda pouco valor – chamada etologia, vamos ver que a natureza inteira funciona desse modo, ela funciona sempre com uma potência em ato se diferenciando. O que Aristóteles fez? Ele pôs o ato na forma, a causa na forma – esse foi o erro dele. A forma, no fundo, é um mero efeito, é um mero simulacro; no momento em que você cola a forma a um indiferenciado – essa diferenciação formal, orgânica, pacífica, ao selvagem indiferenciado -, você faz a forma virar uma linha abstrata. É como o raio na escuridão da noite: a noite é necessária para que o raio apareça, não há raio sem a escuridão da noite. Não há diferença, não há o diferencial, sem o fundo indiferenciado.
Aristóteles perdeu aquele olho grego dionisíaco e se ligou ao olho grego das semelhanças, das igualdades, o olho grego do homem decadente, o olho grego do beócio, do homem médio. Aristóteles perdeu o sentido dos autênticos transportes dionisíacos; porque na medida em que você entra em movimento como Dionísio, você se transmuda, você se transmuta, você vira outra coisa no movimento. A mesma coisa o fundo diferenciado e a diferenciação: a diferenciação não é uma forma que se destaca de um fundo negativo. O fundo nunca é negativo, o fundo é a condição para que a diferença se afirme por ela mesma. A diferença se diferencia do fundo, mas o fundo não se diferencia da própria diferença. Então o raio – exemplo perfeito para uma linha abstrata que não é uma forma, ela não se fecha nunca nem numa forma nem numa figura harmônica – é algo que surge no próprio fundo indiferenciado; então o fundo indiferenciado faz parte plena e positiva da natureza. Se esse fundo indiferenciado é a potência e o raio é o ato, esse ato do raio é uma força que atualiza a própria potência; então a força é imanente à própria potência.
Aristóteles colocou o ato na forma e disse que a força era um devir, um movimento imperfeito. O devir que tendia à finalidade, a uma perfeição. Tudo que está em movimento é porque é imperfeito, tudo tende à imobilidade, tudo tende a uma causa final, tudo tende ao motor imóvel de Aristóteles; o que está no fim da Metafísica de Aristóteles é um motor imóvel ou um grande plano feito de causas finais ou de formas que são as finalidades últimas de tudo que existe.
Então, a questão essencial é essa: ao pensar a diferença, pense a diferença nela mesma – só desse modo vamos ser capazes de afirmar a nossa própria diferença e as diferenças que nós encontramos. E não moralizar, não julgar: temos que sair do juízo. O que é sair do juízo? Não é dizer, simplesmente, “eu não julgo, eu não gosto de julgamento”; não é consciente a coisa. É sair da própria consciência. Ou, então: colocar a consciência a serviço de algo que é paradoxal – ao invés de ter o bom senso, tem os dois sentidos ao mesmo tempo. O senso comum é substituído por um ser unívoco. O que é o ser unívoco? Uma afirmação. Em vez de você ver a comunidade formal dos seres, você atinge a afirmação dos seres – afirmação que ressoa e que não mais é reconhecida como uma forma, mas que entra em ressonância, que entra em vibração.
Não precisamos de reconhecimento, não precisamos de memória e nem de nenhum projeto; nem de uma forma projetada no futuro, nem uma forma esquecida em nenhum passado que é preciso rememorar – mas uma disposição das forças e das potências que faz com que o sem fundo em nós suba para a superfície. O sem fundo em nós, ao subir à superfície, nos desfigura; ele faz do nosso rosto o rosto que o Francis Bacon pinta. Ele desfigura o rosto e faz com que aquela figura equilibrada e harmônica seja expressão direta de uma força ou de um afeto. É o devir mesmo – em movimento, em modificação – que está se expressando ali em ato; e esta é a perfeição da mesma da natureza, a natureza não precisa esperar para atingir a forma final, a forma acabada.
Foi aí que Aristóteles introduziu o bacilo da vingança da natureza: quando ele diz que no movimento existe um devir e em todo devir existe uma tendência à perfeição, mas ele está na própria imperfeição; o movimento é imperfeito, o devir é imperfeito, a natureza é imperfeita. Porque a natureza é devir, a natureza é uma composição de matéria e forma; e onde há essa matéria como potência e uma forma que a formaliza e que a atualiza, existe sempre uma ausência do ato final. A atualização enquanto ação ainda não é o ato – o ato já é a coisa acabada. Então a natureza de Aristóteles é essa natureza acabada.
Ora, do ponto de vista da representação, ou do poder, o que é acabado são as leis, o que é acabado são os valores estabelecidos que são indiscutíveis. Por exemplo, até acreditamos nisso, aí dizemos: “temos agora a lei do consumidor”. Aí vem lá o Fernando Henrique e diz: não, medida provisória, essa lei não vale agora para a questão da energia. É assim. O poder faz isso. Nós acreditamos que a forma é eterna, mas o poder inventa outra formas o tempo inteiro. A lei serve para submeter os que já estão submetidos; mas do ponto de vista do poder, ela é feita para ser transgredida.
Participante: Qual é a alternativa?
A alternativa é desinvestirmos isso. E em vez de irmos contra a lei, simplesmente viramos as costas para a lei. E não é virar as costas de uma forma suicidária, também; é se tornar imperceptível – deslocar o centro e se tornar um ponto de aglutinação. Aglutinação de forças, de singularidades que se conjugam em você. Esse ponto de aglutinação é a síntese que você acredita ser o eu, ou ser o indivíduo, em você e naquele momento. É a síntese da pluralidade que se compõe em você naquele instante, naquele momento, naquele lugar, naquele acontecimento.
Participante: Que você “acredita ser o eu”?
Você acredita ou faz acreditar – isso que é o modo de produzir simulacro. O simulacro é isso: você gera um efeito de semelhança com o eu, um efeito de semelhança com a identidade; você cria uma máscara que não é representação porque algo de real está se passando com você, você está realmente diferenciando a sua diferença naquele ato. Mas, ao mesmo tempo, o outro acredita que você está no mesmo lugar em que ele espera que você esteja.
Participante: Que é o do eu.
Que é o do eu.
Participante: Quer dizer, a singularidade produzindo um simulacro que tem cara de eu. É isso que você falou?
Sim, é isso. É por isso que o simulacro é demoníaco.
Participante: Isso vai render.
Vai.
Participante: Você trouxe uma coisa hoje que abalou.
Abalou as estruturas?
Participante: Porque ao longo da história do pensamento humano, uma das ideias que se tem é que a natureza é perfeita. Você veio falar que a natureza não é perfeita.
Não. Ela é perfeita no devir, ao contrário do que os metafísicos falam.
Participante: Para mim, natureza é movimento.
É movimento. Espinosa vai dizer isso: só tem uma causa – tudo é causa eficiente, tudo é movimento em Espinosa. E nos estoicos a mesma coisa, só tem causa eficiente; não tem a causa material, não tem a causa formal, não tem a causa final. Tudo é causa eficiente, ou tudo é uma potência em ato. E isso é perfeito.
Participante: É perfeito. Mas não é perfeito para a consciência. Não tem garantia de nada!
Participante: Aí você está associando perfeição com garantia, com o acabado. A noção de perfeição sempre foi essa: o acabado, o que já funcionou.
Aristóteles diz que o que é perfeito é o acabado, é o ato final, é a causa final. E por isso o ato está na forma: a matéria é completamente imperfeita. Então a natureza em Aristóteles é imperfeita. O que eu estou dizendo é o contrário: que a natureza é totalmente perfeita, é absolutamente perfeita, não falta nada para ela. Se você fica interpretando a natureza do ponto de vista da consciência, você sempre interpreta a natureza como sendo faltosa, endividada; como sendo uma coisa imperfeita, como sendo uma coisa que necessita de uma plenitude, como sendo algo que aspira o objeto que lhe falta, ela aspira a algo. Isso é o ponto de vista do devir submetido: quando você aspira a alguma coisa. Já é a transcendência: uma forma que se descola de você, um objeto que se descola de você, e você busca aquilo, você busca preencher a sua falta. Quando você entra em devir, realmente, você não tem mais algo fora de você; é por isso que ao desejo não falta nada. O desejo colado no processo: o processo já é o próprio objeto do desejo. Não é uma finalidade, não é o termo do processo, mas é o próprio processo. O processo é o objeto do próprio desejo. O movimento é o objeto. Então, estar em movimento, vigiar, estar à espreita e em vigília para que o movimento se dê de modo eterno e permanente em você, é sentir e fazer ou produzir segundo a perfeição da própria natureza. A natureza é perfeita e eterna assim, desse modo é que ela é perfeita. Fora disso, você só gera uma imagem de eternidade e de perfeição e você gera a ficção da abolição quando você morre – você pensa que algo é abolido em você.
Apesar de que aí, o você realmente existe enquanto ego, enquanto um eu, enquanto um sujeito, enquanto um espírito que tem uma identidade. É por isso que os espíritas acreditam em reencarnação – é uma forma de haver a compensação dessa ideia fictícia de fim.
Participante: E os cristãos no céu.
E os cristãos no céu. Exatamente. No fundo, todos querem a mesma coisa, que é a realidade. Só que uns acreditam que a realidade é pós-vida ou que estaria numa meta mesmo em vida; e outros – poucos – sabem que a realidade se faz em ato; que o ato está aqui, não está no fim do tempo. É por isso que o bom senso não entende: é porque o bom senso põe o bom no final; há um senso do bom, o bom está lá fora de mim. E quem não tem bom senso põe o bom no aqui e agora, o ato no aqui e agora. Esse ato já é perfeito, esse ato já é o real – ele conquista o real. Lacan diz: o real é impossível. Por que? O neurótico não atinge o real, mesmo; o real foge dele. O psicótico também.
Participante: Por que?
Porque ele já tem uma imagem que se separou do próprio processo. Ele fez do processo uma imagem. Ele perdeu o próprio modo como o real opera, como a natureza opera; então ele não sabe mais como a natureza funciona. Ele vê a natureza de fora. É como se ele assistisse ao filme em vez de ser parte do filme. Espinosa diz: o homem livre é aquele que não só se vê como parte, mas ele toma parte. É isso que é ser deus, enquanto modo.
Participante: É ser com.
Ser com. Isso. Exatamente. Espinosa diz isso. Quando você toma parte do que você já é, você se torna livre; você se sente parte, você é parte: se deus é um todo, você é parte de deus – mas essa parte de deus já traz o todo de deus em você. Você não é uma parte a que falta outra parte para fechar o todo – não falta nada, você já é uma parte que expressa o todo. Você é uma parte perfeita.
Participante: O dasein do Heidegger, que é o ser aí. Quer dizer, estou aí.
É muito sentado o ser do Heidegger. Está muito na espera, o ser do Heidegger. Ser aí é “não estou nem aí para o devir” – como se dissesse assim: eu estou aí. Ser em devir é o devir como o princípio, e o ser como condição. E o ser é pura afirmação, o ser não é mais substância. O substantivo – ou a substância – é o devir. É isso que Heidegger não entendeu. Em Heidegger o ser ainda é substantivo.
O ser tem que ser uma condição. Ariadne do Dionísio: a afirmação. Ele tem que ser afirmação. Afirmação é a condição do devir; é a necessidade do acaso, diz Nietzsche; é o Uno do Múltiplo. É isso que é o ser. O ser é uno? Sim: do múltiplo. Ele é necessário? Sim: do acaso. Ele se diz do devir, ele é o ser do devir. E não o contrário, não é o devir que se diz do ser ou o devir que está submetido ao ser. Não há mais hierarquia. O ser se gera no devir. E o que é o ser gerado no devir? É a produção de realidade, você produz realidade assim. E esse ser gerado já está, também, em devir – você gera um novo devir. Ao gerar um ser, você gera um novo devir. Ser por que? Porque ele gerou uma dobra, ele gerou uma síntese, ele gerou um polo, um centro de forças, um campo atrativo. Você gera um campo atrativo e aquilo gera um ser, gera uma unidade, digamos assim; mas aquela unidade se diz do múltiplo, se diz do devir, se diz do acaso.
Participante: O sujeito em devir é um sujeito altamente ético. Porque ele afirma a diferença do outro em plenitude. A sua e a do outro: aquela afirmação da potência, da diferença.
Participante: Tem muito sujeito aí, no que você disse.
É isso aí.
No fundo, ele afirma o que se passa, no fundo ele afirma o entre, no fundo ele afirma o relacional.
Participante: Ele afirma ou aquilo se afirma? Eu acho que isso é uma questão política super-séria.
Ele. Aqui ele perde o centro, ele perde a identidade. Esse ele é um campo, é um conjunto de forças que afirma.
Participante: Não é um sujeito que afirma.
Não, não é um sujeito.
Participante: Mas a linguagem que usamos é assim.
Participante: Ela está atravessada.
Ela está atravessada.
Participante: Mais ou menos.
Um sujeito em devir já não é mais um sujeito, ele é uma obra de arte.
Participante: Falamos isso, é claro. Estamos falando isso o tempo todo. O problema é: o que esse tipo de pensamento produz? Cada vez mais, hoje, produz pessoas que dizem assim: “eu vou afirmar; com licença, agora vocês fiquem quietos porque eu estou afirmando”. Num primeiro momento, durante alguns anos, eu pensava assim: “isso é um acidente, isso está mal entendido, as pessoas estão ouvindo errado”. Cada vez mais eu acho que não: tem algo que não é bem das palavras, não é da linguagem em si que eu estou falando. Não sei o que é. Mas tem produzido isso. E nós acabamos reproduzindo é isso mesmo. Eu acho que é inerente a isso tudo.
Sabe o que eu acho? Eu acho que tudo é merecido e tudo é justo, absolutamente merecido e justo. Quem entende assim já investe nisso, já está investindo desse jeito. Eu entendo o que você quer dizer – uma questão estratégica, política: vamos gerar clareza, gerar referências, para que as pessoas saiam da afirmação do eu, afirmação do tu, afirmação do sujeito e do objeto. Vamos gerar essa clareza – até um certo ponto. Porque há uma hora em que a coisa se passa do seguinte modo: você dizer eu, ou dizer tu, ou dizer o outro, é uma questão super-estratégica também porque você se torna mais imperceptível. Então a questão não é chegar a não dizer isso; a questão é o contrário, é chegar a dizer isso quando isso já não quer dizer absolutamente nada para você, mas está produzindo um simulacro.
Participante: A intenção pode ser essa. Mas o que eu estou me perguntando é se é isso que está sendo produzido.
Mas aí é problema do real. Eu sou absolutamente inconsequente, não estou pensando no que vai gerar. Se eu começar a esperar o que as pessoas… Em 1993 eu deixei de falar, deixei de dar aula, deixei de fazer um monte de coisas por uma espécie de uma confusão que aconteceu comigo; tinha outras coisas mais, mas esse foi um dos elementos que entrou em conjunção e que me fez parar. Eu esperava demais – de efeitos, de alunos, disso e daquilo. Hoje eu não espero absolutamente nada; eu falo e se for para a lata de lixo, não tem problema nenhum. Comigo se passou e se passa; então eu estou sendo real e está acontecendo algo comigo; eu não estou fazendo simplesmente porque eu estou esperando que o efeito se produza. O efeito está se produzindo em mim quando eu estou fazendo. Algo se passa comigo. Isso já me satisfaz, isso me dá um contentamento. Agora, o que vai ser feito disso… Geralmente é feito o pior. Se você entra numa universidade e faz esse discurso, esse discurso vai ser apropriado. Eu entendo muito bem o que você está dizendo aí, eu sei muito bem que tem escolas e escolas que se dizem deleuzianas, nietzschianos, etc.
Participante: Não é uma repetição do que você falou, de tudo que aconteceu desde a Grécia?
Participante: É. É uma reapropriação.
Por que? Porque o poder faz isso. E principalmente o sistema capitalista – ele alarga os limites dele.
Participante: Você acha que esses homens, quando disseram essas coisas, tinham essa intenção ou achavam que ia acontecer isso? Que ia ser usado? Platão, por exemplo.
Eles queriam que fosse usado, eles tinham a intenção de que fosse usado. Platão chegou a querer educar o Dionísio, ou Dinis, de Siracusa, na Sicília; era um tirano com quem ele correu, inclusive risco de vida: ele tentou ir lá fazer de um político um rei filósofo. Ele correu risco de vida para isso.