Luiz Fuganti
Na aula passada vocês me pediram algumas referências bibliográficas sobre os estoicos. Eu acho que eu tinha falado de modo um pouco aleatório sobre alguns textos. Existem alguns textos específicos sobre o estoicismo e depois eu faço uma relação e mando para vocês.
Textos básicos ligados a duas histórias da filosofia: uma do Émile Bréhier e outra do François Châtelet. A do Émile Bréhier é escrita por ele próprio; a do Châtelet, que organiza sua História da Filosofia, contém um texto do Pierre Aubenque sobre os estoicos. Bréhier tem uma vantagem: ele é apaixonado pelo estoicismo e ele tem dois textos fantásticos, os mais belos textos sobre o estoicismo – um chama Crisipe (está em francês, não existe tradução) e outro, que não está traduzido ainda, é A teoria dos incorporais no antigo estoicismo. Esse aqui é uma beleza de texto. E Bréhier é o primeiro a esclarecer bem o corte que os estoicos fazem no ser – a questão da profundidade e da superfície do ser. É Bréhier que levanta muito bem essa questão.
Outro clássico sobre o estoicismo é o do Victor Goldschmidt, O sistema estoico e a ideia do tempo. Esse está em francês também. É um livro quase completo sobre o estoicismo. O Goldschmidt tem uma visão um tanto estruturalista, ele abrange o sistema todo; é muito bom. Não sei se é tão belo quanto este livrinho do Bréhier, que é um livro apaixonado, mas o Victor Goldschmidt é muito rigoroso. Algumas coisas ficam a desejar mas é um livro muito bom.
Existe uma coletânea do Jean Brun, Les stoïciens; existe uma edição portuguesa das Edições 70, que está resumida. São vários textos dos estoicos ou que se referem aos estoicos – doxografia, comentários, críticos, etc. Porque dos estoicos mesmo não sobrou quase nada. Então são textos em torno dos estoicos.
Existe uma obra do Hubert Elie, Le complexe significabile (O complexo significável), que recupera o objeto estoico por excelência, que é o sentido, através de uma querela medieval e outra moderna; depois este objeto vai ser recuperado por uma segunda vez pelo Frege, que é um lógico que vai analisar o sentido como um objeto próprio da lógica ou do pensamento. Então quem quiser investigar a fundo essa questão, esse texto é muito interessante.
Le dominateur et les possibles (O dominador e os possíveis) é um texto do Pierre-Maxime Schuhl, no qual apresenta-se um argumento dos megáricos – de Euclides, Estilpon e Diodoro – contra a ideia de possibilidade em Aristóteles, o argumento soberano. É mais ou menos o seguinte: se eu estou sentado é porque é impossível estar de pé. É um argumento muito poderoso e os estoicos, na realidade, têm essa postura lógica na medida em que eles são adeptos de uma espécie de fatalidade no acontecimento – o que eles chamam de destino ou de sentido fatal do acontecimento. Tem a ver com o argumento soberano. Então quem quiser se aprofundar nessas questões tem esse texto também, do Pierre-Maxime Schuhl. Não está traduzido, também.
V. Brochard, um francês: Estudo de filosofia antiga e de filosofia moderna. Na parte de filosofia antiga tem uma parte do estoicismo.
Um texto – aliás, isso aqui não é um texto, é “a obra” por excelência: Lógica do sentido do Gilles Deleuze. Essa obra foi a que resgatou, a que recuperou o estoicismo da forma mais impressionante e é uma obra absolutamente estoica. Lógica do sentido é exatamente a lógica do incorporal, é o objeto que o estoicismo destaca do ser – como objeto difícil de apreender porque ele é incorpóreo, é um objeto fugidio. E no entanto, como diz Deleuze, é mais ou menos como a Caça ao snark do Lewis Carrol (traduzido como A caça ao turpente, que é o tubarão-serpente, digamos assim) – que você não pega nunca, escapa porque é muito escorregadio, na medida mesma em que não é objeto da sensibilidade e nem da razão. É objeto do pensamento e o pensamento acontece num tempo que não é o do imaginário, que não é o da sensibilidade, que não é o da razão. Essa obra A lógica do sentido é como a Caça ao snark do Lewis Carrol que, aliás, é uma outra obra que Gilles Deleuze cita direto na Lógica do sentido como sendo uma obra que traz como objeto privilegiado o sentido na literatura. Toda a obra de Lewis Carrol é uma obra sobre o sentido e sobre o paradoxo, porque o sentido é paradoxal. Então quem quiser ler Lewis Carrol e os estoicos, e ao mesmo tempo entrar na Lógica do sentido…
Participante: Você acha que o Lewis Carrol tinha a intenção?
Ele não tem a intenção de ser estoico, digamos assim, ou de ser inovador. Ele encontra algo inovador, ele encontra algo inédito. Não é nem uma redescoberta – é uma redescoberta no sentido de que os estoicos já haviam inventado isso -, mas Lewis Carrol percebe um elemento, que é o sentido, e que nele mesmo a narrativa se desenvolve sem sujeito e sem objeto. Ele brinca com isso o tempo inteiro. E ele diz que isso, inclusive, são as meninas até 11 ou 12 anos, se não me engano, que têm esse sentido de superfície. Ele chama isso de superfície e diz que é na superfície que as coisas…
Participante: Ele era influenciado pelo contato com o estoicismo?
Não. É como se fosse um renascimento independente do estoicismo, ainda que possa até ter tido algum tipo de influência. Isso aí é objeto de uma outra pesquisa. Mas o Lewis Carrol fez a obra se relacionando com um objeto estranho e fantástico, que os homens geralmente não se apercebem da sua realidade. Porque é um objeto que não existe; ele é inexistente e, no entanto, ele é real. É essa que é a questão toda do incorporal.
Participante: Eu fiz uma leitura um pouco mais do estoicismo, porque eu saí muito incomodada, muito perturbada da aula passada. E a minha questão é que depois dessa leitura o que eu percebi é assim: em Aristóteles vimos que existia um finalismo, quer dizer, a potência se transformava em ato e essa potência era mais ou menos previsível, pré-determinada. E no estoicismo, pela leitura que eu fiz, também existe um certo finalismo – a ideia de destino, a ideia de fatalidade. E o que eu me pergunto é onde fica – dentro do estoicismo, sobretudo – a ideia de liberdade, de acaso, de incerteza. Porque tudo parece que funciona numa submissão do homem ao seu destino. Sábio é aquele que se submete, que aceita o que vem do universo, o que vem de Deus.
É como se até fosse uma resignação, não é?
Participante: É, me soou muito assim. E aí eu fiquei pensando: onde está a liberdade? Onde está o acaso? Incomodou-me muito essa questão da submissão ao que vem.
É uma questão muito sutil, mesmo. Muitos intérpretes do estoicismo resvalaram aí, fizeram interpretações absolutamente equivocadas em cima de uma suposta resignação do estoicismo. Inclusive o estoicismo romano já cai um pouco nisso também. O médio e o baixo estoicismo; porque o alto estoicismo grego, o estoicismo do século IV e do século III, tem essa questão muito clara, na realidade. É muito clara porque eles não são racionalistas no sentido aristotélico, platônico ou socrático; eles não põem a consciência no centro da alma; e eles não se ligam a formas. Eu não sei se eu te respondo agora ou se te respondo ao longo da exposição, porque vamos trabalhar isso de uma forma mais elaborada hoje – acho que é objeto da aula toda, isso aí. Acho que a coisa vai se esclarecendo e se você sentir que a coisa ainda está obscura, você me cobra. Mas essa questão é fundamental, você foi no centro da problemática estoica.
Participante: A felicidade é uma questão para a filosofia? E nessa coisa de fatalidade, de destino, a inclinação do homem é para a felicidade?
É a mesma questão da finalidade como um bem fora, ou como uma forma a ser atingida – que é o aristotelismo, por exemplo; ou a questão da finalidade como efetuação, que é a questão estoica. Então é o mesmo problema que nós vamos desenvolver aqui – o que é a felicidade, o que é a virtude. A virtude seria uma coisa diferente do bem, como é o caso do Aristóteles? Haveria um bem a ser atingido como uma virtude? Ou a virtude e o bem são a mesma coisa? Então é uma questão que nós vamos desenvolver. É a mesma questão que a anterior, no fundo.
Eu vou fazer uma certa revisão do que já falei e aí saltamos em relação a onde paramos na exposição passada. Se não me engano chegamos aos incorporais puros e eu comecei a falar dos efeitos incorporais – acho que foi por aí, mais ou menos. Eu não cheguei a falar da lógica. E da ética eu apenas falei de modo pontuado, com aquelas máximas – viver conforme a natureza, querer o acontecimento, ser digno do que nos acontece.
Os estoicos ultrapassam a metafísica socrática, platônica, aristotélica, na medida em que tem algo além do próprio ser – os estoicos não ficam no ser. O ser, para eles, é uma parte da realidade, não é toda a realidade. Há algo que engloba não só o ser, como o não-ser. Já Platão tinha dificuldade em elaborar o estatuto de uma lógica de atribuição porque, na medida em que o ser é o mesmo, o ser não pode ser diferente dele mesmo; e se não pode ser diferente, a única coisa que você pode falar do ser é que o ser é o ser – que a justiça é justa, que a beleza é bela. É uma verdade que é tautológica. E Platão comete, no Sofista, o parricídio – contra seu mestre ou pai espiritual Parmênides – na medida em que é obrigado a afirmar que o não-ser é; de alguma maneira o não-ser é. É necessário que algum tipo de realidade seja atribuída ao não-ser para que a lógica de atribuição se torne viável.
Aristóteles vai censurar Platão por praticar essa lógica de atribuição de forma muito rude, de forma muito truculenta, digamos assim, porque a Platão faltará um termo médio, o que Aristóteles vai chamar de termo médio. E Aristóteles cria esse termo médio – que ele vai chamar de diferença específica. E mais alguns operadores como a ideia de potência e de ato, que seria uma passagem de um elemento genérico para um elemento diferencial, por exemplo, que possibilitaria uma lógica de atribuição. Você pode dizer que “animal”, como gênero, é outra coisa que animal – é “racional”, por exemplo. E não estaria em contradição. A grande questão é não romper o princípio de não-contradição que eles mesmos instituem: você não pode dizer que o ser é e não é ao mesmo tempo, sob a mesma relação. Esse é o princípio de toda a representação ocidental; não há lógica ocidental, não há representação ocidental, sem o princípio de não-contradição – que está fundado na identidade e na semelhança.
Essa questão, para os estoicos, vai por terra porque os estoicos vão fazer uma reviravolta radical nisso tudo e vão fazer uma outra repartição do ser. Os estoicos vão dizer que o ser é uma parte do real, mas que é o único existente: tudo o que existe é o ser. E o ser que existe é corpo. Então o corpo é o ser existente, é o ser atual. E há algo que não existe, mas que, no entanto, é alguma coisa, portanto real. Este algo não deixa de ser real por não existir. Mas tem uma realidade não como a realidade aristotélica do possível – que não é uma realidade -, mas uma realidade própria, ontológica, do virtual. Então os estoicos vão dizer que o ser e o não-ser – ou, ainda, o ser e o extra-ser – fazem parte de algo que os envolve. Esse Algo eles chamam mesmo de alguma coisa, de to eòn, quelque chose. Essa alguma coisa é algo mais englobante do que o próprio ser; é a realidade plena, a realidade virtual e atual ao mesmo tempo, a realidade que existe e a realidade que não existe. Mas porque não existe, não deixa de ser real.
Vamos falar um pouco da realidade que existe e em seguida entramos nessa realidade que não existe. Vimos então que para os estoicos tudo que existe é corpo – o que eles chamam de ser. E o corpo tem dois elementos essenciais ou dois princípios fundantes do próprio corpo: ação e paixão, ou matéria que resiste e qualidade que age, uma qualidade agente e uma matéria paciente. Os corpos estão necessariamente em mistura; tudo na natureza estoica está em mistura; nada está isolado, nada é puro, nada é impenetrável, tudo se penetra, tudo se interpenetra. Assim como o fogo penetra o ferro, como a água penetra a terra, como o vinho penetra a água do oceano ou o meu corpo; as coisas se interpenetram. E ao se interpenetrarem, ao se misturarem, elas efetuam qualidades, quantidades, propriedades – ou, numa palavra, estados de corpo.
Elas efetuam, nos encontros, alterações ou modificações que produzem estados de corpo. Essas efetuações, essas realizações são de dois tipos, basicamente: boas e más. Boas na medida em que uma mistura ou encontro não destrói a natureza dos corpos que se encontraram – assim como o fogo entra no ferro: o fogo não destrói o ferro, o ferro não destrói o fogo. Eles se interpenetram e ao mesmo tempo eles se retiram um do outro sem modificar a natureza profunda daquele corpo. Então isso são o que os estoicos chamam de boas misturas. As boas misturas são aquelas que não destroem a natureza daquele corpo; que modificam, que preservam, que mantêm, que expandem, mas que não destroem a natureza do corpo. Isso somente é válido do ponto de vista das partes; do ponto de vista do ser como um todo, não existe bem e mal, nem bom nem mau. Só do ponto de vista das partes.
Participante: Como a definição de uma boa mistura é a não-destruição, fiquei pensando na mistura onde há a expansão de um corpo. Por isso eu achei que Espinosa, nesse sentido, vai um pouco mais longe, porque bons encontros são aqueles que potencializam a vida. E as boas misturas seriam só não-destrutivas.?
Não. Isso, digamos, é a condição negativa. Mas é só a condição mínima, digamos assim. Mas evidentemente que a boa mistura envolve uma composição, envolve o que um outro autor chamaria de agenciamento. Envolve uma conexão, envolve uma composição, envolve uma conjunção, envolve uma ligação de forças ou de potências. E nesse sentido você pode, inclusive, gerar uma nova potência, uma conjugação, uma composição. Algo que já não é mais ligado às duas outras potências anteriores mas que formam uma nova potência, uma nova realidade. Então existe isso no estoicismo, com certeza.
Participante: Na ciência, isso passa pela química? Olhar da química ou da bioquímica, sobre esses funcionamentos? A química olharia para as composições? No discurso da ciência, a disciplina da química?
Sim. Só que aí precisa ver que química, não é? Digamos que de modo geral e abstrato, sim, com certeza. A química, a física, a biologia.
Participante: Algum tipo de química dos corpos, não é?
Sim. São misturas.
Participante: Depois a termodinâmica no século XX.
A termodinâmica, com sua segunda lei, vai introduzir o negativo na matéria, que é um mito, uma ficção. Assim como o Big-Bang é uma ficção, também a segunda lei da termodinâmica – que vai prescrever uma morte termodinâmica para o universo, uma morte por indiferenciação, por excesso de calor gerado pela atividade do universo, ou da Terra – é evidentemente uma ficção. A natureza caminha sempre no sentido da diferenciação e não da indiferenciação. Assim como o Big-Bang, que é outra ficção. Então a química tem as suas interpretações reativas, assim como tem coisas muito interessantes, muito positivas. Então não dá para falar da química como objeto geral: precisa ver que química.
Participante: E o Big-Bang como um fenômeno que sempre ocorre?
Aí tudo bem, são emergências locais, a coisa acontece, é uma explosão. Agora, dizer que aquilo é a origem do universo é que é ficção – não há um começo do universo.
Participante: O que você chama de ficção?
Ficção é quando você atribui à realidade ou à natureza um sentido que ela não tem.
Participante: Uma ideia inadequada, para Espinosa?
É uma ideia inadequada, com certeza; é uma imagem que você faz de um sentido. Você imagina que tem um sentido. E se você pensa de fato, se você entra nesse elemento do sentido nele mesmo, a imagem se desfaz como ficção. Mas aí já estamos começando a divagar, vamos voltar.
Então você tem os corpos que existem no espaço e o presente que existe no tempo; só o presente existe no tempo, assim como só os corpos existem no espaço. O que é o presente? O presente é o tempo da duração de uma ação ou de uma paixão; é a extensão da ação ou da paixão; é o tempo que dura aquela modificação ou aquele ser modificado, aquela ação ou aquela paixão. É esse tempo que dura que é o presente. Não há corpo que não habite o presente – todo corpo habita o presente, habita uma atualidade; tudo que é atual, tudo que é presente, é corpo.
E o estoico vai dizer que a qualidade ativa é a própria alma do corpo; o corpo animado por sua própria qualidade ativa. A força ativa é a alma, é o pneuma, é um sopro vital; o sopro vital – que efetua e que unifica um corpo ou um indivíduo – é a causa, é a condição, é o princípio de individuação daquele indivíduo, é a causa da unidade daquele indivíduo. Esse sopro então é uma tensão, é uma força – e não uma forma, como no caso de Aristóteles. É uma força. E essa força é que é causa.
Então só as forças são causa e, portanto, só os corpos são causa – porque força é corpo. Só os corpos são causa e corpos não causam outros corpos; eles causam efetuações nos encontros. O que são efetuações? São modificações nos corpos. Mas eles não causam, eles não geram outros corpos. Há uma efetuação, há uma modificação de corpo que está no plano das ações e das paixões.
Assim, portanto, só os corpos existem no espaço e só o presente existe no tempo; os corpos, que são causas mas nunca efeitos uns dos outros – no máximo são efetuações na medida em que se modificam, que geram estados de coisas, propriedades, quantidades, qualidades -, são causas de efeitos muito especiais. Efeitos de outra natureza que as efetuações, efeitos de outra natureza que as ações e que as paixões, efeitos de outra natureza que os corpos, efeitos de outra natureza que as propriedades, que as qualidades, que as quantidades. São o que eles chamam de incorporais. Se as realidades existentes são apenas os corpos e os corpos causam esses efeitos de outra natureza que eles mesmos, essas realidades de outra natureza, portanto, são realidades não existentes, são efeitos, são incorporais – não mais corpos, mas incorporais. Não são propriedades mas são atributos, não são propriedades físicas mas são atributos lógicos. Não são fatos ou efetuações mas são acontecimentos (a não ser que você entenda fato como acontecimento).
Participante: Se um corpo não causa outro corpo, de onde vêm os corpos? O que causa os corpos?
Os corpos são um grau de tensão do fogo primordial ou do pneuma. Há uma única força – a natureza, na realidade, é um indivíduo, é um único ser – mas há graus desse ser que se diferencia; esse ser se diferencia na efetuação. Então ao se diferenciar, ele se desdobra em força ativa e matéria que resiste ou matéria passiva; nesse desdobramento, cada matéria comporta um grau de potência ou de força, ou uma tensão do fogo primordial. Essa tensão é parte do próprio fogo primordial, é o fogo primordial já parcializado.
Então o que ocorre? Vamos até começar a fazer a gênese, a genealogia dessa parcialização. Por que isso ocorre? Como isso é visto pelos estoicos? Você tem esses efeitos que emergem naquilo que os estoicos chamam superfície do ser. Por que superfície do ser? Porque o ser tem uma força, essa força é uma profundidade; mas a força se efetua, se afirma. Ela se efetua como? Na extremidade de si mesma: ao se efetuar, ela vai até o limite de si mesma. Esse limite é o limite da superfície física, é a própria superfície física. No encontro com outro corpo eu tenho a pele, eu tenho a superfície; a minha pele é o que separa o dentro do fora. Então esse limite físico, de superfície física, é até onde vai o corpo – o corpo vai do centro para a extremidade e vice-versa, da extremidade para o centro quando ele sofre a paixão. Ação e paixão: é do centro para fora e de fora para dentro. É aí que o corpo entra numa relação de vai-e-vem, de ziguezague, de efetuação, de modificação ou de auto-modificação, e de ser modificado. De ação e de paixão.
Nesses encontros de ações e de paixões, algo se desprende do ser como um extra-ser, como algo que, na superfície física, se torna sem espessura, sem espessura física. Torna-se um extra-ser que não tem consistência física, que não tem espessura física. Por que? Porque ele é um puro instante, um puro ato; não é a ação ou a reação, ele é um ato puro que se desprende, ele é um instante que se destaca da superfície física do ser como uma superfície metafísica do ser, além da própria física, como uma superfície imaterial, como um incorporal.
A definição mais essencial desse ser se dá por dois incorporais puros que, no fundo, se unificam nesse “alguma coisa”, que é o vazio e o tempo. O tempo não mais dos corpos, que é o que existe, mas agora um tempo que não existe. E quais os tempos que não existem? Passado e futuro. Eles não estão aqui agora, eles não têm uma presença, eles têm uma ausência constante; porque o passado e o futuro nunca são, eles devêm, eles estão adiante ou atrás. Ou vice-versa: eles estão no futuro ou no passado. O instante sem espessura é exatamente esse desfolhamento do presente; quando você desfolha e subdivide infinitamente o instante, você nunca capta o elemento presente – você entra numa imaterialidade, numa incorporeidade. Esse instante que se desfolha é o que os estoicos chamam de incorporal puro ou aion – aion é o tempo que é passado e futuro ao mesmo tempo, mas nunca é presente, ele se subtrai ao presente, ele escapa ao presente, ele se descola do presente, ele foge ao presente. Ele é a própria linha de fuga – a linha de fuga pura é o aion. Ele sempre escapa à atualização, à efetuação.
Então um incorporal puro seria o aion. Outro incorporal puro seria o vazio. Os dois são puros porque eles não precisam do corpo para serem definidos. O vazio não é o nada, o vazio é uma realidade; é a pura virtualidade que constitui o espaço. E o aion é a pura realidade que constitui o tempo. Ambos não existentes, mas ambos com um outro tipo de manifestação, digamos assim. Essa manifestação é num campo expressivo – que não existe, mas que insiste, que subsiste e que persiste. Que insiste em um futuro, que subsiste em um passado, que persiste em passar – é o que passa, por excelência.
Agora, no momento em que eu digo que não há um corpo sequer que não esteja em mistura, eu também tenho que dizer que não há um corpo sequer que não esteja envolvido pelo vazio e pelo tempo aiônico. Se um corpo se envolve no vazio ou entra em relação com o vazio, necessariamente eu tenho um efeito incorporal – não mais um incorporal puro, mas um efeito incorporal que se destaca, que emerge na superfície metafísica do ser – que se chama lugar. Que eu até sinalizei como aquilo que Deleuze chama de forma de conteúdo no Mil Platôs, ou que o próprio Foucault chamará de forma de conteúdo. Então o corpo no vazio necessariamente expressa ou exprime-se no lugar; o lugar é a expressão própria do corpo, é a sua forma de conteúdo. A forma, no corpo, é sempre um lugar, é sempre um topos; é por isso que não há uma força que não seja topológica, é por isso que o desejo é geográfico antes de ser histórico. Ele sempre ocupa uma topologia, uma cartografia, digamos assim: ele tece linhas sempre num topos, num lugar. Esse efeito necessariamente é um parcializador, já, de realidade – você tem uma parcialização do corpo na medida em que ele se expressa num lugar.
Participante: Usando esses jargões, aí é produção de um território existencial?
Exato: é o território existencial do corpo. Perfeito. E não é jargão isso, é um conceito essencial.
No caso do presente do corpo no aion, eu tenho o acontecimento – não mais o lugar, mas o acontecimento. O acontecimento é o efeito incorporal do corpo no tempo: o corpo no tempo é um corpo em acontecimento. E não há um corpo sequer que não esteja em acontecimento. É por isso que o corpo em mistura é um corpo em acontecimento. Então a coisa se dá simultaneamente nos dois planos: no plano incorporal e no plano corporal – nos dois ao mesmo tempo. E há uma pressuposição recíproca entre os dois, ainda que não haja uma relação de causa e efeito, que um não modifique a realidade do outro.
Participante: E essa apreensão do acontecimento é o que Deleuze chama de pensamento do fora?
Sem dúvida, é isso aí, é o pensamento do fora. Porque o acontecimento está no limite da superfície; ele é um extra-ser mas ele não é uma altura como a altura platônica – ele é um efeito de superfície. E ao mesmo tempo é fora porque é o mais imediato. Esse mais imediato que você não pega com uma forma – é uma linha aberta, necessariamente é uma linha aberta. Por isso que ele é fora: ele é fora do poder e fora do saber – é isso que eles querem dizer quando eles dizem “fora”. É fora do saber – fora das formas sedentárias de saber, ou dos conceitos do saber, ou das figurações do corpo ou dos estados de corpo. Ele é fora do saber e do poder, ele é linha pura de devir. A linha pura de devir é o fora, é o próprio fora, é o corpo no acontecimento.
O corpo no acontecimento não tem representação, ele é pura expressão, ele no imediato; a representação é uma mediação, e o corpo no acontecimento não tem mediação, ele está na expressão imediata, é manifestação imediata; ele é uma presença se subdividindo no instante infinito. Essa presença se subdividindo no instante infinito é uma presença em devir. É por isso que a representação é a morte da presença; a representação é uma reapresentação de uma presença já morta. E a presença se expressa na superfície como o mais imediato. Esse mais imediato ao mesmo tempo é o mais longínquo e o mais imediato – Foucault diz isso. Blanchot diz isso também. Aliás, essa ideia de fora, de dehors, que é uma ideia do Maurice Blanchot – que Foucault vai desenvolver depois e que Deleuze desenvolve à sua maneira.
Participante: Então todo corpo está em devir, mas menos o corpo do homem, nesse sentido?
Menos o corpo do homem na medida em que o homem acredita, investe ou habita formas sedentárias. O que seriam formas sedentárias? No plano do corpo são formas orgânicas, órgãos e funções de órgãos – o corpo estaria submetido aos órgãos e às funções de órgãos; no plano da alma, ou do pensamento, este estaria submetido à representação, que opera por formas e desenvolvimentos de formas, submetendo a natureza necessariamente a uma identidade, a uma semelhança, a uma diferença por oposição e a uma analogia.
Participante: De que forma esses incorporais, que exalam da experiência no presente, decantam de volta na experiência? Ou eles nunca decantam de volta, eles não participam de volta do acontecimento, eles são sempre coisas que exalam que estão sempre sendo expelidas?
Há um eterno retorno do incorporal, mas esse eterno retorno depende da maneira de viver, da postura diante da vida. E aí entra a questão da moral ou do problema ético dos estoicos. Precisamos identificar necessidade e liberdade tal qual faz Espinosa. A necessidade estoica não é uma resignação, não é um carma, e a liberdade não é a de um livre-arbítrio. Então é isso que leva ao retorno do incorporal e à liberação de um duplo no incorporal, que é a questão do Algo no acontecimento, que é o sentido no acontecimento. Mas deixa isso para o final porque ainda vamos ter muito desenvolvimento.
Participante: Eu fico escutando e fico pensando assim: quando você fala do efeito incorporal e do acontecimento, eu percebo uma hora em que você fala de um acontecimento não ser representação, que a representação é reapresentação de uma presença já morta. Tenho uma sensação de dualidade quando você fala. É como se colocássemos isso fora do corpo, dessa unidade funcional vibratória, já que estamos falando de vibração. Então, se você pudesse voltar devagarzinho.
Não, eu não vou voltar, eu vou chegar nisso porque eu vou falar do que é a representação para o estoico, que não é a representação de Aristóteles ou de Platão. A representação é pensamento do corpo – o corpo pensando, o corpo pensa. Aí eles vão chamar de representação: representação sensível e representação racional. Eu já chego nisso.
Participante: Perfeito. Então quando você falar “a representação é uma reapresentação de uma presença já morta”, eu não sabia…
Eu estou falando de Aristóteles, de Platão, da representação ocidental. E reservamos o nome “representação” para essa coisa ocidental da máquina de morte mesmo. É por isso que a representação é uma máquina de morte. Quando eu falar de representação no estoico eu vou dizer em que sentido é e você vai ver que não é uma representação nesse sentido que geralmente usamos.
Participante: E nenhuma dualidade.
E nenhuma dualidade. É por isso que temos que ter presente que para o estoico tem algo maior que envolve o ser e o extra-ser; esse Algo, no fundo, é uma univocidade e não uma dualidade.
Então o corpo – no tempo aiônico que gera o acontecimento, o efeito incorporal do acontecimento – tem um modo de se manifestar na linguagem humana, por exemplo. Então tudo o que é verbo expressa um acontecimento: andar é um acontecimento, viajar é um acontecimento, dormir é um acontecimento, defecar, trepar, chover, brilhar, enrubescer, empalidecer – tudo são acontecimentos, tudo que se expressa por um verbo. Aqui já há o que os estoicos chamam de dialética do incorporal, que não tem nada a ver com o que chamamos ou criticamos quando falamos em dialética; na realidade é a própria lógica do sentido. Os estoicos vão chamar de dialética do exprimível, do lecton. É sempre uma lógica ou um pensamento do acontecimento; o objeto por excelência dessa lógica é o acontecimento e não o conceito aristotélico, a ideia platônica, o objeto geral socrático. Não é termo; porque o objeto geral de Sócrates, a Ideia de Platão, o conceito de Aristóteles, são termos. O estoico não lida com termos, ele lida com acontecimentos, a coisa em acontecimento.
Então a lógica estoica é relação de acontecimento com acontecimento. Há certos laços dos acontecimentos ou dos efeitos incorporais que eles vão liberar. E os que mais se manifestam são os laços da conjunção, da disjunção, da conexão e do que eles chamam de mais ou menos (é mais dia do que noite, é mais noite do que dia, etc.). Então existe uma lógica dos incorporais que eles vão desenvolver através da liberação de um objeto próprio que vai fundar a primeira filosofia da linguagem – ou a lógica, no sentido moderno do termo, porque dizem que Aristóteles é o inventor da lógica; mas Aristóteles não via a sua lógica como uma ciência própria, são os estoicos que vão liberar uma lógica. Só que não tem nada a ver com a lógica aristotélica, é uma lógica do acontecimento, é uma lógica do incorporal.
A questão das parcializações: elas são expressas, então, pela pluralidade de verbos. Todo verbo expressa uma maneira de ser: andar é uma maneira de ser, viajar é uma maneira de ser, tudo são maneiras de ser. E a maneira de ser é o extra-ser. O ser e a maneira de ser – o ser enquanto profundidade e a maneira de ser enquanto superfície; o ser enquanto intensidade e a maneira de ser como expressão da intensidade. Expressão e intensidade como sendo os dois modos de manifestação do ser que não formam um dualismo, porque não há intensidade do ser sem expressão e expressão sem intensidade; ou, como diria Bergson, espírito sem corpo, corpo sem espírito, espírito sem matéria ou matéria sem espírito. Por que? Porque não há corpo que não seja envolvido pelo tempo e pelo vazio. Então necessariamente você tem essa coisa unívoca que se manifesta nos dois planos simultaneamente, no corpo e no pensamento.
Participante: Modo de ser eu posso afirmar que é sempre o modo de estar?
Não. O modo de estar pode te reduzir a um estado e o modo de ser não necessariamente te reduz a um estado. Te põe em devir. O estado já é um intervalo entre uma modificação e outra modificação – você está num estado. O devir é a própria modificação.
Participante: Eu não consigo me apropriar do modo de ser, eu só consigo me apropriar do meu estado. Os pontos de paragem.
Não. O pensamento tem como objeto o próprio modo de ser, o próprio acontecimento enquanto acontecimento. É isso que é fundamental. É um pensamento sem representação, ele é o próprio tempo se pensando na sua efetuação.
Participante: É uma medicina difícil.
Então o que você tem? Você tem um ser, um corpo, um sopro ígneo primordial – e essa palavra “primordial” é até secundária porque não haveria um começo, não haveria uma origem – que se manifesta necessariamente. E na manifestação, na sua efetuação, ele necessariamente se parcializa. E ao se parcializar ele se diferencia; a diferenciação na parcialização, na expressão, é a pluralidade do ser. Então o ser necessariamente em mistura, necessariamente em acontecimento, necessariamente no vazio, é um ser plural. O ser plural é o próprio ser, não há ser sem pluralidade. A pluralidade é como se fosse o substantivo do ser; não é mais uma mera qualificação de um substantivo, essa qualificação vira o próprio substantivo. Então a pluralidade é o fundo da natureza: a natureza é completamente diversa nela mesma, ela é um solo diversificado, é um solo plural.
Então essa parcialização vai ser objeto de dois modos de apreensão: um que chamamos de razão e outro que chamamos de pensamento. No fundo eles vão se encontrar, o pensamento e a razão vão se encontrar. Mas vamos fazer a distinção antes e ver o que é a representação no estoico. O estoico diz o seguinte: o meu corpo é feito de uma qualidade ativa ou de uma força ativa, de um pneuma, de uma alma – a alma é corpo – e de uma matéria. Que se encontra com outros corpos que são matérias e pneumas, matérias e qualidades, ou ações e paixões. Nos encontros, o outro corpo que se encontra com o meu deixa sobre o meu corpo, imprime sobre o meu corpo uma imagem, uma fantasia, como eles dizem em grego. Essa fantasia, essa imagem é uma representação sensível; é uma representação porque ela é, digamos, a última expressão do corpo na superfície física, a sua extremidade. Então é uma representação sensível porque é através da sensibilidade que eu apreendo essa representação. É como o som no ar, a cor no ar ou o sinete na cera; é uma impressão, de fato.
Aristóteles faz um outro uso disso. Aristóteles, por exemplo, vai chamar de fantasma sensível e esse fantasma sensível, para Aristóteles, vai ser uma marca; e, nessa marca confusa de matéria e forma, ele vai buscar a forma pura e vai abstrair o conceito dali através de uma semelhança na percepção. Instrumento que Platão já tinha lhe dado através do exercício das imagens-ícones.
Mas no caso estoico você tem uma imagem que se apresenta, uma representação sensível, a que a alma, ou o pneuma, vai ou não dar assentimento. Essa alma, diz Zenão, é como a mão aberta, uma imagem da alma que ele usa para ilustrar sua atividade; toda imagem tem, nela mesma, uma positividade – ela é um índice (em linguagem moderna agora, só para vocês entenderem melhor). Se ela é um índice, é porque traz uma compreensão nela mesma – há algo que a torna compreensível. Em Platão e Aristóteles não tinha isso não. Platão diz que na imagem não há compreensão; ele diz que essa compreensão vem necessariamente da forma, que a imagem material não tem nenhuma compreensão; que se há alguma compreensão, ela se manifesta porque a forma deu alguma compreensão a essa matéria.
O que os estoicos dizem é que essa imagem, que é uma força – que se efetuou e que é a ex-pressão corpórea de uma força -, enquanto imagem já traz uma compreensão nela mesma, já traz uma razão nela mesma. Então eles dizem: imagem – e aí você levemente fecha os dedos (isso é uma imagem que o Zenão faz) e você tem a imagem compreensiva. Você fecha um pouco mais e você tem uma imagem à qual eu dou assentimento. O que é eu dar assentimento? Isso já é um ato da minha alma, ou do meu pneuma, ou da minha qualidade ativa. Eu já atuo ali, ou seja, é como que se eu me conjugasse a aquele canal, eu começo a unir o meu canal com aquele canal de realidade – há uma expressão de ambos que se conectam. Então esse é o assentimento, é o primeiro assentimento que eu dou.
No momento em que eu dou assentimento, eu abro o canal para ter a percepção. O que é a percepção? É a apreensão do objeto. Eu apreendo o objeto. Mas o que é apreender o objeto? Não é apreender aquele estado de corpo, aquela propriedade ou aquela imagem; é apreender o sentido que passa naquele corpo. É a expressão própria do corpo, é como o corpo se expressa. Então já é um objeto de percepção e não simplesmente de sensação ou de sensibilidade. Ou seja, numa outra linguagem ou fazendo aqui uma outra tradução: no fundo, é o objeto que se apossa de mim. Quando eu faço a percepção, aquilo já percebe em mim. Isso já é a representação racional, o que eles chamam de representação racional. E isso é a causa da noção comum. A noção comum é a repetição desse processo – é esse processo singular que se repete, forma uma noção comum. Então eu tenho a percepção. Fecho a mão.
Com a outra mão eu tenho a razão. O que é a razão? É o encadeamento de uma percepção com outra percepção, é o encadeamento de uma noção comum com outra noção comum. E eu tenho um entendimento do mundo, um entendimento da natureza, um entendimento da phýsis – porque tudo que existe é físico. Eu tenho esse entendimento da física.
Então eu tenho o processo de representação sensível e representação racional, e a passagem de um ao outro. A passagem de um ao outro é um ato que está onde, agora? Se a minha alma, se a minha psychê não é uma forma; e se eu atualizo isso, se eu sou a causa dessa percepção – é porque o ato agora está na força, porque a minha alma é uma força, a minha alma é corpo. O ato está na força e não mais numa forma. Então a causa da realidade é uma força em ato. Ou, como diria Espinosa, já usando outra linguagem, uma potência em ato. É isso que acontece.
Vamos voltar. Todo ser, ao se expressar, ao se efetuar, tem uma expressão, tem uma maneira de ser, tem um sentido; está em acontecimento e ele ocupa um topos. No fundo, é a efetuação que gera isso: você tem uma efetuação que é a própria manifestação do corpo – ou do ser, vamos dizer assim. O ser se manifesta. Então os seres parciais – que se encontram e que se manifestam – interagem, eles se modificam. Ao agir, eu modifico uma realidade; e vice-versa: esse outro corpo, ao me encontrar, me modifica de alguma maneira. Essa modificação é a própria forma do encontro; há uma forma no encontro, há uma maneira de ser do próprio encontro, há um sentido no encontro. O que é a percepção? A percepção é perceber o sentido no encontro, o sentido da expressão naquele encontro; não é o objeto físico em si mesmo que eu apreendo na percepção, é o objeto do entendimento, é o objeto da razão. Não é o objeto corpóreo. É por isso que, se avançarmos mais um pouco, vocês verão que no fundo o pensamento e a razão são uma coisa só porque o que é objeto de percepção aí é o próprio sentido; e o sentido é o incorporal, é o campo da expressão do próprio corpo, é o que emerge na expressão do corpo. É como se você dissesse assim: existe um canal através do qual o fluxo passa; a expressão do fluxo no canal é a expressão – você apreende o modo como o fluxo atravessa o canal. Se o canal é você junto com a expressão do outro e você apreende isso, você forma uma passagem. E a realidade passa; não está no outro e nem em você, ela passa ali. É isso que é a apreensão, é isso que é a percepção.
Participante: Que vai mudar a cada encontro que houver. Amanhã é outra representação, terça-feira é outra, etc.
Isso. Toda hora é uma realidade nova, a cada instante. O que não muda é o modo essencial da expressão; a expressão se dá naquela superfície, daquele modo, no limiar, na extremidade do ser físico com o extra-ser metafísico. É ali que há o toque do espírito da matéria.
Participante: Esse é o “entre”?
Esse é o entre, esse é o puro entre. Exatamente, é o puro intervalo, é o puro acontecimento, esse é o meio do ser – e é a superfície ao mesmo tempo, é onde tudo se produz. Não há uma produção que não se dê no meio. É por isso que aqui todas as estruturas são dissolvidas, não há lacaniano que resista a isso. Porque na superfície a única estrutura que resiste é exatamente esse outrem, essa alteridade neutra, impessoal, que não é nem de uma parte nem de outra parte nem universal; ela é exatamente a condição para que a parte, para que o universal, se efetuem ou aconteçam ou se manifestem. Mas ela é anterior a isso tudo, o meio é anterior a isso tudo; a superfície, esse entre, é o anterior de tudo, é o outrem propriamente dito; não é nem eu nem o outro, é o outrem. É a condição da efetuação de qualquer realidade. Então esse outrem ao mesmo tempo é físico e metafísico, ele é simultaneamente as duas coisas. O que é o metafísico? É a expressão do físico – físico no sentido mais amplo possível, físico no sentido de phýsis, no sentido de natureza, no sentido de intensidade. Físico aqui não é extensão de um corpo extenso; é também, evidentemente, mas há algo que gera a extensão, que é a própria intensidade.
Participante: Isso é a teoria do conhecimento dos estoicos, não é? E vai de encontro a dois fundamentos que é a semelhança e a identidade; não se rebate a um referencial. Viver sem referencial é foda.
Exatamente. É foda por que? Aí é que está a questão. Na medida em que estamos separados do que podemos, nós necessariamente precisamos de uma muleta, precisamos de um referencial fora. E aí está a sutileza da moral estoica. O que é a moral estoica? Onde é que está a finalidade, se não tem referencial? É por isso que não é resignação. Mas já chegamos lá.
Participante: Tentar construir um sentido sobre um encontro que ocorreu é perda de tempo, porque ele sempre vai ocorrer da forma como o encontro permitir.
Como encontro novo. É isso que o Proust vai descobrir no Tempo redescoberto. O que é o Tempo redescoberto? Não é o que foi; aquele passado é um bloco que retorna inteiro ali, ele se repete absolutamente novo. Você modifica o passado – o passado é um acontecimento novo. É por isso que a psicanálise, que fica remoendo marcas passadas, é ressentida, vingativa, miserável, porque ela quer trazer exatamente a morte, ela quer matar exatamente a condição de você entrar em devir. Quando você introjeta uma marca novamente no devir, você mata. E aí precisa entender também uma outra coisa que se usa muitas vezes como uma técnica revolucionária, que é a técnica das máscaras, e muitas vezes as máscaras são meras representações. Então fazer uma distinção fundamental entre máscara e representação.
Participante: Mas a psicanálise fala “ah, mas transformamos essas marcas, esses fatos, em acontecimentos; é uma tentativa de você re-narrar ou reelaborar”.
Sem dúvida. Você sublima, você simboliza, você recalca o lado insano, o lado incivilizatório da coisa, e transforma esse mal-estar em evolução; você evolui para um sentido de ultrapassamento do insuportável dessa ferida. A psicanálise faz isso. Só que isso não diminui em nada e não engana um espírito fino, não tem como enganar. Porque esse simbólico é ainda pior que o imaginário; no caso, a estrutura de Lacan é ainda pior do que o imaginário de Freud. Porque a estrutura é mais sutil, ela diz: “ultrapassamos a imaginação, estamos no entendimento” – como se entender fosse entrar na estrutura. Ela cai no simbólico. É uma morte mais terrível; É a morte hegeliana, é a questão senhor-escravo hegeliana. Digamos que o escravo está na imagem, o senhor entra no simbólico. Ele conquista porque ele ultrapassa o medo da morte: ele entra na morte, ele entra no simbólico. A psicanálise – lacaniana, principalmente – dá essa ilusão. Então a questão de se entender a estrutura é entender o que é esse outrem, esse outrem é uma estrutura? Você pode até ver como estrutura.
Participante: Você disse: “o acontecimento é o tempo se pensando”. Eu fiquei tentando elaborar isso, quando você disse que o corpo e o tempo são coisas que parece que se confundem. Lá para trás você falou que só o presente existe no tempo; o tempo que dura uma paixão; não há corpo que não habite o presente.
São dois tempos que não são opostos ou excludentes, mas eles se complementam; e não são sucessivos também, eu não tenho de um lado o passado, de outro lado o presente, de outro lado o futuro – não são três dimensões, são duas visões e não três dimensões. Duas leituras do tempo. Uma que é o tempo dos corpos, que são só presentes: o tempo presente é o tempo de duração de uma ação ou de uma paixão, é o que dura – isso é que é o presente para o estoico. E o passado e o futuro – que é um outro tempo, que é uma outra leitura do tempo – que é o que não existe, é o que insiste e subsiste, é passado e futuro ao mesmo tempo em que envolve o corpo. E essa leitura se dá simultaneamente, há uma coexistência ou há uma co-realidade do tempo presente com o tempo passado-futuro. Vamos chamar esse tempo presente de Chronos, como os estoicos chamam; e o tempo do incorporal de aion. Aion e Chronos coexistem na sua expressão. Aion é expressão do acontecimento e Chronos é expressão do corpo.
Participante: Mas eles se comunicam?
Eles se comunicam onde? No toque do físico com o metafísico. Bergson faz uma imagem, num livro chamado Matéria e memória, de um cone; esse cone é a imagem da matéria no tempo. Então o cone tem uma base que é o passado; e o acme, a ponta do cone, o vértice do cone, é onde o passado toca o presente. Ao tocar o presente, é o passado em devir, ele se abre para o devir; é como que o espírito tocando a matéria. E subdividindo a matéria. O que o estoico diz é isso: há um encontro entre Chronos e aion – eles se tocam – e ao se tocarem você tem uma subdivisão infinita que ora remete ao incorporal, ora remete ao corpo. Aí está a questão: de que modo um remete ao outro? O incorporal se atribui ao corpo, necessariamente; o incorporal não é um corpo, mas ele se atribui a um corpo, o acontecimento se atribui ao corpo. E ao mesmo tempo se expressa na linguagem ou no pensamento, é o próprio expresso; o pensamento é o expresso na linguagem; o pensamento, ou o sentido, ou o aion é o expresso na linguagem. Então você tem o acontecimento com uma dupla face: uma voltada para os corpos, outra voltada para o pensamento. Essa dupla face é simultânea, ela coexiste; não há acontecimento que não se atribua aos corpos e que não se expresse no pensamento. Não há acontecimento que não tenha essa dupla face. Então é aí que eles se tocam.
Participante: Seria saudade, a questão?
A saudade você pode ler assim, mas é mais uma saudade de futuro, é como se fosse isso. Por que é uma saudade de futuro? Porque você quer o acontecimento e o acontecimento ainda está no futuro; você tem saudade, você quer que ele se efetue e, na efetuação, há já contra-efetuação. Uma face voltada para o corpo, outra para o pensamento. Efetuação e contra-efetuação. É por isso que na aula passada, se a ideia de dualidade entre efetuação e contra-efetuação se passou, essa dualidade só se dá do ponto de vista do homem imperfeito – e aqui nós vamos ter que ver o que é imperfeito para o estoico: do ponto de vista do espírito que não é livre, do ponto de vista de um corpo submetido às paixões. Aí você vive isso como dualidade. Do ponto de vista do homem livre, isso é uma coisa só, isso é uma univocidade; o acontecimento se atribuindo ao corpo e se expressando no pensamento ou na linguagem. E é a essa coisa que vocês querem chegar.
Participante: E tem uma máxima.
Vamos de novo, vamos avançar mais um pouco.
Participante: O pensamento é o campo das sensações, é isso?
Não. Ele até pode se misturar às sensações. A sensação é campo do sensível. Agora, não há sensível sem sentido, por isso você pode dizer que o pensamento se mistura com a sensação.
Participante: Eu estou pensando assim: um corpo encontra com outro corpo e existe nesse encontro, além dos corpos físicos, daquilo que eu posso ver, outras coisas que rolam aí nesse encontro que eu não vejo, e que eu penso que é o metafísico.
Isso. São as transformações incorporais, porque acontecem coisas. Que coisas são essas que não existem e que não são corpos? Coisas que acontecem são modificações, são transformações do incorporal. Essa noção é fundamental: há um campo de realidade onde as coisas se transformam e que não é no corpo; e, no entanto, vão se remeter ao corpo.
Participante: É invisível.
É invisível, é imperceptível.
Participante: Mas eu tenho a sensação, eu sinto que passou algo, mas eu não sei o que é.
É algo íntimo ao corpo.
Participante: Mas não é sensação, é?
É uma sensação no seguinte sentido: que essa transformação incorporal vai alterar a maneira de você agir e reagir.
Participante: Você está falando de rebater no corpo.
Isso. Então você vai ter uma sensação disso, você vai ter um corpo de sensação. Mas a modificação acontece no elemento da intensidade; esse elemento da intensidade se dá ao mesmo tempo no corpo e no pensamento. O que é a intensidade no pensamento? É a subdivisão do instante; isso é que é a intensidade no pensamento: você pega um instante e vai subdividindo infinitamente – ele vira uma eternidade. Isso que é a intensidade no incorporal. A intensidade no corpo é aquela duração que se modifica, que se encontra; essa duração que se modifica e que se encontra sofre uma pluralidade de afecções e essa pluralidade de afecções não é apreensível na imagem. Por que? Porque a imagem não percebe o tempo imanente ao corpo, que é essa duração intrínseca.
Participante: É outro tempo.
Ela percebe já a exterioridade da modificação – é por isso que ela só vê a imagem. Os epicuristas vão dizer: é um tempo menor do que o tempo mínimo sensível. E, no caso do incorporal, é um tempo menor do que o mínimo de tempo pensável. Mas isso já é Epicuro e Lucrécio, já é objeto das nossas outras aulas. Isso ajuda a entender um pouco o que é intensidade. A intensidade não é na extensão, eu não conto, ela não é numérica, não tem 1, 2, 3, 4; a intensidade é algo que pode ser 1.000 ou pode ser 1 ou pode ser 2. Isso é secundário. Não é mensurável na extensão. A intensidade é o que os medievais chamam de complicatio, é uma realidade complicada e contraída que se ex-pressa ou se explica. É uma complicatio que se explica. E ao se explicar, ela se explica de uma pluralidade de formas. Então nela mesma tem uma pluralidade de realidades que vão ser explicar ou se desdobrar ou se atualizar. Então a intensidade condensa, é uma concentração. Isso que é uma intensidade. No tempo da duração do corpo. No tempo da duração do acontecimento já é a subdivisão do instante. Aí eu não tenho mais como medir o acontecimento – 1 segundo, 2 segundos, 3 segundos, 1 hora, 2 horas -; eu não tenho mais esse tempo mensurado. Então eu entro nessas intensidades.
É isso que é estar simultaneamente no corpo e no pensamento – quando você habita a intensidade, você habita ao mesmo tempo o corpo e o pensamento. Não há dualidade mais. A dualidade é só quando você está no estado de corpo, no estado de pensamento. Estado de corpo e estado de pensamento não é intensidade.
Participante: E aí a representação, naquele sentido da imagem.
Isso. Já é uma representação naquele sentido exterior da imagem.
Participante: Difícil.
Mas vamos burilando. É assim mesmo.
Participante: Está difícil de dar aula também, não é?
Porque o tema gera muita inquietação.
Participante: O impressionante é como se encontra palavras para poder dizer isso. Como é que isso se diz?
Vamos dar um exemplo, já que você disse linguagem e palavra.
Participante: Não… deixa porque é raro.
Geralmente estamos na pura abstração. Isso é abstração que não é abstração do universal, que é uma abstração universal. É muito concreta essa abstração aristotélica, é muito uma imagem genérica.
O que é esse elemento incorporal? Na linguagem, por exemplo. Alguém diga alguma coisa numa outra língua. Stuhl. Nem todos entendem alemão, não é? Então eu emiti um som – stuhl; um som: vibrou o ar, chegou até o ouvido, é um som. Então é uma qualidade sonora ativa que impressionou no ouvido que sofreu a paixão. Ação e paixão. Então eu tenho um som e tenho a coisa que sofreu essa ação. E, ao mesmo tempo, esse som remete a algo, remete a um objeto – que quem não entende não sabe o que é, mas que um alemão aqui saberia que eu estou dizendo, em alemão, cadeira. Então eu só remeto esse som, esse significante sonoro e material, ao significado, ao sentido, ao elemento que me faz compreender e designar, levar o signo a designar o objeto, nesse Algo. Eu só entendo porque há um Algo. Mas esse Algo não é o corpo, porque se fosse corpo os que não sabem alemão entenderiam. Então esse Algo que me faz entender alguma coisa é o expresso na expressão, é o expresso na linguagem, é o sentido na linguagem. Esse sentido é um incorporal. Crisipo diz: se dizes uma carroça, uma carroça passa pela tua boca. Como evitar o paradoxo? Como evitar que uma carroça física passe pela sua boca? Porque uma carroça incorporal passa pela tua boca. Então esse objeto, os estoicos destacam; esse objeto incorporal que não existe – porque você não pega, você não vê, você não sente, ele é imperceptível – é o objeto da lógica, é o objeto da linguagem, é o objeto do pensamento. O pensamento viaja aí nesse meio, nessa superfície metafísica. É superfície porque está na superfície dos corpos: ao dizer carroça, eu estou na superfície de carroça; eu não estou numa altura, num sentido fora do mundo. É a própria carroça que tem uma maneira de se expressar no mundo; ela está se expressando assim. Então esse outro plano de realidade é o que os estoicos chamam de incorporal, de metafísico.
Participante: E dependendo de como você vai dizer carroça, será carroça das formas mais variadas possíveis – para baixo, para cima.
Mas é necessário ter esse Algo para que você possa dizer carroça; senão não há voz, senão só há som, só há ruído. O que é a voz? A voz já é o som que tem sentido. Então o sentido é o elemento genético. Não adianta você ter um som significante, não adianta você ter um objeto designado, se você não tem o sentido que atribui aquilo, enquanto acontecimento, ao corpo, e se expressa na linguagem enquanto sentido.
Participante: Você está trazendo agora a metafísica estoica.
A metafísica e a lógica estoica. Porque a metafísica e a lógica são a mesma coisa. O pensamento é metafísico e é lógico. Nesses dias, numa aula, disseram assim: mas há uma ordem no estoicismo? Como você pode ter uma ordem num sistema que se pretende livre, desterritorializante, em devir e tal? Não é caos? Não é acaso? É uma ordem lógica do próprio acontecimento – o acontecimento tem uma ordem. E essa ordem é uma ordem imanente à natureza, não é uma ordem que pressupõe um referencial fora dela, não é uma ordem que pressupõe um plano transcendente metafísico – mas um plano imanente metafísico. É por isso que esse plano é de superfície.
Participante: Posso falar em auto-referencialidade?
Auto-referencialidade. Ele se autopõe, ele é autopoiético, ele se automodifica e se autocoloca. Ele é auto-referencial.
Participante: A imagem da ecologia ajuda a pensar o que é essa ordem imanente?
Sim, eu acho que sim, porque a ecologia gera o ambiente, gera o sistema, gera o eco-sistema, a partir de encontros de forças. Não tem uma forma prévia dizendo: esse ambiente é o ambiente final ou ideal que a natureza deve chegar para que os animais, as plantas e os elementos inorgânicos vivam em harmonia.
Então, voltando agora à ideia de física – e aí sim nós vamos chegar finalmente à questão da moral ou da ética (moral porque se usa esse termo “moral estoica”, mas se trata de uma ética, na realidade). O que é a ordem, então, no caso do corpo? Os estoicos vão muito mais longe do que Platão e Aristóteles. Os intérpretes de Platão e Aristóteles supervalorizam o fato de ser uma filosofia da razão, de ser uma filosofia do Bem – mas, fundamentalmente, que atinge o Bem através da razão. Há uma razão, o homem é racional e ele deve se ligar à razão; que tudo que não é racional é mau ou deve se submeter à razão. É isso que falam Platão e Aristóteles, é isso que fala Sócrates também. Só que Sócrates, Platão e Aristóteles, curiosamente, dizem que há uma parte do universo, uma parte da natureza, que é irracional.
O que os estoicos dizem? Tudo é racional. O corpo é pura razão. Tudo é racional. Estranhíssimo, não é? Como eles dizem isso? Em última instância, não há nem acaso. O que seria isso? Que eles querem dizer com isso? Eles dizem o seguinte: a alma, o pneuma, é pura razão. Então alma, pneuma, qualidade, força, é razão. A razão então não é uma forma, não é você ligar uma forma com outra forma e raciocinar e produzir silogismos e dizer que isso é razão. A razão é a própria força no corpo. Se há uma razão, é porque há uma ordem – ordem e razão são a mesma coisa. Então toda a natureza é racional. E ordem de que natureza, que a natureza tem? De que natureza é essa ordem? É uma ordem primária, é uma ordem imanente, é uma ordem que não se liga à forma porque ela está na força, ela está no corpo, ela está na phýsis. Então eles dizem: o corpo necessariamente é racional; nada na natureza está fora de ordem, tudo tem ordem. Ou seja, em última instância, tudo é perfeito. O corpo está necessariamente em devir, envolvido por acontecimento no tempo e por lugar no espaço, no vazio. O corpo está em devir, o corpo está em mudança, o corpo está em metamorfose. Então você tem mudança, metamorfose, movimento.
O que Platão, Sócrates e Aristóteles diziam do movimento, da mudança, do devir? Eles diziam: a causa do movimento, da mudança e do devir é uma incompletude, é uma insatisfação, é uma deficiência, é uma falta, é uma falha. E Aristóteles, que evolui já nesse sentido, vai dizer que o movimento é uma matéria – que é pura potência – se atualizando. Mas de onde vem o ato dessa atualização? O ato dessa atualização vem de uma causa formal; em última instância, de uma causa final. Então a matéria, o movimento, a metamorfose, a mudança, tendem a se atualizar e se acabar – atingir uma perfeição, um acabamento – numa forma final. Então elas têm uma finalidade.
Participante: Todo o movimento é depuração.
É, vai em direção a um acabamento, a uma perfeição. Logo, o movimento em si mesmo é imperfeito. O movimento em si mesmo não tem o ato, o movimento em si mesmo não é pleno, ele tem uma falta existencial, ele tem uma falta de realidade; em última instância ele tem uma falta de ordem, uma falta de razão. O estoico diz o quê? Tudo é racional, tudo tem ordem. E tudo é força. O que seria a ordem ou a razão na força ou no corpo? A ordem ou a razão na força ou no corpo, a ordem ou a razão no movimento, na metamorfose, na mudança, é a própria efetuação. Então você pega um movimento e suspende; naquele instante aquele movimento é perfeito. É isso que está sendo dito.
Participante: Ele é final em si.
Isso. A finalidade é a imanência. Aí se capta o segredo da moral estoica, da ética estoica.
Participante: Não precisa estar lá na frente.
Você não tem o referencial enquanto uma forma fora de você, não está na frente. É por isso que a virtude não está separada do Bem – o Bem não está lá fora e a virtude aqui querendo atingir o Bem.
Participante: Não é idealista.
Não é idealista. Isso. Perfeito.
O que eles estão dizendo é o seguinte, então: que a natureza tem uma ordem imanente, não tem falta, não tem imperfeição, não tem inacabamento – tudo é uma potência em ato, uma força em ato. E o ato está na própria força. É isso que está sendo dito. Então, se o ato está na força, é uma força que tem a potência de se atualizar, de se efetuar. E qual é a ordem dela, então? É o próprio movimento de efetuação. Essa é a ordem, essa é a razão.
Participante: Autopoiésis é isso.
É isso.
Participante: É uma efetuação constante, ela por si acontece.
Isso é o que os estoicos chamam de razão ou de ordem imanente à natureza.
Participante: E o estado submisso ou o estado resignado é ao próprio movimento.
Isso. O que é viver conforme a natureza, que é uma máxima moral estoica? O que é viver de acordo com a natureza? Dizem os estoicos: nós temos tendências em nós mesmos – as qualidades ativas, as nossas virtudes, são tendências. Mas no fundo tudo, como diz Crisipo, é uma única virtude – Crisipo diz isso. E o que é a virtude única, no fundo? Que ao mesmo tempo é plural, porque em cada efetuação ela se dá de uma forma? Por exemplo, a coragem, o que é? É você ter a força de sofrer ou não sofrer certas coisas – isso que eles chamam de coragem, é uma virtude. Ou o que eles chamam de prudência: é a força que você tem de selecionar, de se ligar ou não se ligar a certas relações, a certos acontecimentos – é outra virtude. Mas no fundo é uma virtude só, é a mesma virtude; é a virtude de dizer assim: “eu afirmo a própria efetuação”. Mas eu não afirmo a efetuação colada numa forma de expressão, a forma de expressão é indiferente. Se for boa ou for má não importa; o importante é afirmar a efetuação disso. E é por isso que o estoico quer o acontecimento, mesmo que seja a própria morte. E é por isso que o sábio estoico sabe, inclusive, exercer o suicídio quando ele se encontra num estado tal que ele está absolutamente contra a natureza. É isso que é ser um sábio estoico. É isso que fez Gilles Deleuze, ele foi completamente estoico, completamente coerente com a obra dele. Espinosa fala isso o tempo inteiro: quando a natureza está de um modo tal disposta que você não tem mais como se colocar em favor dela, como você está num estado de contra-natureza, você tem que acelerar essa passagem, você tem que desejar o acontecimento. E é isso que é ser sábio, é isso que é ser feliz em qualquer acontecimento que sobrevenha. E não ser resignado – é totalmente o contrário da resignação.
Participante: Isso que você fala bastante – com a força em movimento, acelere.
Acelere o processo. Não tem como reter a força. Não ressinta a força.
Participante: Se eu estou inquieto, pirante, 3 horas da tarde, e eu tenho que andar. Eu tenho que andar!
É isso aí. É necessário mudar o sentido de crença, acreditar de novo no devir, acreditar de novo no mundo. É necessário tirar uma certa inquietação, certos fantasmas que existem, que vamos ver muito bem com a filosofia de Epicuro e Lucrécio; destituir a inquietação da alma, tirar os temores, os medos. E afirmar exatamente o devir ou a efetuação da força porque, necessariamente, ela te devolve uma positividade. É um positivismo? É um positivismo. Mas completamente fora dos padrões de um progresso, de uma evolução, de uma racionalidade ocidental. Não tem nada a ver com isso. É positivo porque a natureza é positiva. É porque não há a ficção da morte, isso é pura ficção. Porque a morte não está na destituição de uma casca onde a vida se alojaria necessariamente; a vida se serve de cascas mas ela abandona as cascas. A vida não está na casca; a casca é uma expressão da vida. A casca, no fundo, é um incorporal. No fundo é isso, no fundo é uma expressão que emerge e submerge, que aparece e desaparece. Então ao se ligar ao devir, você incorpora e desincorpora ao mesmo tempo. O sábio acaba afirmando o destino ou a necessidade da força, a razão da força – que é uma razão necessária – na própria efetuação da força.
O que uma força quer? Qual é a finalidade da força? Efetuar-se. Essa é a finalidade dela. Então a finalidade de efetuação não é a finalidade de uma causa final, não está numa forma fora dela; o ato não está fora, o ato já está no efetuar-se, o ato é afirmação do próprio devir, o ato é pura afirmação. Afirmação do movimento, do passar. A única substância, como diria Bergson, é a mudança – a mudança é que é a substância de tudo. O estofo do universo é a própria mudança. Então afirmar a mudança enquanto mudança é que te devolve a própria realidade.
No momento em que você afirma a mudança enquanto mudança, você afirma o destino das forças – isso é o destino de tudo, o destino das forças é efetuar-se. Como diz Nietzsche: o destino de um lobo é comer o carneiro e ele não pode se separar dessa força, suspender e dizer “eu posso ou não comer o carneiro” a partir de um livre-arbítrio, de uma consciência (isso é uma brincadeira, um silogismo, é uma anedota que Nietzsche faz na Genealogia da moral). Ou seja, como se a força estivesse ancorada num solo subjetivo, numa consciência que diz “eu posso ou não me efetuar”. O destino da força é efetuar-se. E a paixão – é por isso que os estoicos são contra as paixões, nesse caso – é que diz “não, você pode não efetuar”; a paixão acredita nisso, ela pode acreditar nisso. É por isso que a paixão, para o estoico, é louca; neste sentido, é uma loucura você não efetuar a força.
E aqui você encontra a necessidade, ou o destino, com a liberdade. O que é a liberdade? A liberdade é a própria força, ou a capacidade, ou a afirmação da efetuação. A liberdade é isso. Então não há dualidade entre necessidade e liberdade.
Participante: Então o que o Platão fez? Quando você fala “afirmando a efetuação, afirmando a força”, o que Platão fez foi colocar, de alguma forma, o signo, a imagem-ícone, no lugar da força.
No lugar da força, claro. Submeteu a força com o ícone.
Participante: Então, eu estou tentando olhar um pouco a questão da representação para ficar mais claro. Então quando ele submeteu, onde, de alguma forma, nós colamos? Quer dizer, quando o lobo come o carneiro, tem um destino; quando Platão cola a representação no lugar da força, também acontece um destino. Uma força se efetuando e ele efetuou essa força – não quer dizer que seja uma estrutura, mas é uma força. Então a minha pergunta é: em vez de ser uma oposição ou uma dualidade, “agora vamos efetuar a força versus não efetuar a forma platônica”, para não trabalharmos nessa dualidade.
Respondendo ao modo estoico: ele vai para a representação sensível. Aí é que é entra a representação sensível no estoico. O estoico diz assim: a imagem tem uma compreensão.
Participante: Não está muito clara essa representação.
A manifestação de um corpo é uma imagem. Vamos supor: eu imito um som A. A é uma imagem sonora. Esse A tem um sentido: é uma vogal, uma interjeição, uma palavra de ordem, seja lá o que for, não importa – ele tem um sentido. No momento em que Platão ouve esse A vindo de um campo material e de forças, ele vai dizer: esse A está imitando um outro A de ouvir dizer, então ele é um simulacro, digamos assim. Ou ele está expressando ou representando uma semelhança de um A modelar. Isso é Platão vendo a coisa. Então Platão diz: a imagem-ícone é aquela que representa o A modelar; a imagem-simulacro é aquela que, em vez de se relacionar espiritualmente, internamente – através de uma semelhança com o modelo -, ela vai imitar um A que ela ouviu. Isso que é a imagem-simulacro em Platão.
O que o estoico diz? Essa imagem, esse A, nele mesmo já tem uma razão, uma compreensão; o A já tem uma ordem nele mesmo, não precisa de modelo lá de cima, a ordem já está no A. E essa ordem do A é a força do A, é a qualidade ativa do A. O A, enquanto matéria sonora, é a imagem que se expressa; e a qualidade ativa já é a compreensão dele. É uma imagem compreensiva: uma imagem que é matéria e a compreensão que é a qualidade ativa. São os dois elementos. Então o estoico vê o mundo como imagem e qualidade ativa, sempre – uma imagem compreensiva. Todas as imagens são positivas.
Platão olha para o mundo e vê um devir enlouquecido sem ordem ou subvertendo ordem, se pervertendo ou imitando outras ordens que já são efeitos, ou reflexos, ou sombras de um modelo lá
de cima. E o estoico não – o estoico vê em cada imagem, em cada expressão, uma ordem que se expressa nela. Essa ordem primária que se expressa na imagem é um índice. O que é um índice? Um índice é aquilo que te orienta, é o primeiro orientador, digamos assim; é o que te puxa para o sentido que está dentro daquela imagem. A percepção mesma. O índice te indica o caminho. Então existe, em qualquer imagem no mundo – imagem auditiva, visual, táctil, etc. – existe um índice, existe um indicador de sentido. O estoico diz isso. Então toda a imagem é positiva.
Onde está a inadequação? É quando eu separo a imagem desse índice e eu troco uma imagem como índice de outra coisa. Aí eu estou na inadequação. E se eu der assentimento para isso, eu sou um louco ou eu sou um imbecil, eu sou um tolo; ou eu sou um apaixonado – aí que entra a paixão. Eles vão dizer: é a paixão que faz com que eu confunda uma imagem – com um índice próprio – com um índice de outra imagem. Há uma troca de sentido e eu confundo. Então eu vou dizer que uma coisa é outra coisa, ou vou dar mais valor a uma coisa do que ela tem; ou vou dar mais realidade, vou dar mais extensão na duração de uma paixão ou de uma ação do que ela tem.
Participante: O que causa isso?
O que causa isso é medo – que é uma paixão -, desconfiança, insegurança. É um mau encontro. Nietzsche vai explicar isso muito bem, Espinosa vai explicar isso muito bem e Epicuro e Lucrécio também. Eles vão ter modelos de genealogia de como nasce o escravo, como nasce a servidão, como a paixão não deixa a ação emergir. O estoico diz o seguinte: é uma inadequação do assentimento – você dá assentimento a uma imagem que não tem compreensão.
Participante: Então, mas o que te faz dar assentimento para essa imagem?
É uma perturbação.
Participante: A sucessão de ideias de Freud, não tem nada a ver com isso? Me veio essa imagem.
É uma má associação, é um desencaixe, é um elemento que obscurece, digamos assim. Mas o que é esse elemento que obscurece? É quando você acredita que tem uma finalidade fora de você. É quando você se relaciona com o outro como o outro sendo causa de realidade.
Participante: Posso dizer que a paixão é uma marca que acaba drenando a energia nos caminhos já viciados? O medo ou a culpa…
É o que impede que o sentido do afeto que você sofreu, da paixão que você sofreu, se encontre com o sentido da tua ação. Impede que aquele afeto exterior se torne uma ação em mim, que aquilo se apodere de mim. É um fechamento, é algum tipo de fechamento.
Participante: Estou pensando no estoico: algo provoca isso.
A questão é a seguinte: onde encontramos elemento no estoicismo para isso tudo? Eles já foram muito longe com isso; não há textos de estoicos que sobraram – você tem os inimigos, você tem os comentadores, você tem fragmentos.
Participante: Foi tudo reconstruído, muita coisa nós não sabemos.
É, foi reconstruído. Então o que eu digo? Que o objetivo estoico, o significado dessa máxima moral da impassibilidade, dessa serenidade ou dessa indiferença estoica, é o seguinte: ao afirmar a força, você não afirma a força em direção a uma efetuação, a uma forma – se aquilo vai te destruir ou não, se aquilo significa a sua morte ou a sua expansão. Você não afirma em direção a aquilo. Eles dizem: afirme o que é necessário afirmar, que é a própria efetuação da força; se aquilo vai te levar à destruição, aí não tem como você se deter. Há uma necessidade intrínseca à natureza.
Participante: O resultado não importa.
Isso. O resultado é um efeito, o resultado é uma consequência; o resultado não é causa. Eu tenho uma causa que se efetua aqui, outra causa que se efetua ali, outra causa que se efetua ali; as causas coexistem porque tudo é presente, o corpo é presente, então todas as causas coexistem. Na efetuação das causas há uma conjunção e essa conjunção, do ponto de vista do efeito, do acontecimento, é puro acaso. Mas do ponto de vista da causa é pura necessidade porque ela tem que se efetuar.
Participante: A ideia do resultado – é aí que está a separação.
Não se prender à ideia do resultado. O resultado é indiferente.
Participante: E hoje é o contrário.
Fazemos o contrário, só agimos visando o resultado. Isso é a causa final. E é por isso que eu digo que o aristotelismo é absolutamente utilitário, é absolutamente orgânico: o olho é feito para ver. Enquanto que o ver, no estoico, é um acontecimento, ele é um efeito da efetuação de força. É a luz que atravessa aquele canal, que se efetua e que, ao se efetuar, expressa um acontecimento. Não tem a finalidade no ver. É por isso que ver é um acontecimento aberto, ele tem uma pluralidade de sentidos, dependendo da força que se apropria do acontecimento dele. Isso é puramente nietzscheano, Nietzsche diz: um acontecimento é um sintoma; e o sintoma é sempre a manifestação de uma força. E você pode se apropriar desse sintoma com outras forças, você submete aquela força e dá uma outra interpretação.
Participante: Quer dizer, aí no caso o cego não é uma tragédia.
Absolutamente não. Não tem falta mais porque a falta se constrói no momento em que você põe a finalidade na origem. Você põe uma finalidade como o acabamento da tua ação – aí é que a falta emerge. A falta só é preenchida quando a tua ação acabar; e quando a tua ação acabar o movimento parou, e quando o movimento parou é a própria morte. É por isso que eu digo que representação é a morte da presença, você não tem o movimento mais, você não tem mais o devir. A representação é a morte do devir. Por que? Porque se acreditava que a ordem estava nas coisas idênticas a si mesmas, as coisas que permanecem, as coisas que não mudam; ou que mudam dentro de certos limites, que têm uma origem e uma finalidade, que têm um movimento circular. É por isso que se acredita que a ordem está na representação. Não se pensava que tinha ordem no devir porque o devir é mudança pura, é diferenciação pura; e a diferenciação é puro caos, é pura desordem, é pura desarmonia, é puro conflito, é pura guerra.
Então é uma visão moralista dizer que uma parte da natureza tem uma ordem, outra parte não tem ordem e eu devo me ligar a essa parte que tem ordem. Agora, para me ligar a essa parte que tem ordem, eu devo me referir a um intermediário que é a própria representação – a representação é o meio e o fim através do qual eu vou atingir a virtude reta. A virtude tende ao Bem. No caso estoico o Bem já é a efetuação da própria virtude – virtude aí como força, uma força que se efetua. Isso é o Bem – o Bem não está mais fora, o Bem é imanente à efetuação da própria natureza. Então não há mais finalismo. O destino é a força que se efetua. Completamente diferente de um carma, não tem nada a ver com um carma e com uma resignação.
Então o estoico convida à ação – é totalmente o contrário de uma série inumerável de intérpretes imbecis que vão interpretar o estoicismo como uma suspensão da ação, uma indiferença em relação ao mundo. Isso é uma estupidez. Ele é indiferente no seguinte sentido: não há Mal em si – na morte, na dor, na doença; a morte, a dor, a doença são meros efeitos de efetuação de forças.
Participante: É parte da natureza.
É parte da natureza. E do ponto de vista da própria natureza não tem Mal e nem Bem. Porque o Bem já é a efetuação.
Participante: Ele é indiferente se você pensar o mundo enquanto representação. Ele é indiferente à representação, ele passa através dela.
Isso mesmo, ele é indiferente em relação à representação. E ele é impassível do ponto de vista do acontecimento. O que é o acontecimento? Isso nós vamos desenvolver quando chegarmos em Deleuze, que vai ser lá nas últimas aulas. Mas eu vou adiantar para vocês algumas coisas. O que é a impassibilidade do acontecimento? O que é o impassível? O impassível é o que não age e não padece, não há ação nem paixão, mas é um mero resultado, é um puro ato. O ato, em Aristóteles, é a causa final; o ato no estoico é um mero resultado – então o ato se torna estéril, nesse sentido; esse ato não causa mais o corpo. Há uma ação no corpo que dizemos que é uma força em ato; mas aí é um ato que é afirmação da matéria. No fundo, é o mesmo ato; mas o ato enquanto instante – enquanto acontecimento subdivisível ao infinito – é exatamente o sentido das transformações incorporais. É a transformação no mesmo lugar: você muda sem mudar, sem se mover. Há uma mudança.
Exemplo, ao nível da linguagem: o juiz, ao declarar culpado um acusado, quando ele declara isso no seu enunciado, é instantaneamente que o acusado vira condenado. No momento em que ele vira condenado, sem fazer um movimento físico sequer, toda a vida dele mudou – é uma transformação incorporal. O que muda? Agora, como condenado, ele vai ter outras formas de agir e reagir, outras paixões e ações no corpo. Há uma transformação incorporal. Isso no plano do incorporal. No plano do corpo acontece também: ele só foi acusado e condenado porque houveram misturas no corpo que levaram a isso; então o corpo causou isso. Então ele é um criminoso, ele é culpado, porque teve uma mudança no corpo. As mudanças se dão ao mesmo tempo no corpo e no pensamento, no corpo e no incorporal; no incorporal a mudança é no mesmo lugar, no corpo a mudança é no próprio devir. Então é como se tivesse rituais de passagem – cada transformação incorporal é um acontecimento. É o que Foucault diz do acontecimento: o acontecimento é raro; é raríssimo o acontecimento porque o acontecimento é a mudança de relação de forças.
Participante: Mas por tudo que você estava falando até agora, o acontecimento é uma coisa absolutamente comum aos corpos.
A natureza inteira é atravessada por uma pluralidade infinita de acontecimentos – isso é. Agora, do ponto de vista de sentidos – quando você canaliza sentidos, interpretações e avaliações – é sempre um acontecimento. É sempre um acontecimento com pluralidades de sentidos. Então eu tenho uma transformação incorporal – eu estou dando um exemplo. Ele é raro e, ao mesmo tempo, é a coisa mais mundana que existe. Mas ele é raro porque é só no acontecimento e não no fato – não é fato, é no acontecimento – que está a mudança. O fato já é a efetuação da mudança.
Participante: Mas se estivéssemos o tempo todo com essa face do pensamento e do desejo voltada para o acontecimento, não estaríamos numa eterna mudança? Porque o acontecimento só existe quando existe uma mudança na composição de forças; então, na medida em que eu habito esse acontecimento, na hora já existe uma mudança na composição de forças. Quer dizer, como é que dá para existir?
A própria efetuação sua, a própria quantidade de energia sua, o seu próprio grau de potência é que dá a medida do envoltório ou da dobra. Onde emerge uma linha e onde ela se dobra, onde você envolve uma intensidade. É esse lance de dados, esse jogo, esse estender o arco, esse tensionar o arco que te dá a medida da subdivisão do acontecimento. Você não entra numa subdivisão infinita sem nenhuma consistência, porque a coisa não é numérica; quando você se torna numérico e imagético à subdivisão, aí você atomiza o instante – você vai subdividindo o instante e cada instante é um átomo. Não há átomo, o átomo é sempre o encontro do corpo com o próprio incorporal. Mas o encontro do corpo com o próprio incorporal é um átomo que se abre, é um acontecimento que se abre; ele é sempre aberto. Mas ele é aberto e não leva para a dispersão – esse é o paradoxo; não leva para a dispersão, ele leva para uma consistência, ele envolve uma quantidade de realidade e gera uma nova forma de expressão, gera uma nova maneira de ser. Então a tua questão, se eu entendi bem, é: de que jeito é necessário nos relacionarmos para que eu gere uma estrela dançante no meio do caos, uma nova forma de expressão, e não entrar numa dispersão infinita do ser.
Participante: Estrelas por todo lado o tempo todo.
Que seria uma coisa sem nenhuma consistência, seria uma fragmentação.
Participante: Isso é mais possível com os fatos do que com o acontecimento: “milhões”. A dispersão com fatos por todo lado.
Isso. A mídia faz isso.
Participante: O acontecimento é outra coisa em que você entra – e aí é uma consistência que entra, não é? Não é um milhão de acontecimentos.
É toda a tua virtude que entra, é toda a tua força. Você é uma força só. Os estoicos dizem literalmente isso: é essa força que é a causa da unidade.
Participante: É a consistência.
Exato. A unidade é que é a consistência. O que é a unidade? A unidade é o que Nietzsche fala sobre o jogo: você lança os dados e recolhe o resultado – que é necessariamente vencedor. Nos dois tempos do jogo você tem, necessariamente, uma nova realidade que emerge. Esse tempo do jogar – do ir e voltar, do ir e retornar – é um tempo que não é dividido em instantes sucessivos, ele já é integrado por uma força; a minha força, a minha afirmação. É por isso que ele diz: seja uma única virtude. A afirmação tem que ser plena para que o lance seja vencedor; só na afirmação plena é que eu afirmo aquele conjunto todo de elementos que fazem a composição sob o jugo de uma nova força – aí eu tenho uma realidade nova. Então não há dispersão, há uma unidade de forças que não é mais uma unidade formal. A unidade formal não se dá mais numa extensão, não se dá mais numa sucessão numérica, não se dá mais no conjunto de elementos – não é um conjunto de elementos, não é que eu tenho aqui um espaço onde cabem 10 laranjas dentro, que eu tenho 10 laranjas que vão ser unificadas por um círculo. Isso é uma imagem extensiva que fazemos da integração. Aqui é uma força que se apodera dos elementos e dá um sentido, dá uma forma de expressão para aquela conjunção de forças.
Participante: E onde você acha que Artaud, Van Gogh, se perderam? Eles tinham essa potência de desterritorialização.
É na consistência do incorporal. O incorporal não existe, mas ele é consistente, ele é uma realidade; quando você perde o sentido, quando você perde o virtual, quando você perde a consistência do virtual, você afunda – isso que é um afundamento. Você cai numa esquizofrenia enquanto entidade, você vira um esquizofrênico, você vira uma entidade esquizofrênica. Enquanto você está na superfície, você é um esquizofrênico ou, para usar uma expressão do Tournier, um perverso polimorfo – você não tem finalidade, você se expressa simultaneamente com uma pluralidade de formas, você investe uma pluralidade de formas numa única virtude, numa única efetuação. No momento em que você perde essa superfície de efetuação, você perde o território existencial, a força fica separada da própria condição de efetuação. É como se o ser ontológico tivesse duas faces: uma é princípio, uma é condição. O que é o princípio? É a força. O que é a condição? É a expressão. Força ou potência em ato se expressando. O que é o ato? O ato, no fundo, é a própria expressão.
É por isso que o sentido incorporal se cola à força – no fundo não há dualidade. Enquanto isso estiver sendo efetuado você habita o corpo sem órgãos – do Artaud, do Van Gogh. Você habita o corpo da luz e não o corpo orgânico do olho que vê; você habita o corpo da luz que atravessa e que fabrica o olho e o olhar. Você habita o corpo do som e não o corpo do ouvido – o ouvido como uma efetuação do corpo do som. Então você está nos elementos puros, você está no imediato, você está na expressão imediata da intensidade, você está na intensidade em ato. Agora, quando você perde isso, a intensidade não tem mais como se expressar, você perde o campo existencial.
Participante: Isso é uma questão política.
É uma questão política. A política está na superfície e é onde você esconjura o poder. Se você efetua a política na superfície, você esconjura o poder de altura – porque o poder está na altura. E a política – com ética, digamos assim – está na superfície. É por isso que existe a política da planta, de uma árvore, de uma ameba, do sol; a política é política de tudo, a natureza é política. A natureza tem um campo expressivo. Houve uma hora em que Artaud perdeu a superfície, de acordo com misturas violentas. O que são misturas violentas ou más misturas? As más misturas ou as misturas violentas são as que destroem a capacidade de efetuar, a capacidade de manter a potência em ato. E o que é uma má mistura, uma mistura violenta que destrói a capacidade de se efetuar em ato? É aquela que não mantém mais a distância do centro (que é sempre acentrado) à extremidade; quando não há mais distância entre profundidade e superfície, tudo vira profundidade. Há um texto na Lógica do sentido que chama Do Esquizofrênico e Da Menina e um outro texto que chama Porcelana e Vulcão. Vulcão é pura profundidade e a porcelana uma superfície congelada que se quebra, uma louça quebrada – e a fissura nessa louça não há cola que cole mais. É por isso que existem certos afundamentos de esquizofrênicos, de paranoicos, de alcoólatras, de drogados…
Existe um texto do Fitzgerald que chama A Fenda Aberta, que é exatamente um texto sobre a fissura, essa coisa que vai acontecendo de modo silencioso com seres belos, ricos, famosos e de repente aquilo tudo desmorona e não tem mais como retornar. Quando você vê é tarde.
Participante: Você consegue falar um pouquinho dessa perda da distância ou não é hora, agora?
Nietzsche diz: “eu não vos aconselho o amor ao próximo, o amor ao próximo é um mau amor por vós mesmos; eu vos aconselho o amor ao distante”. Amar o distante. O que é amar o distante? É manter a diferença se diferenciando; a diferença enquanto diferenciante é a diferença enquanto produtora de realidade, é uma potência em ato, é uma intensidade que se expressa, é uma profundidade na superfície, é um espírito na matéria. Você tem uma potência em ato e você tem uma diferença que fica cada vez mais diferente dela mesma; que em vez de aproximar ela aumenta a distância de si mesma. Levar o meu passado ainda mais distante do meu futuro ao máximo. Isso que é distender o arco, ou tensionar o arco, no máximo do que a potência pode. As extremidades do meu passado e do meu futuro, do meu dentro e do meu fora. Mas acontece que as séries se complicam e há uma inversão indefinida de passado e de futuro: ora o meu passado está no futuro, ora o meu futuro está no passado – e não é ora um ora outro, eles coexistem. É isso que é a complexidade de um ser.
É por isso que nós somos uma pluralidade, é por isso que nós não somos uma identidade. Nós somos uma pluralidade de séries e em cada extremidade de uma série tem a emergência de um acontecimento e a submersão desse acontecimento. Nós somos uma pluralidade de acontecimentos, nós somos povoados por uma pluralidade de tribos. Então em cada acontecimento que emerge em mim, há o momento do seu nascimento, o momento de sua morte e o tempo do seu processo; o nascimento do acontecimento é um futuro que virou passado; a morte do acontecimento é um passado que virou futuro. Você inverte as séries o tempo inteiro. Há uma auto complexização das séries. E no momento em que uma série se liga a outra série, você tem um novo acontecimento. É assim que funciona a natureza – inteirinha ela funciona assim, em qualquer ser ela funciona assim, num átomo ela funciona assim; as micropartículas num átomo funcionam assim, tudo é assim. Essa é a ordem imanente da natureza.
Participante: Essa é a grafia dela.
Essa é a grafia dela, essa é a agrimensura dela, essa é a cartografia dela, essa é a topologia dela – ela se expressa topologicamente, a natureza tem uma geografia e uma história. E a história dela não tem origem e nem finalidade, a história dela é puro processo. Cada série tem uma história e as histórias se imbricam – ora uma história que está num passado invade o futuro e vice-versa. Há um texto fantástico para se entender isso melhor. Um exemplo: Jorge Luís Borges tem uma obra chamada Os Jardins Dos Caminhos Que Se Bifurcam, e um texto dentro da obra. O labirinto é o objeto do texto – labirinto no tempo, não é mais labirinto no espaço, é isso. Ele brinca com as séries e os acontecimentos: ora algo acontece, ora a série muda de acontecimento; ora alguém é morto, ora alguém mata, ora alguém vive. E ele vai imbricando e complicando as séries – que, no fundo, é o próprio modo da natureza funcionar. A natureza funciona inteira assim.
E o nosso inconsciente é isso, o nosso inconsciente é infinitamente mais complexo do que a violência que a psicanálise faz conosco de reduzir o nosso inconsciente a essas origens de marcas e de traumas que foram acontecimentos mal solucionados, na medida em que são expressões da violência e da desordem de uma matéria e que gera esses acontecimentos; a minha natureza, o meu desejo, é parricida, é incestuoso porque o meu desejo é desordenado, o meu desejo é inconsistente, o meu desejo é faltoso, é endividado; então uma forma de se matar a diferença, de se achatar a distância, de se separar uma força do que ela pode, é fixar uma força numa forma de expressão. Aquela forma de expressão vira uma máscara fixa e a máscara fixa é a representação.
Então viver papéis é uma má ideia, a não ser que o papel seja puro devir. Ao modo do mimo – aí sim. Mimese. O mímico. O que faz o mímico? O tempo inteiro ele está incorporando o incorporal, ele faz com que o incorporal se incorpore; ao mesmo tempo ele descongela e libera o incorporal novamente. Ele está o tempo inteiro nesse toque do corpo com o incorporal; ou seja, ele não cai na representação. Essa arte é o exemplo máximo do modo livre de viver porque você não investe uma maneira de se efetuar; ao investir uma maneira de se efetuar, você não deixa de manter a distância afirmativa. Quando você está na distância afirmativa, aquela forma de efetuação é a fulguração da expressão da intensidade – ela fulgura, ela desloca o limite, ela faz o limite flutuar. O limite não está congelado.
Quem congela o limite? O poder. E faz nascer a representação. A representação é o congelamento de um limite. O que é o limite? É o lugar, é o acontecimento. Aí eu faço um limite no espaço e faço um limite no tempo. Isso que Foucault descreve nas sociedades disciplinares: eu te encerro numa escola e você tem horário para se sentar, para assistir a uma aula, para ouvir tal e tal coisa, para obedecer, responder a certas questões que eu imponho. E você vai formando a tua alma e o teu corpo, você vai produzindo uma alma e produzindo um corpo na medida em que você fixa lugares e fixa tempos. Então fixar o tempo, fixar o acontecimento ou fixar o lugar é impor uma forma de expressão e uma forma de conteúdo.
É por isso que você só pode dizer, viver e pensar certas coisas numa determinada época, na medida em que você não ultrapassa o sentido da época; a época, ou as próprias relações de força congelam uma forma de expressão e uma forma de conteúdo e você vive no limiar dessa época. O sentido da sua vida é o sentido dessa época – no máximo. E você acredita que isso sempre foi assim e sempre será, você acredita que isso é ordem da natureza. No fundo é uma forma de expressão e uma forma de conteúdo fixada – você fixou o acontecimento.
Participante: Então toda forma de estreitamento dessa profundidade e superfície é o que leva a esse congelamento?
É uma violência que suprime a distância…
Participante: Mas não é esse mesmo o caso que você respondeu?
No fundo é o mesmo caso, só que é o seguinte: há uma fragilidade nisso tudo. É ao mesmo tempo frágil você se manter na superfície e não cair na altura da representação. Porque a representação e o poder te oferecem muitas vantagens e aquele que não está na representação corre um perigo enorme. Artaud não está na representação; Artaud corre esse risco o tempo inteiro. Artaud precisa de aliados. O que Don Juan fala o tempo inteiro para o Castañeda? Encontre seus aliados. A vida é frágil, tudo é frágil. Onde está a força, onde está a potência? Na capacidade de manter a afirmação da própria diferença – é aí que está a potência. Mas essa capacidade o tempo inteiro é ameaçada pelas estruturas de poder. É por isso que os fortes têm que se unir, diz Nietzsche. Um forte tem que ser defendido – se deve haver uma piedade, a piedade deve ser em relação ao forte, tem que ter piedade do forte porque o forte é o primeiro a sucumbir. É o forte que sucumbe, não é o fraco; o fraco se agarra à representação. O fraco sobrevive, o forte é aniquilado. Artaud já dizia de Van Gogh: “Van Gogh, o suicidado pela sociedade”. Van Gogh é suicidado pela sociedade; Van Gogh é levado a um ponto tal que a própria natureza dele se torna contra natureza.
Participante: Então existe aí um fio de navalha. Porque quanto encurta essa distância, ou você cola na representação e congela, ou você entra num estado de alienação total e é suicidado.
E os estoicos dizem o quê, então? Os estoicos dizem: a política fundamental é não se alienar ou não se alterar, digamos, não cair no outro. O que é a paixão? A paixão é isso: você perde a capacidade de agir, você só sofre a paixão. É isso que eles falam sobre paixão – não que necessariamente seja isso. Isso é o que eles estão dizendo sobre paixão. Na realidade, é o que estamos falando sobre escravidão: de que modo você escraviza, você aniquila uma distância? De que modo você separa uma potência do que ela pode. É na alienação a uma forma exterior. E como é que se produz a alienação a essa forma exterior? É algum poder, algum mau encontro que congelou, que foi demasiado violento e que te obrigou a entrar naquela forma. Você cai, há uma queda. É por isso que a impassibilidade é fundamental – você tem que ser impassível. A impassibilidade é uma condição de se manter na superfície: não se perturbar, não importa o acontecimento.
Agora, isso é a implacabilidade, isso é ser implacável. Isso é um exercício. Na realidade, tudo é uma preparação para se manter na ação – você tem que se preparar. Tem que estar o tempo inteiro exercendo a política da ação. É uma política do ser. Artaud diz: para que a vida se mantenha em mim, eu tenho que destruir os meus órgãos. Porque da mesma forma que o pensamento cai na representação, o corpo cai no organismo.
O que é o organismo? O organismo é o modo como a sociedade impõe deveres e obediências aos meus órgãos: o meu olhar precisa obedecer certas prescrições sociais, o meu ouvido também, o meu sentir, o meu modo de andar, de viajar, de me relacionar, de trabalhar, de fazer sexo – tudo vai ter regra, é a normatização. Modelo. Então é por isso que Platão e Aristóteles são essenciais: em Platão, o modelo está na origem; em Aristóteles, está no fim. Mas é apenas uma diferença de
ponto de vista. Do ponto de vista da instituição de um plano de transcendência, o modelo está na origem; do ponto de vista dos corpos e das almas que entram ou que investem essas formas, a forma está no fim. Então, seja causa final ou causa inicial, o engodo é o mesmo, a armadilha é a mesma.
O problema é fixar o acontecimento. Isso que Foucault chama de estrato. Estratificação é fixação de acontecimentos e de lugares. O estrato é o campo do saber, da forma de expressão e da forma de conteúdo. Ou o que Deleuze chama de máquina concreta – o agenciamento que atualiza uma máquina abstrata numa máquina concreta. Isso se dá no plano das formas.
Então temos que atingir o quê? O plano das informalidades, das forças, das intensidades, daquilo que é sem forma; aí você atinge ao mesmo tempo o poder e as forças que te levam para o fora – fora do poder.
Participante: Mas aí você está no fio.
Está no fio porque você está no poder, também. Porque o poder é microfísico.
Participante: Você nunca supera o físico, o físico é inerente à situação.
É inerente. É por isso que a consciência não serve para absolutamente nada a não ser para te fazer cair. A consciência é que te pega. Quanto mais consciência você tem de alguma coisa, mais respeito você tem pelos valores instituídos; mais obediência, mais medo você tem.
Participante: Isso que a sociedade de controle faz.
Isso. Só que agora a sociedade de controle, já além da sociedade disciplinar, faz com que existam microtempos, micromovimentos onde o controle se exerce não mais do ponto de vista do indivíduo, mas de fluxos que atravessam o indivíduo. Os fluxos no indivíduo é que são controlados. O indivíduo é mero resultado desse controle de fluxos. É a tarja magnética em cada fluxo que te atravessa – é uma tarja magnética, é um código.
Participante: Posso colocar uma questão para a próxima aula? Eu queria que pudéssemos trabalhar um pouquinho essa questão da superfície e da profundidade. Porque aí está um mapeamento, uma resposta da representação platônica que eu gostaria de ganhar mais intimidade, até na forma como você propôs.
Eu vou então sugerir um texto para vocês: As Três Imagens de Filósofo, da Lógica do sentido, vai falar dos pré-socráticos que se ligam à profundidade; vai das alturas socrática, platônica e aristotélica; e da superfície estoica. A altura – que é a representação, é sempre a altura da representação – inventa uma falsa profundidade. O que é a falsa profundidade? É a imagem-ícone. E esse nosso eu profundo, nosso inconsciente profundo, é uma falsa profundidade. O inconsciente está na superfície, não está na profundidade. Isso é uma ilusão absurda que a psicanálise nos faz acreditar.