Luiz Fuganti
Hoje ainda temos um tempo para os estoicos. Eu já poderia entrar em Epicuro e Lucrécio, que são dois pensadores fortíssimos em questões inovadoras que nos ajudam a montar uma máquina de guerra extremamente eficaz, mas os estoicos – que é outro pensamento extremamente forte e eficaz – nos trazem questões muito sutis que, evidentemente, em duas exposições ficam ainda muitas lacunas. Evidentemente que vão ficar lacunas, mas podemos ainda brincar um pouco mais com os estoicos hoje, fazer uma coisa mais solta e fazer um passeio por vários temas estoicos para, na exposição que vem, falar de Epicuro e Lucrécio. Aí eu acho que seriam duas exposições para Epicuro e Lucrécio – já dá para ter uma ideia muito boa da obra de Epicuro e Lucrécio – e aí eu acho que ainda sobra mais uma para esse semestre e já introduzimos a questão do helenismo e o cristianismo, essa passagem.
E vamos começar a desenhar a noção de carne, a noção de interpretação do desejo, a hermenêutica do desejo – que é uma invenção cristã. A ideia de carne também é uma invenção cristã – os gregos não lidam com essa ideia, os gregos lidam com a ideia de corpo. Então vamos fazer uma introdução na última exposição do semestre, já entrando na linha que o Nietzsche chamaria de má consciência: a formação da psychê ocidental culpada, a psychê culpada, que é uma invenção de São Paulo. Isso do ponto de vista cristão; depois tem uma série de linhas e conjunções que vão fazer com que essa psychê culpada fique extremamente refinada – desembocando, em última instância, em Kant com a ideia de lei, de imperativo categórico, e em Freud com a ideia de Édipo, que são os novos sacerdotes, os sacerdotes modernos.
Então acho que hoje nós podemos ainda fazer alguns passeios pela obra estoica e detectar os pontos mais sutis e problemáticos do pensamento estoico. Podemos começar abrindo as questões que possivelmente vocês têm e em função disso eu vou alinhavando e vamos desenhando de novo.
Participante: Eu fui ler a Lógica do Sentido, o fator incorporal nos estoicos, o problema moral e outros – até o esquizofrênico e a menina. Tentei. Eu lia três vezes o mesmo parágrafo e eu dizia “gente, eu sou burra, não estou entendendo!”. Eu entendia um parágrafo, o comecinho assim, um, dois, três. E ficava contente: “estou pegando o raciocínio dele”. Chegava no quarto eu me quebrava e dizia “não é por aí”. Faz um giro de pensamento que é muito difícil. Acho que eu consegui entender um poucos, mas ainda tem muita coisa. Eu não sei nem como perguntar porque se de um lado me esclareceu algumas coisas, de outro…
É, a Lógica do sentido é uma das obras mais complexas da história do pensamento humano. Eu acho a maior obra do século XX, de longe; Lógica do sentido para mim é o maior livro do século XX. E é um texto que exige uma outra postura em relação à leitura, você não pode ler do modo como você lê, evidentemente, um jornal, como você lê até um livro qualquer, um romance, ou até um livro normal de filosofia. Porque os livros normais estão naquele nível de interpretação, de avaliação, que é o nível da representação; e a representação funciona de uma forma muito fácil, muito encaixada porque ela funciona a partir de coisas prontas – de imagens prontas como objetos, de sujeitos prontos como o sujeito do conhecimento, de significações prontas ou derivadas de significações dominantes. Então você forma esquemas e estruturas que, por mais complexos que possam ser, no momento em que você entra na chave dessas interpretações vira uma coisa mecânica.
E a Lógica do sentido é a lógica do devir – e lógica do devir é pensamento em ato o tempo inteiro, não te dá fôlego, não te dá folga. Não adianta você sentar, acomodar, descansar o olho, descansar a mente; o descanso da mente, ali, é pura viagem. É mais ou menos o que falava o Santo Agostinho em relação ao tempo: quando eu penso no tempo eu não entendo; quando eu não penso, eu entendo. Então é entrarmos como o zen, o zen e a não-mente: cessar o diálogo interior, cessar essa mente psicológica que lida com designações de objetos, manifestações de sujeitos ou significações de ideias, sair desse campo da verborragia, digamos assim, e deixar com que o devir emerja. Então a emergência de um devir é a emergência do acontecimento, é entrar em acontecimento; então a leitura vira um acontecimento.
Entrar em acontecimento é, na leitura, já ser modificável – e não ser apenas modificado ou modificar o outro. É ser modificável em ato. Então essa modificação, no encontro que você faz com o texto, já por si só gera o entendimento. Porque é o entendimento em cima do modificável, do acontecimento mesmo. Então é uma forma de se relacionar com o texto que não estamos habituados – aliás, isso é o que elimina todo hábito, porque você se força o tempo inteiro ao novo. Então você pode ler 500 vezes uma série da Lógica do sentido; se você estiver em devir, você sempre vai ver coisas diferentes. É um livro riquíssimo, é um modo de pensar que habita, exatamente, o que ele tenta destacar o tempo inteiro, que é o tempo aiônico.
O tempo aiônico é um tempo onde não há presente, onde o presente é sem espessura. E é um presente estranho; ele é sem espessura, mas, ao mesmo tempo, ele é real. Ele é como a membrana física ou metafísica que separa o nosso dentro do fora. Essa membrana ou essa linha divisória, essa superfície, ela é simultaneamente dentro e fora. É como o anel de Moebius: andando por uma das faces você encontra outra, encontra o dentro e o fora num mesmo plano. É como o sentido, o sentido que se expressa em nós; e aquilo que falávamos na aula passada da imagem compreensiva, que é um sentido que você recebe de fora. No momento em que você capta, em que aquilo se apodera de você, é como se aquele expresso exterior se expressasse em você mesmo, se apoderasse de você. E é o mesmo tempo. Então aquele fora vira dentro e o dentro vira fora. Simultaneamente: você tem o passado e o futuro ao mesmo tempo nas duas direções.
A Lógica do Sentido anda o tempo inteiro nessa linha, habita o que ele chama de elemento paradoxal. Elemento paradoxal é o seguinte: é um elemento que excede e que falta ao mesmo tempo. Ele excede como acontecimento e não há uma forma que o capte; então ele é um elemento sem lugar, digamos assim. E ao mesmo tempo é um lugar sem elemento, porque o sentido é a identidade da forma e do vazio; então ele é o vazio, ele é uma forma, é real mas não tem o corpo. Então essas duas coisas ao mesmo tempo, é espírito e corpo. Então esse tempo aiônico é simultaneamente dentro e fora.
Quando você está nesse elemento paradoxal, você habita uma presença sem espessura e você recorta o acontecimento naquilo que ele tem de mais puro – o acontecimento enquanto acontecimento. Você encontra algo no que acontece, e não o acontecimento simplesmente efetuado, encarnado. Você pode confundir o acontecimento incorporado, efetuado, encarnado, com o acidente ou o fato; mas o acontecimento do próprio acontecimento é o sentido expresso nele. Então é esse elemento – esse esplendor neutro, como diz Deleuze – que é o acontecimento dos acontecimentos; e esse sentido é o que toca a matéria no ponto mais estreito. É exatamente o sentido de uma contra-efetuação, é o sentido da liberdade em relação a qualquer efetuação – não importa, seja a pior efetuação que o acontecimento sugira em relação à sua vida enquanto parte da natureza, por mais trágico que seja o acontecimento, sempre existe a contra-efetuação, que é a liberdade. E no fundo a liberdade, para o estoico, é resgatada sempre em dois planos – e sempre são dois planos de leitura de tempo distintos, que são simultâneos, são até complementares, mas não são sucessivos: um é a leitura do ponto de vista do corpo, do ponto de vista do presente; e outro é a leitura do ponto de vista do passado futuro.
Do ponto de vista do corpo, você tem uma tendência a encontrar a razão do acontecimento na unidade das causas do corpo. Haveria uma unidade dos corpos, em última instância – explicada pela mistura absoluta dos corpos; e esse encadeamento das misturas em última instância explicaria, na sua unidade, a ordem dos acontecimentos, a ordem das causas, e a razão de porque tal e tal acontecimento ocorreu ou tem o seu sentido pleno do ponto de vista da natureza. Ou seja, não seria um mal, não seria algo para se ressentir. Então a representação racional – que é corpo, para os estoicos. – tem a tendência a abarcar o presente inteiro cósmico que envolve os corpos, a abarcar tudo. Na medida em que ela abarca tudo, ela tem a presença, ou a copresença, ou a coexistência, de todas as forças que se encaixam. E isso explicaria a ordem da natureza – haveria uma ordem plena na natureza. Então é como a visão de um Deus – você tenta ver a natureza simultaneamente como um todo.
Agora, os estoicos não ficam nisso, eles não se fiam nessa visão, eles não confiam nisso – tanto é que isso é até destinado a uma prática de adivinhação, é a adivinhação que exerce essa tendência de encaixe das partes do corpo. Mas haveria uma outra postura – e isso revela uma máxima moral estoica, ou uma postura ética essencial, para usar a nossa linguagem, porque essa palavra “moral” cheira mal – de querer o acontecimento seja ele qual for, desejar o acontecimento. Desejar o acontecimento implicaria numa outra postura num outro plano e a vivência de um outro tempo que não é mais o tempo de Chronos, que não é mais o tempo presente dos corpos; é o tempo aiônico, é o tempo que faz do instante um desfolhamento infinito em passado e futuro. Esse desfolhar do instante, esse subdividir infinitamente o instante faz com que o presente sem espessura queira o acontecimento enquanto acontecimento, o acontecimento puro – ainda que haja, evidentemente, uma incorporação.
Mas a questão da visão aiônica do tempo ou do acontecimento faz com que você atribua ao acontecimento só o que a ele pertence – nem mais, nem menos; nem superestime, nem subestime aquilo que acontece. O acontecimento tem a medida imanente a ele mesmo. E no momento em que você atinge a medida do acontecimento, você elimina qualquer julgamento, você sai do sistema do juízo, acabou o julgamento; você tem a interpretação do próprio acontecimento pelo acontecimento, não é mais um juízo que está interpretando, é o acontecimento que se apodera de você e ele que dá o sentido. Então aí, quando falamos “você”, “eu”, “tu”, etc., é o acontecimento já falando. Então o que importa é essa passagem, é uma mudança no mesmo lugar. No fundo é uma mudança de postura apenas, é uma atitude que você tem. De fora, nada muda; mas o sentido é radical, é outra coisa.
E o que seria essa outra coisa? É exatamente você captar o instante do acontecimento puro sem mistura com outros acontecimentos. E aí o que ocorre? Você acaba captando o entorno, os limites, as fronteiras de um acontecimento; onde nasce um acontecimento, onde submerge esse acontecimento, onde emerge outro; e você encaixa os acontecimentos sem misturas, sem sobreposições, sem confusões. Você faz a diferença no acontecimento puro – a diferença agora é revelada no próprio acontecimento. Então não há uma confusão imaginária; não há uma confusão de sobreposição de ideias, de designações, de significações ou de manifestações de sujeitos. Mas, simplesmente, singularidades nômades – porque elas não se fixam num centro de um objeto nem num centro de um sujeito, elas são livres – que se relacionam de modo a gerar o próprio acontecimento; então as singularidades são os elementos do acontecimento.
As singularidades são aquilo que, na realidade, é captado na subdivisão do instante; quando você subdivide um instante, é como o caleidoscópio: girando o mínimo, você muda o mundo. E a subdivisão do instante é a mesma coisa: quando você subdivide o instante minimamente, uma subdivisão qualquer, você já gerou uma redistribuição de singularidades; e essa redistribuição de singularidades já é outro acontecimento, já é outra coisa. Então você muda o mundo a cada instante. É por isso que você está em devir o tempo inteiro, você não atinge um termo, você não atinge um objeto e nem um sujeito a não ser como efeito. Você está no devir.
Ler a Lógica do sentido é isso, é estar o tempo inteiro aí, nessa subdivisão. É uma espécie de suspensão do acontecimento, você suspende o acontecimento. E ao suspender o acontecimento é como se o acontecimento acontecesse em câmera lenta, digamos assim; e quando acontece em câmera lenta você vê mais nuances. É isso que ocorre, você subdivide mais, ele tem mais entradas, mais saídas. É isso que ocorre, geralmente.
Então a contra-efetuação do acontecimento nada mais é do que isso: é você captar aquele puro instante sem espessura, sem encarnação do momento presente; é uma subdivisão. É tudo uma questão de velocidade, isso que é fundamental. Pensar é como corpo: é velocidade e lentidão, nada mais do que isso. O corpo, a lógica do corpo, é uma lógica de afetos – afetos mais lentos, mais rápidos, encaixes afetivos que se dão sempre numa relação de velocidade e lentidão, ou seja, numa relação de movimento. E o pensamento é a mesma, o pensamento é movimento – movimento no incorporal. É o movimento no metafísico. Mas não é igual ao movimento de Hegel, aquele falso movimento dialético. Hegel, aparentemente, introduz o movimento novamente na metafísica ocidental – puro fingimento, pura falsidade, porque ele representa o movimento; ele faz a ligação de um instante a outro achando que isso é movimento. Movimento não é ligar um instante ao outro, uma imagem à outra; movimento é você entrar na própria imagem e ver o que gera essa imagem, entrar em devir nela mesma, ser imanente a ela, entrar em devir, entrar em envolvimento com o passado e o futuro – não só envolvimento como desenvolvimento. Você envolve e desenvolve ao mesmo tempo, você implica e explica ao mesmo tempo.
Participante: Despliegue? Em espanhol?
Despregar, desdobrar. Você dobra e desdobra, você prega e desprega, você complica e explica, você imprime e expressa, você contrai e expande. O movimento da natureza é necessariamente esse. Inclusive contemplar, desse ponto de vista, é uma contração. É por isso que podemos dizer que a pedra contempla o silício ou que a vaca contempla o capim. É uma contração de elementos. O que está fora vem para dentro. Dentro é um pólo que atrai e contrai.
Participante: Os termos “engendrar”, “invaginar”.
Exatamente: engendra, invagina, dobra, involui. Aliás, involução é muito mais interessante do que evolução porque involução é o movimento do humor, na realidade. É o contrário da evolução ou do progresso moral que é o movimento da ironia. Voltando a uma imagem do pensamento que os cínicos, os megáricos e os estoicos trouxeram para o ocidente – uma nova imagem do pensamento e uma nova imagem do filósofo. É o movimento de descida e de subida, digamos assim. Os cínicos, os megáricos e os estoicos fazem Platão descer o mesmo caminho que ele nos fez subir; Sócrates, Platão e Aristóteles são forçados a cair em superfície ou até em profundidade.
O que é a altura platônica, o que é esse movimento que Sócrates, Platão e Aristóteles nos fazem trilhar? Esse movimento é o movimento do ideal, é o movimento em altura, é um movimento em ascensão. A imagem platônica do filósofo, imagem tanto popular como científica, tem esses dois aspectos: a do filósofo nas nuvens, aquele ser que sai das cavernas em ascensão, se dirigindo às alturas; e a imagem científica, a de que esse filósofo, que está nas alturas, que está no céu, se distrai menos da terra do que entende a lei da terra, as causas da terra. Num céu inteligível. Ele teria acesso a esse céu inteligível. Esse céu inteligível seria a significação. Tudo que é significante, significação, está na altura. E a significação é um universal. Um universal não existe como objeto no mundo, ele não existe como indivíduo ou como realidade em particular.
Explicando então o movimento da ironia: Sócrates e Platão riem dos sofistas quando eles questionam um sofista ou alguém sobre o que é tal coisa, sobre o que é isso, o que é aquilo. O que é a justiça. E aí um sofista, por exemplo, diz: é uma panela cheia de feijão. Ele designa um objeto no mundo. Não importa que objeto ele designa, mas ele responde assim. Então a resposta à questão platônica e socrática é um objeto designado no mundo, é uma dimensão da linguagem da designação: é um signo que remete a um objeto no mundo – isso que é a designação. Então o designado é a resposta para a significação suspensa platônica – o que seria tal objeto.
Aí Sócrates e Platão riem porque eles não se perguntam o que é tal coisa – o que é justo, por exemplo. Eles se perguntam o que é “A Justiça” ou o que é “O Justo”. Não “o que é esta cadeira”, mas o que é “A Cadeira”. É um universal, é um objeto geral. Então esse movimento dialético socrático é um movimento de aporia porque ele encurrala o sofista na medida em que o sofista é incapaz de atingir a essência das coisas, atingir a significação suprema das coisas. A ironia é essa, a ironia é que só tem acesso à verdade quem entende o movimento de ascensão. E aquele que fica na designação está condenado à terra, ao desejo, aos fluxos, às paixões, à morte enfim.
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Os cínicos – Antístenes, Diógenes – se divertem e riem muito, ao contrário de Platão ou de Sócrates, com esses movimentos em altura; e eles inventam uma outra prática. São seres desprendidos que usam apenas um manto para se cobrir – para dormir ou para se vestir -, usam um bastão, pé descalço. Ou seja, são seres despojados que, ao ensinarem, usam o bastão, usam o cajado como instrumento ou como método de ensino. De que modo? Eles sempre apontam o dedo, apontam o cajado ou até usam o cajado para dar uma cacetada mesmo – ou no discípulo ou no objeto que eles estão explicando. E isso, esse movimento, é um movimento de designação, é o movimento de apontar o objeto no mundo.
O que ocorre então? Quando Platão diz “o que é O Belo?”, o sofista vai dizer “é a panela cheia de feijão” ou “a mulher do vizinho”, qualquer coisa assim. Ele vai designar um objeto no mundo. Esse objeto pode ser quebrado, pode ser consumido. E ele pode ser – isso é a invenção mais interessante – mimetizado, ele pode ser imitável. O movimento do mimo, o movimento do ator que encarna o objeto e expressa um sentido que destitui todo aquele riso amargo socrático e platônico que diria que no designado não tem verdade nenhuma. Quando você imita, quando você incorpora o objeto, você está expressando um sentido. Então essa sacada é interessantíssima. E é um tipo de filósofo que não é mais o pré-socrático que vai para a profundidade dos corpos: isso já é um sentido de superfície, já é um sentido que está ali no encontro com os corpos. Já é uma outra visão, já é uma outra postura, já é um outro recorte do ser. Então esse movimento é um movimento de involução, digamos assim.
Quando Platão define o homem como um bípede sem plumas, Diógenes, o cínico, depena um galo e atira adentro, no interior da Academia: “eis seu bípede sem plumas”, “eis seu homem”. Ou seja, é o movimento do humor. A uma significação etérea, fictícia, essencial que estaria no mundo das alturas, ele entrega um objeto com muita velocidade – rapidamente – e tanto melhor quanto menos tiver a ver com aquilo que Platão perguntou. Quer dizer, é para expor o ridículo mesmo de um movimento ascensional. Quando perguntam a Diógenes, o cínico, o que é a filosofia, ele pendura um peixe, um arenque, num fio e sai passeando com o peixe pendurado. Porque peixe é o mais oral dos animais. E ele impõe dois problemas fundamentais: o da mudez ou da fala, e da comestibilidade. Falar ou comer? Eis um problema de superfície, eis um problema filosófico – o que é a filosofia?
Então é uma demonstração – uma “mostração”, digamos assim – do próprio movimento do corpo. Eles põem isso. Uma vez Zenão de Eléia – se não me engano foi para Diógenes, também que ele fez essa –, afirmando que o movimento era impossível; Diógenes simplesmente respondeu levantando-se, empinando o nariz, dando uma volta e sentando no mesmo lugar, sem emitir uma palavra, sem emitir um som. Então é uma postura de um outro tipo de filósofo, de um novo tipo de aprendizado, de ensino, de modo de viver e de pensar que implica já uma visão de mundo completamente diferente.
Participante: Lembra o zen, não é?
Lembra muito bem o zen. Agora, aqui é preciso ver em que ponto lembra o zen. Vamos avançar um pouquinho mais nessa questão para vermos bem que imagem é essa de modo de vida e de pensamentos novos que estão surgindo, para daí introduzirmos alguma coisa sobre o zen.
Os pensadores pré-socráticos tinham uma direção, uma orientação de modo de vida e de pensamento voltada para a phýsis, voltada para o corpo, voltada para a natureza. Então, no fundo da natureza haveria uma unidade de todos os corpos. Então o objeto do pensamento e do corpo é a própria phýsis, é o mesmo objeto. A virtude pré-socrática é que corpo e pensamento têm o mesmo objeto, eles mantêm alma e corpo completamente unidos; eles não concebem uma alma superior ao corpo, que estaria ligada à verdade, e o corpo sendo desqualificado como fazem Sócrates, Platão, Aristóteles, inspirados pelo mau encontro do xamanismo com as seitas religiosas. Os pré-socráticos têm essa visão.
Quando falamos visão ou orientação, é uma coisa interessante porque mais do que em sistemas, o pensamento funciona em dimensões. Ao entrar em sistema, é porque ele já incorpora um tipo de dimensão. Então o pensador que pensa o pensamento, pensa a dimensão, ele não pensa o sistema, ele não pensa as ideias prontas já; ele não pensa os objetos e os sujeitos, ele pensa aquilo que constitui objeto e sujeito, ele pensa na imanência ou na emergência de um tipo de orientação. É por isso que Nietzsche vai se perguntar pelo valor do valor ou pelo sentido do sentido. É um sentido ativo ou é um sentido reativo? É um valor afirmativo ou é um valor negativo? O que vale esse valor? O que vale a sua verdade? E não se a sua verdade é verdadeira.
Participante: Uma pergunta responde à outra, não é? Você não precisaria perguntar qual o sentido e qual o valor.
São duas posturas: o sentido é o sentido da força; e o valor é o valor da vontade.
Participante: Então, mas se a vontade é determinada pela força predominante, se tem um sentido que é ativo, automaticamente a vontade que está valorando aquilo é uma vontade afirmativa. Para fazer um diagnóstico, você não precisa ter essas duas lentes.
Precisa. Vamos deixar para vermos isso em Nietzsche porque é muito sutil. Porque vai se estabelecer uma diferença entre devir ativo e devir reativo; e você pode levar o devir reativo às últimas consequências, você pode afirmar o devir reativo – é isso que Nietzsche faz com o homem que quer morrer; ele leva às últimas consequências, fazendo com que o niilismo se negue a si próprio. Então você tem uma avaliação afirmativa de vontade com um sentido reativo de força. Eles se combinam. Então é necessário fazer a distinção. A coisa é bem sutil, aí.
Participante: E como pensar o pensamento sem cair no solipsismo?
O acontecimento ou o sentido já é completamente plural. Se o acontecimento é feito de singularidades – e uma singularidade não é um átomo, não é um termo, mas a singularidade já é efeito de encontros de linhas, de pontos, de forças, ela já é efeito de encontros -, não há como o acontecimento ser atomizado. Porque o que pensa é o acontecimento em mim. E o acontecimento já é uma pluralidade de singularidades. Então não há como o acontecimento ser atômico, ou ser só, ou ser ao modo do cogito de Descartes. Não tem como. O eu de Descartes é uma limitação de consciência; o eu de Descartes é uma ilusão de efeito de superfície, gerada pela unidade individual – há uma unidade individual e eu interpreto essa unidade individual como sendo a causa essencial do sujeito. É a singularidade ou o acontecimento submetido à individuação, ao indivíduo. No caso de Kant, Kant vai submeter o acontecimento à pessoa, ele vai dar um salto aí em relação a Descartes, porque Descartes ainda tem a pessoa ou o eu submetido ao indivíduo, mesmo que esse indivíduo seja infinito como Deus – Deus é um indivíduo infinito. Então o eu de Descartes está submetido a Deus. Em Kant, a pessoa não precisa mais de Deus, nela mesma o limite se institui nele mesmo. A pessoa vai valer para todas as pessoas e você vai identificar pessoa e representação. Em Descartes você tem ainda uma identificação do indivíduo a Deus ou do indivíduo à significação, que é o segundo movimento da ironia. Você tem o primeiro movimento, que é Sócrates e Platão; o segundo movimento que já é Descartes; e o terceiro movimento, que é até inspirado em Rousseau, que é o Romantismo, que gera uma ideia limitada de pessoa que não precisa mais de Deus. Então essa última ironia, ou esse terceiro sentido da ironia, vai fazer com que a pessoa se identifique à própria representação. A ponto de Kant levar o imperativo categórico para dentro do sujeito. Ou seja, sujeito livre e legislador é aquele que introjeta o imperativo categórico do dever; é uma pura forma universal do dever, uma pura forma de lei. Kant vai soldar a lei ao desejo, a subjetividade moderna é essa. Isso que é a forma homem e é por isso que Nietzsche diz que o homem deve morrer: é essa forma que deve morrer. Mas aí já é um movimento de submeter a singularidade ou o acontecimento à pessoa. É por isso que Deleuze insiste, no Lógica do sentido, que a singularidade é pré-pessoal ou impessoal, e é pré-individual.
Participante: Pré e pós.
Pré e pós. Ela não está no lugar da unidade do indivíduo nem da unidade do eu pessoal. Nem do indivíduo físico ou do objeto individual, nem do eu pessoal. Ela não está nessa unidade; ao contrário, essa unidade é um efeito fictício e é necessária uma pluralidade de agenciamentos, ou de singularidades, ou de linhas, que se conjuguem para formar aquela unidade. Aí o homem estúpido pega aquele efeito como causa – é a imagem invertida do Nietzsche – e acha que aquilo está no fundo da natureza. Quando o fundo é pura diferença, o fundo é puro devir.
Isso tudo por que? Porque há um medo essencial de que esse puro devir seja pura desordem, seja puro caos e pura irrealidade. É a ficção da morte. Por isso que o ressentimento tem o modelo na morte e é por isso que a liberação do acontecimento tem que entender a morte como passagem; a morte é o modelo de toda passagem, mas de forma alguma de uma abolição – ela não tem nada a ver com a abolição. Então essa questão é essencial.
Mas voltando então ao que gera esse medo: por exemplo, Platão foge disso – foge dessa matéria caótica que levaria à morte – em direção a uma essência, a uma significação; e quer rebater uma parte da natureza nessas essências e aí formar as imagens ícones. É isso que ele quer fazer. Então Platão quer atingir a significação e determinar as designações ou as manifestações – a manifestação de um sujeito ou a designação de um objeto. Ele quer determinar, ele quer formalizar, ele quer fazer uma imagem ícone de objeto, uma imagem ícone de sujeito; ele quer iconizar a natureza, deixar a natureza submetida a essas formas que são cópias dos modelos significantes essenciais. Então a significação é que dominaria.
Esse movimento de ascensão é o movimento da ironia socrático platônica e os pré-socráticos tinham um sentido contrário, tinham um sentido esquizofrênico, digamos assim. Porque o pré-socrático, ao ver a pluralidade de objetos e de corpos, quer atingir a unidade desses corpos fragmentados. No próprio corpo, na própria phýsis. Digamos que isso é o movimento esquizofrênico. É o movimento de Nietzsche: atrás de uma caverna, outra caverna; atrás de outra caverna, outra caverna. E há um sem fundo, um abismo onde o corpo mergulha; há uma involução literal: em vez de você ascender e evoluir para uma Ideia, você involui em níveis e camadas de matéria até atingir uma matéria essencial – que Tales dizia que era a água, que Heráclito dizia que era fogo, Anaxímenes dizia que era o ápeiron, etc.
Participante: O informe?
Ele é um informe e que gera formas, ele é a potência de organizar a natureza e de gerar formas. Há um elemento essencial, há uma unidade física essencial.
Participante: Mas a vida é forma.
A vida é também forma, mas ela está em contato com esse elemento informal, direto. Que é o elemento dionisíaco dos gregos, é Dionísio mesmo. Dionísio é essa coisa que tem os dois aspectos: Dionísio dilacerado, o corpo despedaçado, esfacelado; e a unidade dionisíaca que se mostra na pluralidade de máscaras. Então esse é um movimento que podemos chamar de esquizofrênico. O movimento platônico seria maníaco-depressivo: mania de altura e depressão na queda. É por isso que Deleuze diz que há um suicídio depressivo na morte de Sócrates – porque Sócrates poderia ter fugido, poderia ter feito muitas coisas menos beber a cicuta. E Sócrates quer beber a cicuta. Por que será?
Aí está a questão: você atingir a verdade de uma obra é você atingir aquele ponto, aquele elemento, aquele lugar, aquele momento extremo de uma vida. Nietzsche inventou esse método: o lugar extremo, por exemplo, de Empédocles e o Etna. Há uma lenda de que Empédocles quis reencontrar a sua unidade e se atirou no Etna, e o Etna só cuspiu de Empédocles a sua sandália de chumbo. A sandália de chumbo de Empédocles era aquilo que Empédocles calçava com orgulho como um objeto sagrado, que o mantinha ligado à terra; a sandália de chumbo fazia com que ele ficasse colado à terra. Então, ao golpe de asas platônico que leva para a transcendência das alturas, a sandália de chumbo de Empédocles que o conecta com a imanência na profundidade da terra. Haverá ainda uma terceira imagem do pensamento e do filósofo. É o pensador de superfície com seus mantos, seu bastão destruidor de significações, suas dobras laterais que se dirigem para tudo o que acontece nas fronteiras do ser. A verdade está agora no sentido de superfície. O sentido é agora o novo objeto do pensamento, do mesmo modo que só o acontecimento incorporal se atribui e se diz dos corpos. A maneira de ser do ser é o sentido expresso na superfície do mundo, nos encontros ou nas relações que estabelece com os outros seres ou corpos, como um puro expresso na expressão mais íntima e imediata deste ser.
Participante: Haveria um critério de verdade para o sentido?
A tradição filosófica geralmente relaciona o critério de verdade com dimensões da linguagem ou do signo que representam o sujeito (manifesto), o objeto (designado) ou a essência (significado). A relação do signo com o objeto é a do designante com o designado. Por exemplo, se digo de tal qualidade no mundo que é verde, quando na realidade é azul, o designante ou a palavra utilizada não é preenchida pela imagem no mundo ou associada corretamente ao designado que a preencheria, isto é, o designante não subsume o designado. Portanto há uma relação de inadequação extrínseca entre o signo e o objeto designado, uma relação falsa e não verdadeira, pois esta dimensão corresponde ao critério de verdadeiro e falso que regula a relação do sujeito ou da linguagem com o mundo. Uma segunda relação, a do signo com o eu ou da palavra com o sujeito envolve outro critério, não mais do verdadeiro e do falso mas da veracidade e do engano. Haveria portanto, neste sentido, uma relação do sujeito que fala ou que se exprime com o signo ou com a linguagem; por exemplo: “amanhã eu estarei deitado” – há uma relação de desejo que vai se adequar com a minha crença ou a minha projeção ou a minha promessa; se isso não se cumprir, isso que eu disse agora se torna um engano. Este é um exemplo banal de adequação entre uma imagem de desejo ou crença de um sujeito inferida pela existência ou inexistência do objeto desejado ou esperado, todo o domínio do pessoal que envolve o critério de veracidade.
A tua questão é saber se existe um critério de verdade para o sentido, não é? Mas antes de tratar a questão do sentido por ele mesmo, é preciso dizer que os filósofos e linguistas destacam uma terceira dimensão que seria a seguinte: o sentido se adequaria a uma significação prévia; haveria então um modelo suspenso na natureza, conceitos universais ou gerais, que me diriam se o que eu falei, se o que eu pensei, se a minha ideia se adequa com aquele modelo ou não. Isso os filósofos chamam de relação intrínseca. Haveria uma relação intrínseca da linguagem ou da proposição com o modelo, com a significação. Essa dimensão seria determinada pela relação do signo como significante a outro signo significante que produziria o significado. O critério agora seria determinado pela condição de verdade, na forma da relação do significante ao significante.
Deleuze, na Lógica do Sentido, diz que o sentido não está nem na designação, no objeto; nem no sujeito, ou no manifestante, no manifestado; nem na significação ou no significado. Não está em nenhuma dessas três dimensões – nem no eu, nem no mundo, nem em Deus. Mas que ele é anterior e que ele é a condição de significação da significação, de designação da designação e de manifestação da manifestação; é o sentido que é a condição disso tudo, ele é anterior a isso. Por que? Porque o sentido é o expresso do designado, do significado e do manifestado; ele é o que se expressa. E o que se expressa é como o que…. Eu poderia usar uma imagem aqui: é como que uma roupagem interna, é a roupa de dentro – digamos assim – da coisa. É o espírito da coisa. O sentido é essa expressão da coisa. Ele é o expresso da expressão, aliás – ele é o próprio expresso da expressão. Então o sentido, enquanto expresso da expressão ou expresso da coisa, não tem distância entre ele e a coisa – a não ser que ele é incorporal. Mas ele é a expressão incorporal da própria coisa. Então não há distância entre ele e a verdade – ele é a própria verdade. Ou, melhor dizendo: não há verdade nem falsidade, o sentido não é nem verdadeiro nem falso.
A essência está no sentido. É por isso que não devemos nos prender às palavras. Porque vai ter uma essência, sim: a essência, agora, é o sentido. A essência caiu na superfície, há uma queda das essências em altura numa superfície que desliza. Então a essência, agora, é um elemento móvel, é um elemento aberto, em devir; não é mais uma estrutura fixa, fechada, circular como o modelo platônico.
Participante: Você está usando sentido como sinônimo de expressão?
Sinônimo de expresso.
Participante: Expresso da expressão. Dá para pensar como sinônimo, ou tem alguma coisa específica no sentido para além do expresso?
Não, ele é sinônimo se eu penso o sentido como algo além ou aquém da linguagem humana, eu não estou reduzindo o sentido à linguagem humana.
Participante: Eu estou te entendendo, a aproximação com o expresso eu entendi. Mas é sinônimo absoluto? Não faz diferença?
Eu posso dizer que é sinônimo, sem dúvida. É sinônimo porque quando eu falo expressão eu estou falando em todo o campo expressivo da natureza e não a expressão da linguagem humana.
Participante: Eu estou te entendendo perfeitamente. Eu queria saber se era equivalente mesmo.
Dá para usar, é equivalente.
Participante: Quando você fala que o sentido é anterior, é como se você também pudesse dizer que ele é posterior e que há uma busca.
Só tem anterioridade e posterioridade, desse ponto de vista da busca de um objeto que está fora de você, se tiver um você. O sentido é anterior ao você e ao tu, ele é anterior ao sujeito e ao objeto. No fundo, quem fala ou quem pensa? O sentido não é nem pessoal, nem individual, nem particular, nem universal, nem privado, nem coletivo, nem geral. O sentido é singular. Mas o que é ser singular? Não é ser individual, nem num indivíduo mínimo; a singularidade não é um microindivíduo. A singularidade é uma pluralidade de relações, ela já é uma complicatio nela mesma. Então a singularidade já é plural.
Se a singularidade já é plural e ao mesmo tempo é menor do que o indivíduo, é menor do que a unidade do indivíduo, é menor do que a unidade da pessoa, ela ao mesmo tempo é anterior – ela está no ponto ou no plano onde o sujeito e o objeto se formam na sequência, como consequência. Então se existe essa anterioridade, esse plano onde não tem sujeito e não tem objeto, tudo é sentido. E o objeto do sentido é o próprio sentido. Então não tem como o sentido desejar um objeto fora dele. O próprio sentido já é o desejo, ele já é uma linha aberta que é passado e futuro ao mesmo tempo.
É como o arqueiro zen, para dar um exemplo do zen: você tem lá o alvo, o que é visado; mas ao mesmo tempo você visa o não visado, você visa o próprio arqueiro. O arqueiro visa o alvo e visa a si mesmo ao mesmo tempo. Mais do que isso: esse caminho da flecha, esse percurso, essa linha, é traçado pela própria flecha; não é que a flecha vai em direção a uma finalidade: a finalidade é efeito do percurso da flecha.
Participante: É o próprio percurso e é o próprio alvo, também.
Isso. Então a origem e o fim são efeitos do movimento, eles são depois. Então o objeto que está no fim e o sujeito que está na origem são efeitos do movimento – o relacional vem antes que os termos, o puro relacional.
Participante: a história do arqueiro é uma imagem que me ajuda a perguntar de outra forma. Foi criado um arco e uma flecha, houve uma operação. A interpretação do koan em relação ao arqueiro zen é essa; outro poderia ter uma outra interpretação, dar um outro sentido e fugir à pró-pria existência do arco. O tempo todo sempre existe um corpo que compõe.
Perfeito. Há uma efetuação e uma contra-efetuação.
Participante: Então, você fala que o pensamento funciona em dimensões. Os corpos também. Então se misturam.
Inclusive o estoico diz que o pensamento é corpo.
Participante: Então, quando eu olho o arco zen a partir de uma dimensão, ela foi constituída a partir de um sentido.
Acho que eu captei. É o limite, o limiar entre a incorporação e a não incorporação, entre o incorporal e o corpo ou entre a efetuação e a contra-efetuação. A questão do zen é a não-mente, essa não-significação, essa não-manifestação, essa não-designação, esse vazio do psíquico, esvaziar o psíquico. Então atingir a substância do vazio enquanto o vazio. O sentido – e aí a outra questão de se há um critério de verdade para o sentido ou não – emerge exatamente no ponto onde ele nem precisa ser dito, não precisa nem enunciá-lo, ele já está ali naquele limiar. Vou atirar ou não? Eu estou nesse limite, nesse intervalo, eu suspendo o acontecimento. Então pouco importa que eu efetue ou não. É como a questão do Bartleby, do Melville, que tem aquela famosa fórmula, aquela fantástica fórmula “prefiro não”. “Prefiro não” não é “prefiro não fazer”, “prefiro não pensar”, etc. Se você dá alguma determinação a esse “prefiro não”, você já diz um significado, um sentido ou alguma direção. Quando você fica no “prefiro não”, você está no puro acontecimento ou na pura condição de uma maneira de ser, você ainda está ligado e colado a um vazio, você não preencheu a fórmula. E, no entanto, essa fórmula produz uma transformação incorporal no mesmo lugar para o corpo e para o pensamento. Ou seja, eu não efetuei o corpo e eu não contra-efetuei, mas ao mesmo tempo eu fiz as duas coisas: eu efetuei e eu contra-efetuei. De que maneira que isso se dá?
O arco, o arqueiro, o alvo, a flecha, o ponto do alvo, a linha do percurso da flecha, que é o caminho da flecha, o atirador e a própria flecha se tornam uma única coisa. É uma tensão, apenas uma tensão. E quanto mais eu distendo, mais eu suspendo o acontecimento ao mesmo tempo e mais eu entro numa abertura ou numa indeterminação, digamos assim – eu estou no vazio, eu amplio o vazio, eu tenho uma pluralidade maior de virtualidades. Então esse fazer ou não fazer é secundário; o que é primário é o limiar onde o espírito com o corpo se tocam, onde o tempo aiônico toca o próprio corpo. É desse limiar, onde eu recorto o puro acontecimento, que o sentido salta, emerge sozinho por ele mesmo.
No momento em que o sentido salta, ele se impõe por si só. É por isso que Espinosa diz: a verdade é índice de si mesma, ela não precisa de um objeto para dizer “o objeto está adequado com o sentido”, “isso é verdade” ou “isso não é verdade”. Há um critério exterior? Não há critério exterior: o próprio sentido se impõe. Nietzsche diz, de outra forma: uma realidade que pode ser negada merece sê-lo. Por que? Porque se ela está no sentido, o sentido não pode ser negado, o sentido se impõe, ele é implacável. No momento em que você está numa realidade vacilante, digamos assim, em que você se apoia… Como diz Nietzsche, estátuas com pés de barro que tremem ao ver um martelo destruidor de estátuas com pés de barro. É exatamente isso: você habita uma dimensão da linguagem, do imaginário, da consciência que já são efeitos de encontros de forças, de encontros de corpos; mas são uma camada das camadas que se desprendem do encontro. Não é o expresso do encontro.
Quando você atinge o expresso do encontro, aquilo é implacável; aquilo não é verdadeiro ou falso, aquilo é, apenas. E tem esse esplendor neutro do ser, esse esplendor neutro de não ser nem verdadeiro nem falso; como diria Nietzsche, de novo: você ousaria pôr o seu pescoço no meio da forca do sim e do não? Quer dizer, a visão do sim e do não é uma visão tacanha, é uma visão de consciência, é uma visão que recorta o acaso em bom e mau; querer o acontecimento é exatamente atingir esse elemento anterior ao bom e ao mau, você atinge o sentido nele mesmo. E o sentido não é nem bom nem mau, ele é impassível. Porque ele necessariamente é daquele modo. Ele é um puro infinitivo. Como o morrer: o ato morrer é impessoal, você não atinge o morrer a não ser vivendo o acontecimento. Você não atinge o morrer de modo abstrato porque você não toca, ele é um instante sem espessura; quando você está nele, você já está em outro lugar. Ele escapa, ele é o elemento paradoxal.
O que é o elemento paradoxal? É a divisão, é a fronteira, é a superfície física e metafísica – a metafísica do tempo e a superfície física da pele. É exatamente esse estar dentro e fora ao mesmo tempo, esse ponto topológico onde a superfície, onde a vida se expande – a vida se expande, como diria Simondon, no limite do vivo, ela cresce pelas bordas, ela cresce na pele, no topos. Esse elemento topológico é a própria superfície. Então é por isso que o inconsciente é produzido na superfície – o inconsciente do corpo e do pensamento. Ele é sempre na relação. É completamente falso, é fictícia a ideia de um inconsciente profundo.
Participante: Ele é rizomático.
Ele é rizomático, exatamente. E agora o sentido pleno do que é um rizoma: não é simplesmente porque eu traço aqui uma via, outra via, outra via, ele tem várias entradas e várias saídas no espaço. Ele é rizomático no tempo, é na subdivisão do instante – é aí que está o rizoma essencial.
Participante: Por isso que não é uma estrutura.
Por isso que não é uma estrutura. Não tem como ser estrutura. Exatamente. Porque, com a intensidade, você subdivide o tempo; e ao subdividir o tempo, esse mesmo tempo te devolve mais intensidade. E mais intensidade você tendo, mais você subdivide novamente o acontecimento. Então, ele é sempre rizomático; ele multiplica, multiplica e multiplica o rizoma, não de uma forma numérica mais. Não é numérico, é aquele giro mínimo que você faz no caleidoscópio. O mínimo de diferença já é o que basta. É como diz Deleuze: na natureza, mesmo que tenha o mínimo de diferença, mas você tem a diferença, no fundo. No fundo é diferença, tudo é diferença. Então a questão do labirinto ou do rizoma – que é a mesma coisa – é no tempo.
E daí aquele texto que eu já citei aqui para vocês do Borges, O jardim dos caminhos que se bifurcam. É exatamente esse jogo: ele brinca com os personagens, com os atores, o que poderia ter acontecido se fosse assim, se fosse assado. Mas não é que ele faz como se fosse um passado, como se fosse um futuro; ele complica as séries – ora de um modo, ora de outro; imbrica as séries umas nas outras de modo que o acontecimento final é completamente surpreendente. Em função não de uma hipótese ou de uma possibilidade, mas a própria virtualidade do encaixe das séries fez com que aquele acontecimento final acontecesse. Quer dizer, ele surpreende ao modificar o passado e ao modificar o futuro ao mesmo tempo, na medida em que ele complica as séries.
É claro, o labirinto é no espaço também; mas o labirinto no espaço, como expressão desse labirinto aiônico no tempo, é um labirinto que não tem nada a ver com a sensibilidade orgânica, porque a sensibilidade orgânica globaliza, ela vê tudo do ponto de vista molar e não molecular; ela vê unidades, ela vê unidades imagéticas, digamos assim.
Participante: Ela vê gestalts.
Ela vê gestalts, formas, exatamente. Ou figuras, que identifica com formas; figurações. Quando a natureza não é figura; tudo bem, ela gera figuras, mas ela é pura linha abstrata. Linha abstrata por que? Porque é esse instante subdividido que não tem espessura presente; é abstrato porque você não pega.
Participante: Mas não dá para viver isso no abstrato, tem que estar.
No entanto, esse abstrato está intimamente ligado ao corpo: as feridas, os traumas, os acontecimentos mais íntimos da sua vida são atravessados por esse abstrato. É abstrato e concreto simultaneamente. Há uma concreção do acontecimento na contra-efetuação e na sua incorporação no corpo. Então há duas concreções: na efetuação e na contra-efetuação. E são duas liberdades. Aí
você pode viver a efetuação no corpo não como uma simples escravidão ou como se você sempre fosse vítima de alguma coisa. E é desse modo que você elimina a chaga do ressentimento. Porque o ressentimento…. Olha, é uma questão difícil, no fundo – é fácil e é difícil. É difícil porque às vezes nós nos surpreendemos com coisas incríveis, as pessoas até mais próximas, que nem suspeitamos, acontecem coisas assim… e realmente é complicado porque não dá para julgar, não tem como julgar. Caímos, existem quedas, existem intervalos, existem lapsos.
Como são essas quedas? Nós caímos em fixações, em marcas, em imagens; e a partir de uma imagem, você recorta um pedaço de presente e você vai ter um antes e um depois, um passado relativo e um futuro relativo. Aí, em função desse passado relativo e futuro relativo, você julga segundo uma visão de um presente cósmico que, no fundo, é uma ilusão de consciência. E aí você vai dizer assim: bom, isso poderia ou não ter acontecido; isso foi merecido ou isso foi injusto; existe um mérito nisso, existe uma falta nisso; e o ressentimento vem.
Como não cair no ressentimento? Não perdendo o devir. Se você não perde o devir, se você está o tempo inteiro reconquistando essa subdivisão do instante ou entrando em acontecimento, você não tem nem tempo para fixar uma marca e relacioná-la com um pedaço de passado ou um pedaço de futuro. Você não está ligando um termo presente a um passado e a um futuro, você está no próprio intervalo do devir, você está no próprio movimento. Quando você congela vem, necessariamente, o ressentimento. E com o ressentimento vem a vontade de espalhar o ressentimento e criar aliados no ressentimento, criar servos, criar escravos, criar subservientes, criar voluntários do ressentimento. O tirano precisa disso, o sacerdote precisa disso, os escravos precisam se unir uns com os outros para se suportarem melhor ou para se aguentarem.
Então é uma questão ética essencial, é um ponto ético essencial: a lógica e a física têm tudo a ver com a ética no estoicismo. O que seria essa física? A mistura dos corpos. Os corpos querem o quê? Querem se efetuar. A força quer se efetuar – uma força ativa, uma força passiva; uma força ativa efetuando-se numa matéria passiva. Há um conjunto, uma multiplicidade de forças, de causas, se efetuando. No encontro dessas causas, dessas forças, emergem acontecimentos – pluralidades, infinidades de acontecimentos. Do ponto de vista de uma parte que vivenciou aquele encontro, aquele encontro pode ser mau, pode destruir aquela parte ou ameaçar aquela parte. Se eu acredito que aquela força poderia se deter e não agir, eu estou imaginando que haveria algo anterior à própria força ou ao próprio movimento, um solo a partir do qual a força pode se deter ou não. E eu projeto aquilo no outro. Então, no momento em que o outro efetua a sua força e aquilo me fez mal, eu vou ressentir e vou dizer “ele poderia não ter agido” ou “a força poderia não ter se efetuado”. No entanto, a força se efetuou.
Ora, a virtude da força é exatamente isso. E o que reza a moral estoica então? Viva conforme a natureza. Mas o que é a natureza? A natureza é força. E o que a força quer? Quer se efetuar. Viver conforme a natureza é efetuar as forças. Mas a força tem uma finalidade nela mesma? Aí que entra a questão do acontecimento: querer o acontecimento enquanto acontecimento. Se a força se efetua, eu me colo no próprio acontecimento. Ao se efetuar, ela está em acontecimento; e se ela está em acontecimento, ela não tem finalidade. Então, qual é a finalidade estoica? É efetuar a própria força. E qual é a finalidade da força? Não há. É a efetuação de si mesma. Então não há objeto do devir, não há objeto do sentido. E nem sujeito, porque o sujeito é o próprio sentido.
Participante: E a vingança?
A vingança só surge quando há uma separação.
Participante: Mas nesse caso o que causou diminuição em você tinha uma finalidade: era motivada por uma vingança. Então dizer que aquilo foi um acaso, que por acaso naquele encontro meu corpo diminuiu e afirmar isso como se ele não tivesse essa intenção?
Quando existe a vingança, tem uma motivação vingativa. Por acaso ele inferiu que você quis causar um mal e aí ele retorna para você. Quer dizer, tem um ressentimento aí que existe, que é um sentido de você reconhecer que aquilo é algo que deve ser negado e você começa a negar aquilo. Então tem um ressentimento nesse sentido….
Participante: Posso fazer uma sugestão? Acho que seria legal você dizer o que é força, porque acho que é esse o problema. Se falamos em multiplicidade de forças, só que são forças que não têm objeto e não têm finalidade, então por que falamos que são várias? O que diferencia as forças? Porque aí, por exemplo, na vingança talvez tenha uma finalidade. Ou então não chamaríamos a vingança de uma força. Eu acho que talvez definir um pouquinho o que são? Se está motivado, já está infectado pelo ressentimento. O que quer dizer “muitas forças”? Vamos falar de forças?
O ressentimento já é a vingança. O que é ressentir? É não reagir. Você não consegue reagir, você se imobiliza, você é incapaz de reação. Mas o que é essa incapacidade de reação? Isso é tema do Nietzsche. Nietzsche diz o seguinte: em mim aconteceu algo. Freud diria, segundo aquele modelo tópico de inconsciente que ele tem: há um excesso de energia fora, de uma energia muito poderosa fora que me imobilizou; eu, com a minha vidinha fraca e pequena, uma energia poderosa lá me fixou, eu fiquei fixado naquilo, me gerou um trauma, eu não consigo reagir. Isso diria Freud. Nietzsche diz: não, é em você mesmo que tudo se passa; as tuas forças reativas se subtraem à ação das tuas forças ativas. Elas não são mais agidas. Nietzsche diz: uma das virtudes essenciais da força reativa e da nobreza da força reativa é ser agida pela força ativa. Mas isso tudo se passa em você.
Eu vou dar um exemplo simples: o estômago, por exemplo. O meu estômago diz que eu estou com fome e eu preciso comer. O estômago é um órgão, é uma função e ele é uma parte do corpo, é uma parte dependente do corpo e que gera algumas articulações com o corpo e com o mundo exterior. Se o meu ser próprio, como diria Nietzsche, se submete ao estômago, ele está se submetendo a uma força reativa. Nietzsche diz: a força reativa tem a função de regular, de manter, de sobreviver, de organizar. A força reativa tem essas funções e são funções nobres. A força ativa tem a função de ousar, de incitar, de precipitar, de fazer acontecer ou de bloquear; ela tem a função de modificar o estado de coisas, ela tem a função de criar. A força ativa é o próprio devir; a força ativa é um devir ativo.
E mais: a força ativa precisa de um solo ou de um território existencial de efetuação; o solo, o chão ou a matéria da força ativa é a própria força reativa. Se a força reativa se subtrai, é como se a força ativa ficasse sem chão e a força ativa não tem mais como se efetuar naquela direção, ela tem que se voltar para outra direção; ela não desaparece, mas ela muda de direção. A ponto de ela se voltar até contra si própria – aí é o que Nietzsche vai chamar de má-consciência.
Isso eu vou explicar com detalhes quando eu chegar em Nietzsche, mas o que é essencial é que tudo se passa comigo mesmo. Ele diz o seguinte: é um sistema de registro, é uma superfície de registro física onde eu sou marcado, porque todo encontro deixa marcas. E aqui articulamos novamente com os estoicos: ao dar a solução ao seu problema moral, os estoicos dizem que é necessário fazer um uso da representação – a questão está no uso da representação. Eu já falo do uso da representação. Só voltando um pouquinho em Nietzsche e já articulamos novamente.
Então o que Nietzsche diz? Tem um sistema de registro, é uma superfície. No encontro dos corpos ou das forças, eu recebo impressões. Só que num corpo saudável ou num tipo ativo, as impressões vão para o inconsciente, as marcas vão para o inconsciente – é um inconsciente reativo. Tem vários inconscientes em Nietzsche, esse é um inconsciente reativo; é um recalcamento de marcas. É um recalcamento necessário. Por que? Porque se eu não recalco as marcas, a superfície fica entupida de marcas e eu não consigo mais entrar em devir, eu só vejo e sinto marcas. Então Nietzsche diz: quando a marca se torna sensível, eu entupo a superfície de marcas. É isso que ocorre. E ele diz que a marca tem que permanecer insensível, ela tem que ser recalcada – e é por isso que a faculdade de esquecimento tem que funcionar: o esquecimento é a potência de recalque da marca. A marca tem a sua nobreza, tem a sua positividade: ela é apenas um índice, ela indica um sentido que foi para uma memória de encontros, digamos.
Participante: E serve para a seleção, depois.
É, exatamente: depois você vai reativar de várias outras formas porque você inventa uma memória de futuro, aí você reage com essa memória – quer dizer, há uma outra maquinação aí. Mas o movimento do ressentimento, o que é? É quando, num desses encontros, uma marca se tornou sensível; e quando ela se torna sensível, ela se torna a própria consciência – é a consciência física, digamos assim; a consciência é a própria imagem que fixou aquele movimento. Pois bem, fixou por que? Porque a faculdade do esquecimento não funcionou. E por que não funcionou? Porque a faculdade de esquecimento tem uma fragilidade: essa potência do esquecimento se alimenta da própria superfície. Então há um mau encontro – digamos assim, para usar a linguagem de Espinosa – no momento em que uma imagem se torna sensível e o meu sistema ou a minha faculdade de esquecimento não consegue recalcar essa imagem. Tudo se passa como se a força reativa quisesse ficar ali e não se submete à ação da força ativa. O que é a força ativa? A força ativa é movimento. A força reativa é paralisação, aquilo paralisa. No momento em que aquilo paralisa, a força ativa fica separada do que ela pode, que é agir a própria reação.
Participante: E eu fico impotente.
Você fica exatamente impotente. E aí o que ocorre? É todo o seu ser próprio que fica refém daquela imagem. É por isso que o paranoico tem ideia fixa.
Participante: Só vai ter mau encontro, depois disso.
É, porque ele recorta tudo através dessa imagem maior, desse trauma maior. É por isso que você encontra uma série de tipos na sociedade e você faz um diagnóstico claro. Às vezes é apenas uma imagem…. Agora, apenas uma imagem? Uma imagem já é uma realidade composta. É por isso que tem que desconfiar das interpretações simplistas. Pois toda imagem, nesse sentido, já é efeito de uma composição plural de forças, por isso sua interpretação do ponto de vista de uma verdade é pobre, reducionista e esconde um poder que quer fixar o sentido que lhe interessa.
Participante: Muito raramente é uma, não é?
Não tem uma, porque a própria imagem já é um conjunto de singularidades. É a consciência que vê como uma – por isso a consciência é ignorante: ela não atinge as nuances das singularidades.
Participante: O recalque, essa fixação, está ligado ao medo.
Você foi em cima de tudo. É uma covardia.
Participante: É uma covardia de você não jogar para o esquecimento e encarar o devir, se atirar no precipício para que venha o que tem que vir.
Nietzsche diz: o erro não é a cegueira, o erro é a covardia. Ele começa a emergir aí. O erro já é o ressentimento. Esse movimento que Sócrates, Platão e Aristóteles fazem, das alturas, tem origem no ressentimento; fixam e congelam. E aí todo o movimento passa a ser ameaçador, tudo ameaça; é por isso que se vira paranoico. Você fica perseguido por fluxos.
Participante: Aí se tem a indústria do terror.
Por que? Porque o fluxo é desordem pura, o fluxo é irrealidade, o fluxo é a morte. E aí se cria a indústria do terror porque você quer paralisar e fixar tudo, submeter o devir; porque paralisar é impossível, o devir segue. Só que daí você gera um devir reativo – eis a origem do devir reativo, é quando uma imagem comanda o devir.
Participante: E aí está ligada à vingança?
Completamente. A vingança já é isso, a vingança é quando a força reativa se subtrai à força ativa. Isso já é a vingança. A vingança não é quando você vai efetuar um ato de vingança.
Participante: E quando você sofre uma vingança?
Mas um corpo ativo sofre essas vinganças direto.
Participante: Mas daí é uma marca que serve para você selecionar.
Aí é que entra a arte do humor, aí é que entra um cínico, um megárico, um estoico, um zen com seu bastão e seu riso. Porque o humor exatamente faz a coisa fluir; uma marca, você passa. E aquele que acredita na marca é um ser miserável. Do ponto de vista do humor, você vai ter uma postura nobre – a não ser que seja um combate para a emissão de signos de deboche com outros intuitos; mas geralmente o que vai acontecer é o seguinte: você vai tentar interpretar pelo lado nobre. E no momento em que você atinge a dificuldade, digamos assim, você faz com que aquele ressentimento encontre alguma sinalização, encontre algum elemento para que ele seja desmanchado, simplesmente. Então o humor tem essa inocência e essa força.
Participante: É uma criatividade.
É uma criatividade. Porque você rompe com a paralisia da superfície, a superfície congelada.
Participante: O que vem como ressentimento, como vingança, eu recebo como uma força ativa, eu transformo isso numa força ativa.
A força ativa transforma isso.
Participante: Eu encaro isso a partir da minha força ativa e não a partir do meu ressentimento.
Isso. Aquele filme Amadeus, sobre o Mozart, tem uma cena fantástica. Há um momento em que a sogra dele, cheia de ressentimentos, de ódios e de histeria, começa a berrar, tem um ataque histérico dentro de casa; e ele vê aquela cena, acha aquilo cômico, ele se enche de humor e cria uma ópera em cima daqueles berros histéricos. Ele fez uma transmutação, operou uma transmutação. É exatamente isso. Então, pegar esses efeitos de vingança, de ressentimento no mundo e transmutar, em vez de você simplesmente responder à altura da vingança – ou seja, na baixeza da vingança. Então você está num outro plano, você está na fronteira e não se contamina com isso; ao mesmo tempo você é estimulado por isso porque aquilo está ali de alguma maneira.
Participante: Ele só faz isso porque ele não tem medo, ele está em devir.
Está em devir. E ele sabe que aquela histeria, que aquele ressentimento é pura miséria e pura fraqueza.
Participante: É um gênio porque está em devir.
Exatamente. Todo o gênio é o devir, o próprio devir que é o gênio, não há outro gênio, o gênio é o devir. O gênio é o que pensa em nós, é o que modifica em nós, é o que sente em nós, é o que se apodera de nós. Nós somos cascas, instrumentos; o devir inventa as nossas cascas, as nossas dobras, as nossas invaginações – ele que cria essas dobras todas. E quando nos identificamos à casca, aí caímos na unidade do indivíduo ou na forma do eu; e quando colamos ao devir, cavalgamos o devir e os fluxos, nos tornamos imbatíveis, implacáveis. Aí não tem mais a dualidade entre covardia e coragem, aí já é um falso problema porque a covardia e a coragem são do ponto de vista daquele que está separado do que pode. Ainda que Nietzsche brinque muito com isso – Nietzsche brinca, provoca e fala da coragem do guerreiro e tal, mas é puro teatro, Nietzsche faz uma obra teatral fantástica. E teatro expressivo, não tem nada de representação; jogos, ele elabora jogos fantásticos.
Participante: Podemos ter uma ideia do que é força? No estoico, por exemplo. Eu sei que essa história vai longe.
Não tem nenhuma explicação explicita neles, mas eu vou te dizer o que os estoicos falam disso. Porque força é diferente de matéria, digamos assim. A força implica uma distância, agir à distância. Por exemplo: essa fita toca essa outra fita – isso seria matéria e matéria (uma imagem de matéria porque não é isso também, mas uma imagem fácil para se entender). A força está aqui e está ali e está modificando lá – ela está aqui e modifica lá, ela age à distância. A força tem um intervalo, ela tem uma distância. É uma energia capaz de modificar atualmente um corpo – a força é sempre atual. A potência é virtual. A diferença entre força e potência é essa. A potência é a própria relação entre as forças; a potência é a relação. A força gera esse campo atrativo, ela mantém uma distância. A força é como uma profundidade e uma superfície juntas. A força tem uma profundidade – que é uma intensidade, uma energia concentrada, uma intensidade que se estende – a força é isso, ela tem essa intensidade que se estende; ela tem uma contração que se expande; ela tem uma dobra que se desdobra; ela tem um envoltório que se desenvolve. Mas sempre no campo atual, no plano atual, da atualização. Os estoicos dizem: é tudo que existe – corpo existe e a existência é real. Porque há um real que não existe, que é o real virtual. O incorporal não existe, ele não tem espessura; o presente do aion não existe, você não toca o presente, e, no entanto, ele não existe. O vazio é real.
Participante: Mas é só ver a relação que vai se apresentar.
Então, aí é a virtualidade com atualidade. Não existem virtualidade e atualidade separadas.
Participante: A física quântica mostra isso.
Totalmente isso. O que Nietzsche chama de vontade de potência é a relação entre as forças. E o que ele chama de força, vou te dizer: a força é uma quantidade de energia. Isso que é a força. Ela é uma quantidade não numérica – não é que tem 10 de energia, 20 de energia. Ela tem uma quantidade intensiva – quando eu digo intensiva não é na extensão, não é numérica. Se é na intensidade, eu não tenho como saber o efeito a priori, eu não tenho como fazer cálculos, como fazer previsão como a ciência quer.
Participante: É uma força com outra força. Então são duas forças.
No mínimo. Para ter um corpo é no mínimo duas.
Participante: O que faz dizer que são duas? Quando você fala no singular eu entendo perfeitamente: “a força é uma quantidade de energia”. Ok. Agora, uma força encontra com outra força: o que diferencia duas forças?
A quantidade de energia de uma força é única – você não encontra uma outra força no universo que tenha a mesma quantidade de energia que aquela; logo isso dá uma qualidade à força, também.
Participante: É uma singularidade, você está falando, não é? Cada força é singular? É isso que você está falando?
É singular.
Participante: E o que é essa singularidade de uma força?
Vamos sair da significação, vamos entrar no sentido. A força é sempre em relação, não há força atomizada, isolada, nunca. Se ela é em relação, com a sua quantidade de energia ela se mostra, na relação. O que é “se mostrar”? É se efetuar, é se encontrar, ela se expressa. Logo, tem um acontecimento que envolve a força. Ora, mesmo que você tente isolar duas forças apenas, esse acontecimento já é produzido por uma pluralidade de forças. É todo o contexto que envolve e gera aquele acontecimento. Por isso que ele é singular.
A força tem essa relação e essa expressão – como tem uma infinidade de outras porque ela se relaciona com todas as outras também; direta ou indiretamente, ela está ali relacionada. Então a força, o que é? Ela não é uma unidade porque ela é sempre relacional, e em cada relação ela tem uma expressão. Então ela já é plural. No entanto, eu não posso dispersar isso numa pluralidade sem consistência porque a força tem uma quantidade de energia. Se ela tem uma quantidade de energia, eu estou dizendo que ela tem uma dobra, ela tem um dentro. Se ela tem um dentro ela tem um passado, ela tem uma memória, ela tem tudo isso.
Participante: A energia tem uma memória?
Com certeza. Nietzsche diz: o átomo percebe, o átomo pensa. Claro, evidente que sim. Quando Bergson diz: “não há nunca um espírito separado da matéria”, ou quando o estoico diz “não há força ativa sem a força reativa ou sem a matéria passiva”; ou Nietzsche diz “não há um corpo com apenas uma força, no mínimo são duas, são plurais porque existe sempre um contexto”. O que ocorre? A singularidade, que é um efeito de superfície, também envolve uma profundidade. O que sou eu? Eu sou uma pele envolvendo uma quantidade complexa de energia. Eu sou uma dobra. Então toda a força é uma dobra, necessariamente uma dobra. Se ela é uma dobra, ela é uma profundidade, um dentro, um passado, e ela é um futuro no encontro com a superfície. O futuro é virtual, o passado também é virtual, mas há uma presença de energia que comunica ao mesmo tempo passado e futuro.
Participante: Mas passado e futuro também são forças.
Isso, também são forças e são potências. São forças do ponto de vista parcial das partes. O que é passado e futuro como forças? Porque eles são potências e são forças. O que é enquanto forças? Enquanto forças, é enquanto eles são ações e são paixões, enquanto eles são corpos. Enquanto o passado é apenas um presente mais extenso, e o futuro é apenas um presente mais extenso, mais adiante; ele engloba um presente maior. Do ponto de vista de um recorte presente menor, aquele presente maior vira um passado relativo e um futuro relativo. Isso é passado e futuro como força.
O passado e o futuro como potência ou como virtualidade não é atual, não é um presente estendido; ele é a pura linha do aion, a pura linha do tempo, o puro incorporal que pode se incorporar ou não. Então aí são coisas distintas. No entanto, não é nenhuma dualidade, não há dualidade. É sempre esses dois campos: vazio e corpo, aion e corpo em relação. Não é que o corpo ocupa o vazio, não é isso porque o vazio tem uma substância, o vazio não é o nada, o vazio é real. Então o corpo não ocupa o vazio. O corpo se relaciona com o vazio, é diferente. Assim como o corpo se relaciona com o passado e com o futuro que têm uma realidade não existente, mas é real.
Participante: Uma força que se efetua, que está em ato, muito provavelmente se amplifica porque ela entrou em devir. E isso já não é a memória dela? Porque ela entra em ato e a tendência dela é entrar em ato e isto é o devir e essa é a memória da força.
Isso, é a memória ontológica da força. A memória ontológica da força é o seu passado e o seu futuro. Que sempre está em ato. Então na realidade o futuro, a memória como função de futuro, é a própria efetuação da força. Isso que é querer o acontecimento: é sentir saudades do futuro. Querer o acontecimento é memória de futuro, é ser um campo atrativo. É virtualidade; se é virtualidade, é real. Aquilo já está lá como virtual.
Participante: E a flecha que está totalmente ligada.
Isso. O alvo já está lá. O atual e o virtual estão colados. Então formar um território existencial, uma superfície, é você fazer com que o virtual seja cada vez mais presente, com que o futuro se aproxime cada vez mais do aqui e agora. É trazer esse campo virtual do inesperado, do extraordinário – é isso que é se tornar uma enzima, um acelerador de processos, em vez de você esperar e consumir. Você não espera e não há nada a ser consumido, tudo a ser vivido, a ser passado, a ser experimentado. É por isso que experimentar é diferente de consumir. É você habitar a passagem, é ser a passagem; e a casca é um instrumento, as cascas são regras de passagem que a própria passagem inventa. É por isso que a lei deve ser uma regra de passagem, sempre; não é que você joga fora a lei, a lei tem que ser submetida ao devir, a lei é passageira, é uma regra de passagem para aquela situação. Ela regula aquela situação para que a vida se expanda ao máximo naquele contexto; uma vez alterado o contexto, muda a regra, inventa-se uma outra regra de passagem. É como rituais de passagem, é a mesma questão.
A questão da força vai ficar bem mais clara. Com Epicuro e Lucrécio vai ter uma outra clareza em relação a isso, com Espinosa vai ter outra, com Nietzsche vai ter outra ainda maior. Mas há uma quantidade intensiva e uma qualidade expressiva na força. Isso aí é que vai ser fundamental entender em Nietzsche, depois.
Participante: Para os estoicos já tem?
Para os estoicos sim, só que eles não dão esse nome.
Participante: Tem qualidades expressivas diferentes?
Vamos falar o que os estoicos dizem: os estoicos veem um indivíduo, um ser, como um ovo, como uma semente; eles usam o modelo biológico. Platão geralmente usa o modelo matemático da harmonia ou da música; o estoico usa o modelo biológico. O que seria isso? Um corpo é um pneuma, é um princípio ativo com uma matéria passiva; então essa alma, esse pneuma estoico se desenvolve com os seus elementos que são os princípios passivos, a parte da matéria, nos encontros que esse corpo faz. Todo corpo está em encontro, ele está em mistura; então você tem lá uma semente que se encontra com a terra, que se encontra com o calor, que se encontra com a luz do sol, que se encontra com os sais minerais, etc., e começa a desenvolver. Então ela vai se expressando. Ela tem uma quantidade intensiva ali condensada e, nos encontros topológicos de superfície, ela vai se diferenciando. Então ela se diferencia numa pluralidade de maneiras de ser e a sua história é a história de um devir, é a efetuação da sua força. Vamos supor, uma semente vira uma árvore. Mas ela não tinha a finalidade de ser árvore: essa teleologia que estaria embutida na semente não tem nada a ver com o finalismo aristotélico. Por que? Porque é no encontro que o desenvolvimento é gerado; se tem uma memória ali, essa memória se produziu já em encontros que se repetiram. Então a memória já é efeito de encontros, não é que previamente tinha uma finalidade.
A mesma coisa um ovo: um ovo com os seus elementos nutrientes, vai se desenvolver e se transformar num ser; os vários processos de atualização, de desenvolvimento desse ser, só se dão no encontro com outros seres, com outros corpos. É no encontro que você tem os acontecimentos. Tudo é um campo de acontecimentos. Então antes do corpo ser histórico, ele é geográfico, ele é topológico; a energia, a força, a potência se expressa num topos, numa superfície; ela é intensiva e expressiva. A expressão, digamos assim, acontece fisicamente numa matéria extensa; mas enquanto intensidade ela é exatamente o oposto, ela é intensiva.
Participante: Às vezes me dá uma sensação – e é uma sensação porque eu não tenho uma compreensão – circular. É um pouco daquela história da aula passada. Uma hora tem uma memória, ela existe; uma hora existe um esquecimento. Então eu não sei em que lugar eu ponho o quê.
Mas tem várias memórias.
Participante: O que acontece? Parece que uma hora encaixa a memória, quando vem a questão da força. Então eu fiquei pensando o seguinte: como então uma força não é uma marca? Se existe uma memória ontológica, existe uma atualização, existem encontros, existem composições, isso vai multiplicando infinitamente marcas. Então qual é a diferença entre uma força que não tem uma memória e que, portanto, não efetua uma marca?
É o puro devir. A marca é o último efeito, o último brilho, a coisa mais capenga da força. Ela é um efeito, é a sobra, é um resto mesmo. Só que este resto tem uma função nobre, ele é um índice; e ele tem uma função vil que é a marca que congela a superfície. Vai ter uma memória de marcas, uma memória psicológica, uma memória ontológica. A memória ontológica é memória de futuro, não é memória de passado. Mas deixa eu articular a questão da imagem do pensamento, imagem do filósofo, que é uma coisa que eu comecei a fazer e eu não consegui chegar.
É o seguinte: estávamos naquela questão das orientações do pensamento – aquilo que vai para as alturas, o que vai para as profundidades e o que descobre uma outra orientação que é uma coisa lateral, em superfície. Essa coisa lateral, esse estilo de viver e esse modo de pensar inventado pelos cínicos, megáricos e estoicos, descobre que a altura é ficção; então, na essência formal de uma ideia não tem nenhuma causa, ela é um mero efeito ilusório de superfície. A genealogia da Ideia platônica é um efeito de superfície. Então as ideias tombam; elas não são causas de nada, elas se tornam ineficazes – tanto mais que para os estoicos o próprio acontecimento não é causa, ele é quase-causa. O acontecimento produz, mas de um outro modo que o corpo. E, na medida em que essa essência, essa significação, esse ideal, cai na superfície, não só ele perde a eficácia de causa como também ele perde a circularidade; ele entra num devir, numa linha de tempo.
Ao mesmo tempo, a profundidade, que era tida como princípio de unidade, ganha uma outra afirmação e uma outra ordem. Qual é a ordem da profundidade? Qual é a ordem profunda da natureza? O que seria viver conforme a natureza? É que uma força quer se efetuar – essa seria a ordem profunda da natureza. Agora, como ela vai se efetuar, como se dão as misturas dos corpos, não tem nenhuma lei, nenhuma regra. É por isso que eles não condenam o incesto, não condenam o canibalismo; não haveria uma lei prévia que diria “isso pode”, “isso não pode”.
Participante: Não condenam a dor.
Exatamente. Mas haveria um critério ético de seleção dos encontros. E como é que se dá esse critério ético de seleção dos encontros? É a vivência da própria profundidade; é quando a profundidade e a superfície não são mais dois planos duais, não há mais uma dualidade entre profundidade e superfície. A própria profundidade, a própria força que se efetua acaba expressando, no acontecimento que é gerado, o sentido como efeito incorporal; é da própria força que vem o sentido. O sentido, ou a superfície, está colado à profundidade, não há mais diferença ou dicotomia. Há distância? Há distância. Há distância por que? Porque o essencial é você manter a pluralidade aberta. Como você mantém a pluralidade aberta? Não se confundindo com o acontecimento. Então você tem que manter a distância entre profundidade e superfície. Você tem que manter a capacidade ou a potência do acontecimento suspenso. O que seria o acontecimento suspenso? Seria a contra-efetuação.
Essa contra-efetuação faz com que você adquira uma ética ou uma postura de vida que é exatamente a de estreitar ao máximo o acontecimento, diminuir ao máximo a espessura do acontecimento, para que o acontecimento libere a sua parte pura incorporal. Para que o acontecimento libere um duplo que não se oponha mais à própria efetuação. Para que na liberação do duplo do acontecimento, eu reabra a efetuação ou a incorporação do acontecimento como uma nova revitalização.
Então existe um ciclo aí; na realidade podemos até fazer aqui uma brincadeira: a natureza vai do Mesmo ao Mesmo; mas é diferente, ao mesmo tempo, ir até esse Mesmo ou não ir, ir até o duplo do incorporal e não ir. Porque se você não vai até o duplo do incorporal, você se reduz aos fatos, você se reduz aos acidentes, você é facilmente interpretado por um jornalista – não é nem necessário um psicanalista, um jornalista já diz a sua verdade. Você se reduz a um fato.
Quando você entra no duplo, você é um fato, você é outro fato, você tem uma pluralidade de interpretações; é impossível fixar um fato em você, uma forma expressiva de ser em você. Você se torna o próprio liso – a lisura de não se deixar congelar. E você pode até brincar com as tentativas de cristalização. Porque o poder se exerce sobre os corpos, o poder não se exerce no vazio, ele se exerce sobre os corpos. Então é no corpo que você é pego; e o corpo é percepção, o corpo é sensibilidade e o corpo é pensamento também.
Eu queria trabalhar um pouquinho melhor essa questão da nova imagem do pensamento.
Participante: Você falou uma coisa que mexeu: você falou de sensibilidade e sensação. Essa mesma sensação, essa mesma sensibilidade que, numa situação que ela não captaria, é ela que vai poder te fazer ser.
Essa sensibilidade, na realidade, sai do organismo – e era a questão que eu ia articular, o uso da representação: quando o estoico diz que é necessário ter um uso ético da representação, é que uma imagem, num encontro, traz a compreensão nela mesma. Para Platão isso é impossível, ou para Aristóteles – isso é tudo acidente. Para o estoico, toda imagem tem uma compreensão. Então a compreensão da imagem já é o sentido expresso na imagem; e a sensibilidade só é possível se eu tocar o sentido espiritual que está nela. Então eu já tenho imagem compreensiva.
“Depois” (entre aspas porque é tudo simultâneo) eu tenho o assentimento; o assentimento é como se eu dissesse: “essa imagem envolve esse sentido, envolve esse expresso”. Eu trago o sentido envolvido na imagem. Aí eu dou assentimento a essa imagem. Logo, eu tenho uma percepção. A percepção se dá plenamente quando o sentido inteiro toma conta da imagem. Não é mais uma imagem sensível apenas, mas já é o que eles chamam de representação racional – distinguindo da representação que combatemos: a representação dos estoicos é uma presença, é uma re-presença. É a presença da coisa – no caso, é a presença do expresso, é a incorporação do expresso, a incorporação do sentido. Isto é uma representação para o estoico.
Esse uso que se faz disso é: quando você traz a imagem que envolve o sentido, o sentido mesmo – o acontecimento recortado no seu mínimo de espessura – vai dar só o que pertence ao objeto. Você não vai nem subestimar, nem superestimar; você não vai julgar mais. É o próprio sentido que se impõe como realidade emergente: ela emerge como real e se coloca, ela se põe, ela se autopõe; não precisa mais de permissão, de lei, de regra – ela vem e invade. Então esse é o uso ético da representação. E é assim que você seleciona os encontros. A questão estoica da seleção vai inteira por aí. Querer o acontecimento é querer esse algo do acontecimento, é querer esse sentido expresso envolvido na imagem ou na representação. E é nesse sentido que você faz a unidade entre a imagem, a representação compreensiva, a percepção e o próprio ato de atingir esse sentido. Você unifica a profundidade com a superfície; e a força que se expressa ou que expressa a fórmula “viver conforme a natureza”, é a mesma de querer o acontecimento – você quer o acontecimento e vive conforme a natureza. E, no entanto, você não se submete a uma forma própria da natureza porque a força não tem forma prévia, ela se efetua sem finalidade; querer o acontecimento é querer esse algo do acontecimento. Então você tem uma dupla liberdade: no plano das forças, no plano das causas, no plano de um tempo presente; e no plano do aion que é o tempo passado e futuro ao mesmo tempo que quer o acontecimento. E não precisa fazer todo o encadeamento da natureza e ter a visão de um Deus simultaneamente para ser livre; mas, simplesmente, ao investir o acontecimento é a natureza inteira que se expressa através daquele único acontecimento. Então a liberdade não tem nada a ver com uma carga de encadeamentos de causas e efeitos; a liberdade tem a ver com uma postura que afirma a força e reencontra algo no que acontece: o esplendor neutro do próprio acontecimento.
Na nossa próxima entramos em Epicuro e Lucrécio, que vão dar uma outra visão; eles vão fazer uma outra cisão na relação de causa e efeito – eles vão dizer que as séries não se unificam numa causa presente e única como é o caso dos estoicos. Eles vão introduzir o clinâmen que vai sempre fragmentar as séries. É uma outra forma de liberdade que, no fundo, entra em ressonância. Mas aí eles não têm mais esse recorte de profundidade e superfície, a coisa funciona de outro modo; é uma outra visão, é uma outra maneira, mas que vai no mesmo sentido da imanência, no mesmo sentido de um pensamento sem sujeito e de um corpo sem organismo. Sempre a nossa questão é imanência contra transcendência – o nosso combate é esse.