por Luiz Fuganti
Luiz: – Eu me lembro que a gente tinha parado na questão do segundo modo de pensamento que é dominante no ocidente e que a gente ia desconstruir, não é isso? É isso Rosa?
Maria Rosa: – Vamos entrar no que não é pensamento, ninguém precisa de pensamento pra refletir a arte, por exemplo.
Luiz: – Então, vamos fazer um aquecimento pra chegar nessa questão, não vamos cair de paraquedas nessa questão, não. Apesar de que eu já preparei essa questão no outro encontro. A gente já lapidou, eu acho que mais o que o suficiente pro nosso propósito, aqui, ou até aqui, a noção de experiência. E é uma noção que atravessa todas as modalidades, os blocos que a gente quer desenvolver, a experiência do pensamento, a experiência do corpo, a experiência da escolha, a experiência da produção de memória ou de continuidade, e a experiência do aprendizado e do ensino. Então, a noção de experiência, na verdade, ela nos remete diretamente pra um plano de imanência da vida ou da natureza. Se o pensamento nos atravessa, é um pensamento de natureza, é nós enquanto parte de uma natureza que pensa; se o corpo nos atravessa, é nós enquanto parte de uma natureza que é corpórea também e que se move; se uma dimensão de nós mesmos experimenta a escolha, ou a diferenciação, é nós enquanto parte de uma natureza que diferencia, que seleciona; se há uma experiência da produção de continuidade, de duração de si, é porque a própria natureza dura, então nós somos parte da duração da própria natureza. Então, há uma imanência da nossa duração na duração da própria natureza, há uma imanência do nosso pensamento no pensamento da natureza, há uma imanência do nosso corpo no corpo da natureza. Assim como há uma imanência no apreender-se, no registrar, no acumular movimento e tempo e no disponibilizar tempo e movimento acumulados que seria o caso da experiência do apreender e do aprender. Claro que tem uma outra face necessária que é o ensinar, o transmitir, o distribuir. Então, a noção de experimentação, na verdade, ela nos insere diretamente num plano de natureza, onde tudo acontece, tudo se passa, não há uma verdade a ser descoberta, não há uma realidade original a ser buscada, nem um sentido de totalização final que nos resgataria da imperfeição da existência. Na verdade, não há realidade que não se passe no plano da experimentação ou no plano dos encontros. Há um plano comum a qualquer realidade, um plano comum de encontros. Esse plano comum de encontros nos é posto, nos é colocado e nos coloca diretamente num campo de imanência da natureza. Campo de imanência ou plano de imanência, melhor do que campo, é um modo de apreender o real que não precisa de nenhuma referencia fora do próprio real, fora da própria natureza. Não há nada fora, ou então, o fora já é dentro e o dentro já é fora. Não há um outro mundo, uma outra realidade, um deus transcendente, uma origem que está aquém do tempo, ou enfim, que estaria além dos tempos, tudo está dentro, não há nada fora do tempo, a eternidade é no tempo, assim como o movimento também. Não é que o movimento começou a se mover a partir de um ser imóvel, o movimento já é imanente, não acaba, não há fim no movimento nem começo no movimento, assim como não há fim pro tempo e nem começo pro tempo, e nem fora do tempo e nem fora do movimento. Essa ideia de imanência é essencial. Na medida em que a gente usa a experiência enquanto porta de entrada, a gente está se servindo de um operador que já nos coloca numa espécie de relação com o imediato da vida, o imediato da existência. Uma vez que a gente existe, uma vez que a gente vive, a gente está necessariamente vivo num plano de experimentação, num plano de acontecimento. Não há vida que não aconteça, não há vida que não aconteça e se modifique. Mas a vida só acontece e se modifica nas misturas, nos encontros, na fronteira dela mesma. Então, a ideia de experiência é essencial desse ponto de vida é o que nos convida a nos instalarmos diretamente nesse plano de acontecimento imediato, imediato do corpo, imediato do pensamento, imediato da seleção, imediato da continuidade ou da duração, imediato do apreender e do transmitir. Então, essa dimensão do imediato é uma dimensão que na verdade nós reencontramos ou podemos reencontrar. Por quê? Porque ela já nos atravessou e já dominou enquanto imediato em nós, enquanto bebês, enquanto crianças, ou num ou noutro momento da nossa vida adulta. Quanto mais adulto se fica, mais se perde essa relação, adulto nesse sentido reativo das sociedades ocidentais e das sociedades humanas que são pautadas no sistema de julgamento e da representação. Esse tipo de adulto, ou de evolução, ou de progressão, que faz com que a vida se separe cada vez mais dessa capacidade de acontecer num plano imediato, vai encobrindo de uma maneira tal que a gente chega a simplesmente a desinvestir e desacreditar radicalmente essa dimensão que na verdade é a fonte de qualquer sustentação de vida ativa. Então, a gente vai desinvestir nisso e, nessa medida mesmo, a gente perde a capacidade de se relacionar ou de experimentar a experiência de modo extraordinário, no fundo é isso. A gente tem da experiência uma visão ordinária, uma visão vulgar da experiência, a gente acha que experimentar é na verdade se relacionar simplesmente com uma sensibilidade, uma certa sensibilidade. A gente experimenta, a gente troca experiências, a gente enfim…eu já insisti muito nisso, eu não vou me deter nessa visão ordinária da experiência enquanto consumo, enquanto motor de um consumo que faz com que a gente apenas consuma fantasmas ou múmias, ou essas realidades mortas, essas realidades já sem vida, sem o virtual, sem a natureza naturante atravessando elas. São já produtos que, na medida em que fazem com que a gente os consuma, a gente aumente o buraco da nossa carência, quanto mais a gente consome, mais consome coisa morta, mais falta a esse desejo isso faz, e mais fantasmas se põem no horizonte do futuro e, ao invés de nos dar direito ao futuro, o fantasma, na verdade, ele ameaça ou promete, ele nos insere nesse plano da esperança e do medo. A esperança de recompensas, de reconhecimento de uma existência, ou de um medo de ser castigado, de ser punido, entrar num regime de danação, entrar num regime de não existência, de silêncio, de não reconhecimento, de não aceitação, que faz com que, então, a experiência seja algo que tem gosto amargo, experimentar faz com que você perca o gosto pelo próprio acontecimento. Então, a esse tipo de experiência a gente tem que fazer a crítica radical e fazer a lição de casa: qual é a experiência em nós que faz com que a gente não queira mais encontrar, qual é o modo de experimentar em nós que faz com a gente perca o gosto pelo acontecimento, que faz com que a gente perca o gosto pela diferenciação. Ou seja, qual é o mal gosto, o modo de instalar o mal gosto em nós que faz com que a gente invista em formas prontas, em figuras harmônicas, em referências, em muletas, em mediações que nos coloquem na posição de controle sobre o devir, sobre o acaso, sobre as multiplicidades, não é? Que vontade é essa, que desejo impotente em nós que investe nesse tipo de fraude, né, que produz uma trapaça em relação à experimentação. O que é não trapacear a experimentação? É apreender a dimensão da experimentação, onde de fato, onde realmente há uma modificação irredutível em nós. A experimentação enquanto produção de si, a experimentação enquanto devir em nós, um se tornar diferente do que se é, um diferenciar-se, uma geração de consistência em nós, uma geração de continuidade no processo de diferenciação. Então, a experiência sairia dessa visão de um enriquecimento vulgar, de uma troca qualquer, ou de um consumo, e entraria numa zona de produção de eternidade na existência, produção de realidade aqui e agora, mas enquanto realidade e não produto do real, acessar a dimensão que produz o real, e essa dimensão ela nos atravessa, ela é partilhada, ela é distribuída generosamente, nomadicamente pela natureza, sem pedir licença pra nenhuma instância de poder, pra nenhuma autoridade, pra nenhum gen pra acessar essa dimensão. Então, isso faz com que a gente invista numa espécie de condição de entrada desse plano de experimentação, que implicaria um gosto pela abertura, um gosto, uma lapidação, na nossa capacidade de ser afetado, na nossa capacidade receptiva, aumentar a potência de ser modificado, aumentar a potência de ser afetado, de receber, de se pôr em contato com o caos, com a multiplicidade, com a diferença, que faz com que…
Ana: – Seria demais pedir um exemplo?
Luiz: Oi? Um exemplo? A vida está cheia deles, mas vamos tentar. Quando você pauta sua vida num plano de vida que já impera uma certa escolha, vamos supor, você pra se dar bem na vida ou você crescer e desenvolver você vai planejar que você só vai se relacionar com certo tipo de relação, você só vai se relacionar com certo tipo de amigo ou você vai evitar certos tipos de inimigo, você vai se relacionar com pessoas que não são nem amigas, nem inimigas de modo relativamente neutro, porque você precisa se relacionar em sociedade, enfim, você vai criar toda uma maneira de viver que, digamos assim, mediaria a tua experiência. É como se você precisasse de um plano, um planejamento, pra experimentar sem sofrer ameaças ou eliminando o risco, digamos assim, produzindo o risco mínimo e segurança máxima. Essa maneira é uma maneira de fechar a vida. Abrir-se é outra coisa.
Ana: – Quando você fala, eu entendo isso, mas dentro do discurso, eu estou tentando reduzir um pouquinho. Nós estamos aí num plano de vida, mas isso a gente tem que estar fazendo o tempo inteiro, a cada experiência. Então, é nesse detalhe que eu me perco um pouco.
Luiz: – Tá, tentar achar um foco… Deixa eu tentar te falar sem necessariamente dar exemplo, mas vê se você aplica nos exemplos da sua vida. Enfim, não importa o que você faça, você vai ouvir uma música, você vai ao cinema, você vai namorar, você vai fazer uma comida ou se alimentar, você tem aí uma pluralidade de atividades ou de maneiras de acontecer da vida no plano humano, em qualquer maneira, não importa se ela é muito elevada, se ela tem um glamour social ou se é a coisa mais insignificante do mundo, do ponto de vista social, importa que nessa maneira, naquilo que a tua presença, enquanto movimento, enquanto corpo, ou enquanto pensamento, quer dizer uma presença em você naquela relação, se apresenta naquela relação, mas se apresenta na fronteira daquela relação. Então, na fronteira dessa relação, no relacional mesmo que constitui a relação, uma zona onde não há nenhuma forma previa, que você projetaria e diria “não, eu passo sob essa forma que eu já represento de alguma maneira na minha consciência”, ou que eu projeto já em função de um estado vivido, “ah, isso eu não quero pra minha vida, aquilo eu quero pra minha vida”. A gente sempre fica entre a memória e o projeto, ao invés de ficar nessa ponte estéril, nesse salto estéril, entre um passado que foi e um futuro que será, a gente apreender esse meio onde a coisa se passa, enquanto ela se passa. Aí não tem forma previa, mas existe presença de uma potência, de uma dobra que nos constitui, isso que faz com que a gente se apreenda enquanto vivo. Quer dizer, o que é a vida em mim? O que me faz sentir vivo? Quer dizer, essa presença que faz sentir, ela, ao mesmo tempo, faz cópula com o acontecimento, ela copula com o acontecimento. Então, nessa cópula com o acontecimento… exemplo, você vai ouvir uma música, geralmente nós ouvimos uma música tentando entender a música ou então buscando uma certa referência pelo nosso estado de corpo ou de alma, estamos tristes, estamos alegres, então, a gente já parte de uma referência e aquela música ou ela desenvolve esse estado em nós, ou ela intensifica esse estado em nós, ou ela nos leva pra um outro estado, enfim. Mas há sempre uma espécie de uso, de instrumentação, com uma certa finalidade que é desejada por um modo impotente de viver. Então, eu faço a experiência, daquilo que se passa na experiência um meio pra chegar em algum lugar. E isso é fraudar a experiência, isso já é desperdiçar a experiência. Então, de que modo você poderia ouvir musica, então? Há uma zona da música onde é pura matéria sonora que nos atravessa, a matéria sonora sem ser remetida a um estado de corpo ou a um estado de mente ou a uma referência.
Alguém: – Sem nome.
Luiz: – Sem nome, exatamente. Essa matéria sonora enquanto acontecimento ela te modifica, ela te mobiliza, ela te redispõe, ela te toma, ela sonoriza em você, ela faz música em você. Não há uma instância em você que interpreta a música, ao contrário, a própria música ou a matéria sonora te invade e te põe em devir musical. Não que você seja alguma coisa amorfa, receptiva de algo que vem de fora e pronto, você simplesmente é uma caixa vazia que recebe essa matéria sonora, você não é uma caixa vazia. Você é já uma diferença de potencial, que necessariamente se compõe com essa matéria sonora e diferencia essa matéria sonora. É como se essa matéria sonora se apropriasse de você pra inventar uma outra sonoridade em você ou a partir de você.
Ana: – Uma freqüência, né, troca de freqüência.
Luiz: – Exatamente, uma freqüência que gera ressonância, que gera uma variação melódica também, que gera um outro tipo de ritmo. Porque o ritmo, ou uma melodia de uma música, ou uma freqüência de uma onda, quer dizer, na medida em que ela te encontra, ela encontra uma outra freqüência em você, uma outra melodia em você, um outro ritmo, então é como se ela se aproveitasse de você pra se pôr em variação ainda de uma outra maneira. Veja o que essa matéria sonora pode. Ela pode muitas coisas e pode no encontro comigo gerar uma outra musicalidade. Então, aí, é uma experimentação de fato, é como se, sei lá, um outro exemplo bem fácil, o que os turistas fazem? Aliás, o que é ser turista? Geralmente é se deslocar com o velho mundinho que se tem, então, você vai, os novos locais, os novos tempos, as novas pessoas, as novas atmosferas, levando as suas velhas referências. E aí o que você faz? A partir das suas velhas referências, você compara, o tempo inteiro a gente fica comparando e hoje em dia a coisa já está em grau tal que até isso se dá de modo inconsciente, porque as próprias ofertas de pacotes turísticos já fazem a comparação antes e você nem percebe. Exemplo, você vai pra algum lugar selvagem, ai você chega lá já existe uma pousada que é a mesma que seria aqui em São Paulo, ou em Paris, ou não sei aonde, é o mesmo jeito ascético, a mesma distribuição espacial, o mesmo funcionamento, os mesmos funcionários, aquela mesma burocracia, aquela mesma disponibilidade, e ai você então, sei lá, vai ter à disposição um carro quatro por quatro, que vai entrar na selva com a maior segurança.
Maria Rosa: – Aí, você se sente em casa.
Luiz: Você está sempre em casa, exatamente! Essa familiaridade é que nos dá conforto e que não ameaça nada, que não nos põe em risco, que não nos põe em experimentação, impede justamente a mistura, impede justamente a experiência. Assim, um turista, por exemplo, ele pode fotografar só roubando, ele fotografa, ele registra passivamente, mas ele mesmo é incapaz de se pôr naquele encontro que gera inclusive uma expressão visual na fotografia, fazer de uma foto uma obra de arte, mas tem que se dar, precisa se entregar, precisa de fato se relacionar, então é o mínimo de espreita, o mínimo de contemplação, não de uma ideia fora do mundo, mas de contemplação dessa matéria que te atravessa. Então, deixar que essa matéria penetre e de fato produza uma diferença que faz com que você também contribua e generosamente gere uma sensação nova. Aí haveria experimentação, mas você simplesmente sair fotografando dizendo “estive aqui”, aí vai atrás de um monumento e aí pede pra alguém “olha, estive aqui”, é uma coisa banal, e esse exemplo é um exemplo ridículo, mas é um exemplo que na verdade serve pra todas as nossas maneiras de viver nas pequenas e nas grandes coisas, a gente geralmente vive assim: inserido num sistema de referência, seja de signo remetendo a signo, seja de imagem remetendo a imagem, seja estado de corpo remetendo a estado de corpo, é sempre essa circularidade viciosa que nos afasta desse acontecer fresco, desse acontecer inédito. Então, é de fato uma outra coisa você experimentar, digamos assim, uma dimensão abstrata da prática, o que é praticar o abstrato? Pratica o abstrato é encontrar no acontecimento efetuado, que se efetua, que nos põe numa dimensão concreta, aquela dimensão sem a qual aquele concreto não existiria e que é inteiramente abstrato. É inteiramente abstrato, no entanto, é totalmente real. É essa maneira de viver o tempo, é essa maneira de viver o movimento, é essa maneira de viver o pensamento, de viver o desejo, essa maneira de sentir, de agir e de pensar. Então, é uma nova maneira que implica necessariamente um reencontro com a experimentação em estado puro. A experimentação em estado puro. Não que a gente vá experimentar de modo puritano, não é isso (25:16).Você traz todas as suas imagens, os seus signos, os seus valores, os seus preconceitos, seja lá o que for, não importa, você vai trazer, não tem como não trazer, mas tem como não deixar que isso seja dominante. Isso tem como, então a questão não é jogar fora as representações, os signos, as imagens, nada, mas é não deixar que isso comande a experimentação. Essa zona do acontecimento enquanto acontece, ela deve ser dominante pra que a vida se torne novamente ativa. Desses exemplos, você pode multiplicar, tem… um outro exemplo bem simples, o que faz um desenhista ou então um pintor? Se ele está de fato fazendo uma obra de arte é estúpido, é ridículo ele dizer assim “ vou pintar um quadro de um cavalo, um cavaleiro e uma paisagem, e não sei o que”, ele já faz uma ideia simbolizada na cabeça dele, ai ele simplesmente tenta adequar materialmente com o pincel, com as cores, com a tinta, com seus movimentos, na sua relação olho-mão, ele tenta adequar a ideia prévia, isso não é arte, isso não é experimentação. A arte, você pode até usar isso, mas isso é um simulacro, você usa isso porque você sabe que isso está em movimento, isso está se dissolvendo inteiro, isso é um simulacro de alvo, de projeção, de idealização, mas o que se passa de fato é na própria passagem uma entrada de elementos virtuais que vão se atualizando ou que vão concorrendo e contribuindo pra que a obra se enriqueça e surpreenda de fato e gere algo que estava fora de qualquer projeto e fora do que já foi, algo do vivido, e aí sim de fato você vê que é a luz e a não-luz nessa tensão, nessa fronteira entre a luz e a não-luz produzindo uma luminosidade inédita, uma obra pictural, um quadro, uma arte plástica.
Luiz Fernando: – Você falou de arte, acho que exatamente o conflito dos impressionistas era exatamente esse. Enquanto captação da duração da experimentação do durável, eles estavam dentro dum conflito que era a própria obra de arte e a memória deles que trazia, por exemplo, a árvore que o impressionista ia pintar.
Luiz: – O figurativo, é. É isso aí.
Luiz Fernando: – Acho que estavam bem nesse conflito aí.
Luiz: – E Cézanne foi o que…
Luiz Fernando: – Mesmo assim remeteu a uma análise como que em experiências anteriores.
Luiz: – É verdade. E aí eles vão inventar, multiplicar técnicas, inventar e multiplicar técnicas que dêem conta dessa outra maneira de perceber que faz com que você extraia perceptos do próprio percebido ou dessa percepção naturalizada em nós. É uma maneira de uma figura, com o domínio do objeto ou com o domínio de uma forma, ou do já vivido, ou do já produzido, você não se torna refém disso, ao contrário, você vai encontrar o elemento produtor nessa dimensão já produzida. E os impressionistas eles tem muito esse conhecimento, Cézanne e Van Gogh principalmente, são o que vão levar mais longe e ultrapassar inclusive as técnicas iniciadas pelo próprio impressionismo, vão inventar um novo caminho, mas é uma maneira de você sair da referencia objetiva sem cair numa referencia subjetiva, que não é melhor que a objetiva. Ou seja, nem sujeito, nem objeto, tem algo anterior, sujeito e objeto já são efeitos. Tem algo entre, essa dimensão do entre, que eu estou chamando de experimentação, de experimentação do imediato. É necessário, então, pra que a gente acesse ela, fazer uma lição de casa, é necessário que a gente apreenda e aprenda a se exercitar aí, a se preparar aí, a produzir um corpo e um pensamento que impere nessa direção. Então, é necessário uma preparação, ou seja, aí, voltando a sua questão, você só experimenta na abertura e tem gosto pela abertura, se a abertura não te machuca de modo carente, se a dor não é uma dor de falta, porque na abertura tem dor, não tem como não ter, assim como tem prazer. Agora, a dor e o prazer são meras forças reativas, são efeitos do modo como se relaciona. Então, nós temos as dores e os prazeres que nós merecemos, na medida em que a gente consegue se relacionar de uma certa maneira e não de outra. Mas isso a gente pode mudar, mas você só muda se você deixa de ser piedoso com a própria dor e, portanto, ser piedoso também com o outro. Então, se abrir machuca? Machuca. E se sobre o machucar existe um ganho de velocidade (30:46), um dinamismo, um fortalecimento, um anúncio de uma nova composição, uma nova maneira de ser. É o que diz Nietzsche: “não há dor que não tenha um sentido alegre”. Encontrar o sentido alegre da dor em nós é necessário pra que a gente opere essa abertura, esse aumento de capacidade de ser afetado e você só opera isso numa espécie de modo contínuo, você cria uma espécie de circulo virtuoso em você na medida em que essa abertura ela também te põe numa outra dimensão da escolha, você escolhe mais. Não mais aquilo que você acredita ser bom, ser verdadeiro, ser justo, e rejeita aquilo que você acredita ser mal, enganador ou injusto. Você escolhe agora em qualquer coisa que te chegue algo nisso que te chega, algo que é necessário. Você não escolhe mais entre uma coisa ou outra. Em cada coisa que te chega, você escolhe aquilo que é necessário. Isso faz com que você saia do julgamento, daquela ideia de que “ah, poderia ser diferente, por que eu não fiz diferente? Por que fulano não fez diferente?” Por que eu não fiz diferente? A culpa é minha. Por que fulano não fez diferente? A culpa é dele. Ressentimento e má consciência. Quando você encontra o necessário, você sai disso. Não, tem algo que é necessário, tem algo que quis de modo pleno ali, ainda que você não apreenda essa dimensão em você, ainda que você não apreenda essa dimensão no outro. Mas há que apreendê-la, senão não tem como não moralizar. Essa é uma maneira de fazer da abertura um gosto. Um gosto mesmo, não só uma declaração de intenções. De fato, vivendo dessa maneira é o próprio gosto que se instala em você, o gosto pela diferenciação, o gosto pelo acontecimento, o gosto pela modificação que te faz ser diferente do que você é, que te faz desejar de modo diferente, que te faz pensar de modo diferente, que te faz sentir de modo diferente, que te faz agir de modo diferente a cada acontecimento, a cada jogada nessa experimentação. A cada experimentação, há uma modificação real de nós mesmos, assim como, claro, de tudo que está atravessado por nós. As coisas se modificam necessariamente, são modificadas e nos modificam, esses acontecimentos. Essa dimensão da experiência que é necessário a gente exercitar e nós vamos trazer isso dos vários pontos de vista, do ponto de vista do corpo, agora estamos falando ainda do ponto de vista do pensamento, mas vamos fazer ainda do ponto de vista do corpo, aí essa questão da arte vai voltar com tudo, vamos fazer isso do ponto de vista da ética, do ponto de vista da produção de memória e assim vai. Agora, na medida em que a gente acessa essa ideia de experiência, a gente tem esse conceito de experiência, que não opera apenas como um conceito, mas como um modo de acontecer em nós, uma espécie de plano de acontecimento em nós, nessa mesma medida, nós vamos ter também uma outra ideia do que é pensar. O que é o pensamento? E também vamos saber o que não é pensar. A gente pode saber rigorosamente o que é pensar e o que não é pensar, porque diz-se sempre que é muito mais fácil você saber o que não é, já saber o que é é mais difícil. Mas aí, se você acessa essa dimensão do imediato, você sabe o que é. E mais, o que é já estava antes do que não é. Ou seja, a própria crítica do que não é, esse não ao que não é implica já o encontro com uma afirmação que é e não se compara ao que não é. A natureza do sim tem outro estatuto do que a natureza do não. O não é mero efeito, é um dos modos do sim numa certa dobra, numa certa relação. O sim ele é um plano primeiro afirmativo e desejante da natureza.
Roni: – É Parmênides. (35:05)
Luiz: – É Parmênides, o ser é, basta. Não precisa dizer que é bom ou mal, antes de tudo ele é.
Roni: – Mas haveriam vários modos de apreender o pensamento, que dizer, o pensamento é, mas você tem vários modos de acessar isso.
Luiz: – Mas não importa o modo que você acesse existe um modo essencial que é o imediato do pensar. Isso é essencial. Não importa o caminho, importa que o pensamento encontre a dimensão autônoma dele mesmo. Isso importa. Não existe fórmula, mas existe um rigor, não é de qualquer maneira. Ou então, se é de qualquer maneira, a gente tem a maneira que a gente merece, tudo bem. Tudo é livre, mas só que isso tem retorno sobre você e sobre tudo.
Eu acho que aqui a gente já fez esse aquecimento pra entrar novamente na questão do pensamento. Eu não desdobrei a ideia de experiência, porque a gente já vem há dois ou três encontros falando de experiência.
Talvez a gente possa só introduzir o que é pensar de modo um pouco breve pra gente ter uma espécie de noção ou de contraste em relação àquilo o que não é pensar. Aí abandona o que é pensar, fica desenvolvendo o que não é pensar e depois a gente retoma o que é pensar.
O que é pensar? Pensar é um acontecimento, mas de que natureza? É um acontecimento de uma dimensão do real que é virtual. O pensamento acontece no virtual. Ele acontece no concreto também? Acontece, uma vez que a gente está aqui pensando e expondo desta maneira, isso é uma concreção do pensamento, sem dúvida, ele está na existência. Mas ele começa e se acaba, ou ele se sustenta pela própria dimensão do virtual, que se exprime na existência como a gente está fazendo aqui e agora. O pensamento ele acessa a dimensão do inesgotável da existência. O que é a dimensão do inesgotável? É aquela dimensão que mostra, ou apreende, ou dispõe, a fonte do que se produz na existência. Se essa fonte secasse, a existência já teria secado, não haveria mais existência. A natureza do pensar ela nos põe necessariamente em relação com essa fonte. Há uma própria potência do pensar que é a própria fonte. Não significa que sejamos idealistas e que digamos então que todo real vem da ideia, nada disso. É porque o pensar é uma das infinitas maneiras do real se realizar ou se produzir. Esses tempos eu via aquele filme patético, pra dizer o mínimo, do Quem somos nós?, e aí tinha um físico indiano, um físico quântico, místico, e aliás tem muitos físicos quânticos místicos, onde ele dizia que tudo era uma ideia e que havia infinitas possibilidades do real a partir dessa ideia. Isso é uma mistificação radical, aí eu volto de novo pra deus. Aí é a resposta muito fácil daqueles que precisam de deus pra explicar as coisas. A realidade do pensar não é a fonte de todo o real, a realidade uma maneira infinita, uma das infinitas maneiras, que por sua vez é infinita, do real. O pensar é infinito. Se o pensar é infinito, ele é uma potência autônoma. Só existe autonomia na ligação com o infinito, na ligação com o inesgotável. Se não há a ligação com o infinito ou inesgotável, como é que a coisa se mantém? Ela vai depender de outra coisa, ela não vai ser autônoma. É preciso que a gente acesse essa dimensão autônoma do pensar. Para que a gente acesse essa dimensão autônoma do pensar é necessário também que esse pensar se pense em nos, de alguma maneira. A dimensão autônoma do pensar ela nos comunica, nos transmite, nos torna participantes do próprio infinito do pensar, dessa autonomia do pensar. Então, existe um modo de pensar que distribui generosamente a autonomia também em nós. Nós, pelo pensamento, na medida em que a gente acessa essa dimensão, a gente também acessa essa capacidade de pensar de modo livre, ou de criar, já pra sinalizar o que é pensar. Pensar é criar. Mas criar o que exatamente? É um tipo de realidade que começa no virtual, é criar passagens, é criar maneiras de acontecer, é criar as condições de o próprio existir, é criar as condições ou novas condições da experimentação. Na medida em que você acessa essa capacidade de pensar ou essa potência do pensamento, você também participa da autonomia ou da fonte infinita do pensar que é capaz de a partir de si mesmo gerar realidade, esse ponto é essencial. A partir de si gerar realidade inédita, sem depender, sem comparar, sem buscar referência ou pedir licença pra alguma instância verdadeira, é algo que te passa imediatamente. Todos nós somos capazes disso, basta a gente se produzir, isso é tudo que a gente tem que fazer, isso não é pouco. A gente tem que se produzir, a gente tem que dar algo de nós, a gente tem que se entregar, porque senão não rola, não vai vir por osmose. A gente tem que tomar parte da natureza que a gente já é. Está dado, a gente já é, então tome parte e se põe produzindo e se põe pensando também. Há um modo de pensar em nós que conquista essa autonomia, esse ponto é essencial. A partir daí eu posso dizer que pensar é criar. E não é criar metáfora, criar metonímia, criar representações, criar um faz de conta. Criar é criar realidade e criar realidade é produzir eternidade pelo pensamento. O pensamento ele é um tipo de experiência radicalmente singular, único, que não se compara com o corpo ou com outros modos de experimentar, ele tem a sua autonomia. Apesar de todo o pensamento ocidental, que se arvorou o direito de ser superior ao corpo e outras coisas, na verdade, falsificou o pensamento, o que é pensar, e esmagou o corpo por isso também, um pensamento que depende do esmagamento do corpo não é um pensamento, ou da desqualificação do corpo, do tempo, do movimento, da vida, que é o que aconteceu com o ocidente, que é dominante até hoje, esse modo de pensar. Esse modo niilista de pensar, que desqualifica o real. Agora, o pensamento mesmo, se ele encontra a sua autonomia, ele é muito mais do que se imagina que é e ao mesmo tempo ele não tem a iminência e nem a autoridade de julgar corpo, de julgar o desejo, de julgar a vida. Pelo contrario, ele é um aliado da vida, ele se alterna com o corpo e com outras dimensões de nós mesmos, ele faz revezamento, pra justamente potencializar as outras dimensões de nós mesmos, afirmar as outras dimensões de nós mesmos. Aí você tem um pensamento real autônomo e independente, assim também eu tenho que encontrar essa dimensão pro corpo, que a gente vai ver depois. O corpo também tem essa dimensão autônoma que não depende do pensamento e não tem dicotomia alguma aqui. Mas há algo em nós que é o mesmo no corpo e no pensamento? Sim, é uma potência como uma maneira de pensar, é uma potência que se apresenta como uma maneira de mover no corpo. É a mesma potência, mas, ao se efetuar, ela é radicalmente diferente. Ao se efetuar, ela se multiplica, ela se diferencia, sem dicotomia, sem corpo e pensamento em oposição, sem ficar naquela velha balela de uma coisa é a alma, outra coisa é o corpo; uma coisa é a prática, outra coisa é a teoria. (45:54) Isso é o que não é pensar e o que não é mover no imediato. Pensar, desse ponto de vista do encontro com a potência imediata da natureza, é criar. Claro que aqui existem dois momentos: o momento do momento primeiro, ou até do reencontro que a gente quer operar, na medida em que a gente quer desconstruir o uso que a gente faz com a linguagem pra acessar essa dimensão imediata do pensamento, uma coisa é isso, uma coisa é esse encontro ou esse reencontro com o imediato; e outra coisa é conquistar essa capacidade de se manter no imediato. São dois momentos distintos. Um que a gente chamou de primeira idade e ou de primeiridade. Esses momentos se diferenciam, mas eles, mesmo que eu fique no primeiro momento, eu já tenho uma intuição do que seria pensar. Essencialmente, pensar é criar. Eu posso até ainda não ser capaz de criar, mas se eu sei que ao encontrar o imediato, há necessariamente uma criação, eu posso entender que a criação é algo que faz a diferença de modo irredutível, no aqui e no agora, ou no agora do pensamento. Esse engendramento de uma nova realidade pela potência do pensamento que se atualiza opera a criação de uma nova maneira de acontecer ou até de um conceito se eu chamar isso de filosofia, ou de uma nova maneira de sentir, de perceber e de ser afetado, se eu chamar isso de arte. A arte vai produzir sensações, a filosofia vai produzir, ou criar, conceitos. Aqui, agora, usando uma descrição que o Deleuze faz no O que é Filosofia. E a ciência criaria funções. Há pensamento na arte? Há, é o modo de criar sensações. Há pensamento na filosofia? Há, é modo de criar conceitos. Há pensamento na ciência? Há, é o modo de criar funções. Funções do corpo existente, do movimento. O que é instaurar, inventar uma função? É inventar relações que produzem uma realidade nova. Como uma maquina de moer carne, você põe a carne aqui, a manivela ali, e sai a carne moída, é uma função, você inventa uma função, você produz uma realidade. Há pensamento onde há criação, seja de função, sensação, de ideia ou de conceito. Aliás, a ideia ela está em tudo, ela está na função e está na sensação. ideia é mais amplo. O conceito é mais especifico, o conceito é algo da filosofia, se a gente quiser nomear dessa maneira. Ou convencionar que quem cria conceito é filosofia, quem cria sensação é a arte e quem cria função é a ciência.
Eu vou abandonar agora um pouco essa dimensão do que é pensar. Vamos entrar nessa crítica do pensamento ou do modo que os homens se relacionam com o pensamento.
Roni: – Antes de entrar talvez caiba… a gente pode associar o pensar ao sofrer necessariamente? Ou o pensar pode estar numa superfície de tal modo lisa que ela…
Luiz: – O sofrer, enquanto potência de ser afetado, sim. Nós somos forçados a pensar. Como? Pela violência do acontecimento, ou pela agressão do acontecimento. O acontecimento acontece apesar de nós, “ah, eu não quero que aconteça”, algo vai acontecer, seja o que for, mas acontece. Esse acontecer força pensar.
Roni: – Não é uma boa vontade.
Luiz: – Não é uma boa vontade. Esse forçar pensar do acontecimento ele pode ser sentido por nós como um padecimento e a gente se vitimiza, e aí há um sofrimento pela falta. Mas a gente pode usar o sofrimento como capacidade receptiva ou de modificação. Aí sim, o sofrimento seria um sofrimento ativo, seria uma capacidade receptiva ou de ser afetado, que é justamente também uma capacidade de colher os elementos que vão compor o problema e a resposta que eu vou criar. Pensar, essencialmente deste ponto de vista, é problematizar, isso a gente vai ver depois.
Roni: – O ganho de consistência se daria necessariamente com o tempo, quer dizer… o que eu estou pensando, se você tem uma experiência que você já entendeu alguns processos, algumas causas, na medida que você tem outras experiência, aquilo lá, aí você já ganha velocidade, então é como se você sofresse menos com o tempo.
Luiz: Você padecesse menos, diferente de…
Luciana: – É porque as experiências não se repetem, então é por isso que não dá pra você criar esse…
Roni: – Com certeza, mas no diferencial, se se apreende o diferencial das experiências, você já entra num processo de liberdade imanente.
Luciana: – Já confia.
Ana: – É delicado aí, porque, ao mesmo tempo, a gente está tentando desconstruir alguns conceitos pela experiência própria, mas ao mesmo tempo, com a experiência de desconstruir eu crio uma experiência… Não dá!
Luiz: – Fica uma experiência vaga.
Ana: – Se você vai sofrer mais ou vai sofrer menos, independe de você estar construindo. Depende de como você vai lidar com a experiência, senão você está caminhando pra segurança, pra sofrer menos.
Luciana: – Talvez o que você consiga é criar o exercício de se colocar em experimentação.
Luiz: – Essa postura é fundamental. É uma prática, é isso aí. Você não contabiliza, isso não se contabiliza. O que acontece? Existe uma dimensão, uma zona de registro que acumula, que conserva a experiência e acumula tempo, que é o que a gente chama de memória e que acumula movimento também.
Ana: – Foi a pergunta da semana passada. Lembra que eu te falei? Dessa prática, justamente, como é que eu faço um exercício pra eu não cair de novo no mesmo lugar. A experiência tem que trazer alguma coisa que torne essa experiência válida, então a validade da experiência é a própria experiência.
Luiz: – Ela te dá um plus de potência. Na medida em que ela te dá um plus de potência, se de fato você se permite, ou se deixa afetar pela nova relação, ela te traz elementos que podem criar um plus de potência. Nessa medida, ela te põe já numa outra dimensão, numa outra plataforma. Quer dizer, o final da experiência já é outra coisa. Nunca você vai repetir…
Ana: – Ah, então é essa história, não é que você caminha pra um conceito, é pra um outro ser. O ser que se relaciona já é outro.
Luiz: – Você se torna outra multiplicidade, é isso aí.(55:01) E aí essa outra multiplicidade, ela pode ter uma capacidade maior ainda de abertura, ou no caso da decadência, menor, aí ela se fecha, aí vira uma unidade subjetiva, entupida, essas coisas que a psicanálise gosta se relacionar, de resgatar e incentivar ainda mais. Mas a multiplicidade mesma ela já uma espécie de…é que nem diferença de potencial, se você sobe numa montanha, aumenta tua energia potencial, não é isso? A física mais banal, a física clássica, você sobe na montanha, aumenta tua diferença de potencial. É a mesma coisa, quando você conquista uma experimentação, você aumentou a tua energia potencial, você aumentou a diferença de potencial.
Ana: – Mas essa diferença de potencial, pelo olhar da física banal, não quer dizer que necessariamente ela é boa, porque se você escorrega o tombo é maior.
Luiz: – Eu falei banal, porque justamente não tem como escorregar e voltar pro mesmo lugar. Existe uma passagem no Zaratustra de Nietzsche, que ele fala assim “ o meu anão”, “o meu macaco”, o macaco é o que imita, o que pula etapas, e o anão é o que tem o pensamento mais baixo, ele diz “oh, Zaratustra, você que é o mais elevado, saiba que tudo que sobe, desce”, ou seja, você volta pro mesmo, você sobe e cai. Não é nada disso. Quando você sobe, na experimentação real, você jamais cai no mesmo lugar. Você pode até ter algum tipo de queda, mas já é outra zona de acontecimento, você nunca volta pro mesmo lugar. Aquilo é irredutível, aquilo já é eterno em você.
Ana: – Não, mas cair não quer dizer voltar pro mesmo lugar. Eu estou falando cair no sentido da dor.
Luiz: – Sempre estamos sujeitos a isso, sempre estamos sujeitos a fazer maus encontros e ficar no limiar péssimo de nós mesmos, ou seja, com um mínimo de intensidade. Mas esse mínimo de intensidade já segundo essa nova multiplicidade que a gente é. Cada multiplicidade que a gente se torna ela tem um limiar mínimo ou péssimo e um limiar ótimo ou máximo. Existem zonas extremas de nós mesmos na multiplicidade que nos constitui naquele momento. A experimentação é a capacidade de se manter na fronteira de nós mesmos e na fronteira de nós mesmos a gente conquistar novas passagens ou produzir futuro. É um exercício, é uma arte, uma prática, um aprendizado. Não é que a gente tem que ficar preocupado com essas coisas, é já trazer isso na dimensão do gosto, fazer disso até um inconsciente em nós. A gente já inconscientemente gosta do acontecimento e isso é difícil, porque a gente tem que desconstruir todo o entupimento e a merda que foi produzida e acumulada em cima de nós, tudo aquilo que a gente carrega, e com humor ainda. Tem que desconstruir isso com humor, não de modo ressentido, não de modo irônico. Mas é desconstruir realmente, porque a gente já estabeleceu núpcias com essa diversificação, essa diferenciação que nos põe em acontecimento, e que nos põe também em contato com a fonte. É por isso que a gente é capaz de destruir com humor, porque a gente tem uma afirmação maior do que essa destruição. Não é uma crítica construtiva, a crítica é destrutiva sim, ela tem que ser destrutiva, mas destrutiva daquilo que impede a vida de se potencializar. Tem que ser destruído mesmo! Mas a partir de uma afirmação primeira que não tem nada a ver com uma construção a partir de uma destruição. É uma construção já de um outro plano, é outra coisa, não tem comparação, já sai fora desse regime de comparação.
A consistência que você estava falando lá é evidente que é no tempo e no movimento. Aquilo que a gente chama de imediato, é fundamental a gente não confundir com o instantâneo. Eu acho que aos poucos a gente vai dando elemento para que essa confusão se desfaça. Porque o imediato tem espessura, eu acabei de citar Nietzsche que chama o macaco em nós aquele que quer saltar, ou o bufão. Ele diz: “o homem em nós é o que tem que ser ultrapassado, mas só o bufão acredita que pode saltar por cima do homem”. Há uma dimensão de homem em nós e temos que viver essa dimensão, ela tem espessura no tempo e no movimento, então a gente não pode saltar etapas ou pular etapas. Esse tipo de atalho é uma ficção. É necessário que você viva toda a dor que você tem que viver, toda a tristeza que você tem que viver, todas as doenças que atravessam de alguma maneira. Agora, é claro, é sob um outro ponto de vista, sob o ponto de vista da transmutação. Aí você tem uma continuidade na experimentação de fato, algo na experimentação engendra você mesmo. Não é que você projeta algo e vai se pendurar nesse algo que você projetou. Não, esse algo que você projetou, na verdade, foi engendrado, aquilo que está lá no fim é efeito de uma afirmação em si, de uma afirmação da diferença que te constitui. Então, aquilo é engendrado de dentro e não estabelecido de fora pra que eu me pendure nisso, aí seria inconsistente, seria uma falsa consistência. Então, a consistência é um auto-engendramento. É que nem quando isso que a gente falou agora pouco da obra de arte ou no cinema, você pode ver isso em relação à montagem, ou mesmo no teatro ou em outras experimentações. Uma coisa é você separar cenas, discursos, falas, movimentos, separar varias cenas e reconstruir as cenas, então essa vem depois daquela, enfim, você cria uma narrativa, você monta os segmentos de movimento, de tempo, de falas (62:05), de gestos, de modo extrínseco, você olha de fora. Tem uma ideia que sobrevoa aquilo, diz “isso eu quero que vá disso até aquilo”, e isso não é consistência. A consistência é quando aquele segmento mesmo já tem uma autonomia tal, uma potência tal, ele engendra necessariamente o extremo dele mesmo, uma passagem dele mesmo pra algo que você nem sabe o que vai ser, mas no encontro com os outros segmentos aquilo emerge. Aí você tem uma montagem imanente pra falar do ponto de vista do cinema, até mesmo no teatro. Essa consistência acontece com a nossa vida o tempo inteiro. Quer dizer, como é que a gente vive a nossa vida? Estabelecendo a nossa grade semanal, as nossas janelas, os nossos preenchimentos e sempre sendo refém desse esquadrinhamento do tempo e do espaço em nós? Ou de fato esse esquadrinhamento do tempo e do espaço em nós é apenas um álibi pra se manter em experimentação, pra fazer da nossa vida um laboratório, é uma espécie só de protocolo para se manter em experimentação. Aí OK o seu suposto planejamento administrativo e burocrático é só uma espécie de protocolo pra se manter no acontecimento. É um cuidado que a gente precisa ter com o nosso modo de viver. Aí há continuidade, não é a continuidade que toda segunda-feira eu vou fazer a mesma coisa ou todo sábado eu vou fazer a mesma coisa, isso é apenas um protocolo, vai haver uma outra continuidade, quer dizer, esse acontecimento que acontece ele engendra ponte pra ele mesmo, que o faz ser outra coisa. É o que nos constitui na nossa natureza, nós somos uma diferença que se diferencia de si mesma, que se distancia de si mesma, que cria uma continuidade a partir do próprio acontecer que nos atravessa. Mas nós vamos desenvolver bem isso no quarto módulo que é a questão da produção de memória.
Voltando então pra questão do pensamento. A gente viu de modo bem panorâmico o que é pensar. Pensar é criar e não precisa ser filósofo pra pensar, o pensamento ele se pensa e pensa em nós em várias dimensões. Então, o cientista pensa, o artista pensa, o filósofo pensa, outros pensam, se a gente quiser criar outras classificações também. Mas essencialmente o que a gente não pode perder de vista é que pensar é criar, e criar não fantasminha, não metáfora, é criar realidade. Ou seja, criar realidade é aquilo que se engendra de modo inédito e que faz com que a natureza seja outra necessariamente, você modifica realmente o plano do existir. Pensar é uma máquina de produção, pensar não é uma instância em nós que vai descobrir a verdade das coisas, isso é muito estúpido, isso é muito pobre. Mas agora vamos entrar nessa estupidez que dominou e que é dominante no ocidente. Essa estupidez ela começa pela ideia de que pensar é contemplar. Isso é inaugurado por Sócrates e principalmente Platão. Platão é que vai dar o acabamento dessa ideia. Teoria em grego é contemplação, mas do que exatamente? Não vamos moralizar a palavra contemplação, porque existem contemplações que são muito interessantes: um sapo, ao se alimentar, antes de tudo, ele contempla o mosquito; uma aranha contempla a mosca, assim ela produz a teia. Uma coisa é contemplar os elementos da natureza, outra coisa é contrair tempos e movimentos, se pôr à espreita, suspender a ação e a reação pra apreender aquilo que se passa na natureza, essa é a contemplação.
Roni: Essa é a que o Deleuze afirma.
Luiz: Deleuze, Bérgson e outros mais. Ou seja, aquilo que ele diz um certo momento: “ a vaca contempla o capim, a pedra contempla o silício”, é uma zona de experimentação na fronteira que faz com que os elementos sejam dobrados, o fora seja dobrado com o dentro, essa contemplação é ativa. Agora, a contemplação que Sócrates, principalmente Platão, vão instaurar ou investir é a contemplação numa realidade em si e que é impossível de encontrar na natureza. Aliás, esse é o exercício que o Sócrates faz nas suas práticas heurística. Sócrates, simplesmente, se diverte de forma irônica, a famosa ironia socrática, que o interlocutor nunca entende qual o objeto do pensamento. Por exemplo, Sócrates pergunta pra Alcebíades o que é a beleza, e Alcebíades vai dizer, por exemplo, que a égua do Hermógenes é bela, um objeto qualquer no mundo. E o Sócrates o tempo inteiro vai ironizar, digamos assim, não dá aquela resposta, quer dizer, isso acaba numa aporia, não tem saída, na medida em que o objeto não está no mundo, não está na existência. Porque ele não quer saber o que é esta ou aquela beleza, ele quer saber o que é a beleza em si. Essa inspiração socrática que perverteu, diz Nietzsche, o nobre Platão. Platão que era um nobre, que era alguém que fazia a diferença foi contaminado pelo plebeísmo de Sócrates, pela baixeza de Sócrates, e fez toda uma filosofia a serviço dessa baixeza socrática. O que é exatamente a baixeza socrática? É que Sócrates acredita que esse elemento em si que você não encontra na natureza deve servir de modelo pra qualquer coisa na natureza, é o critério pra você julgar qualquer coisa na natureza. Não importa essa cadeira, aquela cadeira, a outra cadeira, importa a cadeira em si, o modelo de cadeira, que é universal, que subsumir todas as partes e submeter todas as partes, essa, aquela, a outra cadeira sob esse modelo. Então, eu posso dizer que essa cadeira é mais ou menos real de acordo com o afastamento ou a aproximação em relação ao modelo.
Roni: – Nunca perfeita.
Luiz: – Nunca perfeita, perfeito só o modelo que não existe na natureza. A natureza é essencialmente imperfeita. Essa ideia socrática que qualifica a natureza, que destitui a natureza de ordem própria é o começo do niilismo em filosofia, é aquilo que Nietzsche diz dos filósofos, que há uma certa máscara que o filósofo precisou usar na origem, que a máscara do sábio ou do sacerdote se colou em Sócrates. Sócrates na verdade não é o primeiro filósofo, é o primeiro padre que se apropriou da filosofia, é justo o contrário. E o ocidente todo referencia Sócrates como o primeiro grande filósofo. É o primeiro grande filósofo da representação, isso sim.
Roni: – Eu li três capítulos de um livro que chama Contra – Filosofia, eu esqueci o nome do autor, ele contrapõe os filósofos mais conhecidos, Sócrates, Platão, Aristóteles, mesmo pra cá, Hegel e tal; e ele se alia a Nietzsche, Bergson e Deleuze e ele traz outros pensadores que na história não são tão contemplados e coloca uma força, dá uma força pra esses pensadores contra esses outros. É uma espécie de Deleuze de outras épocas. São os combates, os combatentes das épocas, muito interessante.
Luiz: – O problema é qual? É essa operação que faz com que o pensamento se ligue a uma instância fora dele, a uma instância transcendente a ele e que o põe refém de um objeto que sempre escapa, o objeto ideal. Pensar é encontrar esse objeto ideal, que não está na natureza. É por isso que Platão vai dizer que as ideias estão na esfera supra-celeste, supra é além do céu. Os céus ainda são físicos, são natureza, mas além dos céus seria a não natureza, essa dimensão metafísica, essa dimensão divina, esse plano fictício de um outro mundo verdadeiramente real. O motivo, e é isso que Nietzsche vai ser o primeiro a desmontar de modo magistral, de modo genial, o que move Sócrates e depois o que move Platão, pra investir no ideal ou pra falsificar dessa maneira o que é pensar. A gente acabou de ver o exemplo da cadeira, você aplica em qualquer coisa: a justiça, o amor, o ódio, a sabedoria, a ética ou a moral, seja lá o que for. Você aplica em qualquer coisa, pra tudo existiria o modelo, que jamais você encontra na natureza. É esse modelo que dá condição de entre aspas avaliar, mas esse avaliar na verdade é um julgamento que vai julgar que se isso que está sob aquele modelo tem um certo grau de dignidade, um certo grau de verdade, na medida em que se aproxima mais do modelo ou que se afasta mais. E vai se estabelecer o que? Uma hierarquia entre os seres: quanto mais proximidade desse modelo, mais realidade tem; e quanto mais se afasta desse modelo, menos realidade tem. Mas a genialidade de Platão é que Platão vai chegar num ponto tão baixo de realidade que ele vai dizer: “existe uma zona do real que perde a relação com o modelo. O problema não é aquele ser que é mais inferior, que está mais afastado do modelo, o problema é quando você rompe essa fronteira e não tem mais nenhuma relação com o modelo”. Aqui está o problema de Platão, esse é o inimigo de Platão, isso é o que ele chama de simulacro. Nessa medida, a diferença não se remete mais a uma identidade que é o ser. Já já a gente fala um pouquinho dessa identidade, o que é esse ser. E a diferença ela tem um devir que não remete nem a uma origem e nem a uma identidade (74:58). Você ao investir em uma instância, uma instância transcendente, você investe em um critério que autentica os seres na existência ou desautentica. O simulacro ele é desautenticado, ele é excluído de uma possível real, ele é a falsificação, o embuste de tudo. Platão põe aí os tiranos, os poetas, os artistas, os sofistas, que digamos assim, vão perverter essa ordem do ser, que vão fazer com que a vida se perca pro outro lado. Mas qual é o motivo essencial? O motivo essencial é uma sociedade decadente, Sócrates emerge já de uma sociedade decadente, de uma Atenas decadente. Platão vem depois, a sociedade estava mais decadente ainda. Sócrates acredita que a lei é delegada ao representante do bem ou, digamos assim, que a verdade ela é representante do universal ou do modelar, que é o bem. Por que é o bem? É o bem porque o universal contempla todas as partes, ele justifica todas as partes, ele legitima todas as partes. As partes que se ficassem simplesmente no estatuto de partes entrariam em conflito, em guerra, ou em um modo de disputa que investiria apenas no interesse de cada parte. Na medida em que se relacionam com o universal, elas são resgatadas ou redimidas (77:03) e postas numa certa ordem. O universal é o representante do bem e uma vida, uma sociedade que está em franco processo de decadência, investindo mal, no engano, na injustiça, precisa imediatamente reconquistar a dimensão do bem. E Sócrates, através do discurso e a filosofia, vai achar que a dimensão do bem está na essência da verdade que ele chama de objeto geral, de objeto universal, que não tem na natureza, portanto é um objeto ideal, puro, sem nenhum corpo, sem nada de corpo. Puro a ponto tal que ele jamais entra em movimento ou no tempo, ele permanece imutável, ele permanece absolutamente protegido da ação do tempo e do movimento, ele jamais perde a própria natureza, ele se mantém eternamente idêntico a si mesmo. Isso que Platão depois vai enunciar como um aspecto tautológico da ideia. É mais ou menos isso: o que é a justiça, a justiça é justa; o que é a verdade, a verdade é verdadeira; o que é o belo, o belo é a beleza. É essa tal de tautologia da ideia, a ideia é aquela que é idêntica a ela mesma, é aquela, diz Platão, pra atribuir realidade a isso, ele diz assim: “ é aquilo que jamais deixa de ser”, aquilo que deixa de ser é o devir, aquilo que devém outra coisa. Pra Platão, devir é negativo, o ser é positivo, existem seres relativos na existência que se remetem a esse modelo, mas existe esse ser ideal, que é imutável, que é acabado, que é perfeito, que jamais muda, portanto, que é eterno, que é na verdade o que dá à matéria, o que dá à existência, o que dá aos modos de vida, aos modos de pensar, aos modos de agir, o que dá uma verdade, o que dá uma realidade, o que distribui essa realidade e aí nós temos o encaixe perfeito de Platão com o cristianismo, porque é por piedade em relação à matéria que esse modelo vai dar a participar a sua qualidade que ele tem em primeiro lugar. A justiça que é justa, só a justiça pode se chamar de justa, então a qualidade justa que pertence à ideia essencial de justiça, ou ao modelo de justiça, ela é da justiça, mas a justiça, uma vez que é piedosa, ela dá uma parte dela a participar aos pretendentes que querem ser justos. É como que esse plano transcendente ideal Platão cria no mundo das ideias, porque tem ideias pra tudo aparentemente, é um plano que dá a referencia, aponta o caminho da salvação, do resgate, da reconquista de uma realidade em si mesma, de um ser verdadeiramente real. Portanto, vai se ligar a vida ou a existência a um desejo de eternidade, a um desejo de permanência, a um desejo de imutabilidade, a um desejo de encontrar esse ser que jamais muda, esse seria o nosso guia, esse seria o horizonte, segundo Platão, pra salvar. Salva do que? Salvar do devir, salvar do acontecimento, salvar do que diferencia a gente de nós mesmos, aquilo que nos põe em variação que, segundo Platão, é uma dimensão da decadência. Por que Platão vê isso como decadência? Já estava inoculado pelo plebeísmo de Sócrates, pela vulgaridade de Sócrates, pela baixeza de Sócrates. Qual é a baixeza de Sócrates? Sócrates é um corpo feio, doente e cansado. Sem nenhum juízo de valor aqui, porque você pode estar feio, pode estar doente e cansando, o problema é ser feio ou estar feio, ser doente ou estar doente, ser cansado ou estar cansado, o problema não é isso, o problema é o que você faz desse cansaço, dessa feiúra ou dessa doença. E o que Sócrates faz? Sócrates não agüenta mais a vida, não agüenta mais o devir, tanto é que quando ele é condenado a beber cicuta, ele tinha a ocasião de fugir e ele não foge. É como se tivesse um suicídio depressivo em Sócrates. Sócrates não tem gosto pela vida realmente, Sócrates acredita que o real está num outro plano, mas só acredita que o real está num outro plano aquele corpo que já perdeu a capacidade de realizar na própria existência, aquele que está cansado da própria diferença, que está cansado da multiplicidade, está cansado dos acontecimentos que o deixam cada vez mais pesado, mais velho, mais feio e mais doente. Quanto mais a vida acontece, mais eu vou ficando pior, é essa incapacidade de apreender na maneira de acontecer a fonte, é aquilo que diz Nietzsche, “o idealista, os mundanos, aqueles que desprezam o corpo e querem outro mundo, eles jamais abandonam o corpo, já que despreza o corpo, dá logo adeus ao seu corpo e vai pra outro lugar”, bom, Sócrates até abandonou no final da vida, numa espécie de suicídio depressivo. Mas você vê os padres, os sacerdotes, os metafísicos, os moralistas, que sempre desqualificam o corpo…diz Nietzsche:“ na verdade é um corpo cansado e doente que ainda está agarrado a ele mesmo, porque não tem vida fora dele”. Ele ainda está agarrado, mas a maneira de ele ainda permanecer é criar um ideal. O ideal é o modo de conservar a vida fraca, ou seja ainda é um desejo de potência, mas na verdade é um desejo de potência do impotente, portanto é um desejo de poder, poder permanecer, poder se conservar. Então, o que Sócrates quer? Sócrates quer resgatar aquela sociedade decadente de Atenas, como o próprio Platão, ligá-la a uma direção, a um ideal, a uma finalidade, ao bem, e nessa medida estabelecer um critério e uma mediação pra que as relações entre os homens e dos homens com a natureza não seja relação de adoecimento, de decadência, etc e tal. Mas na verdade ela já está instalada antes, isso não tem saída mesmo, é só uma maneira de preservar a sociedade ainda mais fraca e mais doente, chamando-se essa ordem de conservação de saúde, de bem, de verdade, que é o que é feita, essa falsificação. O que se chama saúde na verdade é a produção instituída de uma doença, o que se chama liberdade é a produção instituída de uma escravidão. É uma inversão geral de tudo. O que eu estou chamando atenção aqui é que há um motivo fora do pensamento em si, porque Platão inventa uma ideia de que o pensamento é neutro, é um sistema de verdade, o saber é neutro, mas que neutralidade tem esse saber. Esse saber é inventado justamente resgatar uma vida separada do que pode. Há um motor, há um modo de desejar antes de um pensamento em si. Platão diz: “o pensamento, esse modelo, essa ideia em si, a própria ideia é incriada, ela está num plano de eternidade, não foi criada”, mas é preciso que o próprio desejo de Platão tenha criado ela. Antes de Platão, não tinha essa ideia, tinha ainda enquanto objeto geral em Sócrates, mas Sócrates também criou de alguma maneira essa ficção. Depois de Platão, o ocidente todo, os sistemas de justiça, de ciência, etc e tal, vão aderir à ideia de que há uma neutralidade no saber, há uma neutralidade na ciência, que a verdade é neutra, ela não é subjetiva ou parcial, ela é universal, tem essa neutralidade, o que Nietzsche e Espinosa, a seu modo, tinha feito também. Mas Nietzsche principalmente vai expor que atrás de uma verdade, existe um modo de produção dessa verdade; atrás de uma ideia neutra, existe um motor que move a gerar e instituir essa ideia neutra, e essa ideia como neutra serve para conservar essa realidade que a gerou. Se essa realidade é uma realidade impotente ela vai se apegar a essa maneira de se portar e vai contagiar, vai querer fazer com que todas as realidades que de alguma maneira têm um certo grau de impotência sejam contagiadas e criem uma rede tal que esmaguem todas as relações de potência. É um contágio, é uma cultura da fraqueza, uma cultura da piedade que está fundada numa mentira, numa falsificação. Porque a verdade é mãe de todas as mentiras, a verdade é uma mentira e é isso que Sócrates inventou, a chamada aletéia. A aletéia grega é o não esquecimento, é uma memória de uma forma pura, um modelo puro que não muda jamais. É esse o não esquecimento, é lembrar ou ter a memória de que há um modelo na origem que é imutável e é ele que é que a nossa referência.
Roni: – Mas não é no sentido nietzschiano, quando Nietzsche que a verdade é a mais alta afirmação do falso está criando um simulacro.
Luiz: – Fica no conceito, se você ficar comparando…o que é a mais alta potência do falso? É apenas uma maneira diferente de dizer que a natureza nunca opera por modelos. E se o homem acha que a verdade é encontrar o modelo, Nietzsche vai dizer “não, a natureza jamais encontra o modelo, ela não opera por modelo, ela é a mais alta potência do falso”, o que é a mais alta potência do falso? É a capacidade de criar realidade, de criar sentido, de gerar valor.
Roni: – O conceito socrático é outro, na verdade a mentira é outra.
Luiz: – O perigo de permanecer nas palavras. Eu entendo, Roni, o que você quer falar, mas aí eu fico sempre remetendo uma coisa a outra coisa, se a gente ficar só com essa ideia de Sócrates inventando uma verdade, claro que depois Nietzsche vai fazer o combate, há vinte e pouco anos que você ouve isso. Se a gente fica sempre num discurso referenciado, a gente fica trocando seis por meia dúzia, mas se a gente sai do campo da linguagem e das referências e entra no pensamento, muda. Faz um esforço pra ficar no sentido das coisas, inclusive você mesmo inventar outras palavras, senão fica só comentando. E descrevendo, descreve, comenta e compara. É chamar o pensamento pra esse horizonte vivo que me põe em variação, então se eu me ligo com uma suposta verdade, o que aconteceu de fato aí? Aconteceu que essa verdade foi a eleição de um ponto de vista que faz com que eu tolere a existência e que prolongue a minha existência, eu elegi isso como sendo a verdade da vida e da natureza , e a verdade pra todos, a verdade eterna, foi isso que Platão fez. Sócrates fez antes dele. Elege um ponto de vista como estando fora todos os pontos de vista, ele tira fora esse ponto de vista, e aí sim, Nietzsche diz “esse ponto de vista também é potência de falso, mas que vai se chamar de verdade” e ele se elege o modelo universal, então ele salta e a partir daí ele vai dizer que todos os outros são falsos, mas que ele é o verdadeiro. Existe um enunciado de Nietzsche que diz assim, um dos que anuncia a morte de deus, tem varias versões, mas tem uma delas diz assim: “os deuses morreram, mas morreram de tanto rir ao ouvir um deles dizer que era único”, é a mesma questão. Então, dizemos assim, as perspectivas morreram, as singularidades morreram, mas morreram de tanto rir ao ver uma das singularidades, já separada dela mesma e impotente, dizer que ela era universal e que se sobrepunha aos singulares. Quem precisa do universal? Aquilo que dizem lá os Titãs, polícia pra quem precisa de polícia, universal pra quem precisa de universal, ideal pra quem precisa de ideal. Quem precisa de ideal? Uma vida separada do que pode, uma vida covarde que não consegue mais acontecer de modo imediato, que sofre, que padece da vida, a vida e a existência se tornam uma dimensão de sofrimento, a vida se torna vítima da própria existência, se sente vítima da própria existência. Mas eu estou dizendo isso em última instância, pra dizer que essa ideia que Platão diz que pensar é contemplar não é apenas um erro, não é apenas uma cegueira, implica toda uma política do desejo, implica todo um modo de viver, uma implicação na sociedade, na economia, na cultura, com a natureza. É um corpo em relação que vai criar esse tipo de visão em relação ao que é pensar. Não é apenas um erro, como diz Nietzsche mesmo, é uma covardia, é um investimento na covardia. A covardia diante do que? Diante da vida, que é multiplicidade, que é diferenciação, essa covardia. Ou seja, ao invés de você se preparar, ao invés de você se fortalecer, de criar condições da própria experimentação, você se ressente mais com as condições dadas em tais experiências que te diminui a potência e aí você vai buscar a condição modelar que deve submeter as condições da existência, aí você vai julgar a existência, vai tornar a existência refém de um modelo e vai dizer que a via do bem é a via da verdade e a via da verdade é a via do pensamento. Mas a via do pensamento é uma renúncia do corpo, de tudo que tem a ver com o movimento, com o devir e com o tempo. A não ser que o próprio movimento, o devir e o tempo sejam o caminho pra chegar à verdade, aí eu submeto o devir e faço do devir um meio pra chegar ao fim, que no fundo era a origem que estava lá desde o começo, a origem e o fim são a mesma coisa. Nessa mesma medida eu vou dizer que o caminho do bem é a verdade, que é o universal, mas pra acessar a verdade eu tenho que submeter o pensamento e pra submeter o pensamento eu tenho que submeter o corpo. São as práticas ascéticas, o ascetismo puritano, já inventado pelas seitas gregas, com as quais Sócrates era um elemento afinado. Esse puritanismo que vai dizer pra que a vida se liberte, pra que o pensamento pense, pra que a gente encontre a verdade, pra que a gente seja guiado pelo bem, é necessário submeter o corpo, as paixões do corpo, submeter o movimento, o tempo, a natureza, essa pura forma que estaria fora da própria natureza. Esse ideal puritano, esse ideal da não mistura, esse ideal da pura ideia sem corpo, sem movimento, sem tempo, é o que vai se chamar de verdade do pensamento. O pensamento é movido por essa ficção.
Ana: – É interessante, isso está tão arraigado que você pode tranquilamente colocar a ideia do devir como um ideal. E a verdadeira potência, o devir…
Luiz: – Justamente, você nunca pega o devir, onde é que ele está mesmo? Tem que entrar em devir, como é mesmo? Uma coisa que faz com que a gente pode até mudar de nome e aí vira como torcida de futebol, uns dizem “viva a filosofia sedentária”, e nós vamos dizer “viva a filosofia nômade”. Vira bandeira, vira disputa, acontece isso direto. Porque na verdade isso tudo é um negócio, está bem afinado com o capitalismo e da vantagem.
Ana: – Porque na verdade você tem que estar realmente disposto a encarar a dor e a realidade e essa potência. O que não é uma coisa simples dentro da nossa história, do nosso contexto, encarar essa realidade, essa potência que é o grande desafio.
Luiz: – E as nossas formações sociais nos expõem de uma maneira tal que querem anestesiar nossa dor. Ao invés da gente aproveitar a dor, elas querem anestesiar a dor. A dor é fabricada o tempo inteiro e em troca dessa fabricação se vendem anestésicos, seja obra de arte, diversão, seja saúde. Agora a saúde está ampliando, o atendimento máximo, é a lógica do acolhimento, acolhe-se tudo, qualquer bobagem, acolhe-se. Tem várias dimensões, a dimensão da religião, da grana, do consumo, são anestésicos, uma maneira de encobrir a dor. Porque sem esse encobrimento e, ao mesmo tempo, sem a fábrica de multiplicação da dor não há consumo. O sistema do lucro não funciona, isso tudo é um grande negócio, aí que está, é uma questão de honestidade, você só pode ser honesto com você mesmo. É chamar a presença que existe em você no acontecimento. De fato há uma presença e por que eu me desapresento, por que eu me ausento, por que algo em mim se ausenta dessa presença? Porque dói, e eu tenho tanta piedade da minha dor, tanta piedade de mim, aí você joga fora a oportunidade pra se modificar, pra realmente se ultrapassar. Há realmente uma fuga da dor, isso agente vê em qualquer sistema de transcendência. Em Sócrates e Platão a mesma coisa. Platão, claro, depois vai ficar indignadíssimo, horrorizado com que os atenienses fizeram com Sócrates. Os atenienses condenaram Sócrates à morte por dois motivos: impiedade contra os deuses de Atenas e ser corruptor de jovens gregos, desencaminhador de jovens. Nietzsche brinca: “não terá merecido Sócrates a sua sentença?”. Ele de fato não é um desviador de jovens? Platão era jovem na época, ele não desviou uma alma nobre como era a de Platão, que produziu essa teoria das ideias, que fundamentou toda representação ocidental? (99:17) A partir daí, existe essa visão de que pensar é algo que acontece, que é operado por uma alma, que não é uma alma sensível, que não é uma alma vegetativa, mas é uma alma puramente intelectual, separada do corpo, separada de nós mesmos e, por estar separada, capaz de acessar a pura ideia. Haveria uma instância em nós, puramente intelectiva, que acessaria essa instância real fora de nós. E que seria essa instância real? Por que eu posso dizer que essa instância é real? Porque ela não muda, essa é a visão de Platão de realidade. Para Platão, só é real aquilo que permanece real, ou melhor, só é ser aquilo que permanece no ser. E pra permanecer no ser precisa ser imutável, ou se tem movimento, o movimento é circular, o movimento da eternidade, que vai do mesmo ao mesmo, a cobra mordendo o próprio rabo, esse eterno retorno do mesmo. E esse movimento ele só é apreendido como movimento, porque ele é um operado apreendido no corpo e no pensamento dos homens existentes. Ele opera uma introjeção da verdadeira forma de agir e de sentir do corpo e da verdadeira forma de pensar. Então, ele opera, mas segundo o movimento circular da eternidade, que no corpo e pensamento humanos existentes vai se dar de modo aproximado, de modo graduado. O homem ele está em devir, mas ele põe o seu devir a serviço dessa estruturação circular que permanece eternamente idêntica a ela mesma, desejo de eternidade. Esse desejo de eternidade na verdade esconde um ideal de conservação e esse ideal falsifica o que é o real, a produção, a existência, o acontecimento. Porque a eternidade e a realidade se fazem no movimento, no devir. E esse ideal ele arranca, ele destitui essa realidade que se faz no movimento e que é uma realidade essencialmente criativa, é a dimensão criativa da existência, e põe no lugar a vontade de conservação. É uma maneira de pensar que trai a potência de criar. É uma maneira de imaginar que se pensar, onde se submete o pensamento como potência de criar e põe esse pensamento a serviço de uma conservação reativa. Pensar só é contemplar pra quem quer conservar eternamente as condições ideais de existência, aquele que põe a conservação na frente da criação, para ele esse modelo serve. Você pode dizer que isso pra todas as sociedades que se separam do que podem e estão enfraquecidas. Esse é um modelo que serve muito bem. Tanto que é que Sócrates e Platão serviram muito bem pro cristianismo, pro judaísmo, pro capitalismo. Ainda que se diga que eles eram antigos e que hoje em dia têm formas mais modernas, mas essas formas mais modernas pressupõem essa fundação antiga. Essa fundação antiga é contemporânea do aqui – agora, funciona aqui – agora, mas de forma sutilmente imanente, como se estivessem já introjetadas em nó. Não é só como se estivessem, de fato, está introjetado em nós, aquilo que estava lá fora no ideal, agora está dentro de nós, a gente introjetou o estado, o bem, uma pura forma de lei. O que se acredita se pensar dominou o ocidente até o século XVII, até Descartes, é essa visão de que um puro espírito em mim que só se torna ativo na medida em que eu submeto o corpo, deixo o corpo passivo, que eu obrigo o corpo a obedecer esse puro espírito, e daí esse puro espírito fica livre pra atingir a pura ideia, o puro ideal, o puro modelo. Ele contempla o puro modelo, ele é uma visão do modelo. Platão ele conta até o mito no Phedro, onde ele vai dizer o que é o verdadeiro amante, o verdadeiro amante ele vai dizer que é Sócrates. O chamado amor platônico, o amor platônico ele não quer os corpos, ele não se mistura. O amor platônico apenas se serve da beleza dos corpos, como uma espécie de ponte excitante de signo pra que seu espírito se insufle novamente, crie asas pra voar em direção ao ideal. Assim Sócrates, aquele homem feio e velho, decadente, sendo desejado por jovens efébreos, lindos, maravilhosos, mas Sócrates, uma vez que ele é o verdadeiro amante, ele não quer o corpo dos jovens, ele quer que os jovens, por essa inspiração da beleza, acessem o ideal, acessem a verdade, amem a verdade. Liga o desejo à verdade, liga o amor à verdade. Amar a verdade seria o verdadeiro amor, o amor platônico, fazer com que a vida, com que o desejo se ligue a esse pensamento ideal, a essa verdade fora da natureza. Então, contemplar seria acessar antes de tudo uma instância moral de si mesmo, se produzir como um sujeito moral. O que é se produzir como um sujeito moral? Renunciar o corpo pra que a instância espiritual se torne livre e, na medida em que ela se torna livre, contempla o modelo. E assim, é esse que Platão vai chamar de o rei que ele põe como comandante da República, o rei filósofo, o rei sábio. É esse que é capaz de apreender a finalidade última das coisas, do ponto de vista de um usuário ideal, e esse usuário que está no topo da cadeia legisla sobre a sociedade, produz as leis, encadeia, cria hierarquia, a ordem, etc e tal, distribui os destinos, as funções, as maneiras certas de ser, os quinhões de cada um. O que seria contemplar em nós, aqui – agora, hoje em dia? Sempre que o nosso desejo, na medida em que exerce o pensamento ou que imagina que pensa, acredita que existe algo, uma região do real, que é invariante e que deve ser acessada, que deve modelar o que varia na existência. Sempre que a gente faz isso, a gente está na contemplação, nessa contemplação, nessa falsificação do que é pensar. Ou seja, pensar não é reencontrar, reconhecer uma ideia pronta. ideia pronta é a proibição do pensamento, ideia pronta é só passado. Sábio que é assim, sábio busca a ideia pronta, ele é tão sábio que ele acessou a sabedoria já pronta e aí ele transmite a sua sabedoria aos homens. O pensador não é um sábio, o pensador é um criador, ele sabe que em todo momento existe a necessidade e potência de criar uma nova maneira de acontecer. Então, não há um modelo pronto, não há protocolo de experiência, a não ser instalando a experiência nessa capacidade criativa.
Roni: – Há um contínuo do pensar. Há algo que no pensar também…
INTERVALO
Luiz: – Esse contínuo do pensar ele depende do ponto de vista. Do ponto de vista socrático, platônico, é uma falsa continuidade, é uma continuidade do estado, cria-se um centro, uma origem, você fixa um centro na origem, e a origem é a memória original que vai ter uma continuação dela mesma. É uma continuidade a partir de ideias que são na verdade separadas umas das outras, mas que tem como unidade o bem, todas elas estariam atravessadas pelo bem, e o bem seria uma maneira de manter a ligação da vida com uma referência. Essa continuidade é na verdade uma continuidade da dependência, a continuidade da impotência, é essa continuidade que Platão cria. Existe uma continuidade aí? Sim, existe essa continuidade. Agora, o que a gente fala em continuidade nos referindo a nossa quarta modalidade é uma continuidade intensiva que tem outro caráter que não esse dessa continuidade da grande memória sedentária, que fixa a vida numa origem e torna a vida refém de um fim. O que é importante marcar nessa primeira desconstrução ou crítica do que é pensar, enfim, do que não é pensar, que seria contemplar, é que essa visão do pensamento é uma visão que é conformista, é uma visão que se acomoda, que abre mão da capacidade de criar e que investe em algo pronto, numa crença. Essa visão vai ser susceptível a qualquer poder, porque qualquer poder que se apropriar da capacidade de instaurar um modelo e manter ele numa zona invisível e oculta, vai se dizer “o modelo é esse”, mas ele foi criado por esse poder. Só que aquele que contempla não acessa o que gerou o modelo, e o modelo na verdade é um modo de captura de uma vida que vai passar a servir a instância que está por trás do modelo. É como o capitalismo e a lei, a lei é um grande negócio, é uma maneira de manter o capital se reproduzindo. E aí você uma ingenuidade no pensamento, naqueles que acham que pensar é descobrir, o que pensar é reconhecer o que já estava lá, porque isso sempre vai fazer com que o pensamento esteja submetido a uma obediência modelar. Na verdade, é uma proibição do pensamento, na medida em que você investe nesse algo a descobrir. Na natureza, não há nada a descobrir. Tudo está por ser inventado o tempo inteiro. Não existe uma realidade pronta para ser descoberta, a realidade pronta não está aí para ser descoberta, ela está aí pra ser tomada. E o que está aí pra ser tomada? É a capacidade de inventar. A realidade pronta já é a capacidade de criar realidade, de criar a ela mesma e a tudo que dela decorre. Essa é a única coisa dada.
Ana: – É muito delicado também essa questão do criar, porque se você é um ser diferente, você é um ser único, qualquer atividade, qualquer ação sua já é uma criação. Porque às vezes fica uma coisa assim “vou criar!” e não é, a própria ação é uma criação.
Luiz: – O problema é quando a criação acontece e você não toma parte dela. A natureza cria em você e através de você, apesar de você, ela cria, tudo é criação desse ponto de vista. Mas a questão é que a gente perde esse bonde, a coisa se passa em nós, há criação, mas nós não conquistamos a capacidade de gerar ou produzir o nosso destino a partir dessa, entre aspas, constatação.
Ana (114:50) – A gente pode facilmente se tornar passivo sem ser cúmplice desse processo.
Luiz: – É como a ideia de ação, dizer “eu sou ativo, eu faço isso, eu faço aquilo, faço muita coisa”, mas o que te determina a fazer? Isso a gente chama de submisso, aquele que é determinado a fazer certas coisas e não é causa dessa determinada, ele é refém de algo exterior que o constrange a fazer. Ele faz e diz que é ativo, mas o que obrigou ele a fazer? Na verdade, ele é um falso ativo. Agora, do ponto de vista da natureza, existe ação, sempre existe ação, mas do ponto de vista deste que sofre constrangimento pra gerar ação, ele não é ativo. Trata-se de sair dessa instância do livre-arbítrio, de achar que tem um eu em nós que quer, que não quer, que faz, que desfaz, que cria, que obedece. Esse eu já é uma ficção. Aqui, nós vamos entrar no segundo momento, depois que a gente desconstruir o que não é pensar, por contemplação, por reflexão ou por comunicação, na desconstrução do senso-comum e do bom senso. Quando a gente desconstrói um pouco melhor o senso-comum e o bom senso, a gente vai ver que esse ato de criação não é feito por um eu ou por um sujeito, ou por uma consciência. A consciência, o eu e o sujeito já são resultados do mau jeito na relação, não que sejam necessariamente maus, só é mau quando isso toma o lugar do acontecimento. E aí você, romanticamente, pensa que você cria, assim é “vou entrar em devir, vou criar”, mas isso é uma declaração de intenção de uma consciência que já está fora do devir, que já não cria, que reproduz necessariamente. Eu vivi isso na arquitetura, e nesse meio da arquitetura, existe uma arrogância, um narcisismo, uma vaidade dos arquitetos que se põem sobre as pranchetas, hoje em dia são autocads, mas se põem ali pra criar uma cidade, uma casa, pra criar isso, criar aquilo e de modo absolutamente arrogante, a partir de uma instância cerebral ou ideal que vai impor um modo de realidade a partir de uma zona interna genial, criativa! “ Eu sou arquiteto, porque tem algo em mim que é um gênio criador”, essa instância interna é uma pura ficção da consciência.
Ana: – Mas tem um limiar bem delicado aí, porque não tem o eu criador, mas tem a presença do ser, que é facilmente confundível.
Luiz: – Não, é confundível na medida em que a gente reduz a presença à consciência, aí sim. Mas aí a presença está reduzida ao seu efeito. O que é o efeito dessa presença? É o que acontece, é essa presença na relação, esse acontecimento ele toma o lugar da própria presença ou submete a presença à forma desse acontecimento, aí sim. Aí sim, você reduz a presença à consciência.
Ana: – Esse ser, essa coisa, que vai se diferenciando, esse algo, ele, mesmo sendo mutável, tem uma identidade, tem uma memória de passado, de futuro.
Luiz: – Eu prefiro chamar de singularidade.
Ana: – Singularidade, que define uma…é uma coisa muito confusa, não pode falar ser, mas pode falar algo, não pode falar isso, mas pode falar aquilo.
Luiz: – Não é não pode falar. Pode falar, mas apreenda o sentido. Esse sentido estou nomeando assim, então OK, não fica brigando com as palavras. Então, identidade, se eu entendo identidade como aquilo que vai do mesmo ao mesmo, como aquilo que permanece idêntico a si mesmo, não é identidade. Agora, se eu entendo identidade como aquilo que te faz diferente, OK, você pode chamar de identidade. É que identidade já está tão fixada com essa não mudança que eu prefiro não usar identidade, mas eu não estou brigando com a palavra, mas com o conceito. O que é então? É uma singularidade. Por que singularidade é diferente de identidade? Porque a singularidade que te diferente do que você é, é uma dobra de tempo e espaço em você. Se você é uma potência, você não é um eu. Essa potência é uma dobra de tempo e de espaço. Vamos dizer assim, é uma diferença de potencial, você é uma invaginação do real. E essa dobra, como é que você se relaciona com a própria dobra? A dobra é a fronteira de você mesmo, a fronteira dessa potência ou dessa presença. Se essa presença habita a fronteira, habita a dobra, o que você vê na dobra? Você vê a emergência dela e a ponta do acontecimento dela. Quer dizer, ao mesmo tempo, o nascimento da invaginação e o extremo da passagem dessa invaginação, pra outra dobra, ou pra uma desdobra. É como se tivesse a emergência, ou nascimento, e a submergência. Esses extremos são feitos do extremo passado e do extremo futuro dessa dobra, que são contemporâneos um do outro. O extremo passado não é o que foi e aí me representa o que foi (121:10), esse o que foi é no aqui – agora nesse extremo futuro, que também é. Existe uma coexistência do passado e do futuro que faz a tensão e faz que o futuro a cada momento seja diferente e o passado também seja diferente. O passado e o futuro mudam o tempo inteiro. É por isso que eu sou uma diferença e não uma identidade. E eu não preciso, pra me sentir diferente, me sentir diferente de outro, eu sou diferente de mim mesmo nesse atravessamento. Não há nenhuma vida que não seja atravessada simultaneamente por passado e futuro que coexistem. É isso que estou chamando de singularidade, é bem diferente da identidade. Se a gente chama a vida, essa presença, pra essa extremidade, pra essa fronteira, o que se passa aí? Se passa de fato uma experimentação, se passa de fato um aproveitamento e acontece na passagem de uma modificação real. Ou seja, eu tomo parte dessa modificação, me torno, entre aspas, sujeito dessa modificação, ou causa do afeto que me acontece. É aí que a gente está ligando o conceito de autonomia, que não tem nada a ver com uma autonomia moral, autonomia formal, uma autonomia de autoridade, que isso não seria autonomia pra gente. Autonomia é chamar essa presença pra essa borda, pra essa fronteira, que simultaneamente é a nossa emergência e o nosso acabamento. É a própria borda que deseja em nós e o resultado do desejo está na borda também. Existe um ziguezague entre a borda e essa potência, ou entre o ato e a potência, esse ziguezague ao mesmo tempo, esse ir e vir ao mesmo tempo que é a natureza do próprio devir, ou do diferenciar-se. Eu me torno diferente de mim mesmo na medida em que eu habito isso aí. Se isso que a gente está chamando de experiência real num sentido extraordinário, não no sentido ordinário, e essa experiência acontece também numa dimensão do pensamento, o que seria o pensar nessa presença e nessa borda, qual é a borda ou a fronteira do pensamento e o que se apresenta enquanto algo pensante, que pensa e que esculpe a borda? É sempre uma potência que cria novas maneiras ou novas passagens, ela cria pontes, ela cria ligas, ela cria conexões, ela cria composição. Pensar é compor, é maquinar, é produzir. Não é descobrir ou reconhecer algo que já estava dado, aí sim existe uma liberdade real, não a liberdade estúpida do livre-arbítrio, não é a livre escolha. É uma liberdade da própria potência de pensar. Como é que você efetua a própria potência de pensar? Criando novas conexões, novas ligações, maquinando. O próprio pensamento é uma usina de produção e jamais uma instância de contemplação, assim como não é uma instância de reflexão e nem uma instância de comunicação. Pensar é produzir, é uma máquina de produção. Eu lembro do Glauber Rocha dizendo em alguma das entrevistas dele: “pra acabar com a babaquice do complexo de inferioridade dos países de terceiro mundo da América Latina”, é necessário se conectar diretamente com a capacidade de criar. Ele usa lá outros termos, mas os combates deles, é com essa babaquice que a vida acaba aderindo que é uma espécie de subserviência de modelos do verdadeiro pensamento. Até numa reação esdrúxula contra tudo o que é europeu. Eu tive relações principalmente na universidade com gente, professores que se diziam de esquerda, anarquista, na ponta, na vanguarda, que diziam assim “não à Europa, não a tudo que é europeu”, quer dizer, moraliza ao invés de…
Maria Rosa: – E é ressentido, né?
Luiz: – A visão do colonizado que vai dizer ao que o submeteu. E aí é uma coisa absolutamente estúpida, porque na verdade naquilo que é submetido, existe algo que se libera e naquilo que submete existe algo submetido. Não se trata de ficar erguendo bandeira, dizendo não ao europeu e sim ao índio, ou sim ao europeu e não ao índio.
Essa imagem que pensar é um ato de recognição, de reconhecimento, de conhecer pela segunda vez aquilo que o espírito já tinha visto na origem, que era a pura ideia que tinha contemplado. Eu iniciei uma coisa que esqueci de desenvolver que é o Platão no Phedro, a questão do amor platônico. No Phedro, Platão vai narrar o mito da circulação das almas. Todas as almas humanas, antes de incorporarem na existência na Terra, elas seguiam o cortejo de um deus e nesse cortejo desse deus, sob carros celestes, que é a própria natureza da alma, que tem um cavalo branco, que tem um cavalo negro e um cocheiro, a imagem que o Platão faz da alma, as três partes da alma, a parte desejante, a parte corajosa, a parte racional, vão sair (127:39) em cortejo pra contemplar as realidades supra-celestes, essas realidades ideais. Platão vai dizer que o verdadeiro amante é uma alma que vi muito dessas realidades supra-celestes, ele viu bem a ideia na origem, ele contemplou bem essa ideia, ele teve essa luz. As almas que viram pouco eram as que tinham seu cavalo negro indócil, sua parte desejante indócil, esse aspecto que leva ao corpo predominava mais do que o aspecto intelectual. E, portanto, o cocheiro, preocupado em submeter o cavalo negro, perdia a ocasião de ver as ideias, então ele viu pouco, porque tinha que ficar preocupado em adestrar o seu cavalo negro.
Maria Rosa: – É bonito.
Luiz: – Bonito? Platão é um mestre na poesia, é um poeta fantástico.
Maria Rosa: – Por isso que seduz, e a gente adora isso, ai que gostosinho. E nhac!
Luiz: – O peixe morre pela boca. O poder, na sua essência, é um sedutor, o poder age por sedução. E aí ele opera uma captura, e não por violência ou repressão. Isso é só efeito, onde ele não consegue dar conta, aí vai pela repressão, senão é por sedução e captura. Hegel, você lê Hegel é belíssimo, ele falando sobre a morte, é uma máquina de mortificação na mais alta poesia e muitos caem e ficam a vida inteira referindo àquela porcaria. Mas, enfim, por que eu narrei o mito, desse modo rápido, é cheio de nuances essa história, se vocês lerem o Phedro, vocês vão ver. Porque aqui está a ideia de que pensar vem de uma primeira visão e depois você uma revisão, ou você teve aquele primeiro conhecimento, depois você tem o reconhecimento. Pensar aqui na Terra é reconhecer o que seria um outro mundo, então é voltar pra origem, voltar pra essência, pro modelo. Sempre nós achamos que tem uma origem, que tem uma essência, a gente quer voltar pra essa essência, sempre que a gente acha que isso é pensar a gente está nessa ficção, a gente está nessa crença de que é preciso ter algo acabado. E aí a gente vai sempre se render, ser cúmplice de alguma instância que instaura esse modelo e pode ser inclusive da Democracia, pode ser inclusive dos direitos humanos, pode ser dos que hoje em dia dizem “Viva a diferença, viva a multiplicidade”. Na medida em que você está nesse modo de pensar, que não é simplesmente um erro, mas um modo de vida, necessariamente, você vai fazer uma ideia absolutamente invertida do que é o devir, do que é o diferente. Você pode dizer “viva a diferença, viva a multiplicidade, viva o devir”, mas estar inserido exatamente essa incapacidade de apreender o que é o devir enquanto devir, o que é a diferença enquanto diferença, e aí julga. Só muda o nome, muda a roupa, e pro capitalismo isso é ótimo, só muda a etiqueta. Agora está na moda, sei lá, a calça boca de sino, agora está na moda a calça não sei o que. O que importa? É que haja essa mudança o tempo inteiro, pra que os negócios continuem. Essa negociata da existência, que faz com que a vida covarde suporte melhor a sua miséria. Não sei se seria interessante eu me manter ainda nesse primeiro módulo do que não é pensar ou se a gente já passa pra segunda maneira. Porque nessa primeira maneira eu vou ainda retornar a hora que eu falar do bom senso e do senso comum. Eu acho que é melhor dar uma suspendida nisso agora. Só a gente reter que é importante entender que pensar não tem nada a ver com reconhecer, não tem nada a ver com acessar uma verdade pronta, e aí se servir daquela outra maneira que a gente disse no início, que forma um contraste com essa ideia, aquela outra maneira diz o que? Pensar é criar, é preciso criar, se ponha criando e não pensar que você vai descobrir algo pronto. Assim, nas nossas leituras, a gente lê platonicamente o tempo inteiro, a gente vai descobrir a verdade do autor, “ah, mas eu não entendo Mil Platôs”, porque fica tentando um sentido atrás, um verdadeiro sentido, o verdadeiro modelo que está regendo aquela escrita, não tem modelo nenhum. Tem algo que se passa naquela zona de encontro, eu encontro algo naquela leitura e esse algo me põe em variação, aqui tem coisa pra eu prestar atenção, isso sim. Mas não a verdade atrás da coisa, então não adianta eu reconhecer num autor aquilo que é o que eu sempre pensei. Isso acontece muito, a gente vai encontrar o outro pra reconhecer no outro o que é familiar com a gente, ou seja, esse medo de se tornar diferente do que se é, que faz com que a gente adira a esse sistema de pensamento, que na verdade é um modo de imaginar e não de pensar. Tem que fazer a distinção entre imaginação e pensamento, ainda que a imaginação seja uma potência enquanto imaginação. Então eu vou voltar a falar nesse primeiro módulo, na medida que a gente for desconstruir os dois pilares do juízo da representação, que são bom senso e senso – comum. Ou seja, origem e finalidade. Bom senso é uma origem rasa do desejo, temos o mesmo modo de deseja, de pensar, de agir, etc e tal, isso é uma ficção. E a outra ficção é que esse mesmo modo pode se orientar por bem e pro mau, o bom senso e mau senso. Origem e finalidade. Isso a gente vai desconstruir depois. Na próxima a gente vai falar sobre reflexão e comunicação.