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Formação Pensamento Ocidental – aula 3/32 – O saber e o poder

Luiz Fuganti

Nós abordamos aqui desde o início uma questão central que nos atravessa e que, já falamos, vai se repetir em todas as nossas exposições. Essa questão é a da colagem da vida, do desejo e do pensamento num plano de imanência, em algo que nos atravessa e que constitui não só a nossa realidade, mas que constitui a realidade de qualquer ser existente, de qualquer pensamento, de qualquer desejo, de qualquer corpo.

A questão de nós reencontramos essa imanência é um problema central uma vez que somos herdeiros de uma civilização que construiu um plano de separação de nós com a nossa potência. Esse plano de separação é o que temos chamado aqui de plano de organização ou sistema da representação. É um elemento intermediário, um atravessador que se põe entre os meus gestos, as minhas idéias, o meu corpo e aquilo que devém em meu corpo, em meu pensamento, em meu desejo. O meu devir, o meu movimento, a minha experimentação é mediada por esse plano de organização. Esse plano de organização ou a representação propriamente dita se entranhou em nós de modo tal que nós não percebemos mais que isso é um artifício, que isso foi inventado, que foi fabricado. A ponto de acreditarmos que existe um sujeito neutro de conhecimento, ou somente um sujeito de conhecimento. Acreditamos que é natural haver um sujeito que pense. Mais: acreditamos que é natural haver objeto de conhecimento. E acreditamos que é natural haver um saber. Então haveria um saber que tem objeto de conhecimento e que tem sujeito que opera esse saber. Esses três planos, que podemos chamar de eu, mundo e deus, são na realidade três ficções que o ocidente criou para si mesmo: o sujeito, o objeto e a significação – outra forma de se referir. Eu, mundo e deus; ou sujeito, objeto, significação.

O significante é uma espécie de traço linguístico que dominou e domina o ocidente desde que se inventou o Estado. O Estado existe há pelo menos dez mil anos, então o buraco é bem mais em baixo. Dez mil anos de história. Dez mil anos, diria Nietzsche, da noite em que a cultura entrou. Diz Nietzsche: a cultura, com os povos selvagens ou primitivos, era algo que se passava de modo diluído ou distribuído em todo o corpo coletivo, em todo o socius. Era o que ele chama de atividade genérica, a cultura tinha uma atividade genérica. Essa atividade genérica se operava através de um registro que o mundo selvagem inventou para si, que é inscrição ou escritura no próprio corpo. O corpo recebe uma inscrição, uma escritura que é um signo mas que não representa nada, que é simplesmente a expressão da posição de um desejo. O desejo imediatamente se expressa através de um signo sem mediação, sem representação.

Esse mundo mítico que atravessa os povos primitivos, essa superfície de registro que coordena, que conjuga, que distribui as relações no modo de vida do mundo selvagem, se dá de modo imanente. O mito atravessa os corpos e os pensamentos dessa tribo de modo a não se localizar nem num sujeito, nem num objeto. No mundo selvagem nós não temos a noção de pessoa, a noção de indivíduo, a noção de sujeito e a noção de objeto. Um indivíduo já é uma pluralidade.

O Estado, no momento em que nasce, sobrecodifica essas sociedades primitivas, põe-se fora do campo de imanência dessas sociedades, inventa um outro plano que se descola da terra e da vida, um plano de transcendência, e remete todos os gestos, os movimentos, as idéias, os desejos, as relações a este plano celeste, que é um plano de organização transcendente. Então ele não chega a abolir os códigos primitivos ou a superfície de registro primitiva, mas ele sobrecodifica essa superfície e ela, para ter realidade, para ter uma autenticicade, para ter um sentido de verdade, necessita agora remeter um movimento qualquer que se passe nela a este plano superior.

Vimos na aula passada que na origem da sociedade grega existe uma sociedade despótica do povo micênico. Micenas é uma sociedade do tipo palaciana que organiza toda a sua vida em torno do palácio que, por sua vez, agrega nos seus arredores os serviços essenciais à sua manutenção e as gentes ou personagens sem os quais essa sociedade não se manteria. Esses elementos essenciais são os escribas, os administradores, os contadores, os sacerdotes e os chefes de guerra que se encontram no interior da muralha que envolve o palácio. Na base da sociedade existem as aldeias ou as tribos que, de alguma maneira, preservam um mínimo de autonomia. E essas aldeias são ligadas ao palácio através de personagens intermediários chamados reis locais, que em grego são os basileus.

Isso nós vimos de uma forma rápida na aula passada e essa matéria se encontra exatamente no livro As Origens do Pensamento Grego, de Vernant. Então eu não vou me estender muito nesses aspectos históricos, espero que vocês leiam isso porque nós podemos ir diretamente ao que interessa, ao pensamento filosófico. Mas, em síntese, é uma sociedade mágico-religiosa que faz do sistema mítico primitivo uma dobra para um sistema mítico de soberania. Então a narrativa mítica vai ter relação direta com rituais de soberania que vão servir para produzir uma superfície de registro, de sobrecodificação de toda a sociedade.

Então a escrita que vai ser inventada é uma escrita linear, não fonética, que serve para administrar e contabilizar as relações da sociedade. Ela é um instrumento direto de poder, ela é o instrumento fundamental da soberania do déspota. Essa escrita inventada por escribas ligados ao déspota, no caso de Micenas é importada diretamente de Creta no segundo milênio antes de Cristo; quando Micenas instaurar a sua sociedade despótica ela importará os escribas de Creta e formará um outro sistema, adaptando a sua própria formação e a sua própria língua, que na Antiguidade vai ser chamado de linear B. O linear A era a escrita não fonética de um sistema mágico-religioso e despótico de Creta; o linear B é o Ánax micênico. Essa escrita já traz um modo significante de operar. O que significa dizer “significante” em relação a essa escrita? Significante nada mais é do que a vontade do déspota. A vontade do déspota é um significante. É como se fosse uma pura forma vazia, ninguém sabe qual é a vontade do déspota. E o significado é o conteúdo que esse significante recebe na medida em que a vontade do déspota se expressa. Então nós temos os escribas e os sacerdotes como intérpretes do déspota, que dirão sempre o significado daquele significante.

O déspota, ao mesmo tempo que é um corpo físico, fundamentalmente é um corpo metafísico. Ele é um corpo sem órgãos, digamos assim; é um campo atrativo, é um pólo que se destaca da própria sociedade e vira a causa, a realidade, o centro de tudo, de modo absolutamente hierárquico. O déspota vai ser não só a causa da ordem social, a causa da ordem econômica, a causa da ordem política, como a causa da ordem da própria natureza, como a causa do universo, propriamente dito. O déspota cria essa ordem a partir de uma luta que se dá com os antigos demônios ou titãs ou forças representantes do caos. Então no princípio é o caos, é a violência, é a injustiça, é tudo o que gera uma não-realidade, uma realidade inferior. No momento em que se instaura essa sociedade, o déspota encarna um deus que venceu os monstros ou as forças do caos. Então toda a ordem, no regime despótico, tem um início, tem um começo. Existe a origem e existe o começo: a origem é o caos mas o começo é o nascimento da ordem do déspota. E o mito se dá exatamente na distância entre a origem e o começo: não há narrativa mítica no sistema mágico-religioso, não há mito de soberania que não se funde na distância da origem e do começo. É sempre a narrativa de uma luta, de uma vitória, de um triunfo e a encarnação através de um ritual que renova anualmente essa ordem e o nascimento ou o renascimento, esses cosmos.

Então o cosmos é sempre uma cosmogonia e os deuses se relacionam a partir de uma teogonia. Há sempre uma genealogia de deuses e do próprio cosmos. Então as forças do universo são personificadas através dessas figuras divinas ou demoníacas que geram a realidade, geram o movimento próprio de sustentação da ordem a partir da ocupação do lugar mesmo do déspota ou desse corpo sem órgãos que não é exatamente o corpo físico do déspota, mas é a máquina que é criada em torno do corpo do déspota, ou o que chamamos aqui de corpo sem órgãos. Então é aí que nasce um corte, uma separação entre a terra e o céu, ou entre a natureza e uma sobrenatureza, ou entre a vida e a morte de um lado e a imortalidade de outro. Não há ainda uma separação clara entre sociedade e natureza: confunde-se sempre sociedade e natureza. Aquele que é causa de realidade da sociedade é também causa de realidade da própria natureza. Isso posto, temos uma situação de como o discurso mágico-religioso que funda aquilo que vamos chamar de regime paranoico interpretativo (e que é também o nosso regime de signos) se funda então através desse tipo de regime: um Estado que se interpõe entre a vida e uma sobrenatureza.

O mundo micênico, no momento em que sofre a sua dissolução, vai gerar um isolamento para as antigas comunidades. No momento em que se dá esse isolamento há uma pluralidade de comunidades ao longo da costa grega e também da Jônia; na medida em que as regiões são acidentadas, existem muitos vales e montanhas, o isolamento se torna físico, fundamentalmente físico, e as sociedades são obrigadas a inventar modos próprios de viver. No momento mesmo em que essas sociedades são obrigadas a inventar um modo de vida próprio, elas reencontram uma espécie de plano de imanência, elas reencontram uma necessidade de – a partir de si, a partir dos seus limites – reinventar novamente um modo de se relacionar consigo próprio e com a natureza. Isso é o que chamamos de Idade Grega arcaica, a Idade Média grega, que se dá mais ou menos do século XI até o século VII a.C. – uma média de cinco ou quatro séculos.

Nisso temos basicamente o desenvolvimento de um outro regime de signos que não mais o regime mágico-religioso ou paranoico interpretativo, já temos um regime de signos fundado numa ambiguidade da palavra: a palavra deixa de ser exclusivamente sagrada e passa a ter uma relação ao mesmo tempo sagrada e humana. É a chamada palavra ambígua, narrada no texto Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica, de Detienne, que faz uma pesquisa fundamental, uma pesquisa fantástica sobre o estatuto da palavra na Antiguidade ou na idade arcaica grega. Essa palavra, ao mesmo tempo que é ambígua, é uma palavra eficaz e, na medida em que esses povos reatam o contato com o oriente, vai receber da Fenícia, no século VIII, uma fonetização. Então agora vai-se ter uma escrita linear fonetizada, ao mesmo tempo divina e humana, que vai gerar um modo próprio de produzir a verdade.

É isso que nos interessa particularmente aqui: como se produz a verdade na Idade Média arcaica grega, que é exatamente uma espécie de panela onde se está cozendo um modo absolutamente inédito que vai gerar o que nós chamamos de ocidente. O ocidente nasce daí. Então essa palavra ambígua, que ao mesmo tempo é uma palavra eficaz, é eficaz porque ela não separa o enunciado do ato. O enunciado já é imediatamente ato. O que importa nesse regime de signos é o sujeito de enunciação e não o sujeito de enunciado. O que importa nesse regime de signos é quem fala e não o que é falado. Essa palavra não representa nada, ela já é posição de ordem, ela já é posição de verdade, ela já é produção de realidade. É uma palavra ambígua porque é divina e humana ao mesmo tempo e é eficaz porque imediatamente ela produz realidade, ela não representa nada.

Então essa é a importância desse texto do Detienne, eu pediria que vocês fizessem um esforço para realmente encontrar o livro ou fazer a cópia e estudar nem que precisem de um ano para ler este livro. Mas é uma obra importantíssima para quem quer entender a origem do sistema representativo atual, a origem das nossas arapucas, porque é disso que se trata. As capturas que acontecem com o nosso desejo, com o nosso inconsciente, com a nossa subjetividade.

Nós não estamos aqui fazendo erudição, não estamos acumulando erudição. Isso só importa na medida em que vem desmontar a máquina ocidental de representação. Só nesse sentido. Depois que você utilizou, joga fora, esquece imediatamente, para liberar a vida. Quanto mais você esquecer melhor, você só usa as coisas para desmontar e liberar; liberou, esquece e joga fora, porque acumular informação é uma má ideia, é uma má maneira de se relacionar com a cultura e com o pensamento. A informação não serve absolutamente para nada a não ser para emperrar a vida ou para desmontar o que emperra a vida.

Participante: O que quer dizer divina e humana ao mesmo tempo?

É o seguinte: o sistema medieval grego ficou agora sem o Ánax micênico, sem o déspota divino; sem os escribas, os contadores, os sacerdotes que cercavam esse Ánax. Mas ele ficou ainda com aqueles que ligavam as aldeias ao Ánax ou ao palácio e que são os reis locais, os basileus, e os chefes do laos. Laos é uma força guerreira, então existem os chefes de guerra que são senhores que têm um certo privilégio. Eles não estão inseridos na tribo, eles estão à margem. Na realidade a origem do laos é uma origem nômade, a máquina de guerra era nômade antes de ser aprisionada como exército no mundo despótico do Ánax. Depois eles retomam os valores nômades ou até individuais que vão ser visíveis na Ilíada e na Odisseia de Homero. Os valores que atravessam a Ilíada são exatamente os valores dos quais nós estamos nos servindo agora. O que se passa na Ilíada é um regime de palavra ambígua, é um regime de palavra eficaz. Esses guerreiros e esses reis locais estão em comunicação direta com os deuses.

Participante: Seria algo assim como o baixo clero da soberania?

Seria mais ou menos isso. Só que agora eles estão livres, então o chefe do Laos não está submetido aos basileus que, por sua vez, não estão submetidos ao chefe do Laos. E a aldeia tem uma certa autonomia. Então há uma relação complexa entre eles e eles começam a criar vias distintas ou modos de vida novos. Os basileus basicamente vão se reduzir à função religiosa e também um certo acúmulo de riqueza; os guerreiros vão ter essa relação ambígua com o território e com a riqueza, mas eles têm os valores aristocráticos, eles são chamados de aristói, porque eles se vêem como iguais – iguais na força, iguais na potência, iguais na guerra, iguais na liberdade. Eles não têm nenhum vínculo, nenhuma submissão a nenhum tipo de regime.

Vamos para um exemplo prático. A questão da ambiguidade e da eficácia da palavra se revela, por exemplo, no modo de se produzir a justiça no mundo da Idade Média grega que é mais ou menos o seguinte: na Ilíada existe uma passagem em que, por ocasião da morte de Pátroclo vão se realizar jogos e entre esses jogos existe uma corrida de carros. Essa corrida de carros obedece a um circuito circular e você tem que passar por fora de certos marcos, o mais próximo possível. Existem os árbitros, os que julgam e que vão dar o prêmio à vitória, por um lado; de outro lado existem aqueles que devem ver, que estão ali para ver, que são as testemunhas; e os outros componentes são os competidores.

Aí você tem um momento da corrida, que se dá no momento em que Antíloco e Menelau se encontram na ponta, e Menelau vai acusar Antíloco de ter feito uma irregularidade. Deve ter ocorrido mais ou menos o seguinte: Antíloco, em vez de ir por fora, rente ao marco, foi por dentro ou encostou no marco, é alguma coisa assim que se passa e Antíloco vence a corrida. Imediatamente Menelau contesta, mas Menelau não vai reivindicar isso para um juiz, não vai reivindicar isso para uma instância pública. Menelau simplesmente diz que foi ferido no seu direito, que houve uma irregularidade e que Antíloco fez aquela irregularidade. Antíloco se defende e diz que não fez aquela irregularidade.

Participante: Mas diz a quem? Quem é esse terceiro a quem ele diz?

Eles dizem ao outro diante dos árbitros, mas os árbitros não estão lá para emitir sentença, eles não vão julgar nada. Eles estão lá simplesmente para observar o andamento das regras do jogo. Menelau, indignado, não chama a testemunha que estava lá no local. Isso seria um outro recurso e essa testemunha não teria o papel de relatar o que aconteceu, mas ela simplesmente juraria e produziria uma verdade no próprio juramento. Essa testemunha não tem a função de reapresentar um fato para ser reestabelecida a verdade. Nada disso. Mas nesse caso nem é chamada a testemunha.

O que ocorre? Menelau acusa Antíloco de irregularidade, Antíloco diz que não fez e Menelau diz o seguinte: “então você, pondo a mão direita na testa do seu cavalo, segurando com a mão esquerda o chicote, jura diante de Zeus que não cometeu essa irregularidade?”. Aí Antíloco diz: “isso não, eu renuncio à prova e realmente eu cometi a irregularidade”. Ou seja, se acaso ele jurasse diante de Zeus de modo não verdadeiro, a verdade se manifestaria através de um raio de Zeus, alguma coisa nesse sentido. Ou se isso se desse como alguma trapaça que ele viesse a fazer, ia ter ainda um outro recurso que era chamar a testemunha e fazer a testemunha jurar. Não a testemunha reapresentar o que ela viu, mas jurar também. Então esse juramento produz imediatamente a verdade, ele diz quem tem razão. Mais do que a verdade, ele diz quem está com a razão. Então a realidade é produzida imediatamente no enunciado, no sujeito de enunciação. É um sujeito de enunciação imediatamente ligada a Zeus. E a palavra, ao ser pronunciada, tem a eficácia de produzir o efeito de verdade. No momento mesmo em que é pronunciada.

Então o juiz ou os árbitros não estão lá para estabelecer um processo de julgamento de verdade, não se servem de nenhuma testemunha para reapresentar os fatos, não tem nenhum investigador que vai investigar de fato quem estava com a verdade ou não, e não tem nenhum procurador em nome de um poder público que ia fazer com que a verdade viesse à tona e que a acusação fosse a termo. Então é um regime de signos da chamada palavra ambígua e eficaz.

Participante: Por que os árbitros estão lá, então?

Estão lá para observar as regras. Eles só cuidam para que as regras sejam observadas. Se as regras não são observadas, eles vão cuidar para que as regras da prova sejam observadas. Daí a prova de verdade ou a prova judiciária é que vai ter o efeito final. Então o árbitro é como se simplesmente estivesse ajudando a preservar a regra de se estabelecer a verdade. Mas ele não pode a partir daí se separar da regra e julgar sobre a própria verdade. Ele só observa o modo como a verdade vai ser produzida mas a verdade é produzida numa prova de força, numa relação de força. Então a verdade é expressão imediata de uma potência, de uma força. A verdade é imediatamente política, se quisermos usar um termo moderno.

Participante: Mas essa foi uma prova de força onde tem um elemento que não pertence a esse plano: Zeus. Como é isso, de onde vem Zeus?

Há uma ambiguidade porque você tem a herança do mundo mágico-religioso, mas que não tem mais representante imediato na Terra. Você tem o mundo dos deuses e o comércio desse mundo com os deuses através desses seres privilegiados que são os guerreiros e os basileus, mas você já não tem a unidade do déspota na Terra, você tem essa unidade apenas no céu, que é Zeus, que venceu seus irmãos, os Titãs, e herdou o trono de Chronos. Essa ordem é dada mas é uma ordem no plano dos deuses; no plano dos homens já há uma pluralidade de forças em disputa, você já não tem aquela monarquia, aquela unidade, a arché já não está na mão de um só, a arché é distribuída. Arché é comando em grego.

Agora entramos na cidade grega – século VII, século VI. Você não tem mais uma relação direta com os deuses, você não tem mais a posse de uma palavra eficaz ou ambígua a não ser como resquício reduzido em alguns meios sectários: você tem as seitas órficas, você tem as seitas pitagóricas, você tem algumas seitas religiosas que vão gerar uma ordem própria e às quais vai interessar muito mais a salvação individual do que a salvação coletiva ou do que uma ordem coletiva. Nessas ordens religiosas você ainda tem essa palavra ambígua, essa palavra eficaz, e um comércio direto com os deuses. Aquilo que eu disse na aula passada sobre o adivinho ou o profeta, o poeta e o sacerdote estão intimamente relacionados com essa palavra ambígua, ainda mágica.

Participante: E a questão da cura como é que ficava nesta época?

A cura é vista de vários modos. Na sociedade mágico-religiosa ela tem a ver diretamente com o déspota; na sociedade arcaica ela tem a ver com esse comércio com os deuses e geralmente ela vai se dar através de uma interpretação do que gerou o Mal. Geralmente o que gera o Mal, segundo essas seitas religiosas, é uma impureza, um crime, um roubo, um assassinato, alguma coisa do tipo. E para que a saúde seja restaurada é necessário atingir a causa desse Mal. Então os sacerdotes que estão diretamente ligados ao presente oculto ou a Dionísio, os profetas que estão diretamente ligados a Apolo ou ao futuro; e os poetas que estão diretamente ligados a Mnemosyne ou ao passado, vão resgatar o que gerou esse Mal. Ou ele está no passado, ou no futuro ou no presente oculto. Geralmente o modo de se relacionar com o futuro, que é o caso do adivinho ou do profeta, que está em comunicação direta com Apolo, já diz o que é necessário fazer. Essa relação direta com o futuro te dá imediatamente o caminho para você ser liberado daquela doença ou daquele Mal.

Então a relação entre saúde e doença é uma relação de certa forma ligada à nocividade social, de certa forma ligada às injustiças, de certa forma ligada ao que prejudica uma relação social. E os deuses ficam revoltados e lançam maldições, pestes, fome, desordem. E a ordem, a paz, a saúde não são resgatadas enquanto o Mal não for reparado, não for expiado. Existe o modo propriamente social e político de se resolver isso, que são as práticas judiciárias, e existem os meios religiosos através de expiações ou de purgações.

Na passagem da Idade Média arcaica para a cidade grega as seitas religiosas que operam nesse regime vão ter um papel fundamental e vão gerar um modo de vida, um modo de pensar que vai influenciar muito o modo de viver do cidadão. Eles vão gerar um ideal de sophrosyne, um ideal de renúncia, um ideal ascético, um ideal de comedimento, um ideal de contenção, um ideal de não-relação. Ou seja, há um ascetismo moral muito forte nisso. E estarão ligados a várias práticas do tipo xamânicas que vão ter por objeto essencial a salvação individual. Então essas práticas ascéticas, essa askésis espiritual, esse exercício da renúncia feito pelos sacerdotes ou pelos iniciados, vão gerar um ideal de comedimento, um modelo de comportamento para os próprios indivíduos que vão formar a cidade.

No caso das seitas religiosas, vai se efetuar fundamentalmente um ideal ascético, um ideal de renúncia total; no caso do cidadão, você vai ter um ideal de comedimento, um ideal de domínio de si, de domínio das paixões, do desejo, da matéria, do corpo, daquilo que é inferior à razão, daquilo que é inferior ao que é comum, daquilo que é muito particular, daquilo que é passional. Porque é aí que se localiza – segundo o modo de os gregos fazerem a problematização, na ágora, da vida em comunidade – o que gera a discórdia, o que gera a guerra, o que gera o crime, o que gera a injustiça, o que gera a nocividade. Ou seja, a essência do Mal está em deixar as paixões individuais, as particularidades, a hybris (que é a desmesura, o desequilíbrio), a adikía (uma injustiça) dominarem. É aí então que se manifesta toda a fonte do Mal. Nesse momento você tem uma luta: o que os aristói, o que os guerreiros gregos chamavam de thymós – a thymé, forças da coragem, do desejo, das paixões – vão ser agora combatidos com o ideal da sophrosyne, o ideal da justa medida ou de uma postura de comedimento.

Esse ideal vai ter, obviamente, um impacto ambíguo na cidade: ele vai gerar uma postura de criação individual, de exercício individual de uma invenção de subjetividade própria: o grego vai inventar modos próprios de existir naquele mesmo nível que o Foucault chama de “fazer da vida uma obra de arte”. Foucault aliás vai detectar essas práticas do domínio de si numa obra chamada História da Sexualidade – Volume II, onde ele vai fazer uma pesquisa sobre os vários planos e domínios ou regimes do chamado domínio de si:

  • Uma dietética, ou seja, os gregos vão inventar uma alimentação própria para submeter os órgãos a uma boa saúde;
  • Eles vão inventar um tipo de relação sexual para submeter a sexualidade a uma força maior do que ela, a um domínio, a um controle que ponha a sexualidade a serviço da pólis;
  • Eles vão inventar uma óikonomia a partir do óikos, a partir do seu lar, a partir da sua família, que é uma relação de bens, de troca, de produção, de apropriação segundo uma medida comum ou uma medida que não fira os interesses da cidade, os interesses da própria comunidade.

Ou seja, vai ser necessário haver um domínio do corpo através de uma dietética, um domínio da sexualidade através das práticas de amor, um domínio da família, para só então ele dizer “eu posso ser um cidadão, eu posso atuar no plano político na ágora”. Eu só sou um homem político, eu só sou um animal político na medida em que eu me domino em nível de corpo, das paixões, da sexualidade e da minha própria família; quando eu sou capaz de dominar essas forças todas, só então eu posso ser um político e discutir e problematizar os destinos comuns da cidade. Se os nossos políticos seguissem esse critério, ia ser difícil sobrar um: são muito poucos os que passam nessa malha fina.

Ou seja, os gregos inventaram isso a partir do momento em que a Idade Média grega, com suas comunidades, passou a desembocar em adikía, em injustiças, em desordens, em misérias, em pestes, em fome, em desmesuras que levavam os cidadãos a se sentirem injustiçados nos mais variados planos. Uma parte dos guerreiros e praticamente a maioria dos basileus se tornaram agora senhores ou homens ricos que começaram a acumular bens. A antiga aristocracia, os antigos valores dos aristói, desapareceram e agora há uma espécie de simulação de valores aristocráticos, que são substituídos pelos valores da riqueza. E os valores da riqueza, dizem os gregos, são os únicos onde a desmesura realmente não tem limite; a hybris se realiza inteiramente na relação do acúmulo de riqueza, na relação do acúmulo de bens. Então há de fato uma distância, que aumenta cada vez mais, na medida em que os ricos ficam cada vez mais ricos, os aldeões ficam cada vez mais submetidos às injustiças, às adikías ou à hybris dos ricos. E os artesãos, os metalúrgicos, os ferreiros (porque agora estamos na Idade do Ferro) vão formar uma espécie de classe média, uma espécie de burguesia incipiente.

A classe média grega é formada também de um novo personagem, um tipo de sábio que não é mais o velho sábio oriental, que não é mais um sacerdote, que não é mais aquele que acredita em ideias prontas, que acredita numa sabedoria pronta, ou seja, que se relaciona com mitos que geram os modelos de cima e de fora. Mas já é um sábio que problematiza a sua própria existência, é um sábio que capta o plano de imanência que atravessa aquele campo social, é um sábio que já se relaciona com as forças informes que estão ali pedindo para receber uma formalização. E essa formalização depende do modo como o homem grego vai apreender o problema que os constitui naquele momento. Então forma-se um tipo de sábio misturado com um tipo mais ligado às práticas religiosas; você vai ter uma certa miscigenação, um certo intercâmbio de ideias entre sacerdotes, sábios ou legisladores, digamos assim.

O ideal de sophrosyne, que era antes ligado às velhas práticas religiosas, é apropriado pelos sábios – e de modo inconsciente pelos próprios indivíduos – e passa a atravessar o modo dos indivíduos se comportarem. Em Esparta, por exemplo, não há um desenvolvimento de ideias, há mais uma espécie de relação de corpo imposta a partir de um novo modo de organizar a guerra, que são as chamadas falanges. A invenção das falanges é feita em Esparta e gera modelo não só espacial como temporal, de sequência, de gestos e de organização que vão se tornar modelos a partir das próprias relações de força e não a partir das relações de ideias. É mais ou menos aquilo que o Foucault chama de formas de conteúdo. Em Esparta a organização vai ser dar muito mais no regime de luz, no plano visível, no plano das formas de conteúdo. Em Atenas a organização vai se dar muito mais no plano das formas de expressão, no plano das formas discursivas, no plano do dizível.

Mas é simultaneamente que se dá a organização no plano dos corpos e no plano dos discursos, uma vez que são microforças que não pertencem nem exclusivamente aos corpos nem exclusivamente ao plano das ideias, que estão gerando aquela nova organização. Ou seja, é um plano de composição que está gerando uma maneira de ver, de perceber, de se comportar no mundo; e uma maneira de dizer o mundo, uma maneira de saber esse mundo, uma maneira de conhecer esse mundo. Há um plano de composição no nível das forças. Essas forças são essencialmente afetivas, imediatamente coladas a um plano de imanência – ou seja, aquilo que atravessa os corpos que habitam esse espaço grego, aquilo que atravessa a geografia grega, aquilo que atravessa o discurso grego, de modo a não ter nesse plano de imanência – porque se tivesse, escorregaria – um referencial. Não há referencial e se não há referencial eu preciso sentir, criar, inventar um novo modo de ver, inventar um novo modo de pensar, inventar um novo modo de se comportar.

É assim que um jovem lacedemônio vai ser supercomedido ao falar, ao chorar a morte de alguém. As carpideiras vão ser proibidas em Esparta: chorar demais a morte de alguém é sinal de hybris. Tudo que é demais é desvalorizado, é desqualificado. Há uma mudança de valores, eles estão criando, gerando novos valores. O importante é nem demais, nem de menos; o importante é nem na ponta, nem no início, o importante é estar no meio. O importante é nem estar em cima nem estar em baixo, mas estar na superfície. O importante é não ser diferente, mas ser igual. O que é mais importante é não ser destacado numa posição, mas se assemelhar às posições e revezar nessas próprias posições.

Então vai haver paulatinamente uma nova construção do político, do espacial ou do geográfico, do econômico, do jurídico, do familiar e do cósmico simultaneamente. Simultaneamente vai se efetuar um plano de composição que vai atravessar esses vários regimes – o regime do corpo, o regime da sexualidade, o regime familiar, o regime econômico, o regime da moeda. Vai se inventar a moeda de Estado propriamente dita como um regulador e um distribuidor de riqueza; vai se emitir a partir de um centro, a partir da ágora e de uma magistratura, vai se emitir através de um ministro de tesouro, vai se emitir uma determinada quantidade de moedas. E essa quantidade de moedas vai ter um valor no demos: um valor nas classes ricas; outro valor nas classes médias; a ponto de estabelecer uma proporção tal que efetue o ideal grego da igualdade, da semelhança, da justa medida, da sophrosyne, o ideal de comunidade.

Sólon vai inventar uma constituição, vai redigir leis escritas que vão gerar as condições para que a igualdade, a semelhança, a comunidade, a justiça, a unidade, se efetuem. E o ideal de Sólon vai ser um ideal de isótes ou de igualdade, mas é uma igualdade que não é aritmética, não é numérica, é uma igualdade geométrica, é uma igualdade proporcional. A igualdade que o Sólon inventa é a seguinte: dar aos cidadãos o poder que lhes cabe segundo os seus méritos, dar aos cidadãos a terra que lhes cabe segundo os seus méritos. Então o demos que é o povo, os aldeões, os artesãos, os metalúrgicos, os marinheiros, os pescadores, ou os proprietários ricos, não têm a mesma quantidade de terra e a mesma quantidade de poder. A quantidade é sempre proporcional aos seus méritos ou às suas qualidades. É o que se chama uma democracia geométrica. Onde está a igualdade, então? A igualdade está exatamente no ponto em que os indivíduos se reconhecem habitando um plano único, um plano que é agora um plano de organização que pode se manter na imanência ou ir para a transcendência. Geralmente o que ocorre é ir para a transcendência.

O que significa esse plano ir para a transcendência? A lei ou a regra que é criada escapa da sua criação e se torna uma entidade em si que paira sobre a sociedade. E essa regra, que era uma regra de passagem, que servia para aquele momento naquela comunidade, segundo aquele tempo, segundo aquelas condições, passa a ser uma regra em si, uma lei não só social, econômica ou política, mas passa a ser uma lei de natureza.

É nesse momento que há uma inversão – o que o Nietzsche chama de imagem invertida -, há uma transcendência em que os homens passam a ver na lei um referencial de conduta. Enquanto você se encontra nessa igualdade, nesse ideal de isótes de que fala Sólon, você encontra como que uma regra, mesmo que a minha proporção seja menor que a do rico, ou vice-versa; mas essa regra é a que comunica essa relação de desproporção que acaba sendo uma relação justa. É na regra mesma que está a comunidade, é na regra mesma que está a igualdade. A igualdade não está na forma de um sujeito interiorizada, não sou eu enquanto sujeito que sou igual; eu sou igual naquele encontro, naquela regra. Os gregos ainda não inventaram a má consciência, não é com eles que vai nascer a má consciência. A má consciência nasce com o sacerdote cristão, nasce com São Paulo. Aqui ainda passa ressentimento, com certeza, que é uma herança do sacerdote judaico, mas os ressentimentos se misturam com atividades e existem os homens ativos da ágora, existem os homens ativos da pólis, existem os inventores, existem os criadores que estão ali problematizando o modo de vida em sociedade. Assim como tem os reativos, aqueles que reivindicam ou aqueles que vão para um plano religioso, ou aqueles que se sentem eternamente injustiçados, etc.

No caso de Sólon, então, você tem uma redação de leis que se dá no final do século V, se não me engano, e que vai levar Atenas a uma certa euforia, um certo desenvolvimento. Até o surgimento de tiranos, o que vai acontecer já na metade do século V. Sólon é final do século VI para o início do século V. Na metade do século V, alguns tiranos vão se apossar da arché que estava depositada no meio, to meson, que estava a igual distância dos cidadãos. E esses tiranos vão começar a gerar desordem, hybris, adikía, tudo que leva ao desequilíbrio, à miséria e à injustiça social. É neste momento que surge Clístenes que vai instaurar uma reforma e vai radicalizar a chamada democracia grega. Clístenes vai redistribuir as quatro tribos em Atenas e vai gerar dez tribos.

Participante: Então aí é um momento importante, porque sai do geométrico e entra no aritmético.

Exatamente. É um momento importante porque vai levar a questão da igualdade e da semelhança à sua radicalidade. No momento em que ele cria dez em vez de quatro tribos, ele não cria doze, por exemplo, porque seria um múltiplo de quatro, e as velhas formações tribais se repetiriam apenas com subdivisões. Ele cria dez porque ele vai fazer uma espécie de atravessamento ou de transversalidade entre as quatro tribos e vai misturar em cada tribo gente do interior, das aldeias, gente da cidade, gente da costa marítima, gente das oficinas de artesãos ou de metalúrgicos. E de modo tal que em cada tribo todas as partes da cidade estejam ali representadas. E vai estabelecer, além dessa radicalização espacial, dessa mistura espacial, dessa desconstrução geométrica do espaço, dessa homogeneização do espaço, além disso ele vai estabelecer uma nova ordem no tempo; e a ordem no tempo vai se dar do seguinte modo: vão haver dez períodos de 36 ou de 37 dias. Esses dez períodos vão ser alternados sucessivamente por 50 membros dos 500 membros do conselho de Atenas. Então 50 membros vão governar durante 36 ou 37 dias, em seguida vêm novos 50 membros, e assim você faz o círculo inteiro ao longo de um ano, o revezamento total da sociedade no poder.

Essa divisão no tempo e no espaço se torna aritmética porque agora não importa mais de onde o indivíduo vem, o que o indivíduo faz e qual o mérito que ele tem. Todos os indivíduos têm o direito de partilhar igualmente da arché ou da divisão do comando da cidade. Aqui temos uma situação própria da invenção de uma subjetividade grega, ainda que não haja sujeito como nós entendemos no sentido moderno como existe em Descartes, ou no sentido contemporâneo a partir de Kant. Há um sujeito mas esse sujeito ainda não tem a identidade fictícia que nós vamos criar para ele. Esse sujeito ainda não é um eu propriamente dito. Essa forma de identidade ainda se dá no encontro da ágora, ela ainda tem uma exterioridade, ela ainda tem uma objetividade.

É por isso que aqui nós ainda estamos numa relação ambígua com o plano de imanência, o plano de composição e o plano de organização. O plano de organização é o mundo visível ou sensível ao nível das formas de conteúdo, e o nível dizível, o mundo dizível onde há o discurso, onde há a linguagem, onde há o logos, onde há a razão, onde as ideias circulam, que seria a forma de expressão. Este plano é o plano que Foucault diria estratificado. O estrato se dá no mundo dos gestos, da sensibilidade; e dos discursos. Isso constitui o saber: o saber é ao mesmo tempo visível e dizível. Isso é o plano de organização. Sob esse plano de organização existe o plano de composição, que são as forças que estão atravessando essa sociedade, são as micro-forças, os micro-poderes, as micro-relações de potências que estão compondo esse plano de organização. E o plano de imanência se dá através do ambiente da Grécia, do ambiente da ágora, o meio que ali emerge e que gera esse tipo de condição para que as relações entre indivíduos agora se tornem relações entre iguais ou entre semelhantes ou entre amigos. São os gregos que inventam a phylia, a relação de amizade.

Phylosophia: amizade pela sabedoria; phylosophos: amigo do saber; phylodoxoi, amigos da opinião. Então o que você tem nesse momento são os phylodoxoi, os amigos da opinião que têm um gosto em discutir as coisas, os problemas comuns em praça pública. Há uma problematização comum em praça pública. Esse plano de imanência, esses personagens do amigo ou os phylodoxoi, remetem também a uma Eris, a uma disputa, a uma relação agonística, a uma rivalidade.

E eis que o problema fundamental da sociedade grega está colocado: a rivalidade. O que seria a rivalidade? Veremos isso um pouco melhor com a obra platônica depois, talvez na próxima ou na outra eu já entre direto em Platão. Mas é mais ou menos o seguinte: se o político tem tais e tais qualidades, eu me vejo como o verdadeiro político. Se o médico tem tais e tais qualidades, eu me vejo como o verdadeiro médico. Aí o outro vai dizer “não, o verdadeiro médico, o verdadeiro político ou o verdadeiro filósofo sou eu”. E vai haver sempre uma disputa através do discurso.

Então o discurso vai ser veículo agora: nós estamos num mundo laicizado, a palavra agora é laica e não mais sagrada, não é mais ambígua mas agora é diálogo. Porque há um diálogo agonístico na ágora e a palavra vai reapresentar, agora ela vai representar, ela vai reapresentar o modo como eu apreendo a realidade, o modo como eu faço com que a sociedade avance mais, fique mais saudável, se desenvolva mais, etc. Isso vai exigir uma técnica discursiva, daí o nascimento da retórica entre os gregos. Os sofistas vão ser professores de retórica, vão ser professores de política, vão ser professores de sabedoria. Sofistas vão ser especialistas ou os profissionais em formar cidadãos, em formar homens ou animais políticos. Os sofistas, na medida em que vão assumir o encargo de formar os cidadãos, vão inventar técnicas discursivas ou uma retórica, eles vão inventar técnicas de persuasão e vão inventar técnicas de demonstração. Olha o modelo que está sendo gerado para a razão ocidental.

Mas eu vou agora detalhar um modelo mais fundamental ainda que acabou atravessando as outras formas todas – a forma política, a forma econômica, a forma lógica – de se relacionar com a verdade. Então os gregos da idade clássica, os gregos da cidade do século VI e do século V, vão inventar um modo de produzir a verdade que não mais é o modo como a verdade era produzida na idade arcaica. Não é mais com uma palavra eficaz ou com uma palavra ambígua, agora é com uma palavra diálogo; o que importa não é mais o sujeito de enunciação, agora o que importa é o sujeito do enunciado; não importa mais quem diz, mas importa o que é dito. É isso que importa. E a verdade não é mais imediata mas agora ela está ou num passado, numa memória, ou num futuro, em um projeto. Ou uma coisa projetada no futuro ou uma coisa na memória do passado. E o acontecimento presente é sempre o modo como eu vou representar melhor.

Ou seja, aqui eu já tenho a arapuca onde o devir é capturado, aqui eu já começo a perder o acontecimento. Ou não, dependendo da minha atitude diante da ágora. Mas eu já tenho uma ambiguidade forte e a tendência é se perder o devir. A tendência é se perder o plano de imanência. É a mesma coisa: perder o devir e perder o plano de imanência é o mesmo. O devir é aquilo que nos acontece enquanto acontece, se relacionar com o acontecimento enquanto ele acontece e não enquanto ele já foi ou enquanto ele vai ser. Enquanto ele já foi é um passado, enquanto ele vai ser é um futuro, mas enquanto ele acontece é o devir. Enquanto ele já foi é história, enquanto ele vai ser pode ser o “futuro da revolução”, ou o futuro da sociedade, o futuro das práticas. Mas enquanto ele acontece é a revolução em ato, é o movimento da vida, o movimento da natureza, o movimento do corpo, o movimento do desejo, é o pensamento se pensando a si próprio, o pensamento se problematizando, é o corpo se problematizando, é o desejo inventando novas linhas, novas fugas. Então é um momento rico e ao mesmo tempo muito perigoso onde o desejo e o pensamento habitam uma corda bamba.

Narramos o modo de produzir a verdade através de um acontecimento na Ilíada. Na cidade, Édipo Rei, a tragédia de Sófocles, diz Foucault, narra muito mais o modo de um saber e de um poder, ou da relação entre saber e poder – coletiva – do que propriamente a história ou a natureza do nosso desejo. Nesse texto A Verdade e As Formas Jurídicas, que eu pedi para vocês lerem, vocês vão encontrar na segunda conferência (são quatro conferências que ele faz na PUC do Rio de Janeiro) uma análise de Édipo Rei. E ele vai até brincar: esse assunto do Édipo há um ano pelo menos se tornou fora de moda. Ele está em 1973 e o Anti-Édipo foi lançado na França em 1972. E o Anti-Édipo foi uma destruição completa do modo como a psicanálise, como Freud, Lacan e outros psicanalistas ortodoxos veem o desejo e o inconsciente. O desejo e o inconsciente são sempre representados pela historinha do Édipo, pela tragédia do Édipo. E evidentemente Deleuze e Guattari no Anti-Édipo vão dizer que esse triângulo edipiano não narra a história do nosso desejo, a natureza do nosso inconsciente – que o nosso inconsciente seria incestuoso e parricida, que é o caso de Édipo: Édipo mata o pai, o rei Laios e dorme com Jocasta, a mãe dele. Então não seria aquilo que diria a natureza do nosso inconsciente como sendo incestuoso e parricida, mas seria uma arapuca, um dispositivo utilizado pela clínica psicanalítica para bloquear o desejo. O desejo seria bloqueado, seria diminuído, seria recalcado, seria mantido no plano familiar do papai-mamãe-filho, papai-mamãe-Édipo, para que ele se torne dócil e civilizado, para que ele de fato entre na cultura. E esse é todo o mal-estar que Freud sente ao falar de cultura porque o desejo necessariamente tem que ser recalcado. Deleuze e Guattari riem – e riem muito – disso; e Foucault vai dizer: esse assunto me interessa muito e eu quero fazer uma pesquisa no plano da soberania; muito mais do que um estruturalista, ao contrário do que os jornais nos chamam – a mim, a Lyotard, a Guattari, a Deleuze –, nós fazemos a história de dynasthéia, de dinastias ou de uma dinâmica dos deuses, para jogar com a palavra grega. Ou seja, é uma interpretação de soberanias.

Então o caso de Édipo narra uma posição de poder e de saber de um personagem que está em extinção na Grécia e a tragédia é exatamente a passagem do mundo mágico-religioso para o mundo laico, do sagrado para o profano, ou da Idade Média grega para a Idade Clássica. A tragédia, no fundo, narra a tragédia da perda do poder por um tirano. Édipo é um tirano, ou ele tem um tipo de poder e de saber próprios de um tirano. Édipo tem um saber autocrático, solitário (não é um saber da pólis, não é um saber em comunidade, é um saber dele), não é mais um saber dos deuses; e tem um poder acima da lei, acima das regras da pólis, acima da diké ou da justiça: o que importa a Édipo não é ser justo, o que importa a Édipo é que a vontade dele seja efetuada, isso é que é a justiça para Édipo.

Mas nessa tragédia existe um deslocamento das práticas jurídicas. Por exemplo, a verdade em Édipo Rei é produzida de modo já completamente diferente do que era produzida no mundo arcaico grego ou no mundo mágico-religioso. A verdade não é mais produzida pela palavra eficaz ou pela palavra ambígua, agora ela é produzida pela palavra diálogo, ela já se instaura na posição de um inquérito. Os gregos da Idade Clássica inventam o inquérito. E o inquérito é o modelo fundamental do modo de pensar do ocidente. Nós pensamos de modo inquisitorial, nós fazemos inquérito o tempo inteiro quando nós estamos na representação. Nós estamos numa instância do juízo que os gregos inventaram e que funciona mais ou menos do seguinte modo – vamos a um exemplo. Na tragédia de Édipo existe um problema, existe uma questão de justiça, existe um problema de verdade: quem matou Laios é a questão. E essa tragédia ainda tem resquícios mágico-religiosos: Édipo manda o seu cunhado Creonte até Delfos para saber do oráculo qual é o oráculo, qual é a prescrição do deus Apolo. Porque uma peste se abateu sobre Tebas. Peste, doença, miséria – tudo, a cidade está sendo dizimada. É necessário ter uma reação, evidentemente, então Édipo Rei, Édipo Ánax manda Creonte até Delfos, que retorna com o seguinte oráculo: existe uma conspurcação que se abateu sobre Tebas e a causa disso, desse Mal, é um assassinato. Em seguida se sabe que é o assassinato de Laios mas não se sabe quem matou Laios. E a determinação é que quem matou Laios seja expulso da cidade, seja exilado.

Nesse momento existe aí um plano ainda mágico-religioso representado na palavra do oráculo e é chamado imediatamente o adivinho, que ainda faz parte do plano mágico-religioso, o adivinho ou o profeta, aquele que narramos na aula passada, que tem relação direta com Apolo, ou que esteve lá e que viu. E Tirésias chega e diz: “tu Édipo dissestes que vai exilar aquele que matou Laios, então exila-te a ti mesmo”. É assim que ele anuncia que foi Édipo quem matou Laios. Evidentemente Édipo vai se defender e acusar Tirésias, o adivinho cego, de querer o poder dele, assim como já tinha acusado Creonte. Sempre Édipo se defende do ponto de vista da ameaça da sua soberania, é a sua soberania que está sendo ameaçada, é sempre uma questão de poder, nunca de culpa inconsciente. Aí entra em ação dois testemunhos que se dão no plano da soberania. Um se dá no plano dos deuses, outro se dá no plano da soberania. Esse plano da soberania é onde os dois testemunhos se dão: um deles é o próprio Édipo que é testemunha de si mesmo e que vai dizer que matou um homem na encruzilhada de três caminhos, e depois o testemunho de Jocasta. Aliás é o contrário: ela diz “não foste tu porque Laios foi morto na encruzilhada de três caminhos fora da cidade”. Ora, esse testemunho que aparentemente era negativo, confirma Édipo que diz “ora, o que eu fiz foi exatamente isto, eu matei um homem na encruzilhada de três caminhos fora da cidade”.

Um outro acontecimento se dá: um escravo de Políbios, de um outro reino – se não me engano de Corinto – vem até Tebas dizer a Édipo que Políbios morreu. Ora, Édipo acredita que Políbios é seu pai. Aí Édipo, ao invés de ficar triste com a morte de seu pai, fica alegre por saber que pelo menos não foi ele que o matou, porque Édipo está fugindo do oráculo de Delfos que disse que ele iria matar o seu pai, que seu pai ia ser morto por seu filho. Ele está fugindo disso.

Participante: Tinha algum problema matar o pai?

Vamos ver onde está o problema, ainda não cheguei lá. Aí o que ocorre? O escravo diz “mas Políbios não era teu pai”. E esse escravo diz que apanhou Édipo numa floresta das mãos de um pastor e levou até o reino de Corinto e Políbios criou Édipo. Aí Édipo ordena que achem esse pastor que está escondido, que venha até a cidade e dê o seu testemunho. Aí vem o pastor e confirma a verdade de que ele pegou aquele menino das mãos de Jocasta porque aquele menino deveria ser exilado na medida em que havia a prescrição do deus de que ele mataria seu pai. Então para evitar que se cumprisse o oráculo de Delfos, Édipo foi exilado e dado a esse escravo. O círculo se fechou.

E o que é sintomático aqui? É que o testemunho de um escravo, o testemunho de um pastor, são capazes de derrubar a soberania de um tirano. Olha o que está acontecendo na Grécia agora. Isso antes não tinha a mínima chance de acontecer. Ou seja, mudou o regime, é um outro campo de visibilidade, é um outro campo de enunciabilidade, é um outro campo de saber e é uma nova formação social. Agora nós estamos no regime da palavra diálogo, nós estamos no regime de não mais quem é fala é importante – porque aquele lá era um simples escravo -, mas o que ele fala é mais importante. E ele traz uma verdade, um fragmento que opera por metades, modo como o symbolon grego funcionava. O symbolon é um instrumento de comunicação ou de extensão de poder que era usado da seguinte maneira: você tem um objeto, você quebra o objeto numa aliança que você faz, aquele aliado leva a metade do objeto e você fica com a outra metade. Quando você envia alguma mensagem que remeta a algum acontecimento, a alguma relação de forças, o mensageiro leva junto a outra metade e aquilo se conecta e autentica a verdade. É uma metade que se encaixou na outra. Aquela mensagem tem poder de verdade ou é absolutamente eficaz, ela é uma extensão do poder daquele que emitiu o comunicado.

Então esse modelo do symbolon funciona já na representação grega. Você tem agora um tribunal, você tem agora testemunhas, você tem agora um processo que não é mais uma prova de força. Agora é um discurso que reapresenta fatos passados e que se encaixam com os fatos futuros do oráculo de Delfos. Então a verdade do povo e a verdade do deus é a mesma. E aquele rei que tudo sabia, que decifrou o enigma da esfinge – porque ele decifrou o enigma da esfinge, é desse modo que ele se torna tirano de Tebas -, esse rei que tem esse tipo de saber autocrático, solitário, que tem esse tipo de poder tirânico, se torna supérfluo.

Participante: Foi esse poder que o levou a decifrar a esfinge?

Foi esse poder que o levou a decifrar a esfinge. Exatamente.

Participante: O poder está na palavra dele, ele faz cumprir a palavra dele.

Aí você chegou no ponto essencial: ele ainda está vinculado ao regime da prova, ao regime mágico-religioso. Ele ainda é esse personagem desse mundo que já não tem lugar na sociedade clássica grega. Vê como a coisa se torna superencaixada? Ele é supérfluo agora. Esse homem da palavra eficaz, da palavra mágico-religiosa, da palavra ambígua, não tem mais lugar. Nem seu poder nem seu saber.

Ele tem uma relação direta com os deuses também, mas nesse momento ele já não quer mais saber dos deuses. Nesse momento ele já volta as costas para os deuses. Existe uma interpretação do Hölderlin muito interessante que vamos ver quando falarmos da tragédia, que é já uma relação com Édipo em Colona. É quando os homens dão as costas para os deuses e ao mesmo tempo se sentem abandonados. A existência se torna trágica. Mas essa é outra questão que nós vamos articular com a máquina de guerra de Kleist que também é um romântico alemão do século XIX.

Participante: E a cegueira do Édipo?

Esse saber que não serve mais para nada tem a ver com um tipo de olhar que é o olhar que o Édipo tem através ainda desse mundo antigo que não tem mais lugar. Então esse tipo de saber representado nos olhos de Édipo é que vai ser aniquilado. O saber e os olhos. Fura os olhos, ele é exilado e ele vive em Colona. Depois existe uma outra obra do Sófocles que é Édipo em Colona e que em seguida o Hölderlin vai fazer a interpretação. Mas isso é objeto de outra palestra, nós vamos falar disso bem mais adiante, já na idade moderna.

Participante: O fato é que a tragédia representa a dissociação entre o saber e o poder. É isso?

Ela representa a dissociação. Você me deu o gancho para encerrarmos a aula. O saber toma autonomia. Na medida em que você não tem mais a verdade em quem fala mas no que é dito, o saber não está mais na enunciação mas está no enunciado, ele não tem mais relação com a força de quem falou, ele não tem mais relação com o poder. Ele se destaca do poder. E o poder agora é visto como cego – uma outra relação com Édipo -, é visto como injusto, é visto como uma desmesura. Então o saber vai ter a função de regular o poder, o saber vai ter uma função de neutralidade. E é aqui que inicia o mito muito fortificado, mas muito mesmo fortificado por Platão. Platão é que vai fazer a separação radical entre saber e poder. E o saber desde então vai ter essa coisa mística e mítica de que ele é neutro. A ciência é neutra, a verdade é neutra e a verdade é o que importa. A política é submetida à verdade. Tanto assim que Platão, na República, vai colocar como o verdadeiro pastor dos homens um rei filósofo. A sabedoria acima da política. O rei filósofo é o único capaz de dirigir a cidade.

Então esse mito está se formando aí numa instituição jurídica que gera um modelo para uma racionalização. Logos em grego ao mesmo tempo é razão e discurso. E também é proporção. Então essa distribuição proporcional, esse discurso ou essa razão vai encontrar um modelo de operação, ou seja, vai encontrar sua lógica já no modelo jurídico do inquérito. Essa instituição jurídica do juiz, da testemunha, do processo, do inquérito que é a investigação sobre a verdade, e da demonstração dos fatos vão gerar um modelo para a razão ocidental.

Então era isso basicamente que eu queria insistir hoje, essa diferença entre regimes de signos do mundo mágico-religioso, depois essa passagem da Idade Média grega para a Idade Clássica. Na Idade Clássica já temos as condições da representação instauradas – já temos as condições da semelhança, da igualdade, da dialética -, de um discurso representativo instaurado. Mas ainda não temos a má consciência, ainda não temos a identidade de um sujeito. O que nós temos aqui é um processo de subjetivação, é uma produção de subjetivação, é um fora que está se dobrando e produzindo um tipo de indivíduo na Grécia. Porque no mundo despótico mágico-religioso o indivíduo era apenas uma cifra contábil, ele não era individualizado exatamente. Você não tinha nem objeto nem sujeito no mundo despótico. Você tem apenas um sujeito fundamental que está fora da natureza que é o corpo do déspota, que ao mesmo tempo é o objeto da sociedade: a sociedade se volta para aquele referencial que está fora dela. No mundo arcaico grego esse processo de construção de uma subjetividade começa a se desenvolver e a Idade Clássica, ou a cidade, vai gerar um modo próprio de se comportar ou um estilo de vida.

Então é a partir das forças que atravessam os corpos e as ideias dos gregos, aquela atmosfera, aquela geografia, que um modo de vida é construído e que uma maneira de ver o mundo, de se relacionar com os homens e a natureza é inventada, literalmente inventada. É aí que nasce o que chamamos de mundo civilizado. A civilização não nasce com o mundo despótico, a civilização nasce com a cidade grega. Agora, essa civilização tem aspectos interessantes e tem aspectos muito negativos também. A nossa questão não é se essa civilização é verdadeira ou é falsa, não é uma questão de Bem ou de Mal, a nossa questão não é moral, não é moralizar isso, mas é saber onde esses indivíduos se encontram no seu plano de imanência, onde eles estão inventando uma nova maneira de viver, de pensar, de se relacionar, e onde eles estão voltando a antigos arcaismos e caindo em velhas arapucas através de novas técnicas. Ou seja, através de arcaismos com neologismos ou com novas técnicas, se inventam novas arapucas para o desejo e para o pensamento. Então a nossa questão é essa, é como isso vai gerar o pensamento ocidental – que no fundo é o nosso pensamento, é como nós pensamos – nos dois planos: tanto no que é realmente a liberdade como onde nós realmente caímos nas arapucas e nas capturas de desejo e de pensamento.

Participante: Quando eu estava lendo o Vernant eu ficava pensando nas movimentações marítimas, nas questões econômicas. Então às vezes escutando, depois resgatando um pouco o marxismo, eu fiquei pensando, quando eu estava lendo, como o marxista olharia essa ótica, essa perspectiva. E aí eu fiquei perguntando “o Fuganti não fala de economia, não fala dos modos de produção”?

O marxista ortodoxo acredita em velhos mitos, acredita no sujeito do conhecimento, acredita no objeto do conhecimento e acredita que as coisas acontecem ao sujeito do conhecimento ou se instauram no mundo como objetos de conhecimento a partir de uma infraestrutura econômica.

Então as coisas acontecendo no plano econômico, elas simplesmente seriam objetos de conhecimento e não alterariam nem a natureza do objeto – a não ser como a condição de produção daquela economia que gerou aquele objeto – e tampouco o sujeito. O sujeito é pressuposto como sendo universal. Ou seja, haveria algo em nós que vê, que ouve, que pensa, que sente, que percebe, que age, que reage sempre a partir de uma forma universal, de uma forma substancial. Haveria uma comunidade dos sujeitos numa forma universal, numa forma em si. Então para o marxista e para o ocidente inteiro seria natural pensar. E o saber seria uma coisa natural e o objeto de conhecimento também seria uma coisa natural. Ainda que produzida em sociedade, ainda que fosse um artifício, mas é natural que ele se torne objeto de conhecimento.

Então eu falo geralmente de relações de poder porque na realidade são as relações de poder que geram um tipo de saber não só enquanto estrutura de conhecimento, mas geram um tipo de visibilidade no objeto – eu vejo o objeto daquela maneira, então aquele objeto só existe naquele contexto. Por exemplo, o louco não existe nessa época como doente mental, jamais ele é visto por um grego como um doente mental. Então o objeto loucura não existe desse modo, ele tem uma outra luz, uma outra visibilidade. A sabedoria sobre a loucura é outra também, os gregos pensam a loucura como um delírio, a possessão de um deus e não a perda do juízo, então essa sabedoria é outra. E o sujeito louco é um ser que diz a verdade de um deus, é um ser possuído. Então esse modo de realidade da loucura, do louco e das atitudes do louco existem numa determinada sociedade, numa determinada época. O que gera esse saber, o que gera esse sujeito, o que gera esse objeto? São os modos como o plano de composição se efetua, o plano de composição de forças. O plano de composição de forças é um plano político ou micro-político. Há uma micro-política e uma micro-lógica.

Participante: você está falando da transacionalidade? Acho que é trans-entendimento, não é?

É uma espécie de transversalidade, digamos assim, entre a altura do objeto ou a altura do sujeito, e a baixeza do mundo. A coisa não se dá nem no alto nem no baixo, ela se dá no meio, ela atravessa os planos. E esse alto e baixo são gerados a partir do modo como os planos se compõem. Então o sujeito e o objeto são fabricados. Eu fabrico um modo de perceber o mundo. O homem grego percebe o mundo que não é mais o nosso modo, nós vemos o mundo de um modo completamente diferente do homem grego. Um xamã vê o mundo absolutamente diferente do que um executivo vê o mundo. São posturas distintas não a partir de um modo consciente de ver as coisas, não é a consciência, a consciência já é resultado disso. São as forças que atravessam e que se fazem, se juntam, se conectam de modo tal que uma determinada maneira de ver o mundo aparece, uma visibilidade para o mundo aparece e uma sabedoria ou um modo de se apropriar dessas relações aparece também.

Então o saber nunca é neutro, ele é sempre instrumento de poder – ou de alguém que domina, ou de alguém que é submetido. O saber nunca tem uma posição neutra. É como diz Nietzsche: ele é sempre a centelha entre duas espadas, ele é sempre o fulgurar numa relação de forças. Aquela fulguração que surge ali, uma vez que aquela relação de forças está determinando e impondo uma certa maneira de ser. Aquela maneira de ser é que é o saber possível daquela relação. Então aquele saber possível é o que chamamos de forma de conteúdo e forma de expressão. A forma de conteúdo é o modo como o corpo se relaciona com outro corpo, e a forma de expressão é como esse acontecimento é dito ou é pensado ou é interpretado ou é avaliado.

A avaliação e o sentido, segundo Nietzsche, e nunca a verdade ou falsidade. A avaliação é o valor que isso tem, e o sentido é a direção em que isso vai. Afirma a vida? Nega a vida? É ativo? É reativo? O valor é afirmativo? É negativo? Afirmação e negação, ação e ressentimento ou reatividade são os critérios da baixeza e da elevação ou da nobreza de um pensamento ou de um modo de vida. Então a nossa questão é dizer que aqui está sendo inventado um modo de verdade. O marxista, nessa sociedade, diria assim: essa verdade foi produzida por essa infraestrutura econômica, por esse modo de produção. Acontece que o modo de produção não é só da riqueza, a natureza produz na potência, a natureza produz na ideia, na percepção, nos sentimentos, elas produz em tudo. Tudo é produção e é isso que falta ao marxista: radicalizar essa bela noção que é a noção de produção. Tudo é produção. O inconsciente é produzido, o pensamento é produzido, a alma é produzida, o objeto é produzido. Mas mais do que nos sentirmos como objetos, como vítimas, temos que dizer: “e o que produz, onde está?”. Então ao mesmo tempo que isso é produzido, eu quero produzir isso. Não mais eu enquanto sujeito, mas agora as forças que me atravessam. E é habitando o plano de imanência que você se torna o produtor do que te produz. Ou seja, você pode fazer da tua vida uma obra de arte porque você habita agora esse plano de imanência no modo de se relacionar com o mundo.

Ultrapassando a representação você reencontra o devir, você reencontra o acontecimento, você reencontra a capacidade novamente de experimentar, de mudar, de desviar, de fugir, de ultrapassar – enfim de viver em vez de sobreviver. Então o marxista sempre nos vê como um fundamento natural. Objeto natural, sujeito natural e o saber, o conhecimento, como sendo um instinto natural. Ora, o saber não é um instinto, o saber é resultado do encontro de instintos. O saber não é uma força, ele é o resultado de um encontro de forças, ele é um efeito.

No momento em que eu encontro o meu plano de imanência eu faço também do saber um ato que atualiza a minha potência. E é esse modo de pensar que nós precisamos encontrar, ultrapassando a representação. Como pensar fora da representação.

Participante: Você pode falar sobre a distinção entre contemporâneo e extemporâneo?

Foucault diria que nós devemos nos relacionar com a história apenas como o que atravessa o mais atual, ou seja, a história como fazendo parte do presente. Ou seja, o passado que coexiste aqui e agora e que faz da nossa vida e do nosso pensamento o que eles são. É essa história que importa. Isso o Foucault chama de atual ou de contemporâneo. Nietzsche chama isso de extemporâneo e de inatual porque Nietzsche diz que o atual, o que nos é contemporâneo, é exatamente o que nos impede de entrar em devir. Mas é a mesma coisa que Foucault está dizendo, que ele precisa reencontrar o atual. O atual de Foucault é encontrar o devir. E o inatual de Nietzsche também é o devir – que não é atual mais porque os homens perderam o devir. Eles estão falando da mesma coisa. É por isso que nós não devemos nos prender às palavras. Ficar nos signos é problemático.

Participante: Na Idade Média grega não tem escravo?

Tem. E na Idade Clássica existem escravos também. É uma problematização. Aristóteles jamais imaginaria uma sociedade sem escravos, Aristóteles acha isso natural. É um modo daquela sociedade perceber o mundo daquela época.

Participante: Eu tenho a sensação de que você lê como também não tendo escravos.

Eu não estou preocupado com essa questão porque o meu problema é saber de que modo nasce a representação, de que modo nasce um discurso representativo, de que modo o antigo regime de signos se embrenha, se junta com esse discurso e vai produzir a subjetividade e a objetividade propriamente ocidentais.

Participante: E a democracia?

Existe a democracia só entre os homens livres na Grécia. As mulheres, as crianças, os escravos são excluídos. Eu não estou defendendo isso.

Participante: Eu cago ali, quem limpa a merda? Quem limpa a merda fica de lado. É um plano também de distinção e se distinguimos essas coisas, ou extinguimos essas coisas… eu tenho muito receio dos idílios, dos tempos idílicos.

Eu estou narrando aqui exatamente a ambiguidade entre o que é interessante e o que é desinteressante. O que nos interessa? Retomar o devir. A discussão se a sociedade grega era justa porque tinha escravo, eu não estou entrando no mérito se ela é verdadeira ou falsa, se ela é mais justa ou injusta, se ela é boa ou se ela é má. Minha questão não é essa e eu sou o que menos acredita em futuro de revolução ou em utopia. Nós estamos o tempo inteiro insistindo em retomar o devir e no devir tudo é imprevisível. Agora, o fato de alguém limpar a merda do cidadão, alguém fazer o trabalho: os gregos tinham uma desvalorização em relação ao trabalho manual. Aquele que fazia algo manual, gestual, era desvalorizado. Era o modo deles se relacionarem. Eu de modo algum defendo isso. Era o modo de eles serem sedentários. Existe um sedentarismo na sociedade grega altamente condenável do ponto de vista da liberdade.

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