fbpx
Ler outros textos

Formação Pensamento Ocidental – aula 1/32 – Introdução ao curso

Luiz Fuganti

O programa passa, acredito eu, uma ideia de sequência – até de sequência cronológica – dos temas ou dos problemas abordados. A questão é que, no nível do pensamento, nunca se pode atuar de modo sequencial, como se houvesse uma sequência de instantes sucessivos que gerasse uma consistência no pensamento. O pensamento não opera por sequência cronológica. E muito menos é necessária uma sequência histórica para se pensar. Nós não precisamos de nenhuma instrução, de nenhuma erudição para exercer o pensamento. Aliás geralmente quanto mais instrução, menos pensamos – é o que acontece. Quanto mais sabedoria temos, menos pensamento nos atravessa.

Essa questão da sabedoria acho que vou esclarecer hoje, de alguma maneira. A sabedoria é mais ligada a sacerdotes, religiões, Estados, leis, estruturas fixas que devem ser conhecidas por meio de alguma ascese ou de algum exercício que leve à ascensão até essas formas, do que propriamente a um exercício de pensamento. Então a nossa questão sempre estará ligada a um retorno para a imanência do pensamento, quando se pensa em ato.

Então na medida em que falarmos de questões históricas, de sequências, de obras, de pensamentos, de lugares e de tempos, nós falaremos sempre de um ponto de vista geológico, de um ponto de vista de um arqueólogo – para mencionar dois pensadores que nos são afins, Foucault e Deleuze. Foucault sempre viveu a relação com a história como se a história fosse uma condição praticamente negativa. A história nunca foi fundamento de nada a não ser um limitador do qual nós devemos fugir para criar. Então podemos livrar as nossas costas do peso da história nesse sentido; ela vai ter apenas uma função aqui, na medida em que ela é co-presente ao nosso modo de vida. Então é mais ou menos como fala Bergson: o passado não foi, o passado é. E na medida em que o passado é, coisas que aconteceram há 10.000 anos atrás com o nascimento do Estado, ou há 4.000 anos, ou há 2.500 anos com o nascimento da cidade grega, de alguma maneira nos afetam porque elas coexistem com o nosso modo de vida. Então nós falaremos do ponto de vista histórico sempre como um contratempo, sempre de modo intempestivo como fala Nietzsche, de modo inatual. O Nietzsche tem uma postura em relação à história – e ele tem até um texto nas Considerações Intempestivas ou Extemporâneas, na segunda dissertação que chama Da utilidade da história para a vida, onde ele destitui a erudição e o acúmulo de saberes e vê a história como um inimigo da vida. E a memória seria um impedimento do devir.

Então nós vamos fazer uma distinção, evidentemente, entre um tipo de memória negativa e uma memória que no fundo é memória de futuro, é função de futuro. Nós trabalhamos sempre com elementos históricos nunca do ponto de vista histórico, mas do ponto de vista da co-presença dos planos que nos atravessam aqui e agora. Por isso a ideia de que esse programa pode trazer junto essa ilusão de sequência, mas a nossa sequência nunca é uma sucessão, são coexistências de planos que nos atravessam. Em qualquer nível – nível econômico, social, político, histórico, antropológico, biológico, químico, físico, metafísico, cósmico, lógico, linguístico, etc.: o que leva à formação de algum polo que se torna uma instituição e que cria modificações no nosso modo existencial é o que interessa. Então esses polos, essas instituições, esses acontecimentos, essas formas – de curta ou de longa duração, como falaria Foucault – vão ser – na medida do tempo que temos, das condições que temos e da nossa capacidade – desmontadas. Queremos desmontar isso, queremos desmontar o pensamento ocidental.

Mas para desmontar o pensamento ocidental seria interessante sabermos como ele nasce. Que diferença há, essencialmente, entre o pensamento ocidental – ou, mais restritamente, entre a filosofia ocidental, o nascimento da filosofia na Grécia, do século VI e V – e um outro modo existencial que seria o modo do sábio ou do sacerdote. O modo do sábio – ou do sacerdote, ou o oriente – estaria ligado ou voltado a uma interpretação de formas prontas, de sabedorias prontas. Então na medida em que ele atinge as sabedorias, ele se conforma a uma forma preexistente. A sabedoria seria preexistente. Isso fica muito claro quando vemos as condições desse tipo de prática de pensamento e as condições do nascimento da filosofia na Grécia. O oriente sempre foi atravessado por máquinas de Estado, por ordens despóticas que criam uma cristalização de códigos ou de sobrecódigos que recaem sobre um povo e sobre uma terra. Então os autóctones, as tribos, as populações que estão sob o poder de um déspota, por exemplo, estarão também submetidas a um saber que interessa à formação social despótica. E o déspota tem os seus escribas e os seus sacerdotes que formulam os códigos e os sobrecódigos, interpretam e julgam, ainda que essa instância de juízo seja diferente do juízo ocidental.

Vamos supor que você seja um habitante de uma sociedade despótica. Você não tem a chance, ou a ocasião, de decidir a tua vida por você mesmo, você não tem ocasião de pensar as relações sociais a partir do seu desejo, a partir do seu modo inventivo, a partir da sua criação. Você está submetido às formas impostas naquela sociedade. É nessa sociedade que o sábio e o sacerdote têm a sua função essencial. Então a diferença entre o sábio/sacerdote e o filósofo é que o filósofo nasce numa condição absolutamente distinta.

A sociedade grega que se forma – desde a queda do Ánax micênico a partir de mil trezentos e pouco a.C, passando pela idade média grega que vem até o século VII, e o século VI com o nascimento da cidade -, as condições geográficas, econômicas e políticas desses povos, desse lugar, dessa época, levam a pessoa que ocupa esse espaço a inventar a partir da sua relação livre no interstício, na exterioridade dos impérios orientais. Leva alguém a inventar uma maneira própria de se relacionar. Eu vou explicitar esse momento de forma bem mais clara nas nossas próximas aulas. Mas o que eu quero dizer agora é que o povo que forma a Grécia ou as cidades gregas não está sob o jugo de um déspota, não está sob o jugo de um Estado despótico. Não tem que produzir – nem em nível artesanal, nem em nível da terra, nem em nível de qualquer produto que ele gere – algo a ser sobrecodificado por um déspota e tributado por esse déspota, ou para aumentar o estoque de um déspota. Há artesãos, mercadores e camponeses livres na Grécia, que têm que inventar a sua própria condição social, o seu próprio modo de se relacionar. Eles precisam inventar uma nova relação. Uma nova relação que não é nem a das sociedades selvagens, nem das sociedades de Estado, as sociedades despóticas. Eles vão criar um tipo de sociedade absolutamente nova. Então eles estão inventando relações, instaurando relações – econômicas, políticas, sociais, familiares, religiosas, jurídicas, dietéticas, amorosas, de si para si. Eles estão mergulhados num campo de imanência, eles não estão remetidos a um plano referencial exterior, eles não remetem as ações, as práticas, as ideias, o seu modo de vida a uma coerção, a uma subserviência, a uma escravidão ou a uma sabedoria divina ou despótica. Eles necessitam inventar o jeito de viver, o modo de viver.
Então é no modo de vida que está o segredo de qualquer coisa. A pedra de toque da liberdade, da escravidão, do pensamento, da submissão à sabedoria, está sempre no modo de vida. O modo de viver é simultaneamente ético e estético. Ele cria regras éticas, que podem até ser regras morais, e ao mesmo tempo ele expressa um modo da energia ou do desejo atravessar o corpo que faz do corpo e da alma uma expressão estética, uma obra de arte. Ou um trapo.

Então a posição de alguém que se encontra submetido a um regime despótico é completamente diferente da posição de alguém que tem que inventar as próprias relações – mesmo que essas relações sejam inventadas a nível coletivo. O que se passa na Grécia é fundamentalmente um movimento de encontro ou de conjunção de forças: de indivíduos autóctones – nascidos na região; estrangeiros que estão nos interstícios dos Estados despóticos, que circulam e que não se submetem, que estão à margem do Estado despótico; de colonizadores como no ocidente italiano. Ou seja, elementos que precisam criar o seu modo de agir e pensar independente dos Estados despóticos, que toleram esses elementos porque de alguma maneira eles são úteis ao Estado. De alguma maneira circula uma espécie de mercantilismo, cujo teor é a fabricação de certos produtos e a troca com certos elementos que não seria vantajoso produzir no interior dos Estados despóticos. Então haveria como que uma relação de tolerância entre essas sociedades. Mas o que está nascendo na Grécia é uma sociedade completamente nova.

Então você não é mais submetido a uma tribo, a um regime selvagem onde não existe Estado, não existe economia de mercado, não existe propriedade privada, não existe nenhum dos elementos que acreditamos ser constitutivo de uma sociedade. Eles têm um modo próprio de se relacionar onde a própria troca não é a base da relação. Não se concebe a troca entre selvagens, concebe-se sempre relações de dons e contra-dons, ou momentos e blocos de dívidas. É uma coisa que eu vou explicar em outro tempo, mas enfim tem-se na sociedade selvagem um modo próprio de se relacionar com a terra e com o território onde a terra está sempre presente, é um campo de imanência que atravessa qualquer relação na invenção do território selvagem. O selvagem cria o seu território a partir dos limites, das regras, dos códigos que fazem com que aquele tecido social permaneça um tecido social, para que aquilo se mantenha enquanto uma consistência de sociedade.

Esse território é formado numa relação imediata com a terra – a terra está sempre se manifestando no território. A terra se manifesta nos órgãos, no corpo, no olhar, na voz, nos deuses. Os deuses são deuses da terra. A terra tem um sentido no mundo selvagem. A escrita dos selvagens é uma escrita na terra, é uma escrita nos corpos, é uma escrita ampla; não é uma escrita significante como a nossa – que é uma escrita linear que depois os regimes despóticos inventaram. Não é uma escrita significante jamais, o signo é sempre uma posição de desejo no regime selvagem.

E o que é a sociedade despótica? É um bando que se destaca da sociedade selvagem, retorna em cima de um conjunto de comunidades autóctones e estabelece um regime de terror com o poder e a lei funcionando com sobrecódigos. Você sobrecodifica aquela sociedade e forma um outro regime social cujos indivíduos são escravizados, são servos dessa máquina, desse regime despótico.

Então até o nascimento das cidades gregas só conhecemos esses dois tipos de vida, dois grandes modelos de vida: a vida em comunidades selvagens e a vida em sociedades despóticas. A vida em sociedade despótica arranca a terra da imanência, há uma espécie de desterritorialização, de descolamento da terra. E a realidade fundamental, que era a própria terra, é projetada para o céu. O Estado despótico se forma no céu, na altura do céu. Ou, ainda melhor: na altura de um mundo supra-celeste, ultrapassa os céus, porque o déspota fica fora de um regime de leis e de ordens, o déspota comete incestos, comete o que ele quiser, ele está acima da lei. Então ele está acima do céu da lei, do céu do significante. É o mundo supra-celeste. É um movimento de descolamento da vida e da terra: o desejo, ao invés de se relacionar diretamente com ele mesmo, com os corpos, com a terra, movimenta-se agora em altura, numa direção vertical. E ao se ligar numa altura ele investe um plano fora da natureza porque o déspota é um deus e o deus está acima da própria natureza. É nesse momento que os deuses se descolam da cultura, é nesse momento que acaba o panteísmo e começa a se formar monoteísmos ou estruturas transcendentes que se descolam da vida, da natureza, da terra, do corpo. Então o regime despótico é um regime de descolamento ou de transcendência. E é nessa transcendência que você encontra os modelos do saber ou de conduta da vida – os modelos teóricos e práticos para a vida.

Essas ideias se fundam sempre numa circularidade mítica porque o déspota tem os seus mitos e os seus rituais. Assim como os selvagens têm os seus mitos e rituais da terra, da imanência, o déspota cria mitos e rituais que encarnam o mito e que geram uma repetição ou uma reiteração da ordem e da lei, através dessa encarnação. Então, por exemplo, anualmente se repete o mito de fundação daquela sociedade. Aí o deus, que é encarnado no déspota, luta contra algum monstro e que instaura a ordem, que tem sempre um começo. O começo é a vitória desse deus sobre o monstro. Os mitos de formação do Estado têm sempre esse mesmo aspecto, todos. Dumezil fez estudos belíssimos sobre os mitos indo-europeus. Ele faz sempre uma distinção entre três funções que ele encontra ao interpretar esses mitos; ele diz que eles têm mitos e rituais de guerra, mitos e rituais de soberania que representam o Estado propriamente dito, e mitos e rituais de fecundidade e abundância que são ligados à terra, às colheitas, à sexualidade, a aquilo que é ligado à vida e à natureza. Ele encontra sempre isso nas análises que ele faz – seja em Roma, seja na Índia, seja na Pérsia, seja onde for.

No mundo selvagem você não tem os mitos de soberania, nas sociedades selvagens eles são sempre esconjurados. No momento em que um deus quer ocupar um lugar de dominar hierarquicamente os outros, ele simplesmente é eliminado; ele não chega nem a nascer, ele é abortado. Os selvagens criam mecanismos de esconjuração desses mitos de soberania ou de nascimento de Estado. O próprio Pierre Clastres tem um texto chamado A sociedade contra o Estado onde ele narra vários mecanismos de esconjuração que essas sociedades selvagens – inclusive sociedades selvagens brasileiras, que ele pesquisa – inventam para esconjurar a figura do chefe. Então haveria no mundo selvagem uma colagem entre mitos de guerra e mitos de fecundidade e abundância.

As sociedades nômades, os povos nômades, ligam-se fundamentalmente aos mitos e rituais de guerra, como se submetessem os mitos de fecundidade e abundância aos mitos de expansão ou de guerra, mas é sempre um plano independente – independente do sedentarismo e independente do poder soberano. Uma máquina de guerra que atravessa as sociedades selvagens e esse mundo despótico. Então haveria já um povo nômade que circularia no interstício das sociedades selvagens e das sociedades sedentárias despóticas. Na realidade é uma semente, um germe desse nomadismo que vai tecer a sociedade grega.

Mas no mito de soberania Dumezil enxerga sempre dois aspectos fundamentais. Existem os mitos relativos a um poder violento de fundação, o momento da guerra e do combate que funda aquela ordem, aquele status quo, aquela situação, a partir de uma luta, de um combate. Então haveria a submissão de monstros, de titãs, de demônios, etc., e se instauraria a ordem e o nascimento do real, da vida, da natureza, do cosmos. É um cosmos que nasce, em todos os sentidos, no momento mesmo em que aquele poder recai sobre essas sociedades e que é narrado de forma mítica através desses combates, desses discursos míticos que são reatualizados anualmente (e esse ano pode ter uma dimensão bem diferente do que entendemos por ano, existem várias maneiras de se medir o tempo, mas o ciclo é sempre a repetição, a encarnação do momento que se fundou o cosmos).

Então você renova o tempo inteiro o nascimento do cosmos e da ordem. Você lembra como a ordem, a realidade, a vida, é dada pelo deus ou pelo déspota. O déspota é que é a fonte da realidade, a fonte da natureza, a fonte da vida. Ou seja, a tua vida, enquanto ser submetido a aquela sociedade despótica, fundamentalmente pertence ao déspota. O déspota é a causa da tua vida, é a causa da ordem da natureza, é a causa das boas colheitas, é a causa da chuva, é a causa da fecundidade e da abundância, é a causa da tua segurança porque ele faz da máquina de guerra um exército submetido à máquina estatal. Ele é a causa de tudo. Então a tua realidade, a tua vida, é devida ao déspota divino: você deve isso a ele.

Então aí você já tem um deslocamento da dívida que, no mundo selvagem, é o fundamento das relações. Você tem deslocamento da dívida finita e de uma relação direta para uma dívida infinita porque você deve a sua vida ao déspota, você deve a ordem do mundo ao déspota, você deve a ordem do cosmos ao déspota, ao déspota divino. Não importa que o déspota seja humano – o que interessa é o corpo metafísico do déspota; existe um corpo metafísico, existe um mito que se cola no corpo do déspota. Mesmo que aquele morra, outro se põe no lugar. A máquina fica.

Então a estrutura despótica é que arranca a vida – que descola a vida da terra, de si própria – e a leva para um outro lugar, leva o desejo e o pensamento para um outro lugar. Um lugar que é o do pagamento de uma dívida impagável. Então você não é um auto-referente que se autocoloca, que se auto-institui, que cria movimentos próprios; ou mesmo que você não seja um indivíduo – como ocorre nas sociedades selvagens onde os teus órgãos estão investidos coletivamente, onde há uma comunidade de órgãos – aquilo circula de modo que a vida investe nela mesma, a força investe nela mesma, é uma força em você que funda uma dívida em você e você mesmo paga essa dívida com a tua superação. A dívida é um equipamento, é um instrumento, é uma regra de superação de si, de crescimento e de expansão.

Então a dívida é uma invenção de superação. E você paga a dívida no momento em que você cria uma memória. Isso Nietzsche esclarece muito bem na segunda dissertação de A Genealogia da Moral: a dívida equivale sempre a uma capacidade de prometer. E o que é prometer? É apanhar um bocado do futuro e trazer para a realidade presente. É fazer com que o futuro coexista com o próprio presente. O futuro do homem selvagem é sempre exercido, efetuado, atualizado, através dessa capacidade de prometer. Quando você promete você se endivida e quando você cumpre você paga a sua dívida. A sua dívida é perfeitamente paga e há um movimento dinâmico de crescimento e de expansão. Isso é um devir ativo da vida, isso é uma afirmação da vida. Ainda que tenha terrores e crueldades no mundo selvagem que em outra oportunidade vamos esclarecer.

No momento em que o déspota com seu bando selvagem cai sobre as sociedades selvagens e cria uma sobrecodificação, ele sobrecodifica no seguinte sentido: não é que ele acabe com os códigos selvagens, ele faz com que aqueles códigos funcionem com um elemento terceiro. Não é mais uma relação direta, não há mais uma relação imediata, há uma mediação. Qual é a mediação? O plano celeste: “espera aí, você não pode se relacionar diretamente, a nossa relação tem que se remeter ao Pai”. É um triângulo, é aí que nasce o triângulo. Aliás, é aí que nasce o aspecto não-neurótico do Édipo. O Édipo paranoico já está aí nascendo. Enfim, você cria então uma tela, um plano intermediário ao movimento imanente da terra, você cria um plano transcendente de organização. Você vai se organizar, organizar os seus órgãos, as suas ideias, as suas ações, os seus gestos, a sua prática, a sua produção segundo esse plano transcendente. Então você cria um referencial.

Esse intermediário, esse muro, nunca parou mais de nos perseguir. E é contra esse muro que nós vamos falar o tempo inteiro aqui, sempre. O que ocorre é que ele se refinou. Ele se refinou muito. E tanto a ponto de que, dessa objetividade das alturas, ele se transformou numa subjetividade reflexiva e depois ele simulou uma imanência no inconsciente. Hoje o Estado está dentro do inconsciente.

A questão se manifesta sempre quando dizemos eu. Quando dizemos eu há duas cabeças da soberania do Estado falando em nós: o poder violento de fundação, que é um dos aspectos que eu tinha falado há pouco sobre o mito de soberania, e a segunda cabeça do Estado que são os mitos de organização, o estabelecimento jurídico dessa sociedade, o campo coordenado dos tempos de paz.

Os tempos de paz são remetidos a uma ordem reguladora daquelas funções sociais necessárias agora à manutenção do déspota. Então você tem sempre dois aspectos nesses mitos de soberania. Um é do poder violento de fundação e outro é da ordem pacífica de regulação. Essas duas cabeças do Estado foram introjetadas em nós. A nossa questão toda, do ponto de vista crítico, é essa: um combate contra a transcendência.

Mais do que um combate contra a transcendência na sociedade, nos outros, é um combate em nós. É mais ou menos o que o Nietzsche diz: o homem deve morrer. Porque a forma homem é o Estado introjetado em nós. Então esse combate em nós é fundamental. E esse combate se acompanha da destruição, ou da destituição, do sujeito em nós. Porque é através do sujeito em nós que somos assujeitados. Quando dizemos eu, quando pensamos que criamos, que legislamos, que somos livres quando nos tornamos sujeitos legisladores, como diria Kant, é nesse movimento mesmo que estamos nos submetendo, nos sujeitando. A subjetividade assujeitada se dá exatamente nesse movimento.

Então nós precisamos verdadeiramente de um sujeito? Esse é um problema. Será que sem sujeito não caímos no caos, não caímos na loucura, não caímos num elemento enlouquecido que faria com que a nossa vida se estraçalhasse? Será que realmente não seria necessário o sujeito? É essa questão que nós vamos desmontar aqui também. É um problema fundamental. Vamos desmontar o modo como o sujeito é montado e em função disso vamos gerar um movimento que substitui esse solo, esse fundamento do sujeito. Apesar de que esse movimento sempre esteve aí. Tem um outro solo muito mais interessante, que é o que nós vamos chamar de plano de consistência. A consistência no lugar do sujeito. E a consistência é sempre uma multiplicidade que nos atravessa. Ela é sempre plurívoca, tem uma pluralidade de vozes, de sentidos, de atributos, de criações, de movimentos, que se alternam no nosso corpo e no nosso pensamento.

Essa consistência só é conquistada no momento em que nós reencontramos o devir, que é uma coisa que também vou esclarecer. É uma coisa que só é conquistada no momento em que nós acontecemos, no momento em que nós reconquistamos o acontecimento em nós, no momento em que nós deixamos de ser uma pessoa, deixamos de ser um eu com seu nome, seu cargo, sua função, sua posição, e passamos a ser um acontecimento. Quando nós nos tornamos o acontecimento de nós mesmos nós entramos em devir e nós geramos consistência em nós. Então a consistência é necessariamente contraponto do devir. Se não entrarmos em devir, se não acontecermos, se não experimentarmos verdadeiramente, jamais vamos conquistar a consistência, porque a consistência
tem que ser produzida (experimentar, aqui, é estar no acontecimento enquanto acontecimento e não consumir objetos: a experiência não é na extensão, a experiência é na intensidade, é na relação).

O que chamamos de consistência é também corpo sem órgãos, ele tem que ser produzido, ele não existe previamente. O inconsciente que está aí é um inconsciente de superfície, não de profundidade. Esse é um outro mito: o inconsciente não está na profundidade, o inconsciente é pura superfície. O inconsciente também tem que ser fabricado, produzido. Então nós só fabricamos o inconsciente no movimento do devir, da vida. E é essa a distinção entre vida e sobrevida, ou viver e sobreviver. Sobreviver de modo algum é viver.

Estar vivo: isto seria um problema. O que é estar vivo? Será que realmente estamos vivos? O que se passa conosco? Onde acreditamos que a realidade realmente se passa em nós? Será que quando eu falo, eu penso, eu não estou simplesmente emitindo signos delirantes, imaginários? Eu não estou simplesmente numa verborragia sem fim, ligando imagem com imagem, acreditando que penso ao associar imagens? Será que a imagem não precisava receber um brilho que diz que ela é apenas um fulgurar? Porque há algo que atravessa a imagem que realmente é o real. Algo que se passa não mais agora na imagem, muito menos num sujeito e num objeto, mas é algo que se passa entre os corpos. Não mais uma comunicação de informação, de conteúdo, não mais uma reflexão de ideias, não mais uma contemplação de um objeto, mas um acontecer e passar. Algo que se passa entre e que me arrasta, que me faz criar, que me faz inventar, que me faz pensar.

Então de que modo eu vivo o tempo? Eu vivo o tempo como uma sucessão de instantes? Ou eu vivo o tempo de modo a suspender o instante e a minha decisão de livre-arbítrio? Quando eu acredito que tenho o livre-arbítrio para escolher entre o bom e o mau, entre isto e aquilo, eu fico numa inflexão, numa hesitação, numa claudicação que na realidade é a própria natureza do problema.

A vida é sempre problema. E problema não é sinônimo de negativo, o problema é a riqueza, o dom que nós temos o tempo inteiro, a oportunidade que se reitera a cada instante, a cada momento da nossa vida – é o problema que surge. Saber ver o problema como um dom e não como uma coisa de que devemos nos livrar. Quando você quer se livrar de um problema, isso nada mais é do que um ressentimento contra a vida. Porque a vida é problemática. E o problema gera dor, mas a dor é um sentido que você deve dar a um problema. A dor é um signo de orientação do seu desejo e não um motivo para julgar e acusar a vida e a natureza.

Então se trata do momento em que você vive o tempo como uma suspensão. Quando você diz “nesse instante, antes dele tinha algo que se passou e na frente dele tem algo que vai se passar”, você nunca está no acontecimento: sempre ou já foi ou vai ser, mas nunca acontece. O que é acontecer? Acontecer é captar este instante e subdividi-lo ao infinito. É o que Deleuze chama de entre tempo. Você suspende. É isso que faz um artista, é isso que faz uma cena bela de cinema, ou uma cena de romance, ou, seja lá de que for, em que há suspensão e esse mergulhar na infinidade das relações e das sensações, dos perceptos e dos afetos que atravessam aquele acontecimento.

Estar vivo é muito diferente do que a consciência pensa que pensa – porque a consciência não pensa, como diria Nietzsche ou Espinosa, a consciência no máximo imagina ou até reflete imagem sobre imagem. A consciência é sempre signo de uma força que já se apoderou de você e já produziu alguma coisa. Por isso a consciência é de uma submissão. A consciência sempre é consciência de submissão. Um tipo de consciência – depois vamos fazer algumas distinções, mas agora eu tenho que ir pontuando porque nós temos sempre o mesmo problema, nós vamos ficar um ano falando da mesma coisa que é reconquistar o plano de imanência e combater a transcendência. Não só fora de nós como em nós, principalmente.

Essa transcendência seria o momento em que eu me descolo de mim mesmo, o momento em que eu perco o acontecimento, o momento em que eu perco o devir, o momento em que eu perco a capacidade de experimentar. Isso é que é a transcendência. Necessariamente eu estou na transcendência quando eu estou separado do que eu posso. A separação de uma potência do que ela pode é sempre a introjeção de um terceiro no meio de dois, um intermediário, um atravessador. Esse atravessador é um plano de organização, um plano que é transcendente, o muro da representação, como falariam Van Gogh e Artaud. Então nós não vamos bater a cara contra o muro, nós vamos limar o muro, como diria Artaud. Limar o muro da representação é desconstruir o pensamento ocidental. É isso que vamos fazer ao longo desse ano. Desconstruir o pensamento ocidental e ao mesmo tempo, como nós não acreditamos na dialética, como a negação não tem o mesmo estatuto da afirmação, a crítica vai ser sempre decorrente de uma criação. Estamos criando um modo imanente de ser que automaticamente destrói ou destitui a transcendência. A questão sempre é essa. Estar vivo, portanto, é saber onde o real se produz em nós, onde nós somos reais. Será que sonhamos, pensamos, imaginamos que vivemos? Ou vivemos de fato? O que seria isso?

Captar o plano de imanência não é captar através de uma ideia ou de um conceito, porque ele é a condição de qualquer conceito, ele é anterior e posterior ao conceito, ele não se confunde com o conceito. O plano de imanência digamos que são os feixes luminosos que nos atravessam na informalidade pura, sem nenhuma forma. Aquilo sem o que nada é. Ainda que os metafísicos possam chamar isso de essência, não é uma essência. Chamar isso de essência é muito diferente porque isso não se reduz a um conceito, não se reduz a uma ideia. Aquilo que nos atravessa através da sensibilidade, da nossa percepção ou dos nossos afetos que se modificam em nós, através das nossas ideias, do nosso pensamento, através das funções existenciais que criamos para nos organizarmos e para nos preservarmos, para nos conservarmos. É aí que esse plano se passa – ou como plano de imanência, ou como plano de composição, ou como plano de referência. Mas é sempre o meio pelo qual as coisas se tecem. Tudo começa pelo meio e acaba no meio. O princípio e o fim são duas ficções, não há princípio e fim. Não há origem. A ideia de origem é sempre uma ideia de consciência, é sempre uma ideia imaginária, e é isso que vamos tentar elucidar aqui. O ocidente inteiro nos fez entrar nas amarras do bom-senso e do senso comum que são fundados na ideia de origem e de fim, e na sensação de semelhança e identidade. São essas amarras que nos atrelam ao mundo da representação.

Então nós vamos falar aqui contra o bom-senso e contra o senso comum. Contra qualquer ideia pronta. É o modo que temos para reconquistar o devir. É o único modo, não tem alternativa. Se imaginarmos que o ocidente inventou uma série de máquinas seletivas para selecionar o bom e o mau, “separar o joio do trigo”, o puro do impuro, veremos que sempre existe uma inversão hierárquica de seleção. Como diria Nietzsche: o que é selecionado sempre, o que é valorizado sempre, é o mais baixo, é o que leva a vida aos seus mais baixos graus de intensidade. É a sobrevivência que é selecionada e nunca a vida que é selecionada. Os fortes, diz Nietzsche, são eliminados porque o forte é aquele capaz de se manter no acontecimento, é aquele que arrisca a vida porque sabe que no acontecimento ele não corre risco nenhum. Não corre risco de morrer neste sentido negativo dos devires negativos. Ele corre sim todos os riscos no encontro com o caos e com o acaso, mas ele sabe que é no risco do mergulho que ele tem a consistência. E a consistência é uma eternidade, a consistência é o implacável em você, aquilo que nada destrói, aquilo que está necessariamente salvo. Mas o que está salvo, o que é eterno, é sempre um movimento e no devir. Então aqui tempo e eternidade acabam tendo um sentido completamente outro porque você constrói a implacabilidade, a consistência e a eternidade no devir. E aí a ficção, o fim, a morte, desaparece – que é a fonte de todo ressentimento. O modelo da morte no fundo é a fonte do ressentimento e da má consciência, ou da dívida infinita e da transcendência.

Então se trata de você recuperar aquilo que te é roubado desde o nascimento e desde gerações anteriores. Aquilo que te é roubado é o seu território de extensão, é o seu solo onde você desliza, é a sua superfície lisa onde você cria, onde você inventa. É a sua tela de geração de volumes. Essa tela, esse território, esse plano dos acontecimentos lhe é roubado. Por quê? Porque é desqualificado como sendo inferior. É isso que vamos ver com a queda da filosofia grega na transcendência com Sócrates. Como diria Nietzsche, Sócrates não é o começo da filosofia, é o começo da decadência. A filosofia começa com os pré-socráticos que não se descolam da terra. Eles fazem como Empédocles, andam com sandálias de chumbo para melhor ficarem colados na terra. Não fazem como o pássaro de Platão que quer fugir desse mundo.

Enfim, o momento da queda da filosofia na transcendência, diria Nietzsche, é o momento em que ela confunde o nascimento inventivo e que criou uma máscara – máscara de sábio e de sacerdote – com a forma própria do filósofo. O filósofo se torna um sábio, um sacerdote. Então a questão é dizer de onde surgiu essa transcendência. Porque isso não vem do nada, isso vem também de um plano de imanência. O plano de imanência é problemático.

A questão então da avaliação e da hierarquia seletiva se inverte: vale mais quem é capaz de se manter colado no plano de imanência. Aí que está o valor da vida. E quem está colado no plano de imanência não precisa do juízo, não precisa de uma instância do julgamento. Porque aquele que precisa do juízo ou de uma instância de julgamento, precisa de uma estrutura fora dele à qual ele acede – com sua imagem e sua semelhança. Torna-se um ícone, informa-se através deste modelo e retorna com a formação de um corpo, de um organismo, a formação de uma alma e a formação de um juízo. Então no momento em que você precisa de algo fora de você para te organizar, é porque você perdeu o chão, você perdeu o solo, você perdeu o critério imanente à própria vida. A vida desacredita dela mesma, a vida está separada do que ela pode. E se a vida está separada do que ela pode, a vida é desordem, a vida é caótica, a vida precisa de uma ordem fora dela, ela precisa de uma transcendência. Um exemplo claríssimo: os alemães desejaram Hitler. Eles não se enganaram, não se iludiram. Estavam completamente separados do que eles podiam e eles precisavam de um führer, de um dirigente, de um diretor, de um organizador. Não sei se necessariamente daquela forma, mas necessariamente precisavam de alguma ordem fora deles. E naquele momento foi o que se apresentou. Foi uma conjunção.

Então qualquer vida, se estiver separada do que ela pode, precisa de uma referência fora, de um modelo ao qual ela segue. Ou não: modelo ao qual ela acredita que pode até transgredir. Quando ela acredita na lei e vê vantagens na lei, ela investe na sua própria repressão. O desejo deseja a sua própria repressão. Questão de Reich, questão de La Boétie: será que existiria uma servidão voluntária? A questão de Espinosa quando ele define o servo como aquele que sabe o que quer, mas sempre faz o que não quer.

Então essa dobra da vida em relação ao movimento vertical, esse orientar-se por um plano que estaria fora da natureza, é o mesmo sentido do que o Nietzsche chama de niilismo. O que seria o niilismo? O niilismo é um valor de nada para a terra, um valor de nada para a natureza, um valor de nada para a vida, um valor de nada porque a terra, a vida e a natureza não teriam uma ordem. O caos não teria ordem. Tudo é caótico e precisa, para ser salvo, receber uma ordem de fora. E a minha vida, na medida em que está separada do que ela pode e é caótica, precisa piedosamente receber esse dom que seria a organização para que ela se sinta real, para que se sinta viva, para que se sinta ligada de alguma maneira à eternidade e consiga driblar a morte ou o negativo. Essa ilusão fundada na consciência é fundada antes numa separação do corpo e do pensamento do que eles podem.

Como se separa um corpo e um pensamento do que eles podem? Sempre introduzindo uma tela no meio do imediato. Quando você inventa um plano de representação, você separa necessariamente a vida do que ela pode. A vida não responde por ela mesma, ela deve obedecer a alguma realidade outra. Reconquistar a imanência é dizer, como diria Nietzsche: “ora, se existe Deus, como eu suportaria não sê-lo?”. Ele necessariamente me atravessa. Necessariamente o real me atravessa.

Onde está esse real que me atravessa? É aí que eu tenho que me colar, eu tenho que montar do mesmo modo que se monta numa vassoura de bruxa. Se o real é uma vassoura de bruxa, eu tenho que montar nela. E montar no real é necessariamente perder o centro, perder o eu, perder o sujeito. Como diria Nietzsche, é perdendo o mundo que você ganha o seu mundo próprio. Construir um mundo próprio, construir territórios existenciais, gerar o seu próprio plano de imanência, gerar o seu próprio inconsciente, é aparato da vida. E isso não é nenhum esforço, isso é gozo puro, isso é contentamento puro, isso é pura alegria. A alegria só se dá aí, ela não se dá em outro lugar. Em outro lugar são falsas alegrias. Em outro lugar, o máximo que se dá é a ironia, e a ironia é um mau riso. A ironia ainda revela um ódio contra a vida. Contra a ironia, o humor: rir, rir de si, rir de tudo o que ameaça a vida. Rir de modo assassino e destruidor. O humor inocente dos assassinos. Porque nada melhor do que uma gargalhada para destruir uma metafísica transcendente. François Jacob cita, no começo da Lógica da Vida, um pensador que diz: “eis um ovo, o que destrói qualquer metafísica”. Um ovo, um germe, uma germinação, uma potência imanente de desenvolvimento, uma potência imanente de invenção. Então a vida tem que reconquistar o poder de criar modificações de si ou afetos, de criar soluções, de criar relações com o infinito. Pensar no infinito e no finito de modo novo, de modo inédito. Porque nós somos inéditos. Uma vez um professor de faculdade me disse: “mas como você pode escrever isso se você nem leu aquele tal texto do Marx?”. Eu disse: “eu acho que não precisamos de nenhuma validação de autoridade para poder falar e dizer alguma coisa, ou respirar o ar que nos atravessa”. Nós não precisamos pedir permissão para viver. Nós precisamos exercer a vida que se atravessa em nós.

Então exercer a vida que se atravessa em nós é fazer com que a potência se coloque em lugar do poder. Porque o poder é o que atravanca a vida. O poder é sempre essa instância fora de nós, que a vida separada do que ela pode quer conquistar. A vida que não tem poder, que está separada de si, quer o poder. Aliás é um mal-entendido que se faz sempre com a interpretação da ideia de vontade de potência em Nietzsche. Ele diz que a vontade que quer a potência é a pior das vontades, é a vontade mais fraca, é a vontade mais impotente. A vontade não quer a potência. A potência quer na vontade. A potência e a vontade não têm objeto, o desejo não tem objeto. Ao desejo não falta nada. O desejo não quer algo fora dele mesmo. O desejo quer efetuar-se a si próprio num ponto: na relação. Não é um solipsismo porque ao efetuar-se a si próprio, é sempre na relação, é sempre na abertura com o mundo. O desejo é uma obra aberta.

Então criar percepções, criar afetos, criar sensações, criar ideias. Numa palavra: criar um modo de vida. Eu sempre digo uma coisa, em arquitetura: é muito mais difícil você copiar para inventar uma casa, uma obra, alguma coisa, do que você criar. Você tem uma série de elementos que facilitam a criação, porque tudo ali é inédito: é o lugar, é o topos, é o ar, é a luz, são os afetos que vão habitar aquilo e vão se expandir através das dobras físicas do corpo arquitetural. Quer dizer, você tem todos os elementos para criar algo inédito, que é muito mais prazeroso do que você simplesmente copiar. Assim temos que fazer com a nossa vida. É muito mais fácil você criar porque você já está necessariamente numa posição inédita. A sua vida é inédita, o aqui-e-agora é inédito.

Então o aqui-e-agora é que tem que ser conquistado.

Mas o aqui-e-agora nosso é atravessado por nossos avós, nossos tataravós, os etruscos, gregos, hindus, xamãs, sacerdotes. Existem coisas, existem cavernas. Como diria Nietzsche, atrás de uma caverna tem outra caverna. Atrás de um romano, um etrusco. Atrás sempre existem dobras e cavernas e estratos que coexistem em nós, não são o passado em nós. Como diz Nietzsche, o avô de Kant é Lutero. A morte de Deus já está inscrita em Lutero. A forma homem que nasce com Kant já é o homem falando diretamente, não precisa mais de intercessor, ele não precisa mais de sacerdote. Foi Lutero que inventou isso. E ele está falando em Kant. Então o que fala em nós, o que pensa em nós? O que fala em nós, o que sente em nós, o que percebe em nós, o que nos atravessa? Quando eu digo eu, o que está acontecendo comigo, com o meu inconsciente, com o meu desejo? Será que não é um ato supremo de traição? Quando eu digo eu, não estou ferrando com o meu desejo? Eu não estou desacreditando na vida que me atravessa? É por isso que Deleuze diz para o Toni Negri: precisamos novamente acreditar no mundo, acreditar no plano de imanência. Recolarmo-nos a ele. Temos que nos colar novamente porque é aí que a realidade é tecida. E nós numa descrença imensa: “sou fraco, sou impotente, estou separado do que eu posso, eu nunca estou com a verdade, eu não consigo aceder à verdade”. O que se passa? Onde está o real? Sempre falta alguma coisa. Daí a angústia, daí o mal-estar da civilização que Freud não podia entender mesmo. Freud era um neurótico, era um edipiano, ele não inventou Édipo, ele só mostrou o Édipo que tinha nele.

Claro que no momento em que você acredita nessa ausência infinita, ou nessa insuficiência infinita do ser, você introduz uma falta e uma dívida impagável para a existência. E quando você acredita nisso, você vive necessariamente numa angústia. E você procura uma série de subterfúgios para acalmar, para apaziguar os terrores e as inquietações da sua alma das mais variadas ordens – espirituais e materiais. Existem muitos que dizem “é uma terapia para mim sair às compras”. Sair às compras é uma terapia, apazigua uma série de angústias. Com certeza você pode mudar o sentido disso, mas geralmente o sentido disso é apaziguar as angústias, acalmar, em vez de você mexer mais. Mexe mais para ver do que se trata, que angústia é essa, o que realmente eu estou imaginando, alucinando ou delirando em cima do meu desejo insatisfeito. Será que de fato falta um objeto para o meu desejo? Quem inventou isso? Quem disse que eu preciso de um objeto? Eu preciso sim fazer com que meu desejo aconteça, o que é completamente diferente. O desejo no acontecimento não tem falta nenhuma, ele é pleno de si. Mais ou menos o que diz Espinosa: ao cego não falta a visão porque a visão não está em acontecimento no cego. O cego tem outras coisas, não falta visão para ele. Assim é o desejo, assim é a vida. Não falta nada para ela.

E a imanência é irmã de uma ideia essencial chamada univocidade que um teólogo cristão do século XIII-XIV chamado Duns Scott enunciou dessa forma: o ser de Deus e das criaturas é o mesmo. O ser tem uma única voz. O ser é o mesmo. Senão seria impossível a comunicação de Deus e das criaturas. São Tomás vai fazer o contrário, ele segue o caminho transcendente, platônico-aristotélico, e vai dizer que o ser não é unívoco, que o ser é análogo. Se o ser é análogo nunca o meu ser vai ser o mesmo que o de Deus. O ser de Deus é infinitamente superior e eu tenho um ser diminuído, um ser existencial, um ser a quem falta alguma coisa, um ser que tem uma dívida, um ser que não tem uma realidade plena.
O ser da univocidade é, na realidade, um plano comum da natureza, que atravessa qualquer ser da natureza. Esse plano comum é o que tudo comunica, que em Duns Scott ainda era neutro, em Espinosa vai se transformar num ser afirmativo, e em Nietzsche vai mais longe ainda: um ser afirmativo seletivo, com o eterno retorno. O eterno retorno vai veicular essa ideia de univocidade. Mas isso é uma coisa para o futuro. Nós só estamos sinalizando alguns movimentos para dizer que o pensamento não tem nada a ver com teoria, o pensamento não tem nada a ver com um campo de ideias prontas, o pensamento é posição, o pensamento é topológico. Ele é mais geográfico do que histórico. Ele é posição e orientação. Ele cria o seu auto referencial, o seu plano de referência é imanente a ele próprio. Então ele pode se orientar para a natureza, ele pode se orientar para o que acontece na natureza – que seria uma superfície da natureza. E ele pode se orientar para as alturas, para uma transcendência, e se descolar da vida. Tudo o que se orienta para as alturas está ligado ao poder, ao Estado, à lei, ao descolamento da vida, à impotência, à tristeza, ao estímulo das paixões tristes. Por isso nós falaremos sempre da mesma coisa aqui: imanência e transcendência. Esse vai ser o nosso combate.

E ao longo desse percurso nós não faremos história da filosofia, mas remexendo e desvelando ou desmontando camadas, desestratificando os saberes que falam através de nós no nosso inconsciente, através da cultura, através da história, através dos saberes que nos atravessam. E vamos arrancar, com essas remoções, a nossa vida prisioneira dos valores de época e fazer com que a nossa vida invente os seus próprios valores e seja de fato, como diria Nietzsche, intempestiva. Contra a sua época, a favor de um tempo por vir. Ou, como diria Foucault, atual. Fazer com que o corpo e o pensamento se colem no mais imediato, no mais atual da minha vida – que é a minha vida em acontecimento, a minha vida em devir.

Eu acho que como introdução, podemos abrir agora para as questões. Eu não falei nada ainda do movimento que vai se passar, que está escrito no programa, mas é uma forma já de começar a esboçar a atmosfera em que vamos atuar. A atmosfera nós vamos criando junto. Então seria uma criação. Espero que façamos essa criação do modo mais pleno e colado. Quanto mais na imanência estivermos, mais capazes de criar nós vamos ser.

(Participante) O plano da imanência, para mim, está associado basicamente à minha capacidade de me responsabilizar pela minha felicidade. O que se percebe no dia a dia é que as pessoas sempre estão reclamando, colocando a responsabilidade pela sua vida no outro ou nas instituições.

Reclama-se muito. Então, durante a sua trajetória eu fiquei pensando e a palavra que me vinha era: onde está a responsabilidade?

Esta palavra é interessante, no mesmo sentido de Nietzsche que fala do homem atolado no pântano do niilismo que enfim se tornou interessante. Essa palavra “responsabilidade” é interessante nesse sentido porque a responsabilidade foi uma invenção do juízo. E nós associamos o juízo aqui à transcendência. Mas, claro, você deu um outro sentido a ela, muito interessante também. Você é responsável pela própria vida, isto é, tomar a vida nas próprias mãos e fazer da sua vida algo digno, em vez de sair acusando.

Há uma ideia muito em voga, muito atual e muito perniciosa também, de direitos humanos, direitos do homem, que se funda exatamente no discurso choraminguento, no discurso passional reivindicativo. Você é passional, você está separado do que você pode, você precisa ser tratado, ser cuidado e receber favores de alguma instância. Essa instância é uma instância pública, estatal, familiar, uma instância fora de você que tem que te suprir, que tem que te amar, que tem que te admirar, que tem que te por no colo, que tem que te fazer ninar, te fazer dormir. É o homem do ressentimento que precisa ser amado, que precisa ser tratado, que precisa ser bem cuidado. Ele está sempre pedindo, ele é um pedinte, ele é um mendigo afetivo. E o discurso dos direitos do homem é fundado numa forma homem inventada no século XIX. Forças que nos fazem fisicamente, fisiologicamente, psiquicamente ou metafisicamente, ligam-se a um modo de viver em sociedade que gera uma forma chamada homem. A forma homem é o que se põe no lugar de Deus, diz Nietzsche. Deus morreu, mas não mataram o lugar, mataram apenas o ocupante e o lugar ficou. Agora o lugar é ocupado pela forma-homem. A forma-homem é uma transcendência introjetada em nós, com ares de imanência. E quando eu falo do fundo da forma-homem, essa profundidade interior, essa interioridade cavada com a culpa e com a dívida, eu falo com a responsabilidade dos direitos e dos deveres, instauro um regi-me de signos passional-reivindicativo. Eu preciso receber de fora aquilo que me preenche. E nunca vai ser suficiente. Fundamentalmente no sistema capitalista onde a esquizofrenia do capital é instaurada por dois regimes monetários – um que compra e outro que vende. Não é o mesmo regime, não é a mesma moeda. Então nunca essa tua reivindicação vai ser preenchida.

Então é muito mais fácil deixarmos de reivindicar, deixarmos de esperar, deixarmos de acusar – mas não para entrarmos num movimento budista passivo ou até num certo movimento cristão de má consciência (“realmente a culpa é toda minha, eu não tenho direito”). Não isso, mas redescobrir em você, ou reinventar em você um modo de jogar com o real, ou com a força, ou com a mente, que faça com que você se torne uma roda que gira por si mesmo, um moto-contínuo. Quanto mais você gira, quanto mais você joga, quanto mais você ziguezagueia com o tempo, com os acontecimentos, mais potente você fica. O tempo não mais como sintoma de decadência te levando para a morte com a perda de potência, mas agora como aliado: o tempo te deixando cada vez melhor. Fazer do tempo um aliado é o modo como se deve agir. Em cada acontecimento, ser digno: seja digno de qualquer acontecimento, até do pior. Não moralize o acaso. Deixe de reivindicar, deixe de acreditar que você tem direito a alguma coisa.

Como diria Nietzsche, uma ideia não vale a sua sabedoria interna, uma ideia vale o que ela pode. Se você é uma natureza que pode ser negada, é porque você merece ser negada. A justiça é imanente. Então você deixa de acreditar numa falta de justiça, numa justiça transcendente do plano do juízo – que é profundamente injusta porque é instrumento de poder. É o que fala Kafka, que desmontou tão bem a máquina judiciária moderna: o que de melhor pode te acontecer no regime dos direitos e dos deveres é fazer com que declarem uma moratória para você – não precisa pagar agora, paga depois. Então a questão é sair desse regime reivindicativo, do plano dos direitos e dos deveres do homem, e fazer com que a força que te atravessa, que não está nesse campo prisioneiro da forma-homem, envolva outras forças da vida, da natureza, dos acontecimentos que geram uma nova forma que você não sabe qual é, que vai ser criada. Um modo imanente, auto suficiente, auto colocador, autocondicionante. Ou, como diria Varela, autopoiético. Ele se autocoloca, não precisa de nenhuma permissão, de nenhuma autoridade. Ou, como diria Espinosa, a verdade é índice de si mesma, ela não precisa de referência e nem se adequar ao objeto. E assim o movimento da vida: ele se autocoloca, ele não precisa de autorização. E quanto mais ele se autocoloca, menos violento ele é, mais doce ele é, mais criativo e mais generoso. Não é uma postura de arrogância, não é uma postura egoica – muito pelo contrário, é a destruição do ego e é o momento em que a vida pulula em você porque é uma pluralidade de forças, de vozes, de afetos que te atravessam agora e não mais a forma do eu assujeitando e calando essa voz. Unívoco no eu? Jamais. Unívoco no ser. O eu é plurívoco, o corpo é plurívoco, o inconsciente é plurívoco, o pensamento é plurívoco.

(Participante) Nessa apresentação que você fez, várias imagens me apareceram. E tive a sensação de que existiram raras linhas de fuga na história do pensamento ocidental. São tão poucas assim as linhas de fuga?

Não, são muitas. Tem muito mais linhas de fuga do que acreditamos. Existe alguém, não sei se foi o Walter Benjamin, que desenvolveu essa ideia da história dos vencidos e a dos vencedores: a história é sempre contada pelos vencedores. A história contada pelos vencedores esconde e apaga a memória dos vencidos, dos aparentemente vencidos. Existem os vencidos de fato, que foram vencidos, que sucumbiram; e existem aqueles imperceptíveis, os escondidos, os que se camuflam. Todos os pensadores pré-socráticos, os filósofos pré-socráticos, são pensadores da imanência, pensadores nômades que fazem da vida e do pensamento uma afirmação. A vida não é negada como em Sócrates, Platão, Aristóteles e outros metafísicos ocidentais que triunfaram com a história dos vencidos; a vida não é subjugada ou negada, a vida é afirmada junto com o pensamento. A vida ora irradia forças no pensamento e arranca o pensamento daquelas formas asfixiantes em que ele se encontrava, ora o pensamento descamba no tempo e na intensidade e arranca a vida daquele sistema orgânico em que ela se encontrava, desterritorializando o corpo. Então é um jogo lúdico entre vida e pensamento nos pensadores pré-socráticos. Eles afirmam o corpo, afirmam a natureza, afirmam aquilo que eles chamam de phýsis. Phýsis é o objeto comum do pensamento e do corpo.

Alguns cínicos, alguns sofistas, cirenaicos, megáricos, estoicos gregos, Lucrécio, Epicuro, Avicena, Duns Scot de uma certa forma, Espinosa. Isso para falar dos filósofos, para não falar dos artistas e cientistas, também. Espinosa é o máximo da imanência: ninguém chegou tão longe no encontro com a imanência como Espinosa. Espinosa é todo imanência. Aliás, Hegel censurava Espinosa por ser incapaz de conceber a ideia de negativo. Essa censura que Hegel faz a Espinosa na realidade é toda a inocência e potência do pensamento espinosista porque o negativo não está na imanência, o negativo é um sintoma de descolamento da vida numa transcendência. Você tem Hume, você tem Bergson, Nietzsche, Kleist, Hölderlin, Artaud, Van Gogh, Kafka. Você tem muitos pensadores, muitos artistas, muitos cientistas. E muitas vidas anônimas que criaram coisas que não foram registradas. Nômades. Imperceptíveis. Que aconteceram de modo imperceptível, que viveram de modo imperceptível.

O poder necessita do devir, ele não pode excluir o devir. Só que ele submete o devir, ele quer submeter o devir. Muitos desses anônimos geralmente se mascaram e fazem ares de submissão. Como diria Masoch: eu me submeto a tal ponto à lei que eu mesmo invento, que eu a destruo com humor. Então estes são os humoristas finos, aqueles que aparentemente se submetem e estão desmontando todo o esquema imperceptivelmente. E jamais são pegos porque onde você vai apanhá-los, eles já não estão mais lá. Eles são um elemento paradoxal que não tem centro e não tem tempo determinado. O centro é sempre excêntrico, é sempre acentrado, então não tem como você apanhá-lo.

O poder que necessita da representação e do juízo é que leva longe essas filosofias da transcendência. Para Platão, a verdade é neutra – aliás Platão é que criou o mito de que a sabedoria é neutra e isenta de poder. Mas isso para quê? Para que os submissos melhor copiassem essas ideias. Aparentemente ele esvazia essas ideias de poder, mas na realidade a ideia platônica, que Platão diz que é eterna, ele precisou antes criar. Ele criou uma ideia de modelo eterno. E criou essa ideia para fazer o quê? Não porque ele achava que existia que um mundo supra-sensível e um mundo sensível, o mundo das ideias e o mundo da matéria, o mundo dos modelos e o mundo das imagens. O que ele queria era separar dois tipos de corpos, dois tipos de almas, dois tipos de imagens, dois tipos de matéria, dois tipos de natureza: uma natureza que se orienta para as alturas e se modela no modelo, e uma natureza que é perversa, que desrespeita esse modelo e se relaciona de maneira direta. É o sofista, é o artista, é o poeta.

Então a ideia platônica é isenta de poder? De modo algum, é cheia de poder, é um instrumento de poder. É por isso que a representação nunca é neutra, a verdade nunca é neutra, a ciência nunca é neutra; ela instaura uma forma, um tipo de saber que serve a uma máquina de poder. Saber e poder estão sempre unidos. É o que Foucault viu muito bem. Ele diz: um pouco de possível, por favor; no saber e no poder eu me sufoco. E ele encontrou a linha de fora, que é um modo de subjetivação, ou de criação de si, ou de transformação da vida numa obra de arte. Como fazer da sua vida uma obra de arte, era o problema de Foucault. E ele encontra isso fora dos esquemas de saber e de poder.
Então a verdade, a sabedoria, nunca é neutra. Ela é sempre o sentido de uma força, como di-ria Nietzsche. Atrás de uma forma tem uma força, a forma é sempre secundária, a forma nunca é primeira, como os metafísicos querem nos fazer acreditar. O plano de organização transcendente é sempre um plano de formas; ele forma as formas e desenvolve essas formas.

Indicações de leitura:

As Origens do Pensamento Grego, do Jean Pierre Vernant. É um livrinho fininho que já dá uma ideia da separação entre os mitos de soberania, os sacerdotes, a fundação de um regime de signos e de pensamento do mundo despótico; e o que seria a filosofia grega propriamente dita, com a ideia de espaço grego, de economia grega, de relações familiares, jurídicas, etc. É uma obra-prima. Ele vai fazer a narrativa desde as sociedades despóticas do Ánax grego até a passagem para a sociedade civilizada grega. É um texto muito interessante e que vamos iluminar com outras ideias, porque o Vernant fica limitado a uma análise histórica e de formação social daquela época, mas nós vamos usar isso de outro modo.

• Existe um outro texto. São algumas palestras que Foucault deu. Chamado A Verdade e As Formas Jurídicas. Se não me engano, são cinco aulas em que ele vai narrar o nascimento da testemunha e do sistema jurídico grego, que vai ser usado como modelo do pensamento ocidental. Vai ser um momento fundamental e um elemento fundamental para a máquina do juízo. Porque o ocidente, desde a tragédia de Sófocles até a razão kantiana e hegeliana, é um grande tribunal e esse tribunal começa a ser formado com essa ideia de testemunha. Tem alguém que se destaca, que viu o que aconteceu e que reapresenta o acontecimento que vai ser julgado, vai ser avaliado. É um intermediário da justiça, que antes era direta – olho por olho, dente por dente. Ou da forma de produzir justiça como a ordália (ou o ordálio), que era uma forma direta que tinha um efeito imediato. Então se cria um intermediário que vai ser o Estado. E a figura da testemunha é uma figura importantíssima nesse processo de nascimento da instituição jurídica grega.

Adicione seu comentário

© Escola Nômade de Filosofia