Luiz Fuganti
Indicações de leitura para esta aula:
Não relacionei na bibliografia, naquela lista inicial para vocês, um livro chamado Mito e Tragédia na Grécia Antiga. Este livro saiu atualmente, há não sei quantos anos, num único volume. Acho que ele está inteiro num único volume pela Editora Perspectiva. Eu o tenho numa edição da Editora Livraria Duas Cidades e a outra edição, do volume II, é da Editora Brasiliense. Mas pela Perspectiva saiu então a obra inteira. Aqui existem textos preciosos, muito interessantes.
Um deles chama Édipo sem complexo. Para quem está acostumado a ter a visão freudiana do Édipo, é uma desmontagem fantástica do Édipo. Assim como o texto de Foucault que citamos na aula passada: é a segunda conferência de A Verdade e As Formas Jurídicas, onde Foucault desmonta o Édipo do ponto de vista da soberania, do ponto de vista do saber e do poder e não do ponto de vista de um Édipo narrando a natureza do desejo.
E existe um outro texto chamado Esboços de Vontade na Tragédia Grega, que também é uma obra-prima. É um texto clássico, já que desmonta a ideia de que existe livre arbítrio ou vontade livre entre os gregos. Mesmo em Aristóteles, onde já há um desenvolvimento elaborado sobre a psicologia humana e o modo moral e ético de ser, não há livre escolha. Então este texto é essencial para ser lido.
Em Os Gregos e o Irracional do Dodds há o capítulo 5 que narra As Origens do Puritanismo na Grécia. Articula com o xamanismo que vem do Norte. Existe um encontro do xamanismo com algumas ideias religiosas gregas, algumas seitas religiosas gregas, que vai gerar uma ideia que o ocidente acha que é natural e que no fundo foi uma invenção, foi uma ficção, foi um mau encontro, nós diríamos, de um xamanismo siberiano com alguns ascetas gregos, alguns theios anér, alguns homens divinos gregos, de que vamos falar alguma coisa hoje.
Não sei se apresentei a vocês numa dessas aulas Apocalipse e O Homem que Morreu, de D.H. Lawrence. São dois textos fantásticos. Um é uma guerra que D. H. Lawrence trava contra João de Patmos e o outro é sobre Cristo que ressuscita – ressuscita de modo a abandonar o seu povo, as suas antigas ideias e se torna um homem estético, um homem artista. É uma obra fantástica de D. H. Lawrence.
Prometi a algumas pessoas iniciar a aula com a leitura de um poema do D. H. Lawrence.
Somos transmissores
Somos, ao viver, transmissores de vida.
Quando deixamos de transmitir vida, ela a vida também deixa de fluir em nós.
Parte do mistério do sexo, isto é um fluxo à frente.
Gente assexuada não transmite nada.
Mas se chegamos, trabalhando, a transmitir vida ao trabalho,
A vida, ainda mais vida, se lança em nós compensando, se mostrando disposta a tudo E pelos dias que vêm nos encrespamos de vida.
Mesmo que seja uma mulher fazendo um simples pudim, ou um homem fazendo um tamborete, se a vida entrar nesse pudim ele é bom, bom é o tamborete, contente fica a mulher, com a vida nova que a encrespa, contente fica esse homem.
Dê que também lhe será dado
É ainda a verdade da vida.
Mas não é assim tão fácil. Dar vida não quer dizer passá-la adiante a algum bobo indigno, nem deixar que os mortos-vivos te suguem,
Quer dizer acender a qualidade da vida onde ela não se encontrava, mesmo que seja apenas na brancura de um lenço lavado.
Estamos habituados a algumas ideias, não só do ponto de vista pessoal, mas o sentido todo de uma época que nos envolve gera em nós um certo conforto, uma certa ideia de que estamos no mesmo barco, uma certa noção de que há um fundamento comum, há um solo comum para as nossas vidas. O movimento que atravessa os nossos corpos, o jeito como o desejo se manifesta em nós, o modo como nós articulamos a nossa vontade com os nossos atos, as nossas responsabilidades, o que pensamos em relação ao que é conhecer, o que pensamos em relação ao que é o mundo, o que pensamos em relação ao que é o sujeito, o que pensamos ser esse algo que nos envolve (sendo nós crentes ou não crentes: mesmo os ateus são crentes). Há um sentido de época que nos envolve de tal maneira que, através da nossa faculdade do senso comum e do bom senso, acreditamos estar no mesmo mundo, estar numa mesma sociedade, enxergar as mesmas coisas que os outros enxergam, agir do mesmo modo que os outros agem. Ou, ainda que ajamos de uma maneira diversa, o que é diverso é apenas acidental, mas substancialmente nós somos o mesmo. Temos essa crença e essa segurança. Isso geralmente é dado pela ilusão de consciência.
Mesmo para apaziguar essa angústia que envolveria um corpo e um pensamento que não tivessem nenhum solo fixo, a consciência inventa algo parecido. O que quero dizer é o seguinte: achamos que o sujeito em nós é algo natural; que o objeto no mundo também é algo natural; e que a relação entre sujeito e objeto é uma relação de representação, é uma relação de adequação, é uma relação de preenchimento de uma forma prévia que o sujeito elabora para si ou que a sociedade, através dos sujeitos, elabora para si e os objetos vêm preencher essas formas de representação. Assim ficamos sempre prisioneiros do que Foucault chama de saber ou do que Foucault chama de estratos. Ou do que Gilles Deleuze chama de regimes de signo.
Nessa obra A verdade e as formas jurídicas, Foucault narra o nascimento do inquérito, que é um modelo jurídico que a cidade grega criou no século VI e V. E esse modelo revela uma outra maneira de se relacionar com a palavra ou com a linguagem, uma outra maneira de se relacionar com o tempo, uma outra maneira de se relacionar com o espaço e uma outra maneira de se relacionar com o ilícito ou com o dano ou com o prejudicial, com o nocivo. O problema do Mal numa sociedade é resolvido sempre de uma determinada maneira. Os gregos resolveram o problema do Mal inventando os tribunais, inventando uma maneira de julgar ou de avaliar os crimes a partir de uma dialética, a partir de uma palavra que representa os acontecimentos e que reapresenta os acontecimentos passados num presente. Esse modelo do inquérito é um modelo investigativo que geraria uma ideia de objeto a ser investigado. Então você tem um objeto de saber ou de investigação que nasce no momento em que um crime ou um delito é cometido. Esse objeto a ser reapresentado em todas as suas nuances, tal qual ele se efetuou no tempo passado, é o modelo do objeto do conhecimento ocidental. É um objeto que está sempre num tempo que não o tempo do acontecimento. O tempo do acontecimento é um tempo em devir. Ora, esse tempo esse pensamento não capta.
Do mesmo modo existe uma outra ideia que aparece nesse modelo do inquérito: que há um terceiro no meio de dois. Nas provas arcaicas da produção da verdade você tinha uma relação direta na prova de forças, onde a prova de forças era suficiente para dizer quem tinha razão e não quem estava com a verdade. A questão da Alétheia, ou da verdade, numa prova jurídica, remetia sempre a quem tinha razão. E o conflito, a contenda era resolvida numa luta ou numa prova de forças – segundo regras a serem observadas, mas o efeito da luta tinha uma eficácia imediata na maneira de atribuir a razão a alguém. Era uma relação direta. E o juiz, ou as testemunhas, os árbitros, que se mantinham vigilantes num processo dessa natureza, estavam ali apenas com uma função de guardar o bom andamento da prova. Mas não cabia ao juiz emitir sentença, a própria prova já era uma produção direta da verdade. Então a verdade é produzida numa relação de forças.
No caso da sociedade grega, com o nascimento do inquérito você tem uma entidade, uma instituição que não é mais uma parte do processo, mas é a própria sociedade que se representa numa instância terceira que se põe no meio dos que estão envolvidos no litígio. Essa instância, que é a instância de um tribunal onde o juiz ganha corpo, passa a representar agora os interesses da comunidade e não mais os interesses particulares de uma ou de outra família. E a questão fundamental nesse modelo é resolver a vingança de sangue. A vingança de sangue é o elemento mais desestabilizador de uma sociedade como a sociedade grega e os tribunais e o inquérito emergem para resolver esse tipo de problema. A vingança agora é uma tarefa do Estado, é uma tarefa pública e não mais algo a ser empreendido por aquele que foi atingido ou por aqueles que se sentem parte disso. Então isso gera uma ideia de responsabilidade, de culpa, de falta, de dívida, de intenção ou não intenção, de vontade de fazer tal ato ou não, algo involuntário ou voluntário. Então você tem toda uma gama de traços psíquicos que nós, do nosso ponto de vista, da nossa posição histórica, olhamos retrospectivamente no povo grego e acreditamos que eles estão inventando ideias como a ideia de vontade ou de livre arbítrio, por exemplo.
De fato eles estão inventando uma nova máquina, um novo tipo de saber, um novo tipo de poder, uma nova maneira de se relacionar e de gerir a vida privada e a vida pública. Mas o modo como eles fazem ainda é um modo imanente, não é um modo a partir de coisas prontas, de ideias prontas. Eles estão inventando literalmente isto. Na medida em que eles estão inventando, eles estão num meio problemático, eles estão gerindo e fazendo nascer modos de resolver esses problemas que os envolvem, que os atravessam, a partir da maneira como eles apreendem o real neste mesmo momento. Ou seja, eles estão em acontecimento, eles estão criando algo que é absolutamente inédito. Se eles estão criando algo de inédito e eles estão resolvendo uma problemática de relação em sociedade, inventando regras para que essa sociedade não se autodestrua, para que essa sociedade não se desestabilize, não se desestruture, não se desequilibre; se ao mesmo tempo essas regras devem servir ao seu crescimento, ao seu desenvolvimento, à sua expansão, as regras que eles estão inventando são as regras que melhor se adéquam a aquele modo que os atravessa. Ou seja, eles não estão partindo de ideias prontas, de um modelo moral ou de um modelo de códigos, ou de um modelo metafísico que eles captariam através de alguma alma privilegiada, de alguns sábios, de alguns sacerdotes, de alguns xamãs, de alguns elementos privilegiados dessa sociedade onde essa alma atingiria um saber tal e revelaria a essa sociedade o modo de se comportar em sociedade.
Não é nada disso. Eles estão criando, a partir da experiência deles, uma maneira de resolver essas relações problemáticas.
Se o inquérito e o modelo jurídico que eles criam é necessário a essa época, é porque não tem mais uma justiça divina que produza os efeitos de verdade necessários à paz e à ordem naquela mesma sociedade. Eles precisam criar uma outra forma porque não tem mais aquele velho mundo da soberania, do Ánax micênico, onde as questões eram resolvidas a partir do palácio ou a partir dos reis locais. Eles agora se veem como iguais, como homens livres, como semelhantes. E através de um encontro que eles fazem, com uma maneira de perceber o que é comum no espaço e no tempo – no espaço da ágora e no tempo do discurso -, eles encontram objetivamente regras que não são necessárias estar dentro dos homens e nem num plano metafísico. Essas regras emergem a partir dos conflitos. Então eles estão inventando as regras no próprio encontro, na própria problematização.
Não vem de dentro de uma subjetividade pronta, nem de fora de uma objetividade ideal. As regras estão nascendo ali, eles estão criando essas regras.
Participante: Isso é a emergência de uma ética?
É a emergência de uma ética. Exatamente. A emergência de uma ética, muito mais do que de uma moral. Porque a ética lida com a maneira como a potência se efetua. E a moral se liga mais ao dever, a moral deve algo de acordo com uma forma que estaria fora dela. Os gregos não têm forma pronta para obedecer, eles estão criando. Então o objeto de análise, de avaliação, de interpretação, de sentido que os gregos estão trabalhando e problematizando, esse objeto não é uma regra universal, não é uma forma moral, mas é algo que emerge no próprio encontro das forças. Então eles criam regras de passagem para fazer com que aquela sociedade ganhe coesão e consistência. E essas regras servem para deixar passar o que faz expandir e o que faz crescer, e barrar o que prejudica e o que destrói essa sociedade. Ou seja, é um campo seletivo criado a partir de uma problematização que não tem ainda nenhuma interioridade subjetiva. Não há interioridade subjetiva aqui. E a objetividade ainda não é a objetividade ideal.
Participante: É quase como a fenomenologia? “É o que é”?
É o que é na relação. Não é “é o que é” antes ou depois: é na relação, é no acontecimento.
Evidentemente essas regras acabam sendo extraídas do melhor modo de se relacionar – nos debates públicos que são feitos na ágora, nos discursos, nas teorias, nas problematizações que os especialistas, que os sofistas, que os legisladores fazem em praças públicas – e essas extrações de regras se tornam um conjunto de leis e se forma uma constituição. Este conjunto de leis, esses códigos não pairam na sociedade, acima dela, como uma estrutura milagrosa vinda de fora que diria, a qualquer custo, o que o indivíduo deve ou não fazer. Na medida em que geram isso, que criam isso, que são absolutamente contemporâneos da sua própria invenção, os gregos problematizam o modo como eles se relacionam com o mundo. Então há uma maneira de se relacionar com o próprio corpo, de se relacionar com a família, de se relacionar com a cidade, de se relacionar com o saber e com o discurso, de se relacionar com a natureza, com a técnica, com a metalurgia, com a economia, com a moeda, etc., que é elaborada a partir da experiência que o indivíduo tem na relação.
Mas a noção de indivíduo ainda é uma noção vaga para o homem grego. O homem grego ainda não se percebe inteiramente como um indivíduo e muito menos como uma pessoa, um sujeito moral ou um sujeito de conhecimento que teria um livre arbítrio, que teria uma responsabilidade, que teria uma maneira de atuar no mundo segundo a escolha entre o Bem e o Mal, o verdadeiro e o errado. Não tem isso ainda. No momento em que emerge a cidade grega, no século VI e no século V, até ainda o século IV, o indivíduo não se sente ainda como um átomo fechado nele mesmo. A tragédia revela muito bem isso, as obras trágicas ou esse gênero literário chamado tragédia revela muito bem isso: eles ainda têm uma relação muito próxima com os deuses. Então a noção de responsabilidade ou de agente como causa dos seus próprios atos é uma noção que não cabe a eles na medida em que o agente é sempre uma possessão.
Algo se apodera do indivíduo. Pode ser um deus, um demônio, uma força estranha, algo que se apodera e coage, fazendo com que o indivíduo produza tal ou tal ação. Ação benéfica, ação maléfica, não importa que tipo de ação seja, mas há sempre uma coação, do ponto de vista de um plano que ultrapassa o próprio indivíduo. Então existe um plano grego que, ao mesmo tempo que é um plano de imanência, mistura-se com um passado mítico e que atravessa o indivíduo na hora de ele agir. Então o movimento que atravessa o corpo, o indivíduo, o ato gerado a partir de algum estímulo, de alguma ação ou reação exterior, ou de algo que veio do mundo invisível, nunca se atribui a um sujeito ou a uma vontade que seria plenamente responsabilizada naqueles atos. Essa vontade só vai emergir com o próprio cristianismo. Nem no helenismo tardio nem no começo da era cristã essa noção de vontade estará formada no ocidente.
Participante: É por isso que vem aquela coisa do sujeito pagar pela família, receber uma maldição?
Sem dúvida. Nós vamos ter que abrir agora esta linha, essa linha que leva ao nascimento do puritanismo, para que entendamos como é que a dívida, como é que a culpa, como é que o castigo após a morte ou a herança de uma dívida dos nossos antepassados, como é que isso atravessa o indivíduo e que tipo de atitude ele tomaria nas mais variadas circunstâncias.
Participante: Você fala que nessa época ainda não havia a ideia de sujeito moral. Mas por que então ele se preocupava com o domínio do corpo, dos desejos, das paixões? Aquela ideia que você colocou na aula anterior, que fazia com que eles tivessem uma espécie de controle sobre o próprio corpo, sentimentos? Esse indivíduo que se constituiu logo depois desse período, século IV: dá para falar que esse indivíduo é sinônimo do começo da constituição de um sujeito?
Não, não dá. É por isso que eu estou fazendo a distinção clara: não há sujeito moral entre os gregos no sentido em que nós entendemos o sujeito. Não há uma vontade livre, não há livre arbítrio, o grego age sempre por necessidade. A única escolha que você pode chamar de escolha, que eles têm, é a escolha de aderir àquela necessidade. Geralmente é o que ocorre com herói trágico: uma vez sabendo que aquilo é fatal, ele adere a aquela necessidade. Os estoicos gregos vão inventar uma noção de querer o acontecimento que vem muito desse tipo de atitude: querer o acontecimento uma vez que necessariamente ele se efetua. É o que o Nietzsche vai chamar mais tarde de amor fati.
Então, na época grega clássica, nos séculos VI e V, você tem uma coação dos dois lados: no plano dos deuses que se apoderam dos homens e, no caso dos próprios homens se sentirem causa de uma ação, essa causa é necessária. Até em Aristóteles, que já tem uma análise elaborada da psiquê humana, já numa época tardia: Aristóteles vai dizer que a deliberação e a escolha são simplesmente o modo como você regula aquilo que é necessário se efetuar. Aristóteles lida diretamente com a noção de necessidade e não de livre arbítrio, mesmo que ele acredite numa escolha racional. A escolha racional é apenas o melhor modo de efetuar algo que necessariamente vai se efetuar. Então aquilo é necessário.
Então na época clássica você tem um sentimento de anánkê, de necessidade, que justifica as suas ações, os seus atos, ou a partir de um plano divino, um deus, um daímôn que se apodera de você e faz com que você aja daquele modo; ou simplesmente, pelo modo que você é constituído, aquela ação necessariamente tem que se dar. Então não é uma desculpa, não é uma justificação de uma falta, mas é a ausência de culpa que existe nesse mundo grego. O que não tem aqui é má consciência, o que não tem aqui é uma vontade culpada, o que não tem aqui é uma dívida espiritual infinita, o que não tem aqui é essa ficção que o ocidente inventou para si e que depois o cristianismo desenvolveu de modo fantástico e que veio a servir como uma luva para o sistema capitalista, a ideia de uma hermenêutica do desejo. Não tem hermenêutica de desejo aqui porque a vontade ou porque esse solo subjetivo simplesmente não existe, ele é uma ficção. O que existe ainda neste mundo grego são forças que atravessam o indivíduo; ainda que ele se sinta como um agente ou como indivíduo ou como causa de ações, ele sabe que ele está inteiramente atravessado por forças divinas e humanas. Essas forças divinas e humanas tornam a sua ação necessária. Então não há ainda a ideia de um átomo ou de um sujeito que tenha livre arbítrio, segundo uma distância entre o agente e o ato. Ainda não há isso. O que você tem é o ato diretamente colado no agente. O agente se apodera de você e o agente já é ato. O agente é uma potência em ato. Então é um mundo eficaz, é um mundo de produção, não é um mundo de representação.
Como o mundo grego vai receber uma gota de sangue estranho e gerar as condições ou alguns esboços que vão desembocar numa ideia de alma descolada do corpo, de uma ideia de alma que seria superior ao corpo e de uma ideia de alma que é tanto mais livre quanto mais ela nega ou se vê livre do corpo, das paixões e do desejo? Uma ideia de alma que é tanto mais livre e ativa quanto mais o corpo é passivo e submetido? Que ficção é essa, que corpo estranho é esse que começa a atravessar a sociedade grega a partir de certos movimentos que emergem junto com os movimentos ascéticos das seitas religiosas, as seitas que se isolam do corpo público da cidade? E vão buscar uma salvação individual, não vão mais investir naquele conjunto coletivo, naquele modo comum de ser, existir, agir, pensar, mas vão dizer que a vida estaria salva a partir de uma recusa? Quer dizer, você cria a condição de salvação da vida a partir de uma recusa, a partir de uma renúncia, a partir de um ascetismo. Quando você começa a se separar do corpo social, quando você se torna um iniciado.
Existem seitas que atravessam a Grécia – as mais famosas são as seitas pitagóricas e as seitas órficas – que vão chamar ou convidar o indivíduo para ser salvo desse modo, uma vez que a sociedade ou a cidade grega é extremamente conflituosa. Ela é uma sociedade instável, ela está criando para si uma maneira nova. E nessa instabilidade você tem um processo de insegurança ou de problematização negativa, ou que se espelha negativamente em certos indivíduos que buscam, então, uma salvação individual.
Os gregos têm uma ideia de alma – aquilo que eles chamam de psychê – completamente diferente do que chamamos de psiquê. Desde a mais remota época homérica, desde a Idade Média grega ou anterior a isso inclusive, atravessando a cidade grega inteira, atravessando a época clássica, a psychê grega nunca é uma alma que se separa do corpo, nunca é um espírito que se separa do corpo. A psychê é um sopro vital, é um pneuma. Os estoicos vão resgatar isso depois, também. A alma é também um corpo. A psychê e o soma, que é o corpo, não têm naturezas estranhas, eles formam um composto perfeito. E a psychê é o espírito do soma, a psychê é o espírito do corpo. A psychê é corpo, é desejo, é coragem, é emoção, é afeto. Ela é tudo aquilo que os gregos chamam de thymós. A thymé grega que são os afetos, as emoções, as sensações, a percepção, a vida mesmo, é psychê. O soma também, o corpo também. A ponto de Édipo, na tragédia, se referir a ele mesmo, muitas vezes, como soma e outras vezes como psychê. A psychê de Édipo ou o soma de Édipo, ambos são o eu de Édipo.
Participante: É uma diferença de grau e não de natureza, não é?
Sim, seria uma diferença de grau, neste sentido. A natureza é a mesma para o corpo e para a psychê.
Participante: E por que eles criam esses dois conceitos?
Aí teríamos que problematizar. Eu não sei. Existem vários textos que analisam isso. O que podemos deduzir é o seguinte: você tem as coisas imediatamente sensíveis e palpáveis que são as coisas mais sólidas, digamos assim, e dá a ideia de soma ou de corpo. E para a coisa fluida, imperceptível, que você não capta através dos sentidos, você tem outro nome que seria psychê. É uma distinção, mas é uma distinção confusa. Essa distinção nós fazemos retrospectivamente. Mas o modo como o grego sente isso é diferente.
Participante: Não tem algo a ver com a morte, a imortalidade?
Exatamente. Então agora vamos começar a entrar nessa história. Os gregos acreditam na sobrevivência ou na vida após a morte. Mas o que vai para o Hades ora é a psychê ora é o soma, tanto faz. Ainda que Homero veja como uma sombra, como uma psychê. Mas existem várias outras passagens de outros poetas, em outros textos, onde o soma vai para o Hades também. A ideia de sobrevivência então é uma ideia comum aos gregos. Não é ainda esse elemento estranho que está entrando na Grécia.
A outra ideia que não é estranha, que é uma ideia comum, é a ideia de recompensa e castigo após a morte. Existe essa ideia de recompensa e castigo, existe a ideia da herança do castigo também. Mas essa ideia explica muito bem porque os malvados se dão bem na Terra e vão ser punidos após a morte, mas não explica muito bem porque os bons sofrem, qual é a recompensa na outra vida. Há uma defasagem nessa economia da eternidade e da justiça que é como que uma lacuna que vai deixar entrar esse elemento estranho.
Que elemento estranho é esse? Num certo momento, em algumas obras literárias, você começa a ver coisas do tipo: quando o corpo dorme, a alma se libera do corpo e viaja. Ou coisas como: o sonho, no sono, é o que mais se aproxima da morte e no sonho a alma é livre, enquanto o corpo dorme. Então se supõe que na morte a alma vai ser ainda mais livre, vai ser totalmente livre. E essa ideia já tem no seu modelo intrínseco a noção de ação ou de atividade inversamente proporcional ao corpo: quando a alma é ativa o corpo é passivo, quando o corpo é ativo a alma é passiva.
Existem alguns movimentos da sociedade grega em direção ao norte, em direção à Trácia por exemplo, onde uma parte do povo grego e uma parte dos sábios gregos vão entrar em contato com ideias que vêm do norte, ideias que vêm da Sibéria segundo a análise que faz Dodds no capítulo 5 de Os gregos e o irracional. Essas ideias que vêm do norte revelam um tipo de homem sagrado, um tipo de homem divino, que é algo parecido com o que os gregos chamam de theios anér, esses sábios sacerdotes que ajudam a cidade grega a criar as suas regras, os seus rituais de purificação, eliminar os males que atravessam essa sociedade. Esses mesmos sábios – como Ábaris, por exemplo –, em viagens que fazem à Trácia ou à Cítia, encontram xamãs que têm uma experiência muito singular: eles fazem com que a sua alma se separe do corpo. A alma do xamã viaja. E o xamã siberiano, existente até hoje, é um homem com uma psychê instável – ele tem uma alma instável, digamos assim – e ao mesmo tempo ele recebe um chamado religioso. Esse chamado o conduz para um isolamento, para práticas de abstinência onde ele aprende o exercício de mobilidade da alma. A alma dele começa a separar do corpo. Então há uma prática xamã onde esse exercício é efetuado e o xamã se torna aquele capaz de ubiquidade, por exemplo – de estar em dois lugares ao mesmo tempo. A alma dele viaja. Geralmente isso se dá em sonho. É mais ou menos o que Don Juan chama de corpo sonhador. Mas até aí não há problema nenhum, isso é uma potência, isso é um poder. O xamã também acredita que os ancestrais habitam o corpo dele. Mas os ancestrais habitam o corpo dele para aumentar a potência dele, aumentar a sabedoria dele, aumentar o modo que é esse corpo e esse pensamento que o constitui.
Então a maneira como é feita essa “transmigração das almas” ou essa reencarnação de almas é sempre o modo da possessão. Os ancestrais se apossam daquele xamã porque ele tem um corpo receptivo, ele tem uma alma receptiva, e falam através dele. Assim Pitágoras, por exemplo, diz que viveu muitas vidas; viveu 10, 12, 15 gerações. Isso é uma prática mundial. O que não é mundial é o que vamos ver agora. O que os gregos ascetas inventaram, mais propriamente Platão inventou, a partir de Sócrates, é uma coisa que não é mundial, não é universal, mas é o que estamos chamando aqui de mau encontro.
Então você tem uma alma que se separa do corpo. E ela se separa tanto mais do corpo quanto mais você desligar o corpo das coisas terrenas. Então há um ascetismo embutido aí, mas não chega a ser um ascetismo de julgamento negativo contra o corpo, não há um julgamento negativo contra o corpo porque é para melhor voltar e melhor ativar o corpo. É uma prática de aumento de potência. Quando alguns sacerdotes gregos, alguns homens de deus, alguns theios anér gregos se encontram com essas ideias, vai começar a mudar a cor dessas ideias, elas vão adquirir novas nuances tais como “o corpo é a prisão da alma”. O corpo passa a ser visto como uma prisão da alma.
Por quê? Porque essa alma que se separa do corpo tem uma origem divina, ela não é mais um espírito de corpo. Essa alma vem de fora. Então essa experiência de separação da alma com o corpo dá a ilusão de que a alma veio de outro lugar, de que a alma tem uma origem divina.
Participante: Aí são duas naturezas.
Aí você cinde a natureza, você estabelece um corte e há duas naturezas, há uma diferença de natureza entre alma e corpo. Essa alma que era espírito de corpo vai ser o segundo aspecto da alma socrática, platônica e aristotélica. Platão vai dizer que a alma tem três partes: a parte do desejo mundano, a concupiscência, a parte material, digamos assim; depois vai ter uma parte guerreira, a parte do thymós que, no fundo, é essa psychê que é espírito de corpo; e depois vai ter a alma intelectual, vai ter a alma racional, vai ter a parte da alma que tem origem divina.
Participante: Pitágoras teve contato com essas seitas siberianas?
Sem dúvida. Existem vários theios anér gregos que fazem isso. Tem Epimênides, Ábaris, Pitágoras, uma série deles.
Então o que ocorre? No momento em que há esse encontro, esses homens ascetas dessas seitas, dessas comunidades sectárias, interpretam aquele que é capaz de se separar do seu corpo como um eu profundo, um eu que estaria aquém e além da própria psychê que atravessa aquele corpo. Então haveria uma natureza divina da alma e essa natureza divina é que agora, ao retornar da viagem, deve comandar o corpo.
Participante: Ela é imortal, não é?
Ela é imortal. Ela deve submeter o corpo, ela deve se relacionar com o corpo de modo tal que ela fique cada vez mais livre desse corpo. Porque o corpo – e aí a ideia mais terrível – não contente com ser prisão da alma, vira o túmulo da alma. E há algo de suicidário na morte de Sócrates, há algo de depressivo nessa morte, há algo de renúncia absoluta do corpo como túmulo da alma. Ora, no momento em que você tem uma parte da cidade grega exercendo o domínio de si – exercendo virtudes como a temperança, como a sophrosyne, como a enkrateia -, essa tendência de domínio de si, de contenção, de lapidação das atitudes, dos gestos, do comportamento enfim do cidadão na ágora ou em sociedade, você tem também esse movimento de seitas individuais que exercem um ascetismo ferrenho se relacionando com a noção de sophrosyne agora como sendo algo a recusar. A sophrosyne ou a temperança, na medida em que é comandada por esse eu profundo, vai estabelecer um ideal de renúncia do corpo, um ideal absolutamente ascético, um ideal de recusa do desejo, das paixões, de tudo que é corpóreo, de tudo que é da natureza, de tudo que é somático e de tudo que é psíquico como espírito de corpo.
Participante: A ânima?
Ânima já é um termo em latim. Grego é psychê. Mas a psychê é um espírito de corpo, é um pneuma, é uma ânima mesmo – que anima. Exatamente. Há uma ânima vegetal e há uma ânima animal, digamos assim. E agora existe essa ânima divina, esse eu profundo que começa a interagir nessa sociedade grega. A ponto tal que num certo momento de decadência da cidade grega você vai ter o homem que vai inventar uma nova direção filosófica, racional, de acesso à verdade. A verdade não estará mais na problematização das relações em sociedade, a verdade não estará mais no modo como você exerce a sua potência, no modo como você se torna um animal político; no modo como você se torna um animal do óikos, um animal familiar; no modo como você exerce a sua dietética. A verdade não estará mais problematizando o uso, o comportamento, as funções, as relações de superfície.
Os pré-socráticos, dos quais nós não falamos ainda, vão inventar uma direção para o pensamento e para o desejo. A direção que os pré-socráticos inventam é uma direção de natureza, o que os gregos chamam de phýsis. A phýsis é aquilo que subjaz, aquilo que está numa profundidade.
Então a profundidade do corpo ou da natureza ou até da psychê é o que eles chamam de phýsis. A phýsis é o princípio, é a origem e é o modo como a natureza funciona. A phýsis é princípio e regulação, é princípio e ordem. A phýsis é ser e devir. A phýsis é algo que se manifesta no corpo e na alma simultaneamente.
Os pensadores pré-socráticos têm essa direção de pensamento, eles pensam a phýsis. O objeto do pensamento e o objeto do desejo ou do corpo é o mesmo, é a phýsis, é a natureza profunda. É isso que dá unidade entre pensamento e corpo para os pré-socráticos. Os sofistas, os políticos, os sábios que atuam na cidade, os legisladores, o povo, enfim, se relaciona com a sua psychê e o seu soma na cidade em nível de problematização de relação. Então eles estão num plano de uma superfície, digamos assim. Já que estamos falando em orientação, em direção do pensamento e do desejo, os pré-socráticos se ligam a uma profundidade. Os homens comuns ou os sofistas ou os legisladores se ligam numa superfície, ou seja, numa problematização de acontecimento; a relação ou o acontecimento é aquilo que se dá numa superfície, é a expressão do ser, é a expressão do corpo – e a expressão se dá sempre numa relação, ela se dá sempre num encontro, é isso que chamamos de superfície. Então existe um plano de atividade e de pensamento que se exerce na superfície das coisas.
Mas esses homens divinos, esses theios anér, esses ascetas vão inventar uma nova direção; eles vão dizer que a verdade e a salvação não está nem na profundidade da natureza nem no modo de se relacionar em sociedade, nem na problematização das relações na ágora. A salvação, a liberdade e a verdade, a realidade absoluta estaria fora do corpo ou da natureza, fora da phýsis e fora da superfície. Estaria num outro mundo, estaria num mundo divino – que agora se separou da terra.
Com a queda da soberania micênica e com o nascimento da cidade grega na época clássica, você tem um distanciamento cada vez maior entre o sagrado e o profano. O divino vai se afastando cada vez mais. Então há uma tendência de afastamento entre a terra e o céu, entre o humano e o divino. E esses homens divinos, esses homens de deus, esses sacerdotes, dizem que é necessário exercer uma prática, uma askêsis, um ascetismo, um ideal de renúncia do corpo, do sexo, dos alimentos, até do sono muitas vezes, para que melhor você adquira a faculdade de viajar com a alma e retornar para o seu lugar de origem. É nesse momento em que um encontro fundamental vai se dar.
Eu não me lembro mais se é o Dodds ou se é o Joly no Le Renversement Platonicien que fala que Sócrates é o primeiro filósofo na acepção metafísica ocidental e o último xamã. Sócrates é herdeiro dessas seitas ascéticas, é herdeiro desse ideal de renúncia e vai inventar um objeto da verdade que estaria fora do alcance dos homens comuns. E ele vai se divertir muito com os sofistas, por exemplo, inventando um método dialético que leva sempre a uma aporia. Ele estabelece um diálogo com o sofista e vai encurralando o sofista na medida em que aquilo que o sofista acredita ser a verdade é apenas um acidente da verdade socrática, é apenas um exemplo mundano da verdade socrática. Porque a verdade socrática não está no mundo, a verdade socrática é uma ideia geral, é um objeto geral, é um objeto universal. Sócrates não está preocupado em saber se a verdadeira cadeira é alguma cadeira que está no mundo; a verdadeira cadeira é uma cadeira universal que não se encontra no mundo. E toda a cadeira que você encontra no mundo é uma particularização dessa ideia universal ou geral de cadeira. A ideia de cadeira universal é a essência ou o modelo ou o ser mesmo das cadeiras existentes na terra.
Participante: Tem vários Sócrates hoje. Na maiêutica socrática você encontra muito isso: colocar um conhecimento enigmático. Ele é um bom cômico, ele se diverte muito.
Ele é um ironista. É uma má maneira de se divertir, é um riso amarelo. Ele é irônico. Porque na verdade ele diz “vocês falam da verdade, do que é o exercício político, do que é o bom relacionamento em sociedade, mas vocês não sabem onde está a verdade, a verdade está num lugar a que vocês não têm acesso. E para vocês terem acesso a essa verdade é necessário um modo de viver muito distinto do vosso modo.
Participante: E o “conhece-te a ti mesmo”? Falam que Sócrates é alguém que buscava fazer com que o outro tomasse contato com a sua verdade, buscando, claro, uma verdade universal. Mas não há um certo paradoxo, então? “Conhece-te a ti mesmo” e essa ideia outra.
Esse “si mesmo” de Sócrates é o eu divino. Então é por isso que, se você atinge esse eu divino, aí sim você se conheceu de fato e você pode exercer a sabedoria ou até o domínio sobre os outros. Só a partir do momento em que você atinge esse eu divino. E para atingir o eu divino é necessário estabelecer um ideal de renúncia, você tem que ser ascético e moral, você tem que renunciar, recusar os prazeres do corpo ou o modo de se relacionar em sociedade que valoriza o corpo, que valoriza o poder, que valoriza as potências da alma e do corpo. Você tem que inventar uma maneira de se libertar daquilo que embaça essa alma divina. Há um embaçamento, há uma obstrução, há um esquecimento fundamental causado pelo corpo. E essa ideia de esquecimento depois Nietzsche vai retomar com uma ideia revolucionaríssima: a ideia de esquecimento é fundamental para que você se torne novamente ativo. Saber esquecer é uma questão de saúde, é um grande saúde quem esquece. Com Sócrates começa uma ideia negativa em relação a esquecimento.
E depois fundamentalmente Platão. Porque Platão é que vai fundar o sistema da memória como uma viagem, um retorno à origem. E a origem é essa alma divina, é esse eu divino.
Então, situando novamente: o ideal de transmigração das almas, que atravessa as seitas pitagóricas, que atravessa as seitas órficas, que atravessa essas comunidades sectárias, vai passar a designar uma outra maneira de realização da justiça. A justiça vai ser realizada agora segundo o grau de encarnação da alma. Você tem um corpo de um animal, por exemplo você tem um corpo de um cão. O corpo de um cão pode ser o modo como aquela alma está sendo punida naquele momento. O corpo de um cão talvez seja uma prisão mais dolorosa do que o corpo de um homem ou do que o corpo de um pássaro. Então vão haver graus de encarnação e todo o sistema de encarnação ou de transmigração das almas vai ser uma visão do modo como o homem vê o mundo, vê a natureza, vê o corpo. O mundo, a natureza e o corpo são signos de injustiça, são signos de uma dívida, são signos de uma culpabilidade. E o exercício ascético, a askêsis, vai ser o modo de ascender até sair do ciclo das reencarnações: no momento em que você evolui ao máximo você ultrapassa esse ciclo das reencarnações e você sai do círculo vicioso. Então olha só: o que o xamã via de modo positivo nas suas reencarnações como aumento de potência, como aumento de velocidade, como uma intensificação da vida, esses novos ascetas vão ver como signo de punição. Então eu vou ter vidas passadas que vão se articular com o meu modo de ser atual. E dependendo do modo como eu me comporto no mundo eu vou regredir ou vou ascender. O meu acesso, a minha ascensão à verdade, à liberdade ou à salvação vai depender da maneira como eu me relacionar com o corpo.
Isso não chega a atingir a cidade grega, nesse momento: a cidade grega já está se desmanchando. No momento em que isso vinga, por exemplo na obra platônica, não vai haver ocasião para se aplicar isso na cidade. Mas vai haver ocasião para o ocidente aplicar isso. Isso é completamente nosso. Não vou dizer que o modo como nos relacionamos com a natureza e com o mundo é completamente e absolutamente platônico porque deve ter muita gente que não tem a mínima vocação para isso. Mas o modo como o poder é exercido e como ele se articula com o saber ou com as práticas de saber é fundado no modelo platônico.
Participante: Quer dizer que nessa época isso não chega a contaminar o poder e o saber na Grécia? Vem por fora?
Vem por fora. Uma hora a Grécia se dissolve. No século III já é uma Grécia que tem imperadores, já é o momento em que há um pan-helenismo, existem invasões, invasões persas, invasões das mais variadas direções e origens, onde a Grécia vai simplesmente se esfacelar e a partir de um certo ponto vai emergir o domínio de Roma. O império romano é que vai se desenvolver e vai se rebater sobre a Grécia. E aí Roma vai sorver o helenismo. Essa cultura helenista vai ser absorvida por Roma de modo tal a gerar o nosso modo de vida ocidental. Nós somos gregos e romanos na origem do ocidente.
Então o que é fundamental marcar aí? Você tem não mais uma alma que simplesmente se separa do corpo, você tem uma alma que é de outra natureza que a do corpo. Você tem uma alma que não estabelece uma relação de aliança com o corpo, mas uma alma que estabelece um conflito com o corpo, uma alma que vai perceber o corpo como um inimigo, que vai ver o corpo como signo de expiação. E quanto mais eu permaneço no corpo mais eu preciso ser purificado porque o corpo é o impuro, é a mistura, é tudo aquilo que imiscui. O corpo é a concupiscência na sua natureza, o corpo é tudo o que há de impuro, de que a alma tem que se livrar.
Platão vai inventar na Grécia um modo de produzir a verdade absolutamente inédito. No fundo Platão tem saudade do Ánax micênico, Platão tem saudade de um déspota, ele tem saudade de um imperador, ele tem saudade de um monarca que comande tudo. Platão é um paranoico que tem medo de fluxos, que tem medo dos devires, que tem medo dos movimentos. Porque ele vê no movimento, nos fluxos, nos devires, nas relações a causa, a origem da desintegração, da desestabilização, do desequilíbrio, do mal, das impurezas. De tudo o que há de ilusório, aparente e perdido. A perdição é a matéria e o corpo, para Platão. E ele, na esteira de Sócrates, vai se dirigir às alturas de um modo inédito. Platão vai inventar um método chamado método da divisão. Platão quer dividir, ele quer fazer a seleção, ele quer separar o joio do trigo, o puro do impuro; ele quer separar o que tem ser e o que é ilusório, o que é simulacro, o que é falso, o que é errôneo, o que é maléfico.
Então Platão inventa um método para dividir e separar, para fazer a diferença. O método de Platão é um método para fazer a diferença. É um crivo, é uma peneira.
Ele se serve do modo contemporâneo dos homens políticos produzirem a verdade, que é o modo dialético. Uma vez que nós estamos na cidade e que nós herdamos a palavra diálogo, não estamos mais naquele mundo mágico-religioso ou mesmo naquele mundo aristocrático onde havia uma relação com a linguagem que era com a palavra eficaz, com a palavra ambígua, com a palavra que era posição imediata de potência, que era produtiva e não representativa, agora você tem uma palavra diálogo cujo modelo de produção de verdade é obtido a partir da invenção do inquérito, da procura da verdade através do exercício jurídico. Há uma maneira de se demonstrar a verdade segundo uma relação de reapresentação de um passado, de recomposição dos fatos de modo tal que você atinge a unidade ou a verdade daqueles fragmentos segundo uma ordem de encadeamento.
Você se relaciona agora com uma maneira de ligar causa a efeito: existem certos fatos que são causas de outros fatos. Então você vai articular de modo causal e demonstrativo, segundo um discurso agora dialético.
A palavra diálogo, ou modo do combate agonístico que é a ocasião da expressão privilegiada dessa palavra diálogo, dá o modelo a Platão para que ele inicie o seu método de divisão e conceba esse método de divisão dialético como uma ascensão. O exercício do diálogo geralmente vai dar numa aporia porque o diálogo é sempre uma tentativa de descoberta da verdade, até produzir uma definição. Definir alguma coisa é você dar a essência de alguma coisa, é você dar a verdade dessa coisa. Então a dialética platônica, o diálogo platônico vai atingir um ponto onde uma definição emerge. Essa definição geralmente faz com que a dificuldade aumente e aí Platão lança mão de uma outra maneira de atingir a verdade e que completa o método da divisão. Essa outra maneira é um discurso erótico – aliás o delírio erótico. Platão inventa um quarto tipo de delírio.
Vimos que na sociedade arcaica tínhamos o delírio do poeta, o do profeta e o do sacerdote.
Um era dionisíaco, o do sacerdote que atualizava um presente oculto; o do poeta é o discurso da memória, é o delírio de Mnemosyne que atualiza o passado; e o do profeta é o discurso apolíneo porque Apolo está no futuro. O profeta ou adivinho se deixa possuir por Apolo e se deixar possuir é entrar em delírio. Um deus se apodera desse ser que se torna por isso um mestre da verdade e produz a verdade apolínea, dionisíaca ou a de Mnemosyne. Você tem três discursos ou três delírios que produzem a verdade a partir da posse de um deus.
Isso se dava no mundo arcaico, antes do nascimento da cidade grega. Era ainda um mundo mágico-religioso. Platão inventa um novo discurso mágico-religioso e articula isso com a razão, a razão dialética, com o logos grego, com o discurso grego. É por isso que eu afirmo que a razão ocidental se funda no mito. Porque Platão está instaurando um critério para se estabelecer a verdade através de uma narrativa mítica, de um discurso mítico ou de um delírio que ele vai chamar de erótico. Então ele vai criar um mestre da verdade: o mestre da verdade ele vai dizer que é o verdadeiro amante, que é um apaixonado – e é uma forma belíssima que Platão inventa e vai narrar no Fedro e no Banquete, as duas obras onde esse delírio erótico aparece. E ele vai dizer que o delírio erótico é aquele capaz de encontrar o verdadeiro ser, o ser do amor, do objeto amado e do amante, numa unidade.
Eu fiz uma incursão em Platão muito pontuada porque nós vamos desenvolver Platão em, pelo menos, duas aulas. Eu acho que é suficiente para esclarecermos os pontos fundamentais. Então o meu objetivo não era, hoje, dar Platão aqui; estou só situando, fazendo alguns ganchos para que vocês não fiquem de todo perdidos. Às vezes fico preocupado que atinjamos um campo de abstração tal e não se situe direito a que ponto isso é importante para a nossa forma de viver atual e para o nosso modo de pensar atual. Por isso eu fiz esse gancho com Platão.
Em Platão você tem um movimento dialético e um movimento mítico. Esses dois movimentos dão a unidade ao método da divisão. Platão inventa o método da divisão para distinguir o puro do impuro, para separar o eu profundo, a parte eterna ou inteligível da alma, das partes inferiores da alma e do próprio corpo. E desse modo atingir a verdade. Então esse método da divisão é um misto de razão e mito – isso é que é importante marcar. Porque o Platão vai fundar duas categorias do pensamento ocidental de que nós não nos livramos até hoje, que é a de identidade e a de semelhança, a partir da instauração da narrativa mítica. É o mito que instaura da identidade: a identidade só é possível numa circularidade fictícia. Nada na natureza vai do Mesmo ao Mesmo – a não ser uma ficção mítica. Ir do mesmo ao mesmo é o movimento de identidade platônica. E é esse movimento que vai gerar um critério para a seleção aqui em baixo.
Não cheguei a retornar para a questão da ausência da ideia de vontade na cidade grega porque vamos trabalhar isso de um outro ponto de vista a partir do momento em que o corte é estabelecido, o corte da separação entre alma e corpo, a alma sendo agora algo de eminente em relação à natureza e uma instância que vai começar a julgar a vida, a natureza e o corpo. Os gregos vão fazer a problematização dos aphrodisia.
Nós estamos gerando linhas para que se forme a conjunção capaz de explicar o nascimento da metafísica ocidental, o nascimento daquilo que chamamos plano de transcendência.
Participante: Isso que vimos aqui é o mundo das cópias, não é? E a verdadeira verdade está em outro plano. Então eu fico pensando nos critérios que usamos para selecionar pessoas nas empresas, para dividir as classes sociais. E aí você tem um ideal. Quer dizer, trabalhamos muito ainda hoje com um modelo. Eu, por exemplo, trabalho em RH, então havendo um perfil de um cargo você tem que chamar um super-homem. Não existe nenhuma pessoa que seja competente em toda a descrição que é estabelecida, mas você tem um target, um modelo que você persegue, digamos assim.
E geralmente o efeito é contrário. Você quer selecionar o melhor e você tem um desperdício absurdo de virtualidades e potências porque o modelo é a anulação das singularidades. O modelo anula as singularidades. Então aquele que tem que se adequar ao modelo, é um verdadeiro assassinato.
Participante: É um modelo destruidor de potencialidades, não é? Não tenta descobrir as potencialidades da pessoa.
Ele tenta adequar, ele tenta formalizar, ele tenta vestir uma camisa de força para que aquelas potencialidades sirvam a aquela forma.
Participante: Por isso estava interessante você falando daquela história do Mesmo até o Mesmo. Você parou no melhor.
Mas eu vou voltar a uma ideia bem interessante também que nos vai fazer retornar para esse mesmo discurso platônico. Agora analisando a obra do Foucault, História da Sexualidade II – O Uso dos Prazeres. Essa obra vai problematizar o nascimento da subjetivação ocidental, como é que se inventa modos de subjetivação. Foucault quer separar uma subjetividade assujeitada de uma capacidade de autoproduzir a sua subjetividade. Então Foucault quer descobrir onde começa uma prática de si que gere uma lapidação dos gestos, das ideias, dos usos, dos comportamentos. Ou seja, um estilo de si, um estilo de vida. Foucault quer investigar em que momento os homens começam a estilizar sua própria existência. E ele vai encontrar isso na cidade grega, entre os homens livres; é uma prática de homens livres. E ele vai recortar um objeto privilegiado onde essa prática se dá, onde essa prática vai problematizar essa estilização. E isso vai ser feito através do uso dos prazeres, o que os gregos chamam de aphrodisia.
Ele está falando em uso, ele não está falando em essência, em verdade, em ser. Ele está falando em funcionalidade, em uso, em comportamento. Os gregos vão fazer a problematização dos aphrodisia na dietética numa relação de si com o corpo; na família, o que eles chamam de óikos, a relação do indivíduo com o óikos; e na pólis, a relação do indivíduo com o exercício da política, o governo da cidade, o governo comum dos homens. Foucault vai descobrir que essa problematização tem sempre a ver com um aumento de potência e de liberdade. Os gregos vão problematizar o corpo, o uso dos aphrodisia ou da sexualidade no corpo ou na relação com a mulher no caso da família, ou na relação com a ágora, a partir de uma capacidade de dobrar-se a si mesmo, de dobrar a própria força que te constitui, o que o grego chama de enkrateia. A diferença de enkrateia e sophrosyne é que sophrosyne é um saber de temperança, é um saber de relação social que um indivíduo deve interiorizar. Mas enkrateia não é um saber da força em relação à sociedade; a enkrateia é a força se dobrando a si mesma, se dominando a si mesma, é um domínio de si. No momento em que você problematiza o corpo, a saúde e inventa uma dietética, você dobra a constituição orgânica do seu corpo em função do aumento de potência e de liberdade que ele te dá. E em função disso você pode exercer o domínio ou a relação de liberdade com a própria família. Aqui nós estamos falando dos homens livres gregos, não estamos falando das mulheres, das crianças, dos escravos; realmente era uma sociedade bem excludente neste sentido. Estamos falando naquilo que é positivo, naquilo que gera uma estilização da existência. Então esses homens, na medida em que dominam a si mesmo e que dominam a relação que têm com a mulher, com os seus filhos e com os que fazem parte do seu óikos, são também capazes de exercer a política na cidade. Todo esse saber e essa capacidade de dobragem sobre si mesmo gera uma condição de liberdade e de aumento de potência.
Então, existe uma certa visão de que os prazeres do corpo, os desejos e os fluxos de matéria em geral devem ser submetidos a uma força de expansão. E isso gera uma ambiguidade porque, a partir do momento em que você tem que submeter parte do corpo, parte dos desejos, dos prazeres ou da relação com a natureza, você tem uma espécie de continência, de justa relação, de justa medida, de equilíbrio de forças. Mas nunca a partir de uma ideia, de um código moral. Nunca a partir de uma constituição. É de si consigo mesmo, é você com você mesmo, é uma força que dobra uma outra força em você. Nietzsche diria: uma força ativa que age uma força reativa. Agir uma força reativa, ou fazer reagir a força reativa, é a virtude da força reativa: ela deve se deixar agir. E a força ativa deve agi-la.
Participante: E isso é uma vontade?
Isso é uma vontade de potência afirmativa segundo Nietzsche. Aqui eu já estou fazendo uma outra transposição. Mas o que os gregos estão fazendo nada mais é do que isso: eles estão submetendo forças orgânicas e reativas – que levariam para a indolência, para a miséria, para a decadência – a forças ativas de expansão, de criação de vida. É isso que eles estão fazendo. Eles estão estilizando, eles estão fazendo uma estética da existência, segundo um critério ético; mas o critério ético é relação de força com força e não submissão de uma força a um código moral. Não tem forma submetendo a força. Então até aí existe uma positividade incrível: os gregos estão inventando uma coisa absolutamente nova, eles estão produzindo um meio de individuação, eles estão atingindo um princípio de individuação imanente e autônomo a partir de si. Ainda que não tenha esse fechamento de um sujeito, de uma vontade que tem livre arbítrio. Mas quanto mais você faz isso, menos você se relaciona com o livre arbítrio porque o livre arbítrio é uma ficção, é uma prisão. Você exerce o que há de necessário na força. O que há de necessário na força? A sua efetuação. Você efetua a força, você cria um plano de consistência que efetua a força. Você não puxa o tapete da força e a deixa separada do que ela pode, você cria um território para que ela se efetue. Então é isso que eles estão fazendo.
Aí tem os moralistas, os ascetas, os sacerdotes, esses que se imiscuem no meio grego com suas seitas ou com suas filosofias. Sócrates e Platão são duas espécies bem interessantes privilegiadas nesse sentido. Eles vão inventar um movimento não de estilização da força nela mesma, não de dobragem da força nela mesma, mas a própria força vai ser já inferior e deve ser dominada por uma natureza divina de uma alma que se separa do corpo. Essa força vai ter que se submeter do seguinte modo: Platão acredita numa alma tripartite. A primeira parte da alma, a parte inferior, a parte do corpo desejante, a parte concupiscente, a parte material enfim, a parte dos fluxos. A segunda parte é uma parte relacionada à thymé ou ao thymós dos gregos, a parte da alma guerreira, a parte da coragem, a parte de uma temperança da força. E a terceira parte da alma seria a parte propriamente intelectual e, por ser intelectual, a que pode ascender à condição divina na medida em mesma em que essa parte tem origem divina.
Platão vai então inventar uma maneira de problematizar os prazeres elevando como objeto privilegiado a erótica dos homens livres com os efebos gregos, com os jovens gregos, com os adolescentes gregos. Esses homens livres, esses sábios, esses sofistas, esses especialistas em sabedoria e em poder vão ter uma relação erótica “homossexual” com esses jovens e vai haver aí uma dificuldade e uma problematização. Porque o ideal dessa relação é o seguinte: isso vai ser um instrumento para levar o jovem à liberdade e à atividade. O problema será então inibir a prática carnal – ou a prática corporal porque não tem a ideia de carne entre os gregos, a ideia de carne é uma invenção cristã – e no lugar deve ser elevada a prática da amizade, a prática da phylia. Então haveria uma espécie de transposição da relação erótica para uma relação de amizade. Esse modo salvaguardaria a honra do rapaz, eliminaria o risco da passividade e o introduziria no exercício do poder e da liberdade. A relação de amizade ou de phylia seria uma relação de ensino, uma relação de paideia.
Foucault descreve isso muito bem nesse livro e ele vai dizer que no momento em que Platão vai problematizar essa questão, essa prática grega, ele vai se servir de vários discursos no Banquete e no Fedro. E quando esses discursos são proferidos existe uma clara distinção entre aqueles discursos que são ridicularizados – que são discursos mundanos, discursos que desqualificariam essa relação que faria o jovem ascender à verdade – e Platão que, através da boca de Diotima no Banquete (no Fedro eu não me lembro quem fala, quem narra esse discurso), começa a fazer narrativas míticas.
Então no Banquete, por exemplo, há um discurso de Aristófanes, um discurso cômico, onde Platão se diverte ao fazer Aristófanes dizer o que ele combate com muito humor e muita comédia nas suas [de Aristófanes] obras. E Aristófanes vai narrar um discurso então sobre a natureza simétrica das partes que se completam. Então Eros teria uma natureza simétrica e a procura de um seria sempre por sua outra metade, um seria a metade do outro. Diotima faz um outro discurso. No Fedro você vai ter o discurso da circulação das almas no céu, Platão vai estabelecer um critério entre as almas que viram muito e as almas que viram pouco – eu não vou falar isso hoje, veremos isso em outra aula. E a partir daí você vai ter um modelo, um modo de ascender à verdade. Ou seja, você vai encontrar não só a verdade do amor mas você vai encontrar o critério para o verdadeiro amante e você vai encontrar o verdadeiro objeto do amor. Então a sutileza platônica é ligar desejo e verdade, amor e verdade. É o modo como Platão vai fazer a captura do devir, vai fazer a captura do desejo, vai fazer a captura do pensamento em direção a uma ficção, em direção a uma altura. Platão vai fazer um movimento de ascensão às alturas.
Esse modo então de produzir a verdade vai incorporar uma prática arcaica que é a prática do delírio, e uma prática moderna que é o discurso dialético. Essas duas práticas, esses dois modelos vão fazer a unidade do método de divisão platônica. Platão vai chegar sempre, através de sua prática dialética, a uma definição – o verdadeiro político, por exemplo: o que é o verdadeiro político? Ele vai chegar à definição de que o verdadeiro político é o pastor dos homens. Só que no momento em que ele diz “é o pastor dos homens”, o açougueiro diz “o verdadeiro político sou eu porque eu dou carne para os homens”, o tecelão diz “o verdadeiro político sou eu porque eu visto os homens”, o ferreiro diz “o verdadeiro político sou eu porque eu produzo os artefatos para o homem se defender na guerra”.
Então vão existir uma série de pretendentes querendo ser o verdadeiro político.
E o que é feito a partir de então? Platão interrompe a definição como se ele tivesse desistido: cheguei à definição mas não tem jeito, é uma malha demasiado grande para os peixes pequenos que ainda passam através dela. Ou seja, esses peixes não são pegos nessa malha, a dialética é uma malha muito genérica, ele precisa encontrar um critério rigoroso para eliminar esses falsos pretendentes. Platão não faz uma dialética lógica, Platão faz uma dialética da rivalidade, são rivais que disputam aceder a aquela definição, a aquela verdade. Só que aquela definição é uma definição ainda demasiado humana, é uma definição dialética, é uma definição discursiva.
Platão renuncia então e começa a narrar o mito e aí o mito entra na história. Em O Político ele narra o mito de Chronos, quando Chronos governava o mundo; e o verdadeiro político, em última instância, vai ser Chronos. Ele vai dar o modelo de Chronos, o jeito que Chronos governa o mundo, o jeito circular de Chronos governar – onde não tinha guerra, onde não tinha fome, onde não tinha miséria, onde não tinha pestes, onde não tinha nenhum tipo de mal, onde tudo era um paraíso. Por isso Platão tem saudade dos déspotas: Chronos é um mito micênico, Chronos é pai de Zeus, Chronos é um mito de soberania. Lembrando o que eu disse numa aula anterior, o mito de soberania tem duas cabeças: uma do poder violento de fundação, outra da ordem pacífica de regulação. Então esse verdadeiro político não é nenhum homem, é um deus. Então é só a esse que cabe a qualidade primeira de verdadeiro político, é só a Chronos que cabe isso. Os homens no máximo, no melhor dos casos, em segundo lugar, vão ter essa qualidade e aí eles vão ser uma cópia que vai atingir o máximo de semelhança; é um ser segundo, nunca vai ser o ser. Há uma defasagem fundamental no ser aí, há um corte fundamental. Vamos ter sempre uma relação existencial endividada, vai haver uma insuficiência de ser na medida em que nós nunca somos o modelo, nós somos a cópia.
Participante: Você falou do conceito de emergência no Platão. O que seria essa emergência?
A emergência de uma ficção que o ocidente vai assumir como sendo sua. Uma ficção, um idealismo. Platão está inventando o idealismo, Platão está inventando a transcendência propriamente dita. Como diz Nietzsche: o ocidente é a história de um longo erro – a crença no ideal. Esse erro, essa crença, é Platão que está inventando. O que leva Platão a inventar isso? São linhas, são conjunções; não é um milagre que Platão, de repente, teve a ideia genial e isso aconteceu. Não existe milagre, não existe milagre grego de invenção de filosofia. O que existe são encontros de devires, de movimentos, de seguimentos, de processos, um encontro do xamã da Sibéria com um Pitágoras, com um Ábaris. Como é que de repente num encontro, que no xamã não tinha nenhuma negatividade, uma negatividade emerge? Como é isso?
Então existem várias linhas que convergem para que aquilo emerja e isso tudo é contingente, isso não é necessário, não é que a natureza tinha que se desenvolver necessariamente assim, não é que a sociedade civilizada humana tinha que necessariamente passar por isso. Isso é mais um acontecimento. É como o Estado: o Estado é necessário? De modo algum. No entanto, a maioria acredita que o Estado é um avanço para a civilização.
Participante: A própria vida seria essa contingência, um encontro de forças?
Então, estamos exercendo já um modo de pensarmos, estamos fazendo a genealogia ou a arqueologia desses saberes segundo esse mesmo modo de pensar, o modo plural, o modo da multiplicidade, é a multiplicidade nela mesma. Nós não estamos partindo de uma origem, não são origens, são emergências. A questão de se estabelecer a dificuldade da emergência de algum acontecimento, como o platonismo por exemplo, é você fazer a cartografia, traçar as linhas que vão fazer com que isso emerja. Assim, para você ter o capitalismo por exemplo, é necessário você ter uma economia de mercado, é necessário você ter a propriedade privada, é necessário você ter um fluxo de trabalhadores livres, é necessário você ter uma acumulação primitiva. Então são várias linhas que convergem – e que são contingentes – para que o capitalismo emerja. O capitalismo não era necessário, como muitos marxistas acreditam que era. Assim como o comunismo não necessariamente é a superação do sistema capitalista, ele não necessariamente vai desembocar no comunismo. Isso é uma visão tacanha, uma visão determinista, é uma visão que tem origem platônica, com certeza.
Participante: Você falou que o filósofo tem um papel de deslocar um pouco a visão que, em certa época, se tem a respeito de uma realidade. O filósofo está ali e diz “jogue o foco por aqui, por aqui e por aqui e vamos deslocar um pouco disso”. Que contingência Platão viveu para que o prédio filosófico dele jogasse foco nessas contingências? Hoje falamos disso de uma forma a posteriori como tendo vários danos na história do pensamento. Mas no contexto dele, sob que aspecto ele estava vivendo que de repente isso foi importante para jogar luz em outras formas de ver a realidade?
Dois acontecimentos fundamentais. Um, a decadência da cidade grega, a degenerescência, a perversão que rolava nessa época. E o mais grave, o que mais impressionou Platão, foi a morte de Sócrates, a condenação de Sócrates à morte. Sócrates foi condenado à morte sob o argumento de perverter os jovens de Atenas e ele vê, na condenação à morte de Sócrates – Sócrates é condenado a beber cicuta – uma injustiça imensa, porque Sócrates para ele era a salvação da cidade. Sócrates descobriu uma outra maneira de ver as coisas, segundo Platão, que salvaria a todos, que restabeleceria a harmonia, a paz, o desenvolvimento, a verdade. Então isso abala muito Platão. E Platão vê a causa disso no movimento, no devir, nos sofistas, nos artistas, naqueles que produzem efeitos de semelhança de sabedoria nos seus discursos e nas suas práticas, mas que não têm a sabedoria, que não têm a verdade na sua essência, verdadeiramente. São os simuladores. Por isso na obra inteira dele Platão vai combater os simulacros. Simulacro é aquele que inventa, que produz um efeito de semelhança. Então tem os especialistas em sabedoria, que são os sofistas, que produzem efeitos de sabedoria mas que na realidade são falsificações. Isso levou Atenas e outras cidades gregas à decadência, isso levou à morte de Sócrates e isso levou à tirania também. A tirania é a consequência necessária, diz Platão, da democracia. Democracia, para Platão, é um sistema onde a maioria ignorante comanda. Então ele diz: necessariamente vai desembocar numa tirania. E a tirania é tudo que Platão quer eliminar. Só que ele instaura na sua República, na sua cidade ideal, um déspota esclarecido que é o rei filósofo.
Participante: Uma oposição ao tirano?
Seria uma oposição ao tirano porque o tirano é arbitrário e o rei filósofo observa a harmonia cósmica. Essa é a diferença bem básica.
Participante: Platão tinha alguma ideia do projeto dele?
Sem dúvida. Platão sabe muito bem o que quer. A vontade platônica é uma vontade poderosíssima. Platão cria uma obra que evidentemente não é uma invenção qualquer, é um modelo para qualquer transcendência: falou em transcendência, falou em platonismo, não tem outro modelo, o modelo é esse. Ele atingiu, digamos assim, o plano de imanência da transcendência. Como é que uma transcendência é gerada a partir de uma imanência. É por isso que Platão é um inimigo nobre, temos que viajar no Platão, temos que saber ler Platão.
Participante: Essa questão é muito importante porque isso tem consequências éticas muito severas. A pergunta é: será que ele sabia que isso ia enfraquecer a potência?
Não. Platão é um crente, ele acredita naquela ficção mesmo, ele acredita no outro mundo com toda a vontade dele, é uma vontade imensa. Vontade de paranoico, não é vontade de neurótico.
Não é uma vontadezinha qualquer, é a vontade de um dominador, de um déspota.
Participante: É uma potência então?
Uma potência fantástica real investindo numa ficção. Produz efeitos de realidade. Nietzsche diz: é o produto do negativo, é o niilismo negativo. Diz Nietzsche: é o primeiro estágio do niilismo. Nietzsche vai dizer que existem quatro estágios: o niilismo negativo, o niilismo reativo, o niilismo passivo e o niilismo ativo – que é o niilismo vencido por ele mesmo, levado às últimas consequências.
O niilismo negativo é “a verdade está no outro mundo, deus é o máximo e o homem é secundário e é julgado por deus”. O niilismo reativo é “deus morreu, só tem o homem, o homem vale por si mesmo”.
O niilismo passivo é “esses valores do homem levaram para a ilusão e para o nada, é o homem do nada de vontade, o homem que não tem vontade nem para morrer”. O niilismo ativo é o homem que quer morrer.
Participante: Com o Renascimento, toda essa questão do Galileu, Kepler, depois Newton, Descartes desembocando no mecanicismo, não seria uma retomada desse pensamento platônico?
Descartes retoma.
Participante: Retoma, instaura, lineariza.
Assim como São Tomás e Averrós vão retomar Aristóteles que, na Idade Média, vai ser chamado de O Filósofo – porque só vai existir esse filósofo para eles -, Descartes vai exercer um platonismo muito sutil. Ainda que ele critique Platão, que ele critique Aristóteles, que ele critique S.
Tomás. Porque Descartes vai fundar a verdade a partir do sujeito, mas, no fundo, o sujeito de Descartes não é nada sem deus, porque deus é quem garante o pensamento do sujeito. Então Descartes, nesse sentido, continua no niilismo negativo, continua sendo platônico. O niilismo reativo é Kant, quando o homem basta-se a si mesmo, é uma pura forma de lei, não precisa mais de deus.
Deus ou o Bem está submetido à lei. Entre os gregos, ou Platão, a lei está submetida ao Bem. Por que Sócrates bebe a cicuta? Porque ele acredita que a lei é a representante do Bem. Ele sabe que aquela lei é injusta mas ele acredita que a lei é representante do Bem. A lei como delegada do Bem é a posição niilista negativa, ou seja, o Bem está fora do mundo e o representante dele na Terra é a lei.
A lei é a delegada do Bem. Na sociedade moderna, a partir de Kant, o Bem está submetido à lei, você liga o Bem a algo que passa antes pela lei. Então você inverte a relação. É por isso que deus morreu, você não precisa mais de deus, não precisa mais do Bem, você tem a lei puramente humana. A lei pela lei, uma pura forma vazia de lei. E o momento do niilismo passivo é quando você sabe que essa lei é vazia em tudo e esvazia o homem, e o homem vira uma ilusão, uma aparência. A ponto de não ter nem mais vontade para nada, ele ficou tão separado do que ele pode que a vontade dele virou um nada de vontade. E aí Nietzsche diz: antes uma vontade de nada do que um nada de vontade. O nada de vontade é terrível. O nada de vontade é aquele tédio que o Fassbinder narra nos filmes dele.
Os filmes de Fassbinder narram sempre homens, vidas entediadas. Isso é o nada de vontade. Até que de repente explode uma força louca e esses homens saem matando.
Participante: E a vontade de nada?
A vontade de nada é a vontade de ficção, é Platão, é vontade de outro mundo.
O homem que quer morrer já é o niilismo ativo. Aí Nietzsche faz um discurso no Assim falou Zaratustra: amo aquele que dá adeus a si mesmo, que dá adeus ao seu corpo; amo os desprezadores do corpo porque assim mais rápido eles se despedirão deste corpo e desta terra; amo todos os que são uma ponte entre o homem e o super-homem; amo aqueles que são uma gota, que serão aniquilados pelo raio do super-homem. Ou seja, já é o amor a aquele que quer morrer. Ou seja, ele está afirmando aquilo que deve morrer em nós, aquilo que faz com que nosso devir esteja perdido. É isso que ele está dizendo, enfim. Então é uma desconstrução dessa subjetividade ocidental que estamos tentando ver como se formou. No fundo vamos chegar a essa desconstrução.
Participante: É possível resgatar o devir racionalmente, assim?
Racionalmente não. A não ser que a sua razão seja uma razão espinosista.
Participante: Isso, uma razão espinosista. Afetiva, emocional, que envolva emoção. Deste ponto de vista.
Sem dúvida, aí sim. É uma outra razão. É uma razão que é puro devir. É uma razão de relação enquanto relação. É a razão do relacional. Não a razão que vai de um termo a outro termo. É a razão da relação entre os termos, do puro relacional. É a razão que, no relacional, vê o nascimento dos termos. Essa razão sim. Aí você entra em devir, você reconquista o devir. Isso é o que Espinosa chama de noções comuns, o segundo gênero do conhecimento.
Uma poesia do D. H. Lawrence. Essa é forte.
Nãos
Lute, menino, sua luta de nada,
Vá à luta e seja homem.
Não seja um bom menino, um bom moço,
Sendo tão bom quanto você pode ser
E concordando com todas as matreiras, manhosas
Verdades que os fingidos encenam
Para se protegerem e à sua
Ávida, glutona, gulosa covardia de escolados grosseiros.
Não corresponda à queridinha que acaba
Por custar sua macheza e te fazendo pagar.
Nem à velha mãezona que orgulhosamente se gaba
De que você vai ser um dos que vão chegar.
Não conquiste opiniões valiosas, abalizadas
Opiniões valendo obrigações do Tesouro,
De homens de todo tipo; não fique devendo nada
Ao rebanho engordado para o matadouro.
Não queiras ter meninos bons, bonitinhos,
Os quais você terá de educar
Para ganhar a vida: nem meninas gostosas, uns docinhos,
Que vão achar difícil trepar.
Também não queira uma casinha, com os custos
Que você terá de aguentar
Ganhando a vida enquanto a vida se perde, e o susto
Da morte um dia vem te agarrar.
Não se deixe sugar pelo sup-superior,
Não engula a isca da cultura a chamar,
Não beba, não vire um cervejado senhor,
Aprenda, isto sim, a discriminar.
Mantenha-se inteiro e lute atento,
Empurrando aqui ou empurrando de lá,
E tendo à noite o consolador sentimento
De que um pouco de ar você fez entrar.
No chiqueiro do dinheiro esse ar renovado
Você pôs pelo buraco que na prisão pôde abrir,
Fazendo o pouco que podia, empenhado
Em que o Cristo ressuscite como forma de agir.
Isso é já a introdução ao homem que morreu. Cristo ressuscitando como forma de agir.