Luiz Fuganti
Participante: Estávamos falando das transgressões. Aí me veio algo sobre o “jeitinho brasileiro”: é uma forma de transgressão ou isso simplesmente é uma forma de aliviar a pressão para continuar se massacrando?
A questão do “jeitinho brasileiro”. Eu acho o seguinte: que essa questão é o modo como vivemos o simulacro. Se vivemos o simulacro do ponto de vista de uma máscara representativa, ou de uma dissimulação, de um fingimento, caímos em uma transgressão que pode ser trapaça ou que pode ser um choque dialético, simplesmente. De uma maneira ou de outra, a postura da transgressão, seja ela como trapaça ou como ideal de ruptura, já está fadada ao fracasso. É como a crença de um ateu: na medida em que ele precisa afirmar a crença da não-existência de deus, ele está no mesmo plano que o crente que acredita em deus; ele está no mesmo nível, na mesma lógica, na mesma relação. A mesma coisa em relação à transgressão: aquele que acredita em algo que deve ser transgredido já está numa postura fadada a investir o lado negativo antes de liberar uma criação; ele está investindo contra a lei. Quando o ser afirmativo, o ser que afirma a diferença, ao afirmar a diferença ele já gera um efeito que vai contra a lei. Mas ele não tem o objetivo de atingir a lei, em primeiro plano. E a transgressão tem esse aspecto: você investe a negação antes de ter algo que gere a tua consistência e que gere a afirmação da diferença em você mesmo. Você parte de um sentimento negativo em você para ir contra algo que está fora de você. Você vai contra o referencial no qual você não acredita mais. Isso seria a transgressão. Você pode usar uma série de subterfúgios para isso, inclusive a trapaça.
O “jeitinho brasileiro” geralmente se dá no nível mais baixo, geralmente se dá a partir de uma situação individual, de uma situação de miséria, de uma situação de falta, de privação; mas, evidentemente, numa sociedade onde os laços de civilidade ou os laços de solidariedade são tão frágeis, a coisa acaba sendo levada para esse individualismo, ou esse egoísmo, que faria com que cada um se virasse por si só e se livrasse dos obstáculos de uma sociedade absolutamente injusta, miserável e geradora da miséria. Então, à primeira vista, seria uma postura de resistência; mas só há resistência real se aquela tua atitude é um jeito que te fortalece; se é um jeito simplesmente para passar algo que não é permitido e vai te facilitar uma maneira de agir, isso não diz absolutamente nada.
Então esse jeito é uma trapaça, pior ainda do que a transgressão assumida. É uma trapaça e isso te leva a um enfraquecimento ainda maior. Então a questão é: quando você investe um desvio das instituições, das leis, das formas estabelecidas, esse desvio tem que ter algum movimento imanente, algo realmente imanente que faça com que você não se importe realmente com o resultado, que você se importe sim com a questão de efetuar essa coisa que se passa em você; aí sim, aí você pode dar um jeitinho daqui, um jeitinho dali, porque aí você gera um simulacro que é uma maneira própria de se exprimir que não é uma dissimulação, simplesmente; o outro pode até receber como um efeito de dissimulação ou de fingimento, mas para você é uma forma própria de expressão. E se é uma forma própria de expressão, aquilo te gera uma consistência, te devolve uma consistência. Então essa é que é a questão fundamental.
Claro que é um povo muito mais flexível, muito menos endurecido do que os europeus, que já estão altamente cristalizados; então nós temos algumas vantagens de não termos recebido a carga
disciplinar de modo tão endurecido como a Europa recebeu – há uma série de elementos, principalmente a atmosfera geográfica e política do país, que gera essa questão. Mas o que é importante é: pouco importa se a lei é justa ou injusta; o que importa é a tua atitude em relação à autoafirmação, afirmar a própria diferença; quando você está afirmando a própria diferença, você ultrapassa tanto as leis injustas quanto as justas, você está além do Bem e do Mal, não está mais neste campo. Você nem se importa em transgredir; ao afirmar, você fatalmente entra em choque, se você não for suficientemente imperceptível; mas senão você nem entra em choque, você passa na boa e você está fazendo não o melhor, mas aquilo que é absoluto – absoluto no seu ponto de vista.
Participante: É uma alteridade.
É uma alteridade, mas aí já não é mais o outro da lei; é um outrem, é um campo onde você se alia não mais com um referencial mas com uma atmosfera, com um clima, com um conjunto de singularidades. E aquele conjunto de singularidades, aquelas conjunções, não são um modelo, elas não são uma forma, elas não são uma lei; elas são um campo atrativo, aí sim.
Participante: Em alguma hora você falou que o humanismo talvez não fosse uma coisa que estivesse resolvida. Numa nova forma de humanismo, nova forma do homem. Que talvez não fosse uma coisa que se resolvesse com o homem de carbono, mas com o homem de silício. O que é o homem de carbono e o homem de silício?
A questão do homem, ao se aliar com o carbono, atingiu no máximo as máquinas de segunda geração. E o carbono trouxe, como última atualização, a chamada forma homem, que vem das sociedades disciplinares que são sociedades do carbono, das máquinas térmicas, das máquinas a vapor, dos elementos que se articulam diretamente com o carbono para que a vida se desenvolva. Quando falamos em silício, estamos falando das máquinas de terceira geração – que são as máquinas da informática, da computação – que inventaram um novo modo de expressão, um novo campo expressivo. Então hoje você vê que rapidamente tudo corre para se exprimir numa outra superfície de registro, que é o campo do silício propriamente dito – são as máquinas da computação. E essas máquinas estão alterando de tal modo as relações sociais, as relações do homem com a natureza, as relações do homem consigo mesmo, do homem com a lei, do homem com a política, do homem com a representação, que estão sendo geradas várias maneiras segundo esse modo de expressão comum, que seria através do agenciamento com o silício. Isso para te dar uma ideia muito rápida.
Isso vai ficar claro quando falarmos em sociedades disciplinares e sociedades de controle. Segundo Deleuze, a partir da segunda guerra mundial nós entramos nas sociedades de controle, não estamos mais em sociedades disciplinares. As sociedades disciplinares eram aquelas que se serviam da família restrita burguesa (papai-e-mamãe), da escola, do hospital, da prisão, da fábrica; viam o capitalismo ainda como uma produção e necessitavam produzir um corpo e uma alma segundo máquinas fechadas: você entrava para uma escola e ficava lá durante 4 anos, 6 anos, 8 anos. Agora isso é secundário, a tua formação é permanente e aberta. Antes você tinha períodos encerrados – assim com a família, assim com a escola, assim com os hospitais. Na saúde, por exemplo: hoje você tem a tendência ao atendimento a domicílio; os loucos estão saindo dos hospícios, está se dando um enfoque ao hospital-dia, só os casos crônicos que ficam ainda enclausurados. O trabalho, por exemplo, não se foca mais na produção: hoje você tem o enfoque fundamental em serviços e na venda. Então seria o último estágio, digamos, do capitalismo; não é mais na produção, mas é na circulação, na distribuição e na venda. Tanto é que hoje a publicidade domina muito mais do que no século XIX e início do século XX, onde você tinha uma tendência a diminuir os custos e aumentar a taxa de lucros segundo o modo de otimização da produção; hoje em dia você não diminui os custos: você otimiza a produção, até pode diminuir custos, mas isso não é mais desculpa para se abaixar preço; ao contrário, você domina os canais, então o sistema capitalista inventou um modo de produzir os próprios canais, canais pelos quais você é obrigado a passar.
É um cinismo ainda maior afirmar que vivemos num regime de livre concorrência. Cinismo absoluto isso; os monopólios são, evidentemente, um exemplo privilegiado disso, e principalmente monopólios de comunicação; você vê a Rede Globo: o que ela faz? Ela faz um presidente em um mês e numa semana ela acaba com outro. Então a questão são os canais: você inventa os canais de modo a fazer com que os fluxos necessariamente passem por ali – porque inventar canais simplesmente, se não tem fluxo passando, não adianta nada. Então essa questão é própria à sociedade de controle. Hoje o controle é exercido de modo aberto no tempo e no espaço, não é mais segmentado, fragmentado, como era nas sociedades disciplinares. Aliás, é ainda, só que isso já está subjugado ao controle; você tem a disciplina e o controle ao mesmo tempo, eles coexistem, mas o que domina hoje é o controle aberto.
Então aí essa questão remete diretamente ao agenciamento com o silício. O silício tem essa ambiguidade, esse agenciamento tem essa ambiguidade: pode nos ligar a uma forma aberta, uma invenção de um outro modo social altamente revolucionário – ou de outros modos sociais -, ou pode ser infinitamente pior, como uma sociedade descrita por Orwell, por exemplo, em 1984. Mas aquele controle ainda era controle de um déspota e ainda era disciplinar. A sociedade de controle aberto, segundo fluxos e cifras eletrônicas, é muito mais poderosa e mais sutil do que a sociedade disciplinar. Isso vai ficar claro mais para o final do curso.
Participante: É uma possibilidade que esse homem possa ter outros valores a partir do silício?
É uma virtualidade mesmo. Por exemplo, você já tem meios de inventar, aqui e agora, jeitos novos, inéditos, de ser, que não passam pela sociedade de controle.
Participante: Que já está acontecendo?
Que já está acontecendo de muitas formas. Nas redes de informática – ainda que haja uma euforia otimista em relação a isso – existem coisas muito interessantes acontecendo. E existe um otimismo bobo também em cima disso, que é muito falsificador nesse sentido. Mas o que é importante é o seguinte: o agenciamento com outras forças, na medida em que o homem é feito de forças, vai gerar novas formas de expressão; e essas formas vão ser próprias de um ser que vai ser difícil chamar de “homem” ainda, porque esse termo “homem” já está tão negativado nessa forma inventada pela sociedade disciplinar. É como você querer usar uma roupa velha, de um tamanho absolutamente distinto, para um ser absolutamente novo com outras maneiras de agir. É um nome que se você quiser usar, tudo bem; mas eu acho que nem tanto o nome “homem”, mas o sentido do “homem” está fadado ao desaparecimento muito rapidamente. Isso nós não temos mais como manter. E junto com o homem, o humanismo, porque o humanismo está intimamente colado ao terrorismo, a um terror imanente ao humanismo. O humanismo gera o terror. Há uma ilusão de que sermos humanistas faz com que sejamos mais bondosos, mais alegres, que sejamos homens de bem. É completamente o contrário: o humanismo está inteiramente fundado no negativo; o humanismo eu acho que é uma forma que, uma vez que já fracassou e ainda se arrasta, não tem sentido continuarmos aplicando este nome. Então eu acho que seria interessante começarmos a inventar outros nomes – como simulacro, mesmo – para fazer pensar outro sentido no nome. Porque o nome traz esse vício.
Somos muito presos, estamos habituados já a 10.000 anos de signos lineares e de escrita restrita, a sermos marcados pelos signos. Acreditamos muito em significantes: quando falamos o nome, imediatamente aquele nome já está inteiramente fechado numa marca significante. Então é melhor inventar outra coisa. Como diria Artaud: chame de cu de rato morto ou de buzina de bicicleta.
Comece a inventar coisas que choquem – não para chocar, mas simplesmente para sair daquele lugar do signo. Quer dizer, você pode inventar coisas mais sutis também, não precisa entrar nesse nível. Mas o que é importante, eu repito – desde que iniciamos o curso aqui eu venho falando isso –, é ultrapassarmos os signos e estarmos no sentido do que está sendo dito, porque o signo é chapado; o signo remete ou para um objeto no mundo, ou para um sujeito que fala, ou para uma significação entre o objeto e o sujeito, mas ele nunca habita o devir próprio daquele sentido imanente ao encontro. Então o importante é nós, na medida em que vamos retomando, reconquistando a capacidade de entrar em devir e de experimentar, ao mesmo tempo habitarmos o sentido, que é anterior aos signos. Então o humanismo não é uma boa palavra, neste sentido. Não é uma questão moral, é uma questão de estratégia.
Hoje eu quero sintetizar alguns aspectos essenciais da obra platônica que vão fundamentar o edifício da representação construído por Aristóteles. As bases do edifício da representação que Aristóteles construiu são absolutamente platônicas – ainda que uma série de historiadores, de comentadores, acreditem numa ruptura de Aristóteles em relação a Platão. A ruptura é apenas no jeito de manejar os signos, mas a essência do problema é a mesma. Não vou dizer que o problema de Aristóteles é o mesmo que o de Platão, mas ele desenvolve e espalha o problema platônico de modo ainda mais sutil e natural, porque Aristóteles vai partir de um mundo calmo, de um mundo pronto, de um mundo sem muitos conflitos, de um mundo sem muitos sofistas, de um mundo mais equilibrado, mais confiável. Aristóteles, digamos assim, é mais pacífico. Podemos até fazer aqui uma brincadeira e associar Aristóteles à segunda cabeça do Estado; Platão é aquele aspecto paranoico do poder violento de fundação e Aristóteles o homem pacífico de regulação. Então Aristóteles vem para regular e desenvolver a lei. Mas os dois vão formar uma máquina poderosíssima da representação que vai invadir o ocidente – e não só o ocidente, ela vai dominar o mundo, vai dominar também o oriente, de alguma maneira. Essa máquina da representação vai se tornar ainda mais poderosa quando, nos séculos XVIII e XIX, ela conquistar o infinito – o infinitamente pequeno e o infinitamente grande com Leibniz e Hegel. Aristóteles desenvolve a potência propriamente finita da representação. Então o sistema aristotélico se limita à representação do finito ou das forças finitas da natureza.
Platão via o mundo como um conjunto, um emaranhado de imagens; tudo para Platão são imagens no mundo da natureza, no mundo dos corpos, no mundo dos devires, no mundo dos acontecimentos; tudo se reduz a eidolon, tudo se reduz a imagem. E Platão inventa, funda um critério para selecionar essas imagens, selecionar o puro do impuro, e fabricar ou produzir ou fazer triunfar aquilo que ele chama de ícones, imagens ícone: imagens que são dotadas de semelhança a um modelo, a uma Ideia que é fundada por um modelo mítico circular. Essas imagens, que se orientam para as alturas e recebem a ação da Forma ou da Ideia, conquistam uma qualidade da própria Ideia em segundo, em terceiro ou em quarto lugar, dependendo do grau de aproximação da semelhança. E, segundo essa semelhança, elas têm uma qualidade icônica. Então você tem uma imagem ícone, uma imagem cópia de um modelo segundo o modo ou a capacidade que essa imagem tem de se submeter à ação da Forma.
E você tem, por outro lado, um campo de imagens que não só não se submetem à ação da Forma, à ação da Ideia, mas ainda subvertem a Forma ou o modelo, bem como a cópia, e geram um efeito de cópia: imitam, fazem de conta que são uma cópia, produzem um efeito de semelhança exterior – não mais interior e espiritual – ao modelo, mas exterior no aspecto de ser. Então vão se expressar, vão falar, vão pensar, vão dizer a lei, vão agir politicamente, agir economicamente, agir no óikos, na família, ou em relação à natureza mesmo, produzindo efeitos de semelhança, de igualdade, de equilíbrio ou de identidade a aquilo que seria reconhecido como o Bem. Então você simula ou você finge – aqui vamos igualar as duas coisas -, você se aproveita, você se prevalece de uma distância irredutível do observador e, a partir daquela distância, você gera um ângulo ilusório e o observador te percebe como você sendo um homem de bem, um homem que age virtuosamente. Então essas imagens são ainda piores do que aquelas que simplesmente não seguem os modelos porque essas ameaçam tanto os modelos quanto as cópias; essas seguem não o modelo do Mesmo, mas o modelo do Outro.
Então a questão platônica é uma questão política e uma questão moral: Platão quer varrer os simulacros e fazer com que as cópias ícones triunfem. Na medida em que ele estabelece o critério de avaliação e de interpretação de uma imagem segundo a aproximação que ela vai ter internamente com as relações constitutivas do modelo e as proporções constitutivas do modelo ou da Ideia, nessa mesma medida Platão gera, além do critério, a medida mesma, o limite mesmo, e o quinhão que cabe a cada um. Você tem uma forma no espaço: você tem um lugar no espaço, portanto. Você tem uma forma no tempo, ou seja, você tem um limite no devir. E você tem um elemento moldável e submetido a aquela forma no espaço ou lugar e a aquele acontecimento limitado no devir, segundo a justa medida ou segundo a semelhança.
Desse modo Platão acredita recortar todas as paixões, as ações, as ideias, os pensamentos; ou seja, a existência em geral estaria provida de um fundamento, um medidor de destinos. Platão distribui os destinos no espaço, no tempo, segundo a qualidade da alma que se assemelha ao modelo. E aí ele vai estabelecer graus: desde o segundo grau, que é o grau máximo que uma alma atinge, até os graus infinitesimais de uma semelhança absolutamente enfraquecida. Mas o simulacro não é uma cópia com um mínimo de semelhança; o simulacro já muda de natureza. Há uma cisão na natureza platônica, há uma exclusão: o simulacro tem que ser excluído absolutamente, não há conciliação possível – o simulacro é incapaz de seguir o modelo.
Aristóteles já não tem mais os ataques todos que Platão sofreu, por exemplo; não tem mais aquela sociedade tão maluca onde os arbítrios políticos eram constantes; inclusive Aristóteles é amigo do imperador da Macedônia, Felipe – e depois Alexandre -, e o mundo dele já não é mais um mundo ameaçador como Platão sentia. O mundo de Aristóteles já é um mundo onde as cópias triunfaram: o mundo de Aristóteles é um mundo de cópias. Se o mundo de Aristóteles é um mundo de cópias, a questão de Aristóteles não vai mais ser excluir os simulacros. O simulacro, para Aristóteles, não vai ter mais o poder que tinha em Platão. O simulacro em Aristóteles vira acidente, vira um elemento acidental. O que seria isso? Vamos começar a desenhar o mundo aristotélico.
O mundo, para Aristóteles, é feito de um conjunto de indivíduos ou substâncias – tudo que existe para Aristóteles são indivíduos ou substâncias. Isso é a realidade; o que Aristóteles chama de real ou de existente (ele confunde existência e realidade, é a mesma coisa para Aristóteles; nós vamos fazer uma distinção disso mais tarde com os estoicos) é o indivíduo no mundo. Então você tem um conjunto de indivíduos que são substâncias. A substância é aquilo que existe em si; o acidente é aquilo que existe em outro. Então o acidente precisa de uma substância para existir – o acidente existe na substância – mas a substância não precisa do acidente. Então esse seria um primeiro operador de Aristóteles: você tem substâncias e acidentes.
Vamos até distinguir um pouco mais nesse operador: uma substância é feita de matéria e de forma; você tem a matéria e a forma que constituem a substância; a substância é um composto, portanto, de matéria e de forma. Tudo que existe no mundo são compostos de matéria e de forma. Este copo é um composto da matéria vidro e da forma copo; mas aí se você pega a matéria vidro, ela vai ter uma forma também, segundo a areia, o silício, geradores de matéria, que vão ser atualizados por uma forma chamada vidro. Então tudo na natureza são substâncias – ou compostos de matéria e forma.
A matéria é o substrato do ser e a forma é o que daria inteligibilidade ao ser. Você tem um substrato e você tem uma inteligibilidade. A forma é que te dá a definição ou limite daquele ser. A forma então é o objeto do pensamento propriamente dito; a matéria seria apenas um substrato.
De outro modo ainda, um outro operador: eu já falei aqui de substância e acidente; a substância, por sua vez, é feita de matéria e de forma. Aristóteles lança mão de um outro operador teórico ou de dois outros conceitos que, inclusive, vão gerar instrumentos para muitas outras filosofias: ato e potência. O ato é ligado, geralmente, à forma; e a potência seria ligada à matéria. Então o mundo de Aristóteles é feito de indivíduos que se formam ou se constituem de matéria e de forma – uma matéria em potência e uma forma em ato. Aristóteles vai explicar o devir através de uma potência em ato.
Até aí, muito interessante – potência em ato: até acreditamos que Aristóteles seja um dos nossos, porque é uma ideia riquíssima essa ideia de ato e de potência; principalmente de potência em ato. Muitos pensadores vão se apropriar desses conceitos – Espinosa, principalmente. Mas o que Espinosa vai fazer com isso deve ter feito Aristóteles se mexer na tumba muitas vezes.
Então, a princípio você tem um mundo existente feito de indivíduos ou substâncias que se compõem de matéria e forma, uma matéria em potência atualizada pela forma; esse seria o plano dos objetos, dos indivíduos no mundo, o modo como Aristóteles representa o mundo, bem genericamente. Por outro lado você tem um outro plano. Quem representa o mundo? Um sujeito: é um sujeito que vê o mundo, é uma alma. Então Aristóteles diz: a alma representa ou espelha o mundo. Mas a alma simplesmente, enquanto alma racional, é muda; essa alma – que representa ou espelha o mundo – diz o mundo, também, mas através da linguagem manifestada pelas partes inferiores da alma, sensitiva e vegetativa; e quando a linguagem diz o mundo, ela simboliza ou significa a alma racional. Esse é o jogo de Aristóteles. Então você tem uma alma que espelha ou representa o mundo, reapresenta ou substitui o mundo; e você tem uma linguagem que significa ou simboliza essa reapresentação do mundo.
Aristóteles vai dizer que a nossa alma é tripartite. Isso lembra alguma coisa, não é? Isso nos lembra Sócrates, nos lembra Platão. E Aristóteles diz que a alma tem uma parte nutritiva – que é como a alma das plantas – e ele chama isso de alma vegetativa; há a alma propriamente animada ou sensitiva – animada no sentido de que produz o movimento de deslocamento; e a alma racional. Então é o mesmo esquema de Sócrates e de Platão, só que com sutilezas, com nuances bem mais elaboradas. Porque Aristóteles acredita não precisar mais do mito, ele é completamente racional; e o ocidente inteiro acreditou que Aristóteles é absolutamente racional, que ele só lança mão da ciência e da verdade.
Então você tem uma alma nutritiva ou vegetativa – que é como aquela alma que a psicologia chama de propriocepção, a que capta os próprios movimentos, no caso do homem. A sensitiva que é a que tem a sensação dos objetos no mundo, a que representa sensivelmente os objetos do mundo – ou seja, a que se relaciona com imagens do mundo; então a parte sensitiva da alma tem como objeto as imagens. E a parte intelectiva vai ter como objeto alguma coisa nas imagens, ela vai operar uma abstração nas imagens. É por isso que mais tarde Duns Scot – que é um teólogo cristão muito curioso, muito interessante – vai dizer que a obra aristotélica, ou que a razão aristotélica, é razão de pecador; não é o pensamento do anjo, porque Aristóteles precisa da mediação das imagens sensíveis. É uma brincadeira e não é – é muito sério o que Duns Scot está falando, porque Duns Scot já está no pensamento sem imagem. E o que nós chamamos de pensamento também é pensamento sem imagem – nós não precisamos de imagem para pensar. Mas Aristóteles está inteiramente na imagem. Espinosa vai dizer que esse pensamento aristotélico é primeiro gênero do conhecimento, é imaginação, pura imaginação. Mas é imaginação que funciona; os homens acreditam, o ocidente foi atrás; gerou um monte de estratos, de estratificações, de máquinas – sociais, políticas, ideais, econômicas – altamente inspiradas no aristotelismo. Então é uma coisa curiosa: uma imaginação, simplesmente, é uma coisa tão banal e, ao mesmo tempo, como funciona esse modo!
Aristóteles precisa de um intermediário sensível para abstrair o conceito. O conceito aristotélico não é mais a Ideia platônica que estava no outro mundo, o conceito aristotélico é abstraído da imagem. Olha que elemento curioso! Semelhança na percepção: uma cabeça da representação aristotélica. Existem quatro cabeças. A semelhança na percepção é o modo como eu já vou abstrair o conceito da imagem; a semelhança na percepção já é um operador de abstração da forma no mundo: eu estou obtendo a forma dos indivíduos – que são matéria e forma – através da semelhança na percepção. Esse vai ser o modo como eu vou obter o conceito.
Aristóteles diz que tem dez grandes gêneros que são intuitivos: substância, qualidade, quantidade, movimento, relação, lugar, etc. São dez ao todo, são chamados de dez categorias ou gêneros generalíssimos: são os gêneros mais gerais que ele consegue obter com o pensamento intuitivo, sem demonstração. Aristóteles vai inventar a razão silogística e demonstrativa, ele é que vai inventar a lógica ocidental – a lógica fundada na representação, porque os estoicos inventam uma outra lógica sem representação.
Participante: A lógica aristotélica é sempre demonstrativa?
Ela funciona nos dois sentidos, mas geralmente ela é demonstrativa, geralmente ela é analítica.
Então você tem os dez gêneros generalíssimos no plano de uma alma intelectiva intuitiva. Essa parte intelectiva da alma é capaz de apreender, na relação com o mundo, com as coisas, dez grandes gêneros na natureza, ou essas dez categorias. São os pensamentos indemonstráveis. Com isso eu tenho, digamos, um fundamento metafísico ou de conceito puro, intuitivo.
E Aristóteles ainda lança mão das chamadas cinco vozes, que são cinco maneiras de dizer a coisa: de modo essencial, de modo diferencial, de modo específico, de modo próprio e de modo acidental. Você tem o gênero: uma voz; a diferença específica: outra voz; a espécie: outra voz; o próprio: a quarta voz; e o acidente: quinta voz. Cinco vozes. Essas cinco vozes vão fazer a ponte entre a linguagem e a lógica, entre a linguagem e o pensamento formal.
Aristóteles vai dizer que você define alguma coisa no mundo dando a essência dessa coisa. Mas a essência dessa coisa é dada pelo gênero mais a diferença específica, que define a espécie. Exemplo: “animal” é um gênero; “racional” é uma diferença específica; “homem”: espécie. Animal racional = homem, espécie homem: “o homem é um animal racional”. Definição de homem.
“O homem é um animal que ri” – isso é próprio do homem (aliás, isso vai gerar uma discussão na Idade Média: Cristo é deus ou é homem? Ele ri?).
Acidente: branco, azul, marrom, pequeno, grande, estar sentado, estar de pé, estar em movimento, estar em repouso. Acidentes são diferenças que Aristóteles desconsidera porque não são diferenças racionais; os acidentes são diferenças não lógicas, são o resultado de uma violência na natureza, ou de uma inferioridade da natureza, de uma desordem no mundo sublunar. O acidente é próprio do mundo sublunar.
Participante: E as quatro propriedades causais? Hoje a técnica se reporta a essas propriedades.
As quatro causas. Vamos dar esse operador também. Vamos desenhando um quadro estático e depois formamos a dinâmica da filosofia aristotélica.
Tudo é uma relação de causa e efeito em Aristóteles; a natureza, em Aristóteles, é uma relação de causa e efeito. E o pensamento também. A causa é aquilo que gera o movimento, que gera a coisa, que gera o acabamento. Um dos elementos – que são chamados de causas – que seria o mais inferior na hierarquia das causas – porque há uma hierarquia entre as causas, existem causas que valem mais do que outras – é a causa material. A causa material – como sempre nessa tradição intelectualista inventada por Sócrates e Platão – é inferior. O ser em potência é uma causa material. A causa eficiente é a potência num ato imperfeito, a potência em andamento, algo “em vias de” – isso é uma causa eficiente; é o que move, propriamente, as coisas na existência. Então a causa eficiente é uma causa mecânica, digamos assim: eu empurro o copo – isso é uma causa eficiente.
Participante: Quer dizer, você é o causador do movimento do copo?
Isso. Agora, essa causa eficiente pode ser exterior ou interna. Eu sou a causa eficiente da escultura, por exemplo: eu esculpi na madeira, gerei aquela forma na madeira, então eu fui a causa eficiente daquela forma na madeira.
A causa formal é a ideia da coisa propriamente dita; a causa formal é a forma, pura e simplesmente a forma. E a causa final, que é o ato perfeito daquela forma: a causa final é aquilo para o que a natureza tende, aquilo para o que tudo tende – há uma tendência finalista em Aristóteles: tudo tende para uma finalidade.
Participante: Para que aquilo serve.
No fundo a causa final, se você fizer a genealogia disso, é completamente utilitária, é “para que aquilo serve”. Assim, o olho tem a finalidade de ver. Vira órgão e função de órgão, é um saber orgânico. Vemos a limitação: é um saber absolutamente imaginário e orgânico.
Você tem um exemplo muito fácil de visualizar: uma casa. Você tem a matéria da casa: se a casa é de madeira, a matéria é madeira; então a causa material seria a madeira. A causa eficiente são os carpinteiros, marceneiros, construtores – o que leva à construção da casa. A causa formal é a ideia propriamente de casa. A causa final é o objeto último, a casa acabada, o ato perfeito de casa. Então tudo na natureza funciona da causa material para a causa final.
Isto já nos sinaliza alguma coisa. Platão era aparentemente o contrário: íamos de uma existência presente para uma existência passada; íamos até um outro mundo, o mundo das essências antes da encarnação; então você ia para uma origem. Mas o movimento era sempre de um ponto a outro, sempre uma linha com um sentido – isso que é o bom senso, vai de um ponto a outro, um sentido só. Aristóteles faz, aparentemente, o contrário: ele vai da existência à finalidade, como se ele fosse do passado ao futuro. Platão vai do presente ao passado e tem que espelhar o futuro segundo esse rebatimento no passado, segundo o rebatimento na memória; Aristóteles é segundo o projeto. Memória e projeto: no fundo é a mesma coisa.
Mas o modo de operar é diferente. Aristóteles, aparentemente, está na imanência da natureza porque ele se relaciona diretamente com o mundo, ele quer atingir o mundo. Mas é evidente, até Platão queria – senão não serviria para nada. Hoje mesmo eu estava lendo alguma coisa de um comentador francês: “Aristóteles se preocupa muito com as diferenças, se preocupa com as singularidades”; é óbvio que ele se preocupa com a diferença e com a singularidade, porque é onde você tem que atuar e submeter, porque senão a máquina dele não serve para nada. A máquina dele serve para submeter as diferenças, ela tem que ter um objeto de ação. Assim Platão: em Platão o que é mais importante não é o outro mundo das Ideias; o que é mais importante é o efeito que isso causa aqui – produz imagens cópias, imagens ícones, essa é que é a questão. A questão é sempre o que acontece na imanência dos nossos corpos, do nosso desejo, do nosso pensamento.
Então aí é fácil ver: que problema tem Aristóteles? Aristóteles quer organizar e classificar o mundo; Aristóteles tem uma grande vontade de classificação geral, ele quer classificar tudo. Aliás, ele que gerou os modelos de classificação da botânica, da biologia em geral, física, de uma série de disciplinas que se desenvolveram no século XIX. Aristóteles foi o grande inventor desses modelos de classificação. Até hoje devemos essa divisão a ele: o inorgânico, o reino vegetal, o reino animal e o mundo racional do homem. Não que isso seja uma invenção própria dele, mas ele deu forma própria – com a máquina representativa – para isso. Porque, claro, você tem um modo de perceber a planta que se diferencia do animal; isso é um ponto de vista, é uma maneira de ver o mundo.
Participante: Se tem esse sistema, essa máquina, tem um meio de nomear o que escapa?
Tem. E já nomeamos aqui: o acidente, por exemplo. Depois vamos ver o que é o acidente. E vamos ver, inclusive, que Aristóteles não chega nem no indivíduo: o saber aristotélico é um saber de um universal, ele não ultrapassa a espécie e a espécie é sempre genérica. Ele não atinge o individual; o individual só vai ser atingido no século XIX com as ciências humanas.
Participante: A espécie de que você fala é espécie mesmo? É a espécie Homo Sapiens, por exemplo, não é?
Homo Sapiens. Espécie. Então Aristóteles vai fazer o movimento do gênero generalíssimo à espécie especialíssima. Mas o que é a espécie especialíssima? Ainda é um universal. “O homem é um animal racional” é universal. Ele não atinge o indivíduo – este homem, aquele homem –, isso não interessa para ele. E mais do que isso: ele vê essas espécies especialíssimas, essas últimas definições dos seres, como formas absolutamente acabadas; ele atinge a causa final nessas definições. Quando ele atinge a causa final, aquela causa é imutável. Tanto é que Darwin vai ser antiaristocrático ao afirmar a evolução das espécies; para Aristóteles isso é inconcebível, porque Aristóteles ainda está na representação finita. Com a representação infinita…. não que Darwin esteja só na representação, acontecem coisas muito interessantes com Darwin, mas é ambíguo porque Darwin não vai às últimas consequências da sua invenção; Darwin ainda tem um modelo reativo de evolução: você evolui por pressão, ou por falta, ou por privação, você se obriga a; Lamarck vai inventar uma coisa muito mais interessante – uma força imanente plástica que gera a modificação da espécie.
Voltando então: Aristóteles monta a representação dele, a lógica dele, entre o gênero generalíssimo e a espécie especialíssima; é aí que está a representação dele, ele opera ali. Então essa altura máxima das dez categorias – os gêneros generalíssimos – ele vem dividindo. Você tem o gênero animal, por exemplo, e você vem acrescentando diferenças específicas: o gênero com uma diferença específica vai dar uma espécie, mas essa espécie é sempre relativa porque você pode ir especificando-a. No momento em que ela é objeto de uma nova especificação, essa espécie vira um gênero; aí você acrescenta uma nova diferença específica, aí dá uma outra espécie; e assim vai. Até o momento em que você não consegue mais especificar: no caso do homem, “o homem é um animal racional”: é a especificação máxima. E o problema de Aristóteles então é esse, é dividir gêneros em espécies – que não era o de Platão. O que nós falamos: Platão não tinha o mesmo problema de Aristóteles.
Aristóteles critica Platão por não atingir o verdadeiro silogismo; ainda que não tenha sido Aristóteles quem inventou o silogismo, foi o próprio Platão – quem leu o Fedro, ao ver a demonstração da imortalidade da alma, já vê Platão operando com silogismo. Mas o que Aristóteles censura em Platão é que Platão não tem o termo médio, o termo pelo qual se pode fazer o encadeamento lógico rigoroso e a dedução lógica rigorosa. Por exemplo: você tem que ter a premissa maior e a premissa menor; a partir daí você pode fazer uma conclusão. Isso é um silogismo. Então: “todo homem é mortal” é a premissa maior; “Sócrates” é homem: premissa menor; logo, Sócrates é mortal. Eu tenho um silogismo. E Aristóteles quer fazer uma lógica absolutamente rigorosa nesse sentido: que você deduza necessariamente, de premissas verdadeiras, essas definições que geram as especificações. Então especificar, ou definir, ou dar a essência, ou obter o conceito, é a mesma coisa. Obter o conceito, abstrair o conceito, definir ou dar a essência, é tudo a mesma coisa. Isso é que é pensar, para Aristóteles: raciocinar. Raciocinar ou pensar. Aliás, silogismo é razão em grego.
Eu sei que é uma matéria árdua, não é uma matéria encantada; mas logo nós vamos dar uma enrabada nela. Vamos antes desenhar o quadro para vermos bem o que está sendo construído aí.
Participante: Você falou da identidade na percepção.
Eu ainda não disse, mas eu digo agora: identidade no gênero, oposição dos predicados e analogia do juízo.
Oposição dos predicados: animal “racional”, “irracional” – são opostos ou contrários, mas não são elementos contraditórios, eles não excluem o ser. Você tem os dois em potência: o racional e o irracional; mas há uma determinação que vai atualizar um dos dois. Então oposição dos predicados: um triunfa e gera a distinção. Esse modo de operar o silogismo é uma das cabeças da representação, uma das quatro cabeças fundamentais. Em Platão tinha duas: identidade da Ideia e semelhança da imagem. Aristóteles então vai inventando a oposição dos predicados – que já é o termo médio que faz a ponte de uma premissa para outra, já é a diferença específica; e ele gera também a analogia no juízo, que é uma proporção de realidade ou de ser segundo as noções novas que ele inventou de ato e potência.
Porque Platão caía em duas aporias. Se o ser é o mesmo, se a Ideia é a mesma, você não pode dizer mais nada dela; só pode dizer, por exemplo, que a Justiça é justa – é uma verdade tautológica. Você não pode compor a essência. Se você faz alguma composição da essência, você admite que entrou alguma coisa na essência que não é da própria essência. Platão vai inventar a alteridade, vai dizer que o Outro, ou que o não-ser, de alguma maneira é. É o que ele chama de parricídio: ele vai fazer um assassinato, digamos assim, de um conceito de Parmênides, que ele tem como o pai dele, como o mestre dele, na medida em que Parmênides pensa o ser puro, que Platão acreditar ser uma pura Ideia. Mas para Parmênides o ser é, e o não-ser não é. Platão vai resolver o problema da atribuição. O que você atribuir alguma coisa? Vamos ver isso do ponto de vista prático, da imanência, do que nos afeta: como é que eu vou julgar, se eu não posso atribuir? Então eu tenho que ter uma razão lógica, uma justificação para atribuir. E Platão vai ter que inventar, de alguma maneira, uma realidade para o não-ser: um Outro entra na essência. E aí ele produz um atributo num sujeito, um predicado numa substância, numa Ideia: a Justiça é justa mas a Justiça também é benéfica, por exemplo. Você pode compor outras coisas.
Os megáricos vão dizer, junto com Parmênides, que você não pode falar nada do ser a não ser que o ser é; ele não é nem verdadeiro nem falso, ele não é belo, bonito, feio, nada – ele é. Ele é e nada mais. É o chamado “argumento soberano”; depois vamos até voltar, quando falarmos alguma coisa sobre os megáricos, sobre os cínicos, os cirenaicos, vamos fazer um passeio rapidinho em cima disso aí. Acho que ainda dá para voltarmos nisso de alguma maneira. Mas o outro oposto é o saber dos sofistas: tudo é particular; então tudo é múltiplo, não tem unidade nas coisas. Então ou você diz que tudo é Um, que tudo é o Mesmo, ou tudo é diverso e você não pode dizer nada de uma coisa e de outra. Então as duas posturas inviabilizam a atribuição, inviabilizam a lógica.
Esse problema se dá também pela incapacidade – na medida em que você separa o ser do devir – de uni-los novamente para submeter o devir. Porque o que eles querem é submeter o devir. Então eles separaram: o ser é mais importante, é melhor, está lá no outro mundo, é verdadeiramente real; e o devir é inferior. Como é que eu vou julgar o devir? Então eu tenho que montar uma representação ou um juízo, uma instância do juízo para julgar o devir. Mas ao mesmo tempo eu tenho que fazer uma coisa plausível, uma coisa lógica, uma coisa verossímil. Aristóteles vai então inventar as idéias de ato e de potência. É aí que Aristóteles vai fazer a ponte.
Então o que ocorre? Voltando então: introduzimos a questão das outras cabeças da representação. Voltando à questão do movimento ou do modo do devir operar, para Aristóteles. Para Aristóteles, então, a visão estática da natureza é um conjunto de indivíduos que são feitos de forma e matéria – isso é uma visão estática. Mas há uma visão dinâmica, que seria: indivíduo como potência e ato; a potência é a parte material do indivíduo e o ato é a parte ativa, formal, inteligível, racional do indivíduo. Todo o devir de um indivíduo, todo o movimento de um indivíduo – desde o seu nascimento, a sua geração, o seu crescimento, o seu desenvolvimento, até o seu fim – é um desenvolvimento em busca do cumprimento de uma forma, do cumprimento de uma Ideia, do cumprimento de um modelo. Você existe para atingir seu fim, você existe para atingir o seu objetivo; e o seu fim, o seu objetivo, é a sua forma específica.
Então a excelência do homem seria atingir a racionalidade pura: como é que você se torna um animal racional? Então se você é criança ou escravo ou mulher ou jovem, você ainda é um ser racional em potência; então você pode dizer que você não é racional e que ao mesmo tempo você é racional. E não é uma contradição, é uma contrariedade, é apenas uma oposição de predicados. Mas você vai desenvolver isso.
Se você é uma causa material, eficiente, formal e final, o teu objetivo é ir da matéria até a forma. Há uma hierarquia aí, desde a matéria até a forma suprema que seria a causa final. A natureza então vai do indiferenciado material, que está num passado, para um futuro determinado e universal. Olha o paradoxo: é determinado e é universal. Ele acredita que a determinação suprema, verdadeira, real, excelente, é atingir um universal – quando sabemos muito bem que o universal é uma forma de indeterminação, de indiferenciação. Mas o objetivo de Aristóteles é descobrir uma natureza inteira que tende para finalidades; cada ser tem o seu lugar no espaço, no tempo e na Ideia. Todo o ser atinge a sua finalidade – se não atinge é porque estava na escala inferior. E quanto mais abaixo do mundo sublunar, mais acidentes têm; menos você compreende, mais irracional é e mais inferior é (inferior no sentido de não ter realidade; a realidade é menor, é ínfima). Isso é completamente platônico, absolutamente platônico.
Mas então o que ocorre? Platão tinha um problema no Sofista: será que existe Ideia para tudo? Será que existe Ideia da lama, da sujeirinha debaixo da unha? Ideia do funesto, do execrável, do Mal? E aí ele descobre o modelo do simulacro que é o Outro no mundo, que ameaça tanto o modelo do Mesmo como a cópia. Platão descobre isso. Aristóteles não, Aristóteles já vê tudo como indivíduo, tudo é matéria e forma, porque os elementos mais ínfimos na natureza são o fogo, a terra, o ar e a água. São os quatro elementos. E os quatro elementos têm uma forma. Então Aristóteles vê Ideia em tudo, vê forma em tudo. O mundo de Aristóteles já está organizado, já está ordenado; já é um mundo pacífico, é um mundo de lei, é um mundo de ordenação e classificação.
Participante: Um mundo objetivo.
Completamente objetivo.
Participante: E o subjetivo?
A subjetividade é o conceito, agora, na alma; não é mais a Ideia num outro mundo supra-celeste – ou supralunar, como fala Aristóteles (supra-celeste é Platão que fala, supralunar é Aristóteles; é a mesma coisa). A Ideia estaria fora, seria um ideal puro que você atingiria; você tem que ter uma alma que se separa do corpo e vai até a Ideia: é a alma xamânica de Platão. Aristóteles já tem a alma separada, ele já vai direto buscar a forma, a abstração da forma; ele não viaja mais, a separação já está no sensível. Quando a imagem se apresenta, você já perdeu o devir, você já está separado.
Participante: Quer dizer, não rebate numa instituição, numa ideia acima; ele rebate numa ideia aqui do lado.
Exatamente.
Participante: Não precisa mais estar lá.
Exatamente. Não é mais necessário, porque agora a semelhança está na percepção do Outro no mundo. Platão dizia que a semelhança é na percepção – da alma – do modelo; agora ela veio para o mundo: eu vejo no mundo só cópias – é só o que eu vejo. Porque eu vejo indivíduo feito de matéria e forma, e a forma é a cópia da imagem.
O indivíduo de Aristóteles é a imagem de Platão; a substância de Aristóteles é a imagem de Platão. A substância de Aristóteles é feita de matéria e forma; a imagem de Platão era imagem com semelhança e sem semelhança; a que tinha semelhança era uma imagem formada – com seus limites, com as regras, relações e proporções constitutivas da essência que está lá no céu. Ela tinha essa relação de semelhança formal e delimitava a imagem: a imagem não era mais uma imagem puramente estética agora era uma imagem moral porque ela obedecia à ação da Ideia. Aristóteles já vê essa imagem como uma coisa natural; ele só vê imagem ícone, ele não vê mais imagem simulacro; a imagem simulacro é apenas um acidente. E acidente é aquilo que existe em outro, não existe em si mesmo – o acidente precisa de outro para existir. Então Aristóteles não se importa muito.
Evidentemente que ele vai eliminar, vai desqualificar o acidente; vai ter uma hierarquia de acidentes e ele vai desqualificar o acidente como sendo uma coisa inferior. O acidente é um ser por acaso, é um ser por alguma determinação exterior, de fora, alguma coisa que acontece à essência. Ele vai introduzir o acidente no mundo inteiro da representação. No fundo, nove das dez categorias aristotélicas, ou das dez idéias intuitivas indemonstráveis, vão ser acidentais; só uma vai essencial, só a substância vai ser essencial. E a substância pura, no gênero generalíssimo, é a pura forma. No fundo, vai se identificar com aquilo que ele chama de “motor imóvel”, que é uma pura forma, que é puro ato sem nenhuma matéria.
A qualidade já é um acidente – só que aqui você vai ter um acidente lógico. A quantidade também, o movimento, a relação – e por aí afora, até fechar as dez categorias. Então você vai ter uma hierarquia. É por isso que Aristóteles funda a analogia: você nunca é aquele ato puro, você nunca é a substância pura, você necessariamente é uma substância feita de matéria e forma. E com matéria você não tem o ato – à matéria falta o ato. Duns Scot, no século XIV, vai dizer assim: “a matéria tem um mínimo de ato”. Quando a matéria tem um mínimo de ato, ela vira virtualidade; ela já é uma matéria que tem potência mesmo – não é essa potência aristotélica que é pura possibilidade. Ela já é uma matéria potente mesmo, ela já tem uma potência. Mas o ato tem que estar imanente à matéria. Em Aristóteles não está; é por isso que não tem conciliação com Aristóteles. É como Platão. Não adianta querer dizer que ele cuida das diferenças, que ele cuida das singularidades, porque ele está no mesmo plano de transcendência, no mesmo corte entre ser e devir. Ele joga o absolutamente real para o ato puro – o ato puro é que tem a realidade plena.
E aí vai ter uma série de graus. A classificação de Aristóteles já vai ser a classificação das cópias platônicas – só que de um modo lógico, racional e verdadeiro. Aristóteles vai fundar o critério de verdade a partir de uma lógica silogística. Ele vai dizer: “é assim que se produz a verdade”; não ao modo platônico, porque a Platão faltava o termo médio. Mas sabemos que Platão não queria dividir gêneros em espécies; ele queria fundar o juízo, ele queria fundar o critério para separar as boas das más imagens, as imagens cópias das imagens simulacros. É isso que ele queria.
Então aqui nós temos uma ironia: Platão, ao operar a dialética, atinge uma definição geral. Mas tem um monte de imagens que surgem e dizem ser aquela definição – aí aparece a rivalidade, a disputa. Neste momento, Platão lança mão de um mito circular que erige o modelo. E o modelo, que emana do mito, é o critério para julgar e distinguir os verdadeiros dos falsos pretendentes. A obra de Aristóteles surge quando praticamente não há mais sofistas nem o cenário dos personagens platônicos dos falsos pretendentes; agora só tem verdadeiros pretendentes, ou melhor, para Aristóteles todo homem tem o saber verdadeiro pelo menos em potência. O falso pretendente torna-se agora um mero acidente. Tudo, em Aristóteles, é, no mínimo, uma impotência, matéria sem forma atual, imersa na diversidade acidental das imagens sensíveis. Então o objetivo de Aristóteles é encontrar a forma que atualiza aquela potência, porque o ato está na forma. Isso é superimportante marcar, porque nos estoicos o ato está na força; em Aristóteles o ato está na forma.
Participante: Quando você fala que o ato está na forma, eu fiquei pensando: se Platão trouxe o mito, ele moldou uma percepção – é como se ele criasse um olhar. Platão inventou um olhar e eu me colei, aquele grupo se colou. Aí vem Aristóteles e cria um outro.
Aristóteles ficou 17 anos naquela Academia platônica, até Platão morrer; depois Aristóteles cria o Liceu; mas então ele teve o olhar platônico – Aristóteles é completamente platônico. Ele desdobrou.
Participante: Ele não usa o mito – é como se ele estivesse sustentado já no olhar mítico do Platão e a priori já existe esse olhar. Portanto, fundados nesse olhar, temos que chegar nessa forma final que já está pré-determinada nesse olhar platônico. É como se a origem do mundo estivesse no olhar platônico, eu desdobro….
Eu distribuo esse olhar para o mundo, não é?
Participante: Então a questão é: o que está criado “entre”? Eu entendo que o corpo e a alma, em Platão…. é o mito que sustenta isso. O meu olhar – por exemplo: com aquela árvore, aquela planta: o que eu inventei nesse olhar, que fica “entre”? Quer dizer, eu não olho mais a árvore, estou olhando algo a priori com que está marcado esse olhar.
Participante: Qual a transcendência que sustenta? Se ela está ali e eu estou ali; se existem simulacros imanentes, por que a transcendência se afirma naquele momento, e se sustenta?
A transcendência que sustenta isso tudo é uma atitude diante da vida, uma atitude diante do mundo; é um modo de existir, de ver e de pensar, que é o seguinte: onde há diferença, onde há “acidente” (entre aspas porque acidente já é uma invenção dele), onde há o efêmero, onde há o diferencial por si próprio, eu vejo ausência, eu vejo privação. Eu só vejo presença naquilo que não muda. Eu tenho uma vontade de permanência, eu tenho desejo de eternidade, eu tenho um desejo de permanência, eu tenho um desejo de constância, eu tenho um desejo de imutabilidade. O imutável é o que é o real, segundo um modo de ver que se incomoda com a mudança. Alguma coisa já se passou – é por isso que Nietzsche diz que o desenvolvimento desse pensamento está inteiramente mergulhado no niilismo – com esses corpos, com essas almas, que eles desqualificam o devir, desqualificam o movimento, desqualificam a experimentação enquanto experimentação. Ainda que Aristóteles, aparentemente, nos devolva o mundo que Platão nos tinha tirado; mas que mundo ele está nos devolvendo! É um mundo já todo submetido, é um mundo já apaziguado, é um mundo onde as diferenças já estão submetidas, já estão desqualificadas.
Participante: Não são vistas como diferenças. Na verdade está classificado, esquadrinhado, como imagens fotográficas. Então eu olho a árvore dentro de uma imagem estanque.
A diferença que vale é “a árvore” – a árvore enquanto universal. É uma diferença – que Aristóteles diz: “essa, sim, é perfeita, essa é uma forma acabada”. A diferença se submete ao universal. E o que queremos fazer é o seguinte: libertar a diferença pura da representação, ou do pensamento representativo, ou das nossas atitudes que alimentam esse tipo de pensamento ou esse tipo de gesto em relação à diferença. Então na imanência, o que Aristóteles vê? Na hora em que ele aplica a semelhança na percepção, ele está excluindo a diferença; ele está abstraindo, recolhendo o que é semelhante – e o que é semelhante segundo o modelo do mito. Sabe por que? Porque as realidades supremas de Aristóteles estão no mundo supralunar – incluindo a lua; e o mundo supralunar – até o motor imóvel que é ato puro, sem corpo – é um corpo perfeito de ato e matéria, de ato e potência; é um corpo perfeito. Esse corpo perfeito tem um movimento circular que inicia e acaba sempre no mesmo lugar. Então Aristóteles vê o céu como uma coisa inanimada, digamos assim – há uma parte imóvel – e há movimentos circulares eternos – que é o mesmo movimento do mito. E esses movimentos são perfeitos, são acabados, são eternos, porque são circulares. Eles não decaem; não é como uma espiral, é um círculo perfeito. Já no caso dos corpos sublunares é como uma espiral. Atingir a causa final, a forma final, é atingir o círculo existencial, é atingir o Mesmo, é atingir a identidade. Mas a matéria te põe no movimento de degradação, ela te tira da ordem; então ela faz com que o círculo vire uma espiral até o ponto ínfimo onde a forma quase não é perceptível mais, até onde você não vê mais percepção. Mas Aristóteles diz: “no fundo isso é uma abstração pura, aí é uma matéria pura sem ato”. E ele concebe isso com uma matéria lógica, uma matéria pura sem ato.
A natureza, em Aristóteles, é toda segundo o bom senso e o senso comum. Eu introduzi dois elementos aí que vão definir uma das cabeças da representação aristotélica. O bom senso e o senso comum são o que constitui a essência do juízo: só há juízo se houver bom senso e senso comum; não haveria julgamento sem essas duas faculdades. O que é o bom senso? O bom senso – já vimos isso de várias formas, já vimos isso em Platão, vamos ver isso em Aristóteles agora – é você apreender ou interpretar o movimento bom da natureza, que vai no bom sentido. Há um sentido para todo movimento; só não há sentido para os acidentes, em Aristóteles – essas diferenças exteriores à substância. Mas os movimentos das substâncias – dos indivíduos – que estão em devir, têm um bom sentido que os levará a uma realidade que eles ainda não têm; então falta aquela realidade a eles. E aquela realidade vem de onde? Vem de uma forma que não está neles, ainda que a alma seja uma forma, a alma seja uma causa eficiente, ao mesmo tempo – porque ela gera movimento, é causa de movimento –, e uma causa formal. Mas a causa formal da alma é imperfeita; ela precisa do referente transcendente, ela precisa da causa final, daquilo que está fora dela; ela precisa copiar, de alguma forma, ou trazer a finalidade diante dela.
Assim o bom senso: você fixa o princípio e o fim de tudo; em cada movimento há o começo e o acabamento daquele movimento. Com o começo e o acabamento de um movimento, eu dou também o começo e o fim de um ser – de um indivíduo, por exemplo: o indivíduo começa na barriga da mãe, por exemplo, e acaba quando ele morre. Então eu tenho ali uma identidade, eu tenho ali uma entidade. Se eu tenho ali uma entidade, eu tenho já objetos, eu tenho objetos atomizados. E, segundo esses objetos atomizados, eu deduzo o senso comum. O homem, por exemplo, é um animal racional; então a razão em mim é a mesma que em você; eu raciocino – ou deveria raciocinar – do mesmo modo como a minha essência o determina; eu vejo, eu ouço, eu cheiro, eu me movimento, do mesmo modo como os outros. Ou seja, existe semelhança no ouvir, no ver, no falar, no pensar – não só em relação aos outros, mas em relação a mim mesmo: é o mesmo sujeito que vê, que ouve, que chora, que grita, que pensa, que caga, que trepa. É o mesmo sujeito. Não importa o tempo em que isso aconteça, o lugar em que isso aconteça, a ocasião em que isso aconteça: há um substrato que diz sempre: “é o mesmo que faz isso”. Isso é senso comum. Há um sentido comum.
Participante: Se o ser é isso, se se consegue chegar à conclusão de que o ser é isso, dentro de um senso comum, então ele consegue ser perfeito. Nunca há essa dívida; em Platão parece que ele sempre tem dívida com a causa final, ele está sempre longe de ser aquilo que está projetado fora; para Aristóteles, pelo que o senso comum estabelece, o copo é para isso – então ele chegou ao seu fim.
Para Aristóteles só é perfeito o que está no mundo supralunar, porque não perde o movimento circular. A morte não é uma coisa boa para Aristóteles, ele não entende a morte, ele não entende a corrupção – a não ser como uma degenerescência da matéria. É por isso que eu afirmo sempre: a origem de qualquer ressentimento em relação à vida, de qualquer incapacidade de afirmar o devir, é sempre no modelo da morte – ela se origina aí. Quando você resolve o modelo da morte e transmuta esse modelo – de uma abolição para um modelo de passagem -, a coisa muda de figura. Então aí você vai começar a viver de modo que o Nietzsche chama de corajoso, digamos assim, um modo guerreiro de ser; que é o modo que não se acovarda diante da ameaça da aniquilação. E sempre que você vê um elemento negativo na morte, você tem todos os motivos para se acovardar, para se ressentir, para acusar, para julgar. Por isso, o modo como uma sociedade inventa o seu modelo da morte diz muito da maneira como aqueles contemporâneos vivem isso em sociedade; eles têm o modo de vida que merecem segundo também o modo como eles visualizam a morte. Se você pega na Ilíada, por exemplo, entre os guerreiros existe o modelo da bela morte; o guerreiro quer morrer jovem, no auge da glória, porque está no auge da virilidade, da força, da eficácia; ele produz o máximo dele e ele quer morrer assim para ser cantado pelos poetas. Ele se eterniza assim.
Participante: Nietzsche fala de uma morte gorda: a morte do homem moderno.
A morte do homem moderno. Isso é a boa morte inventada pelos cristãos na Idade Média. O Philippe Ariès fala dessa boa morte também. E a morte gorda é a pior.
Então essa forma de depreciar a existência está inteiramente atravessando a obra de Aristóteles. Aristóteles vive já desse modo. É por isso que a coisa é sutil. É verdadeiro? É verdadeiro. Ele está dizendo a verdade? Está dizendo a verdade, segundo o que ele pode dizer – é a verdade que ele merece ter. Enfim, é sempre necessário se perguntar: qual é o valor daquela verdade? Isso é que é fazer genealogia, como fala Nietzsche. Fazer a genealogia de um pensamento, de um sistema, de uma teoria é: joga aquela ideia para um campo de forças. Sai daquele plano teórico e diz: que força é essa, é força ativa ou força reativa? Que vontade é essa, é vontade afirmar ou de negar? Que valor tem isso? Para onde isso te leva?
Então, Aristóteles quer te levar para onde? Ele quer te levar a uma finalidade que estaria fora de você mesmo – apesar de ele obter as formas do mundo e dando uma estatura psicológica para as Ideias platônicas: as Ideias, agora, têm a altura do homem.
Participante: Quando eu estava falando da verticalidade platônica e da horizontalidade aristotélica, seria nesse sentido: como se ele “humanizasse” o modelo platônico.
Isso.
Participante: E daí a história da lente. O que ele instalou como um germe, como um vírus, como uma lente, uma coisa que embaça?
Você lembra que nós desenhamos, um tanto genericamente, a sociedade grega, o modo como a sociedade grega funcionava? E desenhamos também as sociedades arcaicas, de alguma maneira. Depois as seitas secretas religiosas, o xamanismo da Sibéria, o mau encontro que gerou a ideia da alma que se separa do corpo, que tem origem divina e que é mais importante que o corpo. Aí começa uma oposição da alma contra o corpo; depois a união disso com Sócrates e com Platão. Platão com seus arcaísmos e com as suas inovações. Os arcaísmos platônicos são os resgates que ele faz daquelas narrativas míticas – dos mitos de soberania. Porque nós distinguimos três planos dos mitos: mitos da terra – fecundidade e abundância -; mitos da guerra; e mitos do Estado que são mitos de soberania, que têm as duas cabeças: a do poder violento de fundação e a da lei pacífica de regulação. Platão funda o critério de autenticidade de uma Ideia e de seleção de um pretendente na instauração de um discurso mítico onde um modelo circular se destaca. Então Platão tem um olho lá no mundo do Ánax micênico, do mundo despótico, e tem outro olho herdado do modo como a sociedade grega vive. Então você tem um espaço entre iguais, os isói; entre semelhantes, os hómoioi; a ágora que é o centro – você está a igual distância do centro. E você gera uma lei que é comum a esses homens e você já tem uma relação que é de igualdade e de semelhança. Mas que são regras, que são convenções que a sociedade cria para melhor funcionar. Então, enquanto é uma regra de passagem, aquilo é positivo: eles estão na imanência inventando a sua própria maneira de se autogerir – seja democrática ou aristocrática, não importa, é uma maneira de se autogerir; não vem de um déspota que está fora da sociedade, é a própria sociedade que gera aqueles valores; mas aqueles valores e aquela forma de se perceber ainda é algo que é como a estrutura do outrem, digamos assim. É aquilo que está no entre, mas que você não introjeta como lei do fundo da natureza, como uma substância – aquilo é uma regra de passagem. A lei é um instrumento de expansão. Então você inventa a lei para isso.
No caso de Sócrates, de Platão e de Aristóteles, já tem uma introjeção dessa forma que se cola, ao mesmo tempo, no modelo mítico. Então essa forma é eterna segundo o modelo mítico, mas ela também diz a verdade do homem segundo o modo de se conduzir em sociedade. Então a verdade do homem segundo o modo de se conduzir em sociedade é uma verdade universal; é uma forma à qual, todos se submetendo, você vai ter uma harmonia e uma paz na Terra e na sociedade, você vai levar aquela sociedade ao Bem. Então a universalidade da regra que não era universal, era uma ocasião singular naquela situação, naquele espaço, naquele tipo de relação política; você universaliza isso, diz que isso é eterno porque isso está num movimento de imutabilidade e que é aí que se aloja a realidade suprema e o Bem. E o resto deve se submeter a isso. Então esse movimento, esse olhar que está sendo inventado – que vai ser o nosso olhar ocidental – vem de várias linhas e ele se compõe desse modo. Ele vem até do modo como a sociedade grega inventou a sua autogestão. Vem lá do mau encontro dos xamãs, vem das seitas religiosas, vem do mundo despótico, daquele regime de signos que é paranoico interpretativo, vem de um outro regime de signos que é passional reivindicativo que está se esboçando de alguma maneira na sociedade grega. Então você tem o discurso despótico e civilizado que se casam – o poder e a lei – e você começa a ver tudo de uma outra maneira. A semelhança na percepção antes era apenas um modo estratégico da cidade se autogerir; aí ela vira agora o olhar verdadeiro do fundo da natureza, do fundo da alma – ela vai para o fundo da alma.
Então é um movimento de conjunções, de contingências que, oportunamente, os homens assumem, investem, porque aquilo é vantajoso. Por que é vantajoso? Porque os homens já perderam o devir, então eles precisam se defender, eles precisam se organizar, eles precisam se conservar. E qual a melhor forma de se conservar? Investir no universal, investir na lei, investir no Estado, investir na ideia de Bem.
Participante: Por isso ele coloca essa ideia de morte como algo negativo? É porque a ideia de morte é algo de mudança?
É. Ele já morreu, no fundo; no fundo já é um morto-vivo porque perdeu o devir. Porque a ideia que eu tenho – que nós temos – de vida, necessariamente é uma vida em devir. É o devir como elemento prioritário; o ser é apenas um modo do devir. Não é o devir que é um acidente do ser, é o contrário: o ser é que é um resultado do devir.
Participante: Essa separação cristaliza o movimento.
Cristaliza o movimento mas se você já está separando, você já nem se apercebe mais disso; se você já vê assim, você já perdeu o movimento, você já perdeu o devir. E aí você vai fazer uma imagem da morte; aí a morte vira o modelo da abolição – uma imagem do fim, uma imagem negativa.
Participante: Instala-se uma forma de medo, não é?
Claro. O medo vai ser a principal paixão, junto com a esperança, para você investir num sistema assim. É por isso que um sistema assim vinga, é por isso que os homens correm atrás disso, investem nisso com uma força tal como se se tratasse da sua própria liberdade. No fundo você corre atrás da sua conservação.
Participante: Por isso o controle, a sociedade de controle, funciona. É em função desse medo.
O tempo inteiro é isso.
Então é o seguinte: eu esbocei aqui, de modo bem genérico mas com os movimentos suficientes para começarmos a compor as linhas, as quatro cabeças da representação no mundo lógico aristotélico, no sistema da representação aristotélica; as dez categorias que são as intuições indemonstráveis de Aristóteles que já pressupõem a identidade e a semelhança platônicas, que são fundamentos; o mundo físico aristotélico que é o mundo que existe realmente enquanto mundo individual; e o modo ou o sentido em que se move esse mundo: o bom sentido. Então vimos: semelhança na percepção; oposição de predicados; identidade no gênero (porque é o gênero mais geral, porque eu não consigo atingir alguma coisa mais genérica que ele; então ele acaba sendo idêntico a ele mesmo nesse movimento circular); e analogia do juízo. Analogia do juízo porque você vai ter um operador intelectual que está separado. Porque só deus ou o motor imóvel é ato puro, onde a intelecção e o inteligível se confundem; no homem você tem a intelecção e o inteligível separados. Então esse ato de razão – ou de efetuação da intelecção, ou de atualização da razão em potência, que o homem tem – já é um ato de atribuição de proporções: proporções segundo a ordem do ser, segundo a quantidade, de identidade, de semelhança, e segundo o sentido em que isso caminha. Esses dois elementos de distribuição da razão é que constituem o juízo. O juízo feito de bom senso e de senso comum.
Então, sempre que você pensa de modo que tem um sentido único – seja o sentido do indeterminado ao determinado, do particular ao universal, ou vice-versa; ou do Bem para o Mal ou do Mal para o Bem (você pode até investir no Mal, você ainda está no bom-senso; é por isso que a transgressão ainda é coisa de bom-senso; quando você está transgredindo você ainda está no bom senso, você ainda está julgando) – você perde o movimento do devir da própria natureza porque o devir não funciona assim; o devir funciona sempre nos dois sentidos ao mesmo tempo, no passado e no futuro. Quando você fixa uma origem em direção a uma finalidade, ou uma existência em direção a uma origem, você está no bom senso. Então: bom senso que delimita um percurso no tempo, um limite no espaço, vai te dar também o senso comum ou a identidade de um indivíduo. Bom senso e senso comum vão operar de modo a dividir gêneros generalíssimos em espécies – que são ora gêneros, ora espécies intermediárias – até atingir a espécie especialíssima ou universal mínimo.
Nesse sentido você vai ter, então: o mundo físico que existe, que é real; o mundo lógico que é um campo de possibilidade, formal; e o mundo metafísico que é um campo puramente atual. O ato está inteiramente no metafísico, no além-do-corpo, no mundo supra-lunar – onde você tem ato puro, onde você tem forma pura, espiritualidade pura, intelecção idêntica ao inteligível. Então você tem esses três planos de realidade em Aristóteles: o mundo físico existente, o mundo racional ou lógico e o mundo metafísico que é puramente atual. O mundo físico que é feito de ato e matéria imperfeitos; o mundo lógico que atinge as formas perfeitas; e o mundo metafísico que atinge a finalidade da forma, que atinge a utilidade da forma, que atinge o Bem. É por isso que o sujeito lógico, em Aristóteles, pressupõe o sujeito moral: porque você tem um sentido de conduta na finalidade para atingir o Bem. O sujeito moral, em Aristóteles, vai ter uma atitude fundamental em relação à retórica, em relação à linguagem: ele não vai poder se ligar a signos equívocos. Por exemplo, você usa a palavra “manga”: manga de camisa, manga fruta, Manga ex-goleiro – você tem um monte de signos equívocos e Aristóteles vai ter horror a esses signos.
Alguém me chamou a atenção para ver onde é que Aristóteles claudicava, caía; então: é na questão dos acidentes, na questão dos signos equívocos, na questão do que gera os signos equívocos e a relação com os signos equívocos. Então: uma alma nutritiva ou vegetativa – uma alma sensitiva e apaixonada, que se relaciona com as paixões – vai necessariamente emitir signos equívocos; a alma racional vai precisar fazer uma seleção de signos: quando eu disser a palavra “homem”, “homem” vai querer dizer “animal racional”. Então Aristóteles vai produzir e introjetar a univocidade no signo – o signo vai ter que ser unívoco, ele vai ter que ter um único sentido, uma única voz; ele vai ter que ter aquele sentido verdadeiro. Então, quando eu estou na razão, eu só posso me relacionar com signos unívocos e com significações; então Aristóteles vai já pressupor uma significação. Mas para eu atingir a significação eu pressuponho o sujeito moral, uma atitude moral, uma atitude virtuosa. É por isso que Nietzsche insiste nisso: todo sujeito lógico ocidental pressupõe o sujeito moral. Ou seja, você tem que ser um sujeito de ascese, um sujeito virtuoso, um sujeito que submete as paixões, que submete o desejo; que fala ou que distingue a linguagem, a expressão ou a simbolização de coisas que levam à desordem, que levam à falsificação, que levam ao erro, das coisas ou dos modos dos signos que levam à expressão pura ou à simbolização da verdade. Então Aristóteles vai selecionar os signos em relação a isso. Então você tem o mundo físico – representado ou espelhado pela alma, significado ou simbolizado pela linguagem, que diz a verdade do mundo – e uma alma que atinge a verdade do ser. Então: mundo físico, mundo lógico, mundo metafísico; e a linguagem como instrumento privilegiado do animal racional.
Esse é o desenho, digamos, estático da obra de Aristóteles, isso é o sistema aristotélico. No nosso próximo encontro vamos enfatizar o que mais importa nesse quadro: como a coisa funciona no plano da representação e como é que isso não dá conta ou que isso submete as diferenças, as singularidades e quebra o devir – ou reintroduz no devir uma ideia de falta, uma idéia de ausência, uma idéia de dívida existencial. Introduz na vida, no mundo, novamente esse ressentimento, essa impotência, essa incapacidade de entrar em devir, de entrar em pensamento sem imagens – porque esse pensamento é inteiramente fundado na imagem.
Então ele vai estabelecer uma hierarquia das almas e a alma nutritiva ou vegetativa vai ter a função de fornecer fantasmas sensíveis – e a alma sensitiva também – do seu próprio corpo ou do mundo: a alma vegetativa fornece fantasmas sensíveis do meu próprio corpo e a alma sensitiva fornece fantasmas sensíveis do mundo. E através da coleção desses fantasmas sensíveis, é como se eu tivesse a matéria para a minha alma intelectiva, com seu ato, abstrair o semelhante, abstrair a forma daquela matéria que era confusa com forma e matéria. Então eu abstraio dali a forma universal, e tenho o conceito. As dez primeiras formas são aquelas intuitivas e depois você tem o desenvolvimento da lógica demonstrativa.
Participante: Essa é a época helênica?
Já está começando o chamado helenismo pós-cidade, digamos assim; você está num momento de transição das cidades democráticas para os impérios, para as tiranias – império macedônico, império persa – que estão se desenvolvendo e vai haver aí um período de helenização, na medida em que os valores gregos vão se disseminar nesses outros impérios. E a helenização vai atingir o seu máximo quando nascer o império romano, quando o império romano absorver os valores gregos. Essa helenização é que vai gerar uma outra direção para o ocidente. Aí vai ter o encontro com o cristianismo, com o judaísmo, com o islamismo – vai ter uma série de elementos, uma série de linhas que vão gerar o modo próprio ocidental – o modo nosso – de ser.
Participante: Então o desejo da formação do homem grego é se tornar virtuoso?
O homem grego é um homem que acredita no Bem – ao menos o homem grego de Sócrates, Platão e Aristóteles; eles acreditam num Bem.
Participante: No virtus do varão, não é?
É, é virtus. É uma virtude. Mas você tem o homem grego que é um aristoi, ou até o sofista, que acredita na virtude de dobrar as próprias forças – você subjuga certos elementos que desestabilizam, que tiram a sua consistência, e dá um sentido existencial, dá um sentido no modo de vida, segundo o que você faz com as suas próprias forças ou com as forças sociais. Sócrates, Platão e Aristóteles não; eles pegam essas forças e levam para um outro mundo, porque esse mundo é indigno disso, você tem a realidade que está fora desse mundo. Então o homem de Sócrates, de Platão e Aristóteles é um homem que acredita no Bem fora do mundo. Aristóteles vai chegar ao ponto de dizer que não é a alma que busca desesperadamente o Bem; o modo natural de agirmos e raciocinarmos já tende ao Bem, porque somos atraídos por um amor a esse Bem supremo da mesma forma como – ele dá esse exemplo – somos tocados quando sentimos pena de alguém: somos tocados por esse motor imóvel e nos dirigimos a esse motor imóvel porque somos tocados por ele.
Mas há uma coisa interessante em Aristóteles: o motor imóvel não está nem aí, mas ele nos atrai para esse lugar; no caso do cristianismo você vai ter um deus que se curva em relação aos homens, que vai ter piedade dos homens a ponto de Nietzsche fazer um daqueles enunciados cômicos da morte de deus, que deus morre de tanta piedade que ele sente dos homens, morre entupido de piedade.
Esse motor imóvel de Aristóteles não tem isso não, ele está lá na dele; mas os homens se sentem atraídos por ele, por um amor, por uma erótica, em Aristóteles. Tem essa erótica e isso é herança platônica dele. Só que agora é uma coisa mais pacífica, natural – é um movimento natural. Platão ainda era aquela coisa muito paranoica, você tinha que subjugar o esquecimento e estimular a memória, para atingir aquilo que você tinha visto no mundo anterior à encarnação; então você tinha que resgatar a memória de uma forma muito sofrida, tinha que fazer um esforço absurdo. Em Aristóteles já isso é visto como natural.
Participante: O Bem é imanente, a Justiça é imanente, não é?
Em Aristóteles? Não.
Participante: Não que o homem vá.
É natural que vá, mas aí precisa ver o que é natural em Aristóteles. O que é natureza em Aristóteles? Porque em grego, chama phýsis – phýsis é natureza. E phýsis é aquilo que gera, aquilo que põe em movimento, aquilo que cria; isso é que seria phýsis. Agora, o que põe em movimento, em Aristóteles, em última instância vai ser o motor imóvel, vai ser um ato puro numa forma. Então, no fundo, a rigor você só vai poder chamar de natureza à forma do motor imóvel. Então, a princípio, tudo é natureza – o corpo e a matéria, essas substâncias individuais.
Participante: É supra-lunar esse motor imóvel?
Supra-lunar. Ele está fora, ele é transcendente. Então ele emana, na realidade; ele não é imanente, ele emana do motor imóvel. O motor imóvel é a causa não só do movimento como do repouso também; ele é causa do repouso porque, quando você atinge a causa final, você entra em repouso. E a causa final é ele próprio. Por isso ele é causa de repouso também – ele é causa de movimento e de repouso. Quando você é só causa de movimento, essa natureza ainda é relativa aos corpos porque você precisa de um outro corpo para por aquilo em movimento; mas no caso do motor imóvel, não precisa de nada.