fbpx
Ler outros textos

Curso Educação Para Potência (áudio) – Aula 20/32

 

Transcrição por Gabriel Naldi

 

[Luiz Fuganti]: Vamos lá então, gente? Bom, temos aqui duas pessoas novas no curso. Você?

[Nívea]: Nívea.

[Luiz Fuganti]: A Nívea.

[Sheila]: Sheila.

[Luiz Fuganti]:  E a Sheila. Eu vou situar o mínimo, rapidamente, onde estamos, para não ficar muito redundante para eles. E aí eu retomo a ideia geral desse quarto módulo, estamos aqui no quarto módulo e vamos continuar, em seguida, onde tínhamos parado.

Nós criamos um curso chamado de Educação para a Potência que tem um múltiplo enfoque. Um enfoque que identifica cinco zonas iniciais da experimentação humana. Cinco zonas, esse número não é exatamente arbitrário, mas é uma seleção, digamos assim, de modos privilegiados de experimentar, ou da experiência humana. E quando falamos experiência humana, geralmente entendemos essa noção de modo vulgar, que a experiência seria um enriquecimento, uma troca, um consumo, uma agregação de valores, uma aquisição de modos melhorados de existir. E assim adquiriríamos essa experiência através de um aprendizado e chegaríamos a uma maneira mais evoluída de ser. Uma experiência é vista desse modo vulgar como sendo um meio de atingir uma maneira melhor de ser. Nós desfazemos isso desde o início, a ideia de experiência atravessa esses cinco campos principais que selecionamos, e trazemos uma noção de experiência muito diferente dessa como troca, como acumulação e agregado extrínsecos valores, mas, sim, como um modo de produzir realidade no imediato da nossa existência. E o que chamamos de realidade é, na verdade, uma diferença que se torna, na medida em que é produzida, inalienável. Se torna irredutível. Se torna um movimento próprio, um tempo próprio. Então isso que nós produzimos na experiência é de fato uma realidade.

Mas “nós” quem produz a experiência? Ou quem em nós produz a experiência dessa maneira e como, ao produzirmos dessa maneira, conquistamos uma capacidade de se continuar dessa maneira? De se continuar e fazer dos nossos próprios produtos o combustível para novos devires? Ou seja, os nossos próprios produtos viram pontes para o futuro ou plataformas de lançamento de nós mesmos. Intensificadores, esticadores do nosso desejo. A ideia de experimentação, então, envolve um modo necessário da natureza operar através de nós. Esse modo necessário da natureza operar através de nós nos dispensa da ficção do possível e do contingente. Ou da ficção de um livre arbítrio, assim como nos dispensa de piorarmos o nosso desejo em uma finalidade. Na medida então que encontramos o necessário da experiência, ou nas relações que nossa vida estabelece, mudamos radicalmente o horizonte do desejo, o motor do próprio desejo e o resultado do desejo. E esse necessário nós já desdobramos minimamente na modalidade três, que é o que chamamos de experiência ética, onde apreendemos a necessidade do acaso enquanto ser comum ou a própria afirmação. O ser comum se confunde com a afirmação. E esse ser comum vai ser a matéria principal agora da quarta modalidade. Mas antes de aprofundar, de retomar a nossa última aula, eu queria inserir nessa introdução, que é uma introdução de outra maneira. Para não ficar redundante para vocês e para que vocês possam pegar também o que está se passando de essencial aqui.

Haveria também, nessa experimentação, uma maneira de apreender a contingência ou aquilo que chamamos de “acidental” na experiência, do ponto de vista da essência que se produz nesse acidental. Ou seja, a ideia não só de apreender uma essência, mas de se produzir uma essência do acidente tão necessária quanto a necessidade que se deve encontrar em cada caso. Então a essência do acidente vem na mesma sequência da necessidade do acaso. E quando você apreende a essência do acidente, você apreende não apenas o relacional de cada relação como ser comum, que era o caso da necessidade do acaso, mas também você apreende a singularidade da relação, que afirma a própria diferença intrincada na relação. Nessa medida, você produz então uma essência de qualquer acidente. Ao mesmo tempo em que, nessa mesma sequência ou nessa coexistência de elementos, você tem ainda um outro foco que salta, que seria o foco do ser e do devir.

Toda experiência implica um devir, implica um movimento e o tempo próprio de cada processo. Nesse devir é possível não apenas extrair o necessário e constituir a essência, mas produzir um ser. Um ser que ganha várias designações, dependendo do modo como ele é produzido. Se quisermos separar três grandes áreas de criação do humano, nós podemos dizer, junto com Deleuze e Guattari, na obra O que é a filosofia?, que a filosofia produz conceitos. O ser dos conceitos. A arte produz sensações. O ser das sensações. A ciência produz funções. O ser das funções. Então há uma produção, uma criação de seres. Seres de sensação, seres de conceito, seres de função. E nessa medida a experiência ganha uma dimensão extraordinária. Ultrapassamos aquela ideia ordinária da experiência como uma aquisição, como uma troca ou como um enriquecimento. A experiência se torna necessariamente produtora ou criativa de realidade. Ou seja, realidade de conceito, realidade da sensação, realidade das funções. Os produtos se tornam também partes da eternidade, esse é o ponto.

A ideia de experimentação implica o que exatamente? Ela implica o encontro ou o reencontro da dimensão do humano com o imediato que o constitui. O imediato que constitui o pensamento ou o tempo próprio do pensamento. O imediato que constitui o corpo ou o movimento próprio do corpo. O imediato que constitui a decisão ou a presença coexistente das múltiplas dimensões do homem naquilo que envolve a sua existência ou no acontecimento da sua existência. Esse imediato da diferença, o imediato da decisão. E nós estamos agora na questão do imediato da memória ou do que chamamos de continuidade. Assim como é preciso também atingir o imediato do aprendizado e da transmissão desse aprendizado. Imediato então seria uma dimensão que o homem sistematicamente, digamos assim, frustra ou desinveste, desqualifica em sua maneira de viver, na sua maneira separada de existir, na sua maneira separada das potências ativas e criativas. E essa maneira separada do homem ser, do homem ver, do homem sentir, do homem agir, do homem pensar, enfim, do homem existir, implica uma demanda de uma mediação. O homem, separado do que pode, necessariamente investe em uma espécie de mediação, uma espécie de muleta, uma espécie de meio de ligação que o resgata ou que o recoloca em uma espécie de espelho existencial.

Essa mediação ou essa demanda por mediação ao mesmo tempo é uma cumplicidade geradora de espelho, mas o próprio espelho faz com que ele se veja ou seja visto através do mesmo. E nessa medida ele ganha o reconhecimento. Do quê? Em última instância, de existência. Ele existe através desse espelho. Esse espelho e o que se passa nele é o que chamamos de mundo da representação. E o homem existe então através desse mundo da representação. Esse mundo da representação, um outro nome para ele é o mundo do juízo ou do julgamento. É o mesmo mundo. Nessa medida, há uma espécie de descrença fundante do homem. Desconfiança fundante do homem. Uma descrença em relação à vida e em relação ao acontecimento essencial da existência, e uma desqualificação em relação à dimensão que seria a própria existência enquanto produtora de eternidade, enquanto ligada de modo imanente a uma realidade autossustentável. É como se simplesmente desconsiderássemos que há uma realidade autossustentável que atravessa toda a existência. Ou ao menos desconsiderássemos a possibilidade de nos ligarmos imediatamente a essa dimensão. Esse é o ceticismo do homem. E você encontra esse ceticismo nos mais otimistas. Naqueles que mais acreditam no progresso, na felicidade, na evolução, no melhoramento. São aqueles que vulgarizam a noção de experiência, achando que a experimentação então é para nos melhorarmos, é para evoluirmos. Nós diríamos que no universo não há nada a ser melhorado. O universo já é perfeito, a natureza é perfeita, a existência é perfeita. O que é necessário é criarmos uma maneira de existirmos que reencontra o ponto ou a perspectiva onde, aquilo que diz Espinoza, “por realidade e perfeição se entende a mesma coisa”. A realidade é perfeita. A perfeição é a realidade.

Nessa medida, você faz parte da própria realidade que não está dada [00:16:12], mas daquela realidade cuja perfeição é a potência de criar. Essa é a perfeição da realidade, não há outra. Não há realidade já produzida, já feita, à qual eu me adeque e encontro perfeição. Não. É o momento em que eu me identifico com a dimensão produtora autossustentável e criativa da natureza, eu estou no ponto onde a natureza é perfeita. Senão, ela precisaria de um deus, ela precisaria de uma instância fora dela para sustentá-la. E aí eu só adiaria o problema e levaria o problema para uma outra entidade, misteriosa, que eu chamaria de deus. Não resolveu nada. Sigo na crença e sigo em uma certa desconfiança de que a existência estaria desligada desse deus, por exemplo. Aí não me adianta de nada. Eu precisaria sempre voltar a investir em um sistema melhorado, em um sistema mediado, uma mediação redentora da existência. Uma mediação salvadora, resgatadora, que recolocaria a vida de novo em uma certa ascendência evolutiva. Ou em um progresso em direção a um fim mais perfeito, que em um certo momento é possível que, depois da própria existência, reencontrasse então o chamado eterno. O eterno fora do mundo, o eterno fora do tempo, o eterno fora da vida. Que é a imagem que o homem impotente, o homem separado do que pode sempre faz da eternidade.

Nós identificamos esses cinco campos da experiência humana se apresentando com a importância que eles têm, porque essa importância vem de uma experiência singular e própria. A experiência do pensamento, por exemplo, não demanda nenhum outro tipo de experiência. O pensamento é um meio, um meio autônomo. Ele não precisa de outra coisa para acontecer. O pensamento tem dimensão própria de acontecimento. E é essa dimensão própria de acontecimento do pensamento que queremos encontrar na medida em que desconstruímos a mediação que nos ligaria ao pensamento e apreendemos aquilo que pensa em nós e que pensa através de nós, e não que se apoia no sujeito ou em uma consciência que pensaria algo em um objeto qualquer. Não é um sujeito que pensa um objeto ou um sujeito que comunica a outro sujeito uma informação que seria a mesma, mas é algo que pensa singularmente em nós, que nos atravessa. Então esse algo que pensa independentemente da mediação da representação, independentemente da mediação da linguagem, que chamamos então de dimensão imediata do pensamento, nos recoloca na experiência extraordinária de produzir realidade através do pensamento. Esse é o ponto. E vimos isso fazendo uma crítica, uma desconstrução do uso da linguagem que se põe no lugar do pensamento. Porque linguagem e pensamento são coisas diferentes. Assim como imagem. Espinoza, já no livro II da Ética, vai distinguir bem. Uma coisa é a ideia, outra coisa é o signo, outra coisa é a imagem. São coisas distintas. A palavra, a linguagem como signo é uma coisa. A ideia, o pensamento é outra coisa. E a imagem como corpo ainda é outra coisa. Então o homem, ao fazer uso do signo, acaba pondo o signo no lugar do pensamento. A linguagem no lugar do pensamento. E é porque ele está separado da capacidade de pensar a partir dessa imanência de algo que pensa em nós que ele precisa então operar dessa maneira, reapresentando o real através do signo. O real que não é dito, o real que não é falado, o real que não é expressado via um certo regime de linguagem humana não teria realidade suficientemente valorizável. Não teria uma existência apresentável a essa dimensão organizada da natureza e da vida. Seria inferior. Só depois que se torna falado, dito, escrito, entre aspas, “pensado” — não tem nada a ver com o pensamento, mas enfim — é que aquilo seria então digno de reconhecimento.

Então a linguagem se torna um operador, um autorizador de existência das coisas. Ela se torna uma espécie de tradutor universal de tudo o que existe. Essa é a petulância, é a pretensão do homem no uso ilusório da própria linguagem. As coisas existem independentemente de elas serem faladas ou não. Elas têm valor próprio, porque elas não precisam ser reapresentadas. E, na realidade, nada pode falar em nome de algo. Ou, ao menos, nada pode falar em nome de alguma coisa com estatuto de realidade. Pode até falar, mas é sempre uma maneira de a coisa se apresentar através de você. Só isso. Não significa que a coisa seja aquilo que você apresenta. É justo o contrário. A coisa vai ser quase tudo, menos aquilo que você apresenta. Ou seja, é uma maneira de deformar e deturpar a realidade.

Da mesma maneira, vimos que existe uma experiência vulgar do corpo, que demanda uma mediação na medida em que nosso corpo está separado do que pode. Criar, sentir, variar no movimento, do ponto de vista do movimento imediato e intenso, é diferente de segmentarizar o movimento, de fragmentar, de estender, de cortar em estados de quantidades extensas um movimento que essencialmente é contínuo e intensivo e distribui-lo em um espaço homogêneo que na verdade é apenas um esquema mental necessário para uma certa função cerebral de organização da experiência. Da experiência utilitária do mundo, então reduzimos a realidade à essa função utilitária de conservação mais baixa da existência. E nesse sentido, esse esquema mental ao mesmo tempo que recorta nossos estados ou nossa continuidade ou nossa duração, fazendo delas sucessões e justaposições de estados psicológicos, faz da matéria ou da extensão um conjunto fragmentado e instantâneo de pontos. Só um instantinho, gente.

[Campainha — falas inaudíveis]

[Luiz Fuganti]: É, isso eu vou explicar um pouco mais agora nessa questão da memória. Eu já sinalizei isso na segmentarização do tempo e uso da linguagem, na segmentação do movimento e no uso da sensibilidade. E depois na questão da escolha também. Agora eu vou retomar isso em relação à memória, então vamos retomando isso de várias maneiras.

Esse segundo momento, essa segunda modalidade… aqui, cada modalidade teve seis aulas. A da experiência do pensamento foram seis aulas, a da experiência do corpo foram seis, a da experiência da escolha foram mais seis, agora estamos na segunda da experiência da continuidade ou da memória de futuro. Depois vão ter mais seis sobre o aprendizado e o ensino, a transmissão disso.

Mas enfim, voltando à questão da… Eu ando me sentindo aqui um pouco à vontade, Luiz, Luciana, vocês que já fizeram… Eu estou retomando isso de um outro ponto de vista. Acho que é até bom para de novo focarmos a importância da questão da memória, porque a gente ressitua ela. A necessidade de investir nesse campo de experiência. Então vamos lá.

O segundo campo de experiência é o que eu dizia, um corpo separado do que pode. Ele, na verdade, é segmentarizado em seus movimentos e ele homogeneíza o espaço. Ele fica prisioneiro de uma função cerebral orgânica que, na verdade, é uma das funções do cérebro, mas que se torna dominante, uma vez que a vida se pega investida ou demandada por essa dimensão prática, utilitária, e nessa medida é como se ele fizesse um duplo esquadrinhamento. Um de si mesmo, uma espécie de introjeção subjetiva onde a nossa duração é refratada em estados psicológicos atomizados e separados uns dos outros, onde precisaria uma costura artificial para ligá-los. Separa artificialmente e liga artificialmente. Assim como além dessa introjeção, uma projeção na matéria, no movimento, nos corpos de um esquema espacial que não pertence aos corpos, na verdade. Ou à matéria, ou à extensão. A extensão não precisa do espaço. O espaço é uma ficção. Quer dizer, ele se torna ficção na medida em que a gente acredita que as coisas estão no espaço. Ele é apenas um esquema homogêneo que vira, na verdade, o princípio de esquadrinhamento do próprio movimento da matéria. E essa fragmentação da matéria em pontos instantâneos faz com que eu perca aquilo que imediatamente gera essa dimensão do real e pressupõe uma continuidade. A própria matéria tem uma duração. Todo movimento tem uma duração. E essa duração, esse movimento, são contínuos. Nós já aprendemos isso de modo fragmentado a partir de uma facilitação prática da nossa vida cotidiana. Uma espécie de facilidade ou de conforto. É como o hábito. O hábito é um esquema genérico da nossa experiência.

A crítica a esse uso do movimento no corpo e na matéria nos libera então para o encontro ou reencontro… eu digo sempre encontro ou reencontro porque de alguma maneira é um encontro inédito e de outra maneira é um reencontro, porque nós já vivemos isso e eventualmente nós experimentamos isso. Nós reencontramos isso. Então há a condição do encontro ou do reencontro para que, aí sim, nós possamos conquistar esse modo de se mover através do corpo. E aí já é uma outra dimensão, a dimensão onde você se torna de fato ativo no corpo e não apenas você se liga novamente à fonte. Você se liga à fonte e nessa ligação você tem a energia, o combustível necessário para agir realmente e para conquistar essa maneira de se mover. Então isso seria a segunda dimensão e aqui existe uma distinção clara, de novo repetindo isso. A dimensão do encontro e reencontro nós chamamos de primeira idade. É a dimensão da conquista da primeira idade. Fizemos essa distinção para que não se confunda os dois momentos, porque uma coisa é a condição, outra coisa é a conquista. Para que você acesse a condição, é preciso saber dizer não. É preciso exercitar a veia crítica. E é preciso fazer da crítica uma agressividade destrutiva e não um ressentimento que visa uma construção. É justo o contrário. Aquilo que geralmente demandamos em relação à crítica é que a crítica válida é a crítica construtiva. O que estamos dizendo aqui é que é justo o contrário. A crítica só vale pelo seu poder de destruição. Do quê? Daquilo que nos separa da capacidade de existir. É isso o que a crítica visa destruir. Tudo ao mesmo tempo. De onde vem esse poder de destruição da crítica? Ele só pode ser um efeito. Se ele for um princípio, a crítica segue no ressentimento. Ele precisa ser um efeito. Um efeito do quê? Justamente da potência criativa na existência.

O que eu digo é que há uma coexistência entre a crítica e a criação. Se dizemos que o não é uma condição para encontrar ou reencontrar a fonte, essa condição não se dá sem a presença, mesmo que esboçada, mesmo que vaga, mesmo que uma intuição de uma dimensão afirmativa e criativa. A dimensão afirmativa e criativa é mais importante do que a dimensão crítica. A dimensão crítica é um efeito, mas não um efeito qualquer, um efeito realmente destrutivo, da mesma maneira que o pintinho quebra a casca do ovo quando nasce. Ele tem que destruir a casca do ovo, senão ele não nasce. Esse é o sentido da crítica. Ou seja, é preciso uma afirmação, uma espécie de rebento. A vida tem que rebentar, ela tem que se exprimir, ela tem que acontecer. Ela tem que gerar uma nova maneira de existir. Mesmo que essa geração não esteja suficientemente lapidada e construída, ela já implica           uma espécie de desconstrução, de destruição, ou ainda, de uma outra maneira, de aragem de um solo demasiadamente batido. É só isso. Revolver a terra, isso é essencial. Então esse não, esse revolver a terra é essa dimensão crítica que a gente vem exercendo nas várias dimensões da experiência do pensamento, da experiência do corpo, da experiência da escolha e agora na experiência da memória. Desconstruir a mediação. Revolver o solo do tempo e pôr o pensamento novamente em fluxo. Desconstruir a mediação do corpo, revolver as segmentaridades duras ou essa máquina de segmentarização do movimento e pondo em movimento novamente uma linha de continuidade intensiva. Fazer com que o corpo apreenda novamente esse fluxo do movimento na sua imediaticidade.

É um não que dispõe novamente as forças do corpo para produzir uma estética, uma potência plástica real onde o corpo não ocupe mais um lugar, mas faça o lugar, gere o lugar onde o movimento não seja mais simplesmente uma quantidade axiomatizável de deslocamentos, mas uma quantidade intensiva e incomensurável de variação, de alteração ou mesmo de intensidade. Ao mesmo tempo, operamos uma desconstrução da mediação na escolha, que chamamos de mediação moral. A mediação moral é aquela que nos põe em relação com objetos a escolher, ou mundos a escolher. Acasos, multiplicidades, acidentes, contingências, devires a escolher, a dividir. Nós vimos que na medida em que a vida tem vontade de dividir o acaso, de dividir o devir, de dividir o mundo, de dividir a natureza, ela já é decaída de alguma maneira. Ela já está atolada ou fixada em algum tipo de marca, de ressentimento ou ela cai em algum tipo de buraco. Só assim que ela busca uma espécie de altura resgatadora que a devolveria à superfície das coisas, a faria existir novamente a partir de um plano de resgate ou de referência, que seria o bem, que se oporia ao mal. Na verdade, que se oporia à falsidade ou ao engano. A justiça que se oporia à injustiça. A utilidade que se oporia à nocividade.

Vimos isso através da tripla ilusão de consciência fundada, na verdade, em uma ilusão de base, que é a crença de que algo se decide a partir da nossa consciência e ao mesmo tempo que a consciência é primeira quando, na verdade, a consciência é efeito. Ela é sempre segunda ou terceira, ela é sempre resultado. Quando a consciência se põe a decidir, o essencial já está decidido. É por isso que sempre somos escravos quando achamos que decidimos via consciência. Nós já estamos sendo determinados de alguma maneira a dizer que “eu escolho isso”, “eu escolho aquilo”. É uma falsa escolha, na verdade. Então essa ilusão de base é justamente o efeito no lugar da causa, que é a própria natureza da consciência. Não é problema com a consciência desde que ela não queira ser causa. Está tudo bem. Ela é o que ela é. Quando ela pretende ser causa é como o cérebro organizado para a prática. Quando ele se pretende a especular, “espera aí, ô cérebro, volta para o seu lugar”. Quer dizer, ou “ô parte do cérebro que faz isso, volta para o seu lugar. Você é uma parte que faz isso, você acha que você apreende o real desse ponto de vista unitário que você tem?” O seu limite não é uma negação, o seu limite é uma posição positiva, mas é naquela posição positiva, tem aquela realidade que tem. E não mais que imaginamos que tenha. A mesma coisa a consciência. É só a consciência não se pôr a comandar, não ter a petulância de achar que decide alguma coisa, que está tudo bem. Se o efeito não quer ser causa, está tudo bem. Se a lua não quer ser sol, está tudo bem. As coisas são o que são, elas têm realidade própria. Não tem uma referência que as substitua, que as compare, que as valorize, que as desvalorize, que as justifique, que as faz existir, que não faz existir.

A consciência é isso, ela é sempre efeito. Ela é sempre retardada e esse retardamento não tem nenhum defeito, ou nenhuma ilusão, ou nenhuma ficção, nenhuma superstição, a não ser que ele queira ser um adiantamento. Aí sim. Aí ele quer inverter. E é isso o que Espinoza chama de “ilusão de base”, o efeito no lugar da causa, ou Nietzsche chama de “imagem invertida”, que na origem do ressentimento ela vai ter a tendência de ser projetada nas coisas e introjetada no inconsciente. Você projeta essa imagem no mundo, essa imagem invertida, e você introjeta ela em você. É a mesma questão em Bergson também. A questão da visão retrospectiva ou o que ele chama de “virada da experiência”. É sempre esse ponto, essa ilusão de base.

Nós vimos então que a consciência moral é necessariamente uma consciência escrava e que a moral busca então ligar a existência ao que ela deve justamente para resgatar a existência da sua queda ou da sua falta essencial. É como se na existência houvesse uma espécie de sofreguidão infinita, ou de carência, ou de infinita insuficiência de ser. Como se ao desejo faltasse algo, o desejo fosse constituído pela falta. Essa é a visão que atravessa tudo, a psicanálise, as metafísicas, as morais. O homem acredita nisso porque ele vive assim. Ele já está nessa posição separada do que pode.

Se a crítica à moral é necessária, é necessária para retomarmos a existência do ponto de vista da sua potência. Ligar a existência ao que ela pode, e não ligar a existência ao que ela deve. Quem liga a existência ao que ela deve é a moral. E quem precisa ligar a existência ao que ela deve já é uma vida que necessita de uma condição tal para sobreviver e para se desenvolver. Precisa fixar, investir na conservação de uma condição que a faria, digamos assim, mais feliz, mais segura, mais em paz, mais virtuosa, melhor, mais verídica. Enfim, mais justa, mais útil.

Essa necessidade moral já é uma covardia existencial. Já implica no mau uso que fazemos das nossas dores e também dos nossos prazeres. Não apreendemos de fato o que se passa em nós do ponto de vista da causa e atribuímos o que se passa em nós a uma causa imaginária. E se algo se passa de ruim em nós, essa causa imaginária é sempre um outro — que pode ser até você mesmo, mas vira uma causa culpada. E se algo se passa de bom, pode ser em virtude de um outro, que eu vou amar. E coitado do outro que eu amo, porque eu vou querer mantê-lo naquela mesma posição, vou precisar muito do amor dele. Ou então eu posso amar a mim mesmo, e aí vira uma espécie de orgulho ou de ambição. Não é aquele amor autêntico de quem é livre. Claro que amamos a nós mesmos, e é essencial amar a si mesmo, mas não desse ponto de vista tolo, narcísico, egóico.

Esse mau uso essencial implica então em uma falsa escolha. Você, em vez de escolher aproveitar as suas dores e prazeres enquanto combustível e fonte de criação, desperdiça dores e prazeres para identificar em outro que é responsável pelas suas alegrias e pelas suas tristezas, pelas suas misérias e pelas suas felicidades. Quando você responsabiliza, você sempre remete o que te acontece a alguma coisa fora de você. E isso é a visão do ressentido, é a visão do moralista, é a visão do homem de bem. O homem de bem funciona assim. Ele sempre… o “homem verdadeiro” funciona assim.

Então essa crítica à moral, ao modo moral de ser, a esse “dever ser de base” é essencial para que reconquistemos não o poder, mas a potência da existência. Elevar a existência ao máximo que ela pode. Ao máximo de abertura e fazer de toda abertura uma necessidade, de toda contingência uma essência, de todos os devires a capacidade de se produzirem seres. Ou seja, você afirma tudo o que acontece. Você é capaz de afirmar todo acaso e não só uma parte, como fazem os moralistas. E em vez de você então escolher entre uma coisa ou outra, você escolhe, em cada coisa que te acontece, aquilo que ela tem de necessário, extrai uma essência e produz um ser. Isso é ser digno do que te acontece. Isso é, digamos, conquistar a altura do próprio acontecimento. Ser filho do acontecimento e agradecer esse nascimento pelo acontecimento com criação, com ponte para o futuro. É assim que agradecemos a vida: criando. Porque a gente é criado, mas é criado com uma capacidade de criação. Então somos criados não simplesmente para usufruir e gozar de algo que já está criado. Somos criados também para criar. E se há um destino na vida, não tem outro, é esse. A vida, a existência é destinada à criação e não à conservação, à preservação daquilo que supostamente se é. Geralmente o que “supostamente se é” é um estado fixado em potência. Em potência de acontecer, em potência de variar, que faz com que tenhamos desgosto pela diferença e não gosto real pela diferenciação. E que no máximo toleremos a diferença, porque esquecemos tudo. Apreendemos também como uma diferença que quer ser tolerada. E aí toleramos o outro também e não temos um gosto real pela diferença.

Essa terceira dimensão, essa terceira modalidade que vimos desconstruindo e ao mesmo tempo liberando, esse aspecto criativo que chamamos de ética na modalidade de escolha, que se opõe à moral ou que entra em contraste com a moral já é, digamos assim, uma conquista de uma maneira de viver, uma capacidade de fazer a seleção, de fazer a diferença. Mas por que então a quarta modalidade? Porque, aparentemente, isso já basta. Já sabe fazer a diferença. Mas a quarta modalidade é justamente a maneira de você, ao conquistar isso, se manter aí. E aqui salta o sentido nobre da conservação. Conservar o quê? Conservar a capacidade de se manter em devir, mas não em qualquer devir, em devir ativo. A quarta modalidade vem trazer essa dimensão da experiência que se produz a si mesmo como ponte que continua o próprio desejo, que continua o próprio querer ativo, que além de se preencher com alegrias ativas ou com intensidades ativas, se prolonga, se distende, se tensiona, se contrai e se expande ao máximo que pode. Essa continuidade, esse plano de continuidade é muito diferente do plano de continuidade dos homens que vivem separados do que podem. Aqui também teremos que operar uma crítica e apreender a dimensão criativa. A crítica à uma falsa continuidade, assim como, evidentemente, desconstruir a falsa descontinuidade, o falso corte. Eu vou encontrar uma continuidade real e onde de fato essa continuidade real se diferencia ou corta, mas cujo corte não é um limite, ou um muro, ou uma fronteira que me põe diante de um abismo, e sim cujo corte é uma ponte. O corte é a própria ligação ou a passagem, em vez de ser um limite é um limiar que faz com que a minha diferença mude de natureza ao passar. Aqui sim eu estou em uma espécie de duplo elemento que vamos desenvolver melhor, da continuidade. Duplo elemento da continuidade. Uma continuidade intensiva, de quantidades intensivas, e uma continuidade qualitativa, só que dessa vez de qualidades expressivas.

A falsa continuidade implica no encadeamento de qualidades representativas ou representadas, e não de qualidades expressivas. Assim como ela quantifica, na verdade, quantidades extensivas e segmentariza essas quantidades extensivas. Nós estamos falando de outras quantidades. Não extensivas, mas intensivas, portanto incomensuráveis, insubstituíveis, irredutíveis na sua diferença. E de qualidades expressivas e não representativas ou que substituem uma suposta realidade que é qualificada em uma outra instância que já teria uma natureza diferente. Não. A qualidade expressiva já é a liga, já é a memória, já é a memória de futuro. Então nós vamos ligar qualidade expressiva com memória de futuro, com a condição de uma continuidade do querer ativo e autossustentável. Aqui nós não só reconquistamos e condição da experiência do pensamento, a condição da experiência do corpo, a condição da experiência da escolha, de modo imediato, essa experiência extraordinária, como chamamos, como nós conquistamos a continuidade disso. A continuidade e a sustentabilidade disso. A única conservação nobre. Você conserva o quê? A capacidade de se manter ou de manter como instância primeira em você a própria dimensão criativa. Essa capacidade de criar que é conservada na potência de se continuar. É uma continuidade que não é um continuísmo, que não pressupõe uma identidade primeira, que vai ser acrescida, moldada e expandida como um império ou uma dinastia, como a própria memória humana, a história humana, a cultura humana, uma história de longa direção. Muito menos haveria um alvo, uma finalidade a ser atingida. Ou seja, não haveria um momento da totalização de todos os elementos desenvolvidos e adquiridos ao longo da história, mas a cada acontecimento já há um acabamento, já há um fim, um fim enquanto limite, mas o limite, dessa vez, agora como ponte para o infinito e não mais um limite como negação ou como morte. Um limite como ponte. Apreender a positividade do limite ou do finito. O finito tem uma perfeição.

Nós geralmente identificamos o finito como algo de imperfeito, cujo horizonte é a morte e a aniquilação. Aqui reconquistamos a ideia do finito como essa perfeição, essa ponte necessária que faz com que apreendamos o crescimento e a continuidade das coisas, que se dá sempre pela beira, ou pela fronteira, ou pela borda. “As coisas crescem pelas bordas”, para citar Gilbert Simondon, que sabe que existe uma continuidade necessária, uma passagem necessária de algo a algo, e não adianta eu representar essa passagem, que eu nada entendo da passagem se eu ficar representando a passagem.

É aqui que estamos situados. Eu fiz esse longo percurso, que é uma outra maneira de introduzir tudo o que vimos fazendo, acredito que de uma maneira diferente. Por isso que eu não senti necessidade de fazer um parênteses, porque isso faz parte do nosso processo também. Para agora apreender o valor ou a importância dessa nossa quarta modalidade, que já introduzimos em nosso último encontro.

A quinta modalidade, para resumir em uma palavra, simplesmente vai ser o seguinte: o aprendizado de todo esse encontro e reencontro com o imediato e dessa capacidade criativa ou dessa conquista em todas as esferas. Na experiência do pensamento, na experiência do corpo, na experiência da escolha e da continuidade do querer. O aprendizado e a transmissão disso. É o que chamamos de Educação para a Potência, uma vez que a nossa educação está baseada e pautada na obediência e não na potência. Uma educação para a potência teria esse propósito, essa prática, esse foco.

Geralmente, nós acreditamos que a memória — agora aprofundando um pouco mais e retomando nosso último encontro — acreditamos que a memória é uma memória de passado. Já ligamos memória a passado. E o passado é aquilo que foi. É o tempo que já se foi. É o tempo já passado, já decorrido. E que disso resta uma vaga lembrança ou até lembranças mais ou menos precisas, na medida em que se depositam em algum lugar de nós mesmos. E a tendência é responder imediatamente no cérebro. A memória se depositaria no cérebro. O que tem de pressuposto para essa afirmação, de modo muito resumido, é aquilo que o Bergson chama de “espacialização do tempo”. Mas precisaríamos entender um pouco mais isso, de uma outra maneira, mas ligando já aquilo que eu venho dizendo em relação ao que deforma, ao que deturpa a nossa interpretação do real, e desse ponto de vista, também o real chamado tempo ou a realidade do tempo. Como deformamos ou deturpamos o tempo implica essa separação da nossa existência e do que ela pode e, portanto, da potência de pensar o tempo. E nós acreditamos então que o tempo decorrido ou passado simplesmente não tem realidade, porque confundimos realidade com existência. Mas, na verdade, é o que diz Bergson em Matéria e Memória. Não é que isso não tenha realidade, ou que isso não siga sendo de alguma maneira, que não tenha um ser. Isso deixou de ser útil. É outra questão. Deixou de ser útil. Mas porque deixou de ser útil e como nós, mediocremente reduzidos à utilidade cotidiana, achamos que só o que é útil interessa, nós desinvestimos isso de ser e de realidade. Imaginamos que simplesmente não tem realidade, ou que isso está no campo do não ser. Isso é um não ser. Bergson vai inverter a fórmula, vai dizer que “o passado não é um não ser, o passado não é o que foi, o passado é”. Bergson afirma que o passado é. Afirmação forte. E que justo aquilo que acreditamos que é, na verdade não é, mas não que não seja em um sentido negativo, é que devém. O presente que achamos que é, Bergson vai dizer “o presente não é, o presente é devir. O presente não é ser, o presente é devir. O presente devém. O passado é”.

Mas o que ele não é mais? Ele não é mais útil. Momentaneamente, oportunamente, mas ele até pode ser útil, ele pode ser reutilizável.

[Fernando]: Essa utilidade então é a ética? Uma escolha?

[Luiz Fuganti]: Aí vai ter a ver com a questão da seleção, da escolha, exatamente. E quem seleciona somos nós. Esse ponto é essencial. Se é simplesmente uma mera dimensão utilitária de nós mesmos que rebaixa a escolha ou se de fato é uma dimensão que leva a nossa existência ao máximo que ela pode. Então quem escolhe a nossa?

Mas aqui, só para ficarmos em uma fórmula simples, podemos dizer o seguinte: que o passado, em vez de ser representado como aquilo que foi, ele se torna uma função de futuro. Ele não representa o que foi, mas ele é função do que devém, do que está por vir. Olha o que o passado se torna. Muda completamente. Em vez de ele ser um depósito de inutilidades, ele se torna uma usina de variação.

[Rosa]: Não deixa de ser útil.

[Luiz Fuganti]: Não deixa de ser útil e essa utilidade vai deixar… ele deixa de ser útil nesse sentido banal, mas ele passa a ter uma virtualidade que vai criar um outro tipo de utilidade, que é uma utilidade intensiva da vida, expansiva da vida, e não mais essa utilidade reprodutora da vida, repositora da vida ou conservadora de uma existência que está aí às voltas com as demandas imediatas da sobrevivência. Então criaria um outro tipo de interesse. Um outro tipo de utilidade, é uma utilidade extraordinária, digamos assim, um útil que nem deveríamos chamar de útil, para não confundirmos com esse útil ordinário e vulgar.

O passado enquanto função de futuro precisa ser apreendido de um modo diferente do que é a imagem que fazemos do tempo, que é sempre uma imagem cronológica de sucessão. O passado é o que foi, o presente é o que é e o futuro é o que será. Não é nada disso. Ou se isso é, isso é apenas na imaginação e em um tipo de imaginação, nem toda imaginação é assim. Seria uma imagem do tempo. O que Bergson vai trazer de essencial, em toda a filosofia dele, para falar de múltiplas coisas, ele sempre traz a ideia de coexistência. Então não é que o passado não existe mais e ele já foi. Ele segue coexistindo com o presente. O passado é contemporâneo do presente. Esse é o ponto.

O passado é uma realidade, mas a realidade dele, o modo de existência dele é uma existência virtual. Ou então, não mais usando a palavra “existência”, vamos dizer que de fato o passado é o que não existe, mas ele não deixa de ser real. Assim não confundimos mais realidade com existência. Há uma realidade que é virtual. Uma coisa é a realidade existencial, outra coisa é a realidade virtual dos modos do real. Os dois modos do real coexistem, são contemporâneos um do outro. Portanto, eles se atravessam. Portanto, eles seguem se implicando. Portanto, há uma pressuposição recíproca entre o real atual e o real virtual. Em qualquer acontecimento eu posso apreender a dimensão efetuável do acontecimento, a dimensão atual do acontecimento, e a dimensão inefetuável dele mesmo, o inesgotável do acontecimento. Há uma dimensão inesgotável do acontecimento. Isso que é a realidade virtual. A realidade virtual é tudo aquilo que alimenta infinitamente uma maneira de acontecer. É o combustível eterno do próprio acontecimento que tem uma espécie de esplendor neutro, como diz Deleuze na Lógica do sentido. Um esplendor neutro do acontecimento. Um esplendor eterno e neutro do acontecimento.

Essa contemporaneidade do passado e do presente eu posso falar que acontece também em relação ao futuro. No fundo, futuro e passado estão na mesma dimensão, e o presente estaria em outra dimensão, mas as duas dimensões coexistem e se atravessam. Não é que uma venha depois da outra. E aí podemos chamar, para compor com esse pensamento, a filosofia histórica, dos históricos gregos. Eles vão fazer distinção de dois tipos de tempo, vão fazer duas leituras do tempo. A leitura de um tempo presente, que remete aos corpos. Só o corpo existe no espaço, dizem os históricos. Ou melhor ainda, no vazio. O vazio é o virtual do movimento. E só o presente existe no tempo. O passado e o futuro não existem, mas são reais. O passado e o futuro são virtuais. É o que os históricos chamam de aeon. O aeon é o passado e o futuro ao mesmo tempo. E o presente seria chronos. Eles ligam isso a chronos, apesar de que a leitura deles de chronos seria diferente dessa simples leitura imaginária que eu acabei de expor aqui, uma sucessão imaginária. O chronos, para eles, é a extensão da ação e da paixão do corpo. É até onde se estende a ação, até onde se estende a paixão é que eles contam como tempo presente. Nessa medida, o nosso passado imediato é também presente. Ele segue aqui, existindo, então nós temos uma existência de tempo atual que implica, inclusive, o nosso passado, inclusive o nosso nascimento. Isso é atual, é o nosso passado imediato. Há aqui uma extensão da ação e da paixão que atravessa o corpo, ou das ações e das paixões que atravessam os corpos. Nessa extensão é que eu tenho o tempo presente. Só o presente existe no tempo e só o corpo existe no espaço. O vazio não existe, mas é real. É o virtual do movimento, é o virtual do corpo. O passado e o futuro não existem, mas são reais. É o virtual do tempo, é o virtual do acontecimento.

Nessa medida, eu posso fazer uma operação, quer dizer, apreender a operação de que na verdade o passado, supostamente que foi e que realmente é, também é como um porvir. Existe uma música que vocês já devem ter ouvido, do Renato Russo, que ele faz um esforço para entender, ele não entende, ele quer entender, “Quem me dera ao menos uma vez / Explicar o que ninguém consegue entender / Que o que aconteceu ainda está por vir / E o futuro não é mais como era antigamente”. É justamente essa posição. O passado sempre está por vir. Há uma memória de futuro e o futuro sempre muda, na medida em que o presente se efetua. O horizonte é sempre movente, é sempre móvel. Por isso que o horizonte não é um projeto, não é uma projeção. Se há projeto, é só para ele se desfazer, ou uma espécie de protocolo de experiência. Uma espécie de programa que se mistura com a própria realidade que se tece em ato. É uma antecipação do futuro no agora.

Então nós vamos aqui nos servir de um outro pensador, que é o Nietzsche. Já falamos de Bergson, dos históricos, vamos falar de Nietzsche. Nietzsche diz que o que diferencia o homem do animal, essencialmente, o maior problema do homem — ou do animal homem — é fazer nele ou criar nele uma potência. Que potência é essa? De dispor do futuro. O homem, um animal que é capaz de dispor do futuro e dispor do tempo. Essa disponibilidade do tempo, essa disponibilidade do futuro implica uma continuidade do querer. Uma continuidade do querer. E aí agora eu me ligo novamente a Bergson. Se o passado não é o que foi, o passado é, e se a nossa existência é duração, se algo dura em nós, algo de nós mesmos se conserva. Há uma espécie de ser em nós que se conserva, que atravessa todas as nossas mudanças, que se continua. E há algo que muda essencialmente, porque existir ou durar é mudar. A mudança faz parte da nossa essência. Mas como mudaríamos se ficássemos colados ou fixados àquilo que nós fomos ou queremos manter em nós? Não mudaríamos. Ou simplesmente repetiríamos, ou reproduziríamos, ou melhoraríamos a forma que já éramos. Haveria o que no tempo, na evolução do tempo? Um reforço da suposta identidade que somos nós. Reforçaríamos a identidade com o futuro.

O que se passa na verdade é outra coisa. Quanto mais o tempo passa, ou nos movemos, ou acontecemos, mais nos tornamos diferentes do que somos. Mais nos tornamos diferentes de nós mesmos. Mais esticamos o nosso ponto de origem e a nossa ponta de atualização. Mais distantes de nós mesmos nos encontramos. Afirmar a diferença implicaria em apreender essa dimensão. Essa honestidade do que é existir, do que é durar. Mas nessa medida, então, como a diferença seria de fato implementada se a memória do futuro fosse simplesmente um projeto que eu reprojeto de um introjeto passado? De uma introjeção passada, de uma marca passada? Simplesmente com uma idealização do que foi? Para melhorar o que eu sou, e mudar para melhorar? Fazer da mudança um meio de melhoramento moral, como os espíritas acreditam, por exemplo? Só para citar um dos movimentos, vários são como os espíritas. Acho que a humanidade inteira acredita, só que de maneiras diferentes. É que no espiritismo isso fica bem escancarado, as nossas existências e reencarnações são para melhorarmos a nossa essência.

Ou, de fato, o que é na realidade virtual não tem nada a ver com uma forma, um dever ser, ou como figura, mas é uma espécie de meio extremo, de campo atrativo que se torna o motor do próprio desejo e que jamais nos diz ou determina o que será, mas nos liga necessariamente à produção de uma surpresa ou de um inédito. Capacidade de gerar realmente o inédito e chegar a um ponto de dizer, junto com Bergson, o mesmo ou a repetição (desse ponto de vista do mesmo) é impossível. É impossível que não haja e que não se produza um inédito. Mas uma coisa é esse pensamento e essa constatação, e outra coisa é tomar parte disso, aproveitar isso, viver dessa maneira. E não querer se demorar, apreender o que há de necessário, essencial de ser em toda a relação que eu entro. Nessa medida, o passado que tem esse ser, essa realidade virtual, enquanto função de futuro, é necessariamente uma distância inédita ou que faz o acontecimento ser atravessado de uma diferença jamais vista, jamais produzida. Uma diferença realmente inédita. É esse ponto que a gente precisa entender, e isso eu vou deixar lá para o nosso último encontro de memória de futuro. Na nossa sexta aula em relação a isso eu vou retomar essa questão. Como você continua o desejo sem que você se torne refém de um projeto.

Nietzsche diz de uma outra maneira. Fazer nesse animal, criar nesse animal uma potência, uma capacidade de prometer é criar nesse animal uma capacidade de dispor do futuro, e não virar refém de uma palavra empenhada ou de um ideal a ser alcançado. É disso que se trata. Isso seria uma potência. Seria um impotente imaginando que, ao se ligar a esse ideal, ele se liberaria, se salvaria, se tornaria feliz etc. É disso que se trata.

Dispor do futuro é estar, imediatamente e de modo máximo, conectado com a capacidade de acontecer. Ou seja, em devir cujo horizonte é uma afirmação. É o gosto pela afirmação da diferença que nos constitui. Afirmar a diferença que nos constitui é fazer, com gosto e não por dever, a diferença, é diferenciar. O que a diferença quer? Diferenciar. O que é a diferenciação da diferença? Geração de inédito, geração de realidade irredutível. Então, afirmar a diferença sem precisar mediar a diferença, sem precisar domesticar a diferença, sem precisar legitimar a diferença, sem precisar amansar a diferença selvagem. A diferença selvagem não precisa ser amansada, ela precisa ser lapidada. Esculpida. É outra coisa, não domesticar. Lapidada no sentido de encontrar a sua afirmação singular, plena, própria, e não entrar em uma forma mediana, medíocre, moral, civilizatória, legal, racional para ser tolerada em sociedade.

[Fala inaudível]

[Luiz Fuganti]: O adestramento vai incidir em cima daquilo que ele tem que incidir. É como a questão da consciência. A consciência é o que ela é, ela é o efeito. O adestramento deve incidir em cima das forças reativas, e não das forças ativas. São as forças reativas que devem ser adestradas. O homem moral inverte isso. O homem moral vai querer adestrar as forças ativas. As forças ativas não são adestráveis, as forças ativas são compositoras de realidade. São forças livres, espontâneas, criativas, que ousam, que se precipitam, que espreitam, mas não forças adestradas. As forças adestradas são forças de organização, forças de regulação, forças de reprodução, são funções, em última instância, de conservação. É isso o que precisamos adestrar. Precisamos adestrar em nós as funções de conservação. Isso sim. Para que a conservação seja a conservação da nossa capacidade criativa e não dos produtos que a gente cria. Aquele que cria não se apega aos produtos que cria. O que ele cuida ou se apega, talvez, onde ele tem cuidado é no investimento da capacidade de se manter criativo. Ou seja, a continuação disso. Essa é a responsabilidade do ativo. O ativo torna responsáveis as forças reativas, isso para usar a linguagem do Nietzsche aqui. Ele torna responsáveis as forças reativas. Os moralistas fazem o quê? Responsabilizam o ativo de ser criativo. Você só pode ser criativo, dizem os reativos, se a sua missão for útil a esse rebanho que precisa ter a vantagem sobre a criação dos outros. Aí, sim.

Ou seja, você legitima a ação do outro medindo-a pela utilidade, pelo bem, pela verdade que tem pelo modo de vida separado do que pode. Aí você mede, você julga a criação. Você submete a criação a essa intencionalidade, essa boa intenção dos homens bons e justos. E aí você diz assim, “a força ativa pode ser má”. Geralmente é má, por quê? Porque ela não tem intencionalidade. Aí dizem os moralistas: “não, ela é má intencionada”. Mas ela sequer tem intenção (com cedilha). Ela tem intensão com “s”, ela tem intensidade, que é outra coisa. E enquanto intensidade, ela tem uma pluralidade de sentidos. E eu vou ter o sentido que eu mereço na medida em que eu sou capaz de me relacionar com aquilo que me acontece, o uso que eu faço daquilo. Mas o moralista não é esse, ele já está fixado, e à medida em que ele está fixado, ele lê o real, o acontecimento a partir dessa fixação. Ele não reage, ele recebe. E nessa medida ele quer responsabilizar a força ativa, as forças criativas, pelas suas consequências. Mas o ativo não pensa nas consequências, porque ele sabe que a consequência dele é sempre positiva do ponto de vista da natureza criativa. É sempre positiva. Se você de fato é ativo, necessariamente a ação é criativa. E ação criativa gera valor, gera realidade, em vez de se apoderar da realidade do outro. Ela não é uma maneira mesquinha de ser, uma maneira opressiva de ser, uma maneira exploradora do outro. Ao contrário, só o ativo pode ser generoso, só o potente pode dar. O poderoso é mesquinho e precisa tirar. O poderoso na verdade é o impotente. Aquele que quer o poder é sempre o impotente.

Essa visão então de responsabilização do ativo em nós é uma visão moral. O que deve ser responsabilizado, o que deve ser adestrado é justamente as dimensões reativas. É o que diz o Bergson, “cérebro, inteligência, não se meta a especular se você tem uma função prática, utilitária. A sua função é utilizar a prática e aí está a sua nobreza. Agora, não dá para querer especular, porque você vai falsificar”. Mais ou menos isso. Então é um adestramento de certas funções no cérebro ou das inteligências que estão implicadas aí. Aliás, o nosso modo de existir produz cérebro em nós. Nós também temos o cérebro que merecemos, dependendo do modo de vida que levamos. E as instituições todas são produtoras de cérebro. Foucault já dizia, “enquanto a esquerda fica presa na ilusão de dar consciência à sociedade, para que se torne revolucionária e busque a igualdade, a direita produz a consciência”. Enquanto a esquerda fala em lavagem cerebral, a direita fabrica o cérebro, não perde tempo em lavar cérebro. Ela vai fabricar cérebro. Por que nós não aprendemos a dimensão de nós fabricarmos o nosso próprio cérebro no nosso modo de vida? O que é fabricar cérebro? Na medida em que experimentamos há uma produção de dispositivos [01:24:49] motores em nós. Toda repetição da experiência material gera um dispositivo… O que é a aquisição de um hábito? A aquisição de um hábito é a produção de um dispositivo cerebral.

Aqui entra uma outra questão, junto com a memória entra a questão do hábito, porque estamos falando de continuidade. E também nós temos os hábitos que merecemos, segundo o modo de vida que levamos. Nietzsche diz “hábito sim, vivam os hábitos”, desde que sejam de curta duração. A mesma coisa, Nietzsche poderia dizer “viva a memória, desde que seja de curta duração”. Nietzsche diz isso em relação aos hábitos, mas à memória pode-se dizer a mesma coisa. O que é a memória? Memória é a acumulação do tempo. Os hábitos são a acumulação de movimento. Então você pode acumular, automatizar, otimizar os movimentos que você acumula, assim como você pode acumular não para se entupir, mas para dispor do tempo que você experimenta.

E aí isso vai nos ligar à nossa quinta modalidade, que é a experiência do aprendizado. Dispor do tempo e da utilização da experiência. Agora, vocês veem que eu estou ainda fazendo uma panorâmica dessa quarta modalidade. No nosso próximo encontro eu já vou começar a especificar um pouco mais. Como está a hora, gente? Só para eu ter uma ideia de quanto tempo que eu tenho.

[Falas inaudíveis]

[Luiz Fuganti]: Ah, meio dia, a gente tem meia hora pelo menos. Temos muito tempo. Meia hora dá para fazer muita coisa.

[Intervalo — falatório alheio ao conteúdo]

[Luiz Fuganti]: Bom, gente, então retomando a nossa questão. Eu dizia que aqui temos sempre essa dupla operação. A operação crítica e a operação criativa. A operação crítica vai incidir em cima do que acreditamos ser a memória e em cima do que acreditamos ser o que se chama vulgarmente de projeto. Ou, de outra maneira, o que imaginamos ser o passado e o que imaginamos ser o futuro. É a imagem que temos do passado e do futuro. Só que essa imagem do passado e do futuro é uma imagem de tempo que é feita junto com a imagem do pensamento, junto com a imagem de corpo, junto com a imagem do livre-arbítrio, junto com a imagem da identidade, junto com a imagem da origem, junto com a imagem da finalidade…. Que buzina chata.

[Falas inaudíveis]

[Luiz Fuganti]: E aí de novo, mas o que faz com que nos liguemos à imagem e ao signo? O que põe o signo no lugar do pensamento? O que põe a imagem no lugar do movimento? É…

[reclamações sobre a buzina]

[Luiz Fuganti]: A imagem que temos do passado é que no passado está uma origem. A imagem que temos do futuro é que no futuro está um fim. No passado era o princípio, no futuro é o fim. E o meio? O meio é o presente. E fazemos do presente mero caminho, mera via sacra, um instrumento. Via sacra ou via profana também. Nós, modernos, já estamos na via profana. Um mero meio, um mero instrumento para se atingir uma finalidade que nos resgataria de uma espécie de indiferenciação da origem e saberíamos enfim a que viemos e de onde viemos. Esse fim tem várias configurações, assim como a origem também tem. Você tem a que é feita por Sócrates, por Platão, por Aristóteles, pela religião judaica, pela religião cristã, pela religião islâmica. Eu digo essas religiões porque são as religiões monoteístas que caem nessa ilusão. As religiões ou os mitos politeístas, em última instância, não acreditam em uma origem absoluta, desse ponto de vista, e nem em um fim último. Há até uma circularidade, e essa circularidade é de várias naturezas, dependendo também da natureza do mito. Se é um mito de fertilidade, de abundância, se é um mito de guerra, enfim. A não ser os mitos de soberania. Mitos de soberania, sim, buscam uma origem. Essa origem vai se diferenciar, nos mitos de soberania, de um começo.

Uma coisa é começo, outra coisa é origem. É como se na origem tudo fosse um caos, mas o começo é o começo do cosmos, o começo da ordem. Então entre cosmos e caos haveria uma distância, haveria uma fundação. Se você olhar nas cosmogonias antigas, esses mitos de soberania que um autor francês chamado Georges Dumézil estudou durante a vida inteira, ele sempre estudou os mitos, distinguindo três funções. As funções de fertilidade e de abundância das narrativas mitológicas, as funções de guerra e as funções de soberania. E na função de soberania Dumézil sempre encontra um ato de fundação. Uma espécie de primeira cabeça do Estado. Um ato violento de fundação. É sempre a luta de um deus contra as forças do mal ou as forças do caos, as forças da desordem. E esse deus feito homem, esse deus déspota, sendo ele causa ou fundante do cosmos, é o credor de toda ordem existente e o operador de uma continuidade dessa ordem. É onde eu quero começar a chegar, a fazer a crítica, essa continuidade implicada em um ato de fundação. E a continuidade exprime uma segunda cabeça do Estado, que é o que Dumézil chama de “lei pacífica de regulação”. O Estado é feito de um ato violento de fundação e de uma lei pacífica de regulação. Então na medida em que se funda o cosmos, se mantém o cosmos. Se organiza o cosmos, se regula o cosmos, faz ele funcionar. Para um cosmos fundado, nada melhor do que uma lei.

Aqui ainda existe uma ideia muito mais forte e problemática do que se imagina. Porque nós poderíamos dizer na sequência, do próprio Dumézil, que a civilização não se opõe à barbárie, mas que a civilização é filha da barbárie. Assim como a lei não se opõe ao terror, a lei é filha do terror. E vimos isso no filme Danton, por exemplo, ou na obra do Merleau-Ponty chamada Humanismo e Terror. Vemos hoje tantos movimentos democráticos — funcionários da democracia, da questão da igualdade que, no fundo, opera um ressentimento de base, um desinvestimento no comando real da existência — aderirem à ideia de que a forma é essencial para manter a ordem, a liberdade e a igualdade. Esse investimento na forma, mas essa forma implica uma força, sempre. Dependendo da força que [01:43:50] a forma, você vai ter a vida submetida a esse regime de regulação da forma. A forma já é necessariamente fascista ou [01:44:02] fascista. A não ser a forma como efeito, a forma como excitante, como disparador. Aí ok. A forma como um protocolo, como um álibi, como um provocador, mas a forma como comando ou como regulação é sempre uma coisa fascista. Ou totalitária, se não quisermos usar o termo fascista. Opressiva, violenta, terrorífica.

A lei surge no interior do mundo bárbaro. É justamente a lei que regula aquele mundo. Mas para que ela se instituísse, precisou de um ato violento. A instauração de um começo. Há um livrinho chamado de As origens do pensamento grego, de Jean Pierre Vernant. Muito interessante, fininho. E no último capítulo, o Vernant vai fazer uma diferença entre origem e começo. Ele vai dizer justamente que o mito, mas aí podemos especificar que é o mito de soberania, se funda nessa distância entre origem e começo. Teremos a ideia de que há um caos e a ideia de que há uma ordem ou um cosmos. Então entre o cosmos e o caos, entre a ordem a e desordem haveria uma distância. É como se em toda a natureza houvesse um caos de base, uma desordem de base. Como se nós precisássemos alçar a uma instância ordenadora e resgatadora desse caos, ou dessa desordem, ou dessa falta de realidade desse mundo caótico para acessar uma maneira verdadeira de viver. Isso atravessa toda a filosofia ocidental. Diz isso Kant, Freud, Lacan, Hegel. Mesmo a fenomenologia, os existencialistas e o estruturalismo, principalmente. O pressuposto de que há uma matéria que é caótica e desordenada. Esse começo implica uma espécie de corte inaugural. Esse corte inaugural também implica, por sua vez, uma dupla separação. Uma separação da existência do que ela pode e, portanto, perde-se a realidade imanente ao próprio caos, porque no fundo não há caos enquanto desordem, por isso não existe. Chama-se ficção. O que há é uma espécie de inacessibilidade ou tornar inacessível da ordem própria de uma realidade, e por eu não apreender essa ordem, eu digo que ela é caótica, porque é uma ordem que não serve utilmente ao meu modo de viver. E então eu desqualifico como desordem, como caos. Então esse ato implica essa separação, da nossa vida do que ela pode e, portanto, a incompreensão de que essa realidade que a gente se separa tenha ordem própria. E ao mesmo tempo a demanda por uma religação, por uma reordenação, uma vontade de cosmos, uma vontade de eternidade, uma vontade de ligação que estaria fora ou exterior à própria natureza. Seria transcendente à própria natureza.

Esse duplo aspecto se desdobra. Ao mesmo tempo em que se funda nesse corte, se desdobra. E esse desdobramento é a história humana. Bergson vai dizer que para todo falso corte precisa ter uma falsa costura. Ele não o usa o termo “falso’, mas ele usa “artificial”. Então você corta artificialmente e costura artificialmente. Ou: o modo de vida humano é uma espécie de oficina de corte e costura. Você corta ilusoriamente, artificialmente, falsamente, ficticiamente, se separa artificialmente da continuidade real do imediato que nos atravessa, que teria uma ordem, uma primeiridade, uma ordem imanente e projeta e introjeta uma espécie de secundidade ou de segunda ordem, representada, que religaria a existência a um reconhecimento, a um espelhamento, a uma aceitação, a um resgate sem o qual essa vida de dor e sofrimento não teria sentido. Esse duplo aspecto que se desenvolve dessa maneira vai fazer com que o nosso desejo vista uma memória e um projeto. Vai fazer com que o nosso desejo tenha como base uma paixão de origem e uma paixão de fim. Sofra do pathos do senso comum e do bom senso. Deseje o juízo. O senso comum e o bom senso são os dois pilares do juízo ou do sistema de julgamento. Ou, em outras palavras, do sistema da representação. O homem precisa então representar essa salvação.

E aí o que vai acontecer? Eu estou sinalizando, insistindo no que eu vou desdobrar nos nossos próximos encontros. É que essa origem vai ser a base, o fundamento de uma longa memória a ser produzida. De uma espécie de dinastia do homem. De uma base a partir da qual o homem vai evoluir ou progredir. Como o “espírito absoluto” do Hegel, vem se desdobrando dialeticamente ao longo da história, a história seguindo o desdobramento, mas fica a ação do espírito para que, em última instância, aconteça esse acontecimento último, que seria a revelação do espírito absoluto. Esse é o modo [01:51:12] cristão de Hegel, que revela que o seminarista nele triunfou. Ele, que foi seminarista de juventude, no fundo é um filósofo padre. Não um filósofo, pois um padre não pode ser filósofo. Ou seja, é um crente, um crente nessa mesma maneira de produzir uma continuidade. A partir de uma origem, em busca de um fim. Esse desdobramento então vai gerar, através do uso da linguagem, um encadeamento de signos tal que vai produzir essa longa memória e que vai fazer da própria memória uma reapresentação do passado que vigia o futuro, que obriga o futuro, que sacrifica o futuro. A memória como sacrifício do futuro. E vai se utilizar dessa máquina de corte e costura, dessa segmentação tanto do tempo quanto do movimento. E os hábitos civilizatórios, as etiquetas, as acumulações de gestos, de ações e de paixões toleráveis civilizatoriamente do corpo vão fazer parte desse processo. Assim, nós vamos organizar o corpo, criar um organismo para o corpo, inserir o corpo, os órgãos e as funções de órgãos desse corpo sem órgãos em um organismo, pendurar o corpo nesse organismo. E suas potências intensivas de variar o movimento, vamos estendê-las nessa segmentação extensiva, e encadeá-las, fazer uma cadeia de segmentos e gerar uma falsa continuidade do corpo. Como o corpo de um trabalhador que dá passos pesados e carrega, essa continuidade é carregada. É a continuidade de um burro de carga que segue carregando. É um corpo que carrega, é um corpo pautado no espírito de herdade [01:53:34], na força que puxa ele para baixo, é um corpo pesado. No melhor dos casos, muito bem comportado, muito bem etiquetado, digamos assim, muito bem até refinado nos gestos, mas você sabe que são gestos pesados, que não são gestos leves, ligeiros, velozes, que dançam na superfície, mas são gestos articulados, encadeados a partir de uma forma, de uma figura engessada do gesto.

Da mesma maneira, o pensamento. Encadeado, de modo científico ou de modo metafísico. Metafísica e ciência aliadas na construção dessa grande memória, dessa memória de longa duração que nos filia a um pai, a uma origem, a um princípio. E que nos filia também à dívida gerada por esse pai, por essa origem ou por esse começo. A dívida de fundação, que no fundo vira uma dívida espiritual infinita. Uma dívida de existência. Como se paga a dívida de existência? Inserindo-se na linha do progresso. Inserindo-se na linha de evolução e continuando essa segmentação. Tornando-se um funcionário de uma continuidade segmentada. É assim que recompensamos, que ganhamos existência e somos reconhecidos, que somos aceitos, que colhemos nossa redenção diária, as pequenas vantagens e os pequenos prazeres a partir dessas pequenas escravidões.

É essa falsa continuidade a partir de um falso corte que precisamos descontruir. Em nosso próximo encontro eu vou focar em como operamos o esquadrinhamento do tempo e do espaço, como criamos uma falsa multiplicidade, uma espécie de multiplicidade numérica, homogênea, aparente, e submete essa multiplicidade a uma falsa unidade portanto e a uma falsa totalização de conjunto. Dessa maneira, vamos descontruir a memória que é uma função de sedentarismo e vamos, ao mesmo tempo, liberando uma espécie de memória nômade, que é uma memória de passagem, de curta duração, que opera ligações singulares através da criação de qualidades expressivas. O que faz com que a nossa existência seja fundada em uma própria diferença, em uma diferença que nos constitui e, de fato, afirme essa diferença, gere ainda mais gosto pela diferença e, em vez de buscarmos um lugar de identidade e responder à tal questão “quem somos nós”, a cada vez aproveitar a oportunidade de nos distanciarmos ainda mais de nós mesmo. Afirmar a diferença que nos constitui. Pluralizar essas distâncias em nós. Ser livre é criar distâncias de nós mesmos. Distâncias necessárias e justas, sem as quais os nossos tempos próprios e movimentos próprios são esmagados.

Aqui vamos levar ainda mais longe a ideia de liberdade que já tínhamos desenvolvido lá na terceira modalidade, que era a questão da ética ou da escolha. Denunciando a falsa liberdade moralista e uma liberdade que é a capacidade de efetuação da própria natureza na potência ética. Agora, essa liberdade de efetuação da própria natureza também é uma liberdade de criação de pontes e distâncias. Distâncias do movimento, distâncias do tempo. Então essas distâncias são, na verdade, elementos diferenciais que constituem a nossa multiplicidade. Nós somos uma multiplicidade, sim. Não uma falsa multiplicidade estatística feita de elementos homogêneos, nós somos uma multiplicidade real feita de elementos heterogêneos. Elementos heterogêneos que são quantidades intensivas e qualidades expressivas, cujas diferenças que se exprimem aí, ao se diferenciar habitam o limiar de si mesmas e mudam de natureza. E se revezam, se alternam na coexistência de nós mesmos. Então essa [01:58:28] que somos nós mesmos, essa complexidade de dobras que somos nós mesmos são fabricadas e operadas na maneira de existirmos. Ao existir, ao acontecer, nós dobramos fora e dentro. Nós somos um fora selecionado e temos o dentro que merecemos. Esse dentro é lixo, esse dentro é peso, esse dentro é o que foi, o que não resgato mais, ou esse dentro é plataforma de lançamento, é memória de futuro? É esse o ponto. Fazer do nosso dentro memória de futuro. E aí, somos capazes de, de fato, nos ligarmos àquilo que o Nietzsche chama de “uma vida ascendente”, que é o contrário de uma vida decadente. O que é uma vida ascendente? É a vida que é capaz de apreender e aprender realmente com a experiência. É a vida que é capaz de produzir de fato uma experiência extraordinária. Isso é uma vida ascendente. Essa vida não tem idade. Não importa o tempo em que ela aconteça. É, como diz Deleuze, para falar sobre o devir criança, “é o devir jovem de cada idade”. É se manter em acontecimento, cujo horizonte é afirmativo e implementa um devir ativo, autossustentável. Então essa é a continuidade que queremos. E isso o que precisamos desfazer nessas nossas discussões que são pautadas em falsos problemas de uma suposta mediação que deveria ser atalhada ou iluminada. Há uma mediação que te põe em contato com o imediato o mais rápido possível. Essas mediações devem ser cultivadas nesse sentido, para que você possa, o mais rapidamente possível, se desfazer delas, não precisar mais delas. Mas aí você vai ver que não havia dicotomia entre imediação e imediato, que a própria mediação é a espessura do imediato. Esse é o ponto essencial. É por isso que é necessário experimentar realmente, passar, e não ter a imagem da coisa e achar que já entendeu e vai se operar uma transformação a partir de um livre-arbítrio, de uma declaração de intenção. “Já sei o que é fazer. Quando eu vou fazer?”. Enquanto a coisa estiver nesse nível… bom, a própria realidade trata o tempo inteiro de nos frustrar, porque sempre vamos cair naquela velha frase de Ovídio, o romano Ovídio, que o Espinoza citava para definir o que é servidão: “Sei e quero o melhor, e sempre faço o pior”. Porque não basta declaração de intenção, não basta ter uma ideia, uma fotografia na estante. É preciso fazer daquilo um afeto. É preciso fazer de uma ideia uma espessura, uma experimentação, um acontecimento. É assim que eu sustento a alma no corpo, é assim que ela ganha corpo, é assim que ela se torna corpo e produz corpo em mim. Então é a tal da lição de casa que gente tem essa semana.

É por isso que esses cinco planos da experiência estão aí, sempre para lembrar da coexistência das várias dimensões do existir. Não basta ter consciência, muito pelo contrário, é preciso chegar ao pensamento, mas o próprio pensamento acontece também em outras dimensões, com outros nomes. A dimensão do movimento, a dimensão da escolha, a dimensão da continuidade, a dimensão da prisão. Então é esse modo de vida ascendente que quereremos. Dizem “super-homem do Nietzsche”, poderia ser uma coisa romântica ou uma coisa de Superman, mitológica. O super-homem é isso, você produz o super-homem aqui e agora. O além do… o que é super-homem? É ir além, ultrapassar esse modo do homem viver, sempre covardemente, apoiado em uma muleta ou uma mediação. Nós não precisamos disso. Isso é um desperdício. Mas enquanto não sabemos, nos agarramos radicalmente a isso, fanaticamente a isso, como se sem isso a vida fosse impossível. É como aqueles que dizem “impossível uma sociedade sem lei”. E eu posso dizer, “de fato é impossível uma sociedade escrava sem lei”. Assim como Kant diz “há uma ilusão de base, um limite do conhecimento”. Bergson diz para ele, “Kant, o limite do seu conhecimento nada mais é do que o conhecimento confundido com aquele conhecimento baixo da experiência utilitária”. É esse conhecimento que tem limite.

Então, essa vontade de limitarmos ou reduzir as coisas sempre a um impossível já começa em um atolamento de nós mesmos. Temos que nos desconstruir, dissolver esse desejo, essas forças que estão cristalizadas em estados de corpo, em estados de mente, em estados de… Desejo para apreender toda a presença que nos constitui. No tempo, no movimento, além da própria virtualidade. Não é só uma presença existencial, mas é uma presença também virtual. E aí sim eu sou capaz de dizer “o eterno se fabrica aqui e agora”. E eu posso ter a minha vida em minhas próprias mãos. Isso deixa de ser uma utopia, um romantismo, ou qualquer coisa desse naipe. Então é esse o ponto que precisamos chegar, é fazer nós mesmos um laboratório de experimentação, de produção de si, uma prática de si. Fazer da nossa própria vida uma obra de arte.

Na nossa próxima aula, no nosso próximo encontro vamos nos aproximar um pouco mais desse modo de segmentarizar e de cortar arbitrariamente a realidade, e de costurar arbitrariamente a realidade, e aos poucos ir liberando um modo real, não simplesmente artificial, de corte e de continuidade.

 

 

 

Adicione seu comentário

© Escola Nômade de Filosofia