fbpx
Ler outros textos

Práticas educacionais e dispositivos familiares

Diferença de natureza entre os valores e práticas familiares como potências aliadas de uma vida criativa versus valores e práticas como investidores na formação de prepostos dos poderes estabelecidos, implementadores e garantidores da transmissão de uma cadeia de ordens, deveres e direitos – valores e práticas de uma cultura que pressupõe a desqualificação das zonas intensivas e criativas da existência através do cultivo do princípio institucional da autoridade e do princípio civilizatório, cujo efeito enrigessedor das relações sociais cristaliza modos de ser em limites que acabam por funcionar como uma verdadeira camisa de força coercitiva do desejo intensivo e das forças ativas, impositiva de uma moral do julgamento sempre pronta a se abater sobre os afetos, legitimada e autorizante de cada criança que deveria, para conquistar a independência e o sucesso, se tornar moralmente responsável; caminho que conduz, na realidade, a uma falsa autonomia, rebaixando e nivelando o desejo pela universalidade de um puro dever-ser acima de tudo.

Investimento nos encostos, em vidas parasitárias, vampirescas: tudo isso é promovido pela produção social do medo do abandono e da rejeição. O amor torna-se um negócio. Amar é poder capturar com aparente inocência. Um inconfessável jeito de apropriação do outro, travestido de cuidado. A vida, a alma e os desejos de alguém são roubados por um Outro, fazendo dela função de um valor que a desqualifica a priori, valor negativo de reconhecimento, de gratidão ou dívida de existência para com o seu investidor mais próximo. O desejo torna-se refém de expectativas ou demandas alheias ao seu campo virtual de imanência.

Os dispositivos familiares trazem consigo, portanto, necessariamente, produção de violência por sua práticas micro-fascistas de esmagamento do desejo. A violência primeira é necessariamente institucional e não pessoal. Ela é corroborada já pelas próprias instituições sociais, e portanto, também pela família, que é uma delas.

Haveria um outro caminho, por exemplo, destacar e investir nos espaços, tempo e afetos da dimensão ou modo familiar de existir como atmosferas propícias para os ensaios experimentais de modos socialmente potentes, inventivos de maneiras afirmativas de se relacionar e conjugar desejos no campo social e político das formações humanas?

As funções paternas podem promover as zonas virtuais de acontecimento da vida ou do vivo não contempladas pelos limites de comportamentos implicados nos valores de uma cultura ou de uma sociedade decadente, propiciando assim desde o início de uma vida em formação o cultivo de um horizonte ou de um futuro vivo, contemporâneo do presente, e o aprendizado de um modo de perceber, registrar, criar memória, hábitos ou regras de passagens, costumes ativos, tudo isso para a constituição de um modo de atenção de si e de todo o vivo e suas relações que privilegia os devires ativos, tempos afirmativos e movimentos intensivos como acontecimento dominante, ou seja, que fazem de si uma potência de modificar, diferenciar e criar realidade e que combatem e desconstroem as formas estratificadas nas quais esses mesmos elementos ou funções familiares poderiam se encerrar, como cúmplices, nos modos ordinários de investir essa mesma vida em formação através do seus valores geradores de obediência e não de potência.

Desconstruir a ilusão da família como célula manter da sociedade e situá-la na sua função e posição real, isto é, não como origem, mas como um dispositivo aplicador e finalizador do processo de submissão social do indivíduo, na incorporação da Falta, e preparador da interioridade, constituindo-a como uma caixa de ressonância subjetiva para ser ocupada e tornar-se veículo da cadeia de transmissão e inoculação de ordens do corpo social.

Quando mordemos a ísca e perdemos nosso fulgor revolucionário ou libertário no anzol dos aguilhões em nós instalados e que nos fariam também parasitas e futuros cúmplices daquilo que até então combatíamos? Como acabamos inevitavelmente por nos tornar como nossos pais?

Adicione seu comentário

© Escola Nômade de Filosofia