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Curso Educação Para Potência – Aula 03/08 – A natureza da experimentação (transcrição)

por Luiz Fuganti

Educação para potência é um curso que surgiu em função de uma urgência que a gente sente que atravessa a sociedade. Mas as pessoas que se afetam com esse tema que virou uma unanimidade, uma coqueluche de modo equivocada. Um equívoco que tem raízes profundas, pois já pressupõe um modo de vida reativo. As sociedades já estão muito tomadas por um devir reativo. O devir reativo constitui um campo de forças onde o corpo situa o desejo de maneira tal que você não consegue pensar de outra maneira. Tem um preconceito de base que não tem a ver com o conhecimento, mas com as condições do conhecimento, com as condições do modo de pensar. É essa urgência que eu sinto enquanto oferta dessa proposta de pensar uma educação para potencia e não para obediência. O que eu chamo de unanimidade é que essa visão de educação é uma educação para obediência e não para potencia. Imagine que a educação seja um instrumento de liberação de geração de autonomia, mas essa autonomia que é gerada é uma autonomia moral, de autoridade, formal, mas não é real. Mesmo os que se dizem autônomos já estão prisioneiros de uma condição que nem sequer apreendem, que os faz dizer no limite ou não dizer, que os faz ver e não ver, são formas de sensibilidade, de dizibilidade que impedem você de pensar, sentir e agir de outra maneira. A unanimidade em relação à educação tem a ver com uma ideia que a natureza, no seu âmago, não tivesse uma ordem própria, que sofreria de uma falta de ordem, de hierarquia, que seria substituída por um plano civilizatório, ou plano de cultura. O homem, na medida em que se abre a esse plano, como Freud diz, que é impossível a vida em sociedade sem uma mediação de um plano que legitimaria, que justificaria, que verificaria, e que utilizaria nossas práticas, nosso pensamentos, enfim a nossa vida em sociedade. Esse plano intermediário que seria necessário para que a vida em sociedade se desse de forma supostamente afirmativo, em progresso, em evolução, na verdade é o que nos separa da capacidade de acontecer. Na verdade, essa visão que é unânime é ainda uma visão moral. Acredita que falta algo a existência, que a realidade não tem um plano de auto sustentabilidade. Implica em aderir a uma referência extrínseca a existência que se constitui em um plano mais importante, transcendente, que organizaria a vida sobre a terra, sobre a sociedade. Essa referência transcendente passa a ser um plano mais importante que a própria experimentação direta da vida e da natureza. Nessa medida ela se torna a instância que justificaria ou que legitimaria as nossas práticas e ideias. È a dimensão que instaura a condição do julgamento. Não haveria humanidade sem o julgamento. E a educação faria parte de um adestramento do animal humano para que ele se tornasse capaz de julgar, de discernir entre o verdadeiro e o falso, entre o bem e o mal, entre o justo e injusto, entre o útil e o nocivo. A educação faria parte de um grande adestramento coletivo sem o qual não haveria paz em sociedade, nem progresso, nem desenvolvimento. Muita gente fica abismada com casos sensacionalistas como esse da Isabela. De vez em quando existe um bode expiatório em que a sociedade vê seus monstros e tem que abafá-los rapidamente. A gente vê as pessoas mais influentes, formadores de opinião, artistas, âncoras de jornal dizendo que precisamos tomar uma atitude, imaginem como um pai e uma mãe fazem isso! A gente até entende que precisa tomar uma atitude, isso desde sempre. Tem uns mais abertos que vão querer atuar nas causas, e quando vão atuar nas causas, já estão nos efeitos. É isso que queremos atingir, o plano das causas. Mas se você acredita em uma natureza humana decaída, em uma espécie de mal que atravessa o corpo, o pensamento, a natureza e você precisa investir nessa ordem que resgataria a vida – seja uma ordem religiosa, laica, moral – dessa sujeira, dessa lama, desse mal, desses monstros que existe dentro de nós. O clamor pela educação entre deus e o diabo. Os políticos mais cretinos que existe na política brasileira e mundial assim como os políticos mais interessantes, os que querem de fato fazer algo. Entre os deuses e diabos da política existe essa unanimidade, a educação. Mas que educação? O que é esse adestramento, esse refinamento, essa produção de si que se dá desde a mais tenra infância? Como o homem produz a si mesmo para que ele tenha uma consistência tal que ele possa fazer a diferença que é apenas tolerada ou aquela que julga – pois isso não é diferença- de fazer a escolha que não seja moral. Como produzir a si mesmo e ao mesmo tempo fazer a escolha, a diferença? Como ser capaz de interagir de modo criativo e livre, sem se submeter a um plano transcendente dessa civilização, dessa humanidade ou de uma certa formação social? Sem ter que pedir licença para uma mediação, uma vez que a mediação se tornou necessária para organizar as vidas fracas e impotentes? Aquelas pessoas que não conseguem viver sem a lei. Cito sempre aqui o Ferreira Gullar que é essa pessoa tida como um grande poeta, de esquerda, em um debate sobre a peça Écuba, diz que sem lei é a barbárie. Como que poetas, filósofos, artistas, cientistas, pessoas aparentemente livres, de esquerda, avançados, até anarquistas – estes um pouco menos, o problema do anarquismo é o ressentimento e não a lei – se conformam que haveria uma instância decaída de nós mesmos que precisaria investir nesse plano transcendente que justificaria e legitimaria a nossa relação em sociedade? Como uma educação é capaz de chegar e produzir modos de viver que não precisam ser legitimados por planos transcendentes e sejam capazes de fazer a seleção no imediato? Esse é o desafio da educação para a potência. O que seria educar? A educação implica em uma ideia de aprendizado e ensino. Por isso focamos as duas primeiras aulas na experiência. Qual a natureza desse aprendizado e ensino uma vez que eles se dão no campo daquilo que potencializa a vida e não no campo de instrução ou da competência? Educar não é instruir, nem tornar competente, nem formatar ou formar. Educar, do ponto de vista da potência, seria educar no sentido de que seu próprio modo de viver já é uma conquista permanente de criação de novas condições de experimentação. Ele já um investimento nisso, um aprendizado no crescimento da própria potência, que por sua vez aumenta a capacidade de criar em ato. Um ensino e aprendizado que foque isso e não a aquisição de conhecimento, não a erudição, a instrução, a competência, a autoridade. Esse é o desafio maior, que faz a urgência de um pensamento como esse, na medida em que esse clamor social, histórico, político e econômico, que se torna cada vez mais desesperado. A sociedade cada vez mais decadente e os monstros aparecem de forma cada vez mais caricata. Como gerar um contraste a essa demanda que, no fundo, é de fundo reativa? Em vez de dizer mais educação diria: não, chega de educação! É ao contrario, acabem com a educação. Pois a educação sempre foi, no seu modo dominante de ser, uma máquina de adestramento reativo e não uma máquina de adestramento que poria a vida em condições de criar as próprias condições de experimentação ou existência. A ideia que começa por isso em cheque, a porta de entrada que nos gera um divisor de água entre o que seria essa educação para obediência e essa outra que seria para potência, evoca ou torna necessário o desdobramento ou até uma invenção de noção de experimentação. O que é experimentar? O ensino se dá na experimentação, o ensino se dá na experimentação. Tudo se dá na experimentação. Não existe vida que não seja em relação, que não seja vida em acontecimento. O próprio acontecimento define o que é vida. Viver é acontecer. Não existe zona da vida, região protegida da vida, onde a vida se encapsula, se isola, fica ensimesmada. Não existe uma região solipicista da vida. A vida é necessariamente em relação. Mesmo que não seja com o humano, pode ser com verme, com átomo, com sol. Essa dimensão da relação com o vivo é onde se dá a experimentação. Qual a natureza da relação, da experimentação? A experimentação se diversifica. Existem experimentações que são necessariamente distintas, e que atravessam o campo de humano, que atravessam a nossa vida. Tem uma experimentação que é singular ao pensar. A experiência do pensamento enquanto pensamento é radicalmente diferente da experiência do corpo, ainda que não haja dicotomia de alma e corpo. Acontecer no pensamento é radicalmente distinto do acontecer no corpo. Acontecer no tempo do corpo – que é o tempo presente – ou no movimento do corpo é radicalmente diferente do que acontecer no tempo do pensamento – que é o tempo virtual, passado e futuro ao mesmo tempo, um movimento de outra natureza. Eu tenho aqui sinalizado sempre de modo mais simplista: A experiência do corpo é a experiência do movimento e a experiência do pensamento é a experiência do tempo. Tempo de movimento, corpo e pensamento. Dois tipos de experiências radicalmente distintas. O que implica dizer que são singularidades? Que a experiência do pensamento é uma singularidade, é de fato uma diferença nela mesma. Implica em dizer que só é uma diferença nela mesma, pois está ligada ao infinito do pensar senão se fosse apenas de finitude essa finitude teria que se ancorar em outra sustância que não seria o próprio pensamento que sustentaria o próprio pensamento. A mesma coisa em relação ao corpo. Se a experimentação do movimento não tivesse essa relação direta com o infinito o corpo seria dependente de uma outra instância. E o ocidente fez sempre o corpo dependente do espírito ou da consciência. Aqui a gente está liberando a diferença enquanto diferença e não a diferença apoiada em outra instância que a englobaria e que atribuiria realidade ou não a instância em questão. O pensamento, se ele de fato é uma diferença, uma experimentação única, se é uma região única de acontecimento em nós, ele tem que ter essa relação com o infinito. É o infinito que dá autonomia para o pensamento, assim como é o infinito do movimento que dá autonomia para o corpo. Existem zonas de experimentação, zonas que nos atravessam, então a experimentação do pensamento em nós é necessária do ponto de vista da liberdade, encontrar a dimensão do imediato do tempo que nos põe novamente em relação com o infinito. Da mesma forma, a experiência na dimensão do movimento é necessária, não existe corpo sem movimento, a gente nem teria nascido, a gente não aconteceria se o movimento não tivesse sustentando o corpo. Encontrar o necessário do movimento no corpo é também encontrar o imediato do movimento no corpo, que é encontrar o infinito do movimento, é o que dá sustentabilidade ao movimento. E o que dá sustentabilidade a esse movimento que nos atravessa é a condição da autonomia e da diferença enquanto diferença. O movimento e o corpo tem uma diferença enquanto movimento assim como o tempo do pensamento, o próprio pensamento tem uma diferença do pensar nela mesma, essa diferença não se compara com outra coisa, não é diferente em relação a algo. É diferente já na própria maneira de acontecer, é uma singularidade.

– Existe o tempo do corpo também. Às vezes eu faço uma simplificação para facilitar. O tempo do corpo é o presente e o tempo do pensamento é o que não existe. Só o presente existe no tempo, o passado e futuro não existem, no entanto eles são reais. O tempo do pensamento é esse tempo virtual que não existe e no entanto é real. Fazemos aqui uma distinção entre existência e realidade. O real não se reduz ao existente, o real é também o virtual. Geralmente a gente vive reduzido ao existencial e, pior que isso, a gente vive reduzido a um estado existente. Precisamos então abrir a existência novamente, aquilo que ela pode e ao mesmo tempo que abre a existência a gente comunica ela com essa realidade virtual, que atravessa necessariamente a existência. Não há existência sem essa realidade virtual. A realidade virtual do pensamento é esse tempo que é virtual e a realidade virtual do movimento…- aqui não posso fazer a comparação porque o tempo do corpo não é virtual, ele é atual, é o presente, o presente atual. O virtual do corpo é o vazio. O vazio não é uma nada. É o real virtual. O corpo é um topólogo, um agrimensor, um geógrafo, ele produz lugares, topos, espaço. O espaço é gerado, não é um continente homogêneo onde o conteúdo do corpo se localizaria, o espaço é inventado, assim como o corpo. Vamos desenvolver essas questões do movimento, o tempo do corpo, em outros encontros. O corpo é feito de ação e paixão. O corpo é feito de movimento que modifica, que é ação, e de um movimento que gera modificação. Esse modificar em mim é a paixão que eu sofro e o movimento que modifica, ele age. Ação, paixão: isso é corpo. O que é o presente, o tempo do corpo? É a extensão da ação e a extensão da paixão, é a extensidade. Até onde vai? Aquela presença, aquilo está presente, vai além do instante, tem uma espessura física, uma presença corpórea do movimento. O movimento se corporifica, e essa corporificação até o limite da ação e da paixão que constitui o corpo, é o presente desse corpo. Além do nosso programa vocês vão entendendo o campo de forças, o diagrama nesse plano virtual.-

A ideia de educação se bifurca na natureza da experimentação. Experimentar, dependendo do modo como eu apreendo isso, ou eu me dirijo para uma educação para a obediência ou uma educação para a potência. A ideia de experimentação é um divisor de águas. A experimentação não é única, ela já é uma multiplicidade, uma pluralidade em nós. Existem várias dimensões da experimentação em nós. Uma dela é a do pensamento, ou desse tempo virtual; outra é a do corpo; outra é a da escolha ou do fazer a diferença; outra é a da produção de continuidade – que estamos chamando de memória de futuro, como função de futuro e não representação de passado-; e o investimento em si mesmo, o cuidado, o domínio de si, o investir em si mesmo, o estilizar a própria existência, o constituir-se a si mesmo – que constitui um aprendizado e uma apropriação, uma conquista desse aprendizado e uma transmissão dessa conquista, que seria o ensino. Este é o nosso programa. Já estou falando num diagrama. Na verdade, existe uma coexistência, uma composição e uma recomposição. Não há vida que não seja atravessada por essas instâncias, todas ao mesmo tempo. Há uma diferença de natureza entre uma e outra, e elas não acontecem de modo sucessivo e cronológico. Não é que vai analisar o corpo, depois o pensamento, depois a escolha para depois ver a questão da memória. Quando focamos o pensamento já vai aparecendo o corpo, a escolha e outras coisas, mas estamos focando de modo dominante o pensamento, depois focaremos de modo dominante o corpo e assim com as outras dimensões. Elas interagem, se atravessam, e é uma questão didática.

A experiência desse ponto de vista se diferencia em 5 modalidades:

1 – a experiência do pensamento ou a filosofia na primeira idade

2- a experiência do corpo ou a estética na primeira idade

3 – a experiência da escolha ou a estética na primeira idade

4- a experiência da memória, ou de um certo nível de produção de registro. O próprio tempo registrando a ele mesmo. Existe também o registro do movimento, que se acumula, se dobra e incide sobre o próprio movimento. O tempo se dobra, se acumula e incide sobre o próprio tempo. Então, se existe um sujeito – essa palavra bizarra- ele é o próprio movimento no corpo e o tempo no pensamento. Continuar de si mesmo no modo ativo, criação de um devir ativo auto sustentável, um horizonte de futuro, nos manter ligado a potência do acontecimento.

5- uma vez que a gente conquista essa capacidade de continuidade de si mesma – que é a capacidade de se manter diferenciando de si mesmo, afirmando sua própria natureza, que é uma diferença que se diferencia de si – você é capaz de se diferenciar de si sem perder a natureza. Nessa medida em que você apreendeu todo esse processo do que é se constituir dessa maneira, apreendeu o aprendizado, o aprender. Você apreende a natureza do aprender e se torna capaz de distribuir, de transmitir ou de ensinar. Você apreende o aprender no aprendizado. O aprendizado que faz com que a potência aumente na relação e que seja aproveitada nesse aumento. Ou seja, não só aumenta por acaso, mas sob meu comando, eu tomo minha vida nas próprias mãos. Isso faz com que a gente avalie esse termo Primeira Idade.

Primeira Idade é um neologismo que até me lembraram que existe em Pierce. Não é que não tem nada a ver com o conceito de Pierce, até tem alguma coisa. Na semiótica de Pierce, a Primeira Idade leva como ordem primeira, que seria expressa no sinal. No sinal ele revelaria uma ordem primeira, mas não estamos falando disso. Estamos falando de toda a ordem imanente da natureza. A Primeiridade é, antes, uma Primeira Idade.

Primeira Idade é aquele momento e aquele lugar, aquela região, aquele platô, aquela zona de acontecimento onde você acontece no imediato. É o acontecimento do tempo se apreendendo enquanto tempo que acontece. O acontecimento do movimento se apreendendo enquanto movimento que acontece. O movimento que se relaciona com o movimento e não com uma forma de consciência que representa o movimento. É movimento se relacionando com movimento, tempo se relacionando com tempo. Todos nós temos experiência desse imediato, pois somos feitos disso. É uma inocência, podemos até chamar de uma ingenuidade. As pessoas até confundem: você está sendo ingênuo. Sim, viva a ingenuidade! É uma virgindade, aquele frescor, aquele imediato que não tem nada a ver com o instantâneo. Há também uma confusão radical entre imediato e instantâneo. Instantâneo seria um corte. O imediato te põe em contato com uma região, sem necessidade de uma mediação através de signo, de imagem, de representação, de efeito das coisas. Não é o efeito que media a causa, não é um plano de representação que vai mediar. Esse imediato é algo de nós mesmos, que já é imediato, que encontra com algo fora de nós mesmos, que também é imediato. É a experiência da criança, do bebê, o devir criança, acontece nessa zona. É por isso que tem esse simulacro da primeira idade. Não se trata de primeira idade cronológica, aquela que depois tem a segunda e a terceira idade. É um primeiro tempo, um primeiro momento desse contato. É um contato imediato com o tempo, com o movimento, etc. Uma coisa é você ser atravessado por isso, outra coisa é a manutenção desse modo imediato de acontecer. Essa conquista desse modo é o que chamamos de primeiridade. Primeira Idade seria o primeiro encontro, que nós já encontramos de alguma maneira, e podemos até reencontrar. Nossa questão toda aqui, o aspecto crítico é desconstruir ou destruir aquilo que impede esse reencontro. Essa é toda nossa dimensão crítica. E a dimensão criativa é, não só encontrar isso, como conquistar a capacidade de exercer isso, é um ter, mais importante que o ser. Essa conquista que é a primeiridade.

Nós iniciamos esse curso em contraponto a esse movimento de levar a filosofia para as escolas de segundo grau e fundamental, pois percebemos que esse movimento era civilizatório. Vamos levar filosofia para a educação, pois a educação está precisando de um outro tipo de formatação da subjetividade que não está rolando e que a filosofia poderia andar essa formatação. Até existe uma americano, esqueci o nome, e seus seguidores, que levam a filosofia para a escola de modo a criar na criança, ou inspirar a criança a investir nessa dimensão autônoma de si mesma. Mas essa dimensão autônoma como dimensão moral. É uma filosofia kantiana. É a ideia do Ferreira Gullar: sem lei não tem civilização. É preciso introjetar o puro dever ser na criança. Isso é um esmagamento extremo. Por favor, não! Se você leva esse tipo de filosofia você var ter a criança que merece. A sociedade vai ter de novo os homens que ela merece, vai aprofundar ainda mais essa decadência, essa impotência. Assim como a violência que se esconde atrás da forma democrática que gera a paz, que é na verdade a primeira instituição da violência. A violência é sempre um esmagamento da vida, de maneira institucionalizada. O primeiro esmagamento da vida é pela forma. Quando, a forma toma lugar da força, desqualificando-a e criando um devir reativo da força. Isso raramente é dito, aliás, eu não ouço e não vejo. È sempre essa unanimidade, que a forma é a salvação, seja Hanna Arendt, seja Chonsky – toda essa cultura da democracia como valor universal, dos valores humanos, essa ressaca do totalitarismo, do fascismo, do nazismo – e de que se a forma não funciona é porque precisa ser reformada, ou reformulada. Que ela seria a única ordem real e não qualidade relacional, não a singularidade. Ora, de que adianta levar essa filosofia para a educação? Estaremos, de novo formando gente mais recalcada, jogando mais sujeira para baixo do tapete, produzindo mais monstros. Só que monstros sob controle, pois uma vez que isso se instala é como eu me tornasse oco. Como dizia Nietzsche, a moral é apenas uma máscara para dizer que eu tenho uma força monstruosa, que precisa deter essa força monstruosa. No momento que a moral se instala, dessa maneira, já não tem força monstruosa nenhuma, já morreu. É isso que é insuportável, diz Nietzsche, um homem que não tem nada a temer dele mesmo, um banana, totalmente dócil, ou seja, as forças já se esgotaram. Por causa desse horror que a moral tem, por esse medo que as vidas impotentes têm – de que a natureza humana, a natureza selvagem tenha essa dimensão do mal – que deveria ser contida de qualquer maneira. Como? Pela forma. Jamais! Você só adia o processo. Apenas gera mais monstros e uma hora explode. É como diz Artaud no teatro e seu duplo: o que é vital na cultura? O que se chama de cultura hoje é essa coisa morta. A cultura ainda fala do ponto de vista da necessidade vital? Ou está ajudando a recalcar ainda mais as forças do homem e aí sim o homem chega e diz: viu como tem monstros? Viu como existe esse cara que atira criança pela janela? Viu? Viu? É a mesma coisa a respeito do incesto. Ele é proibido porque existe. Ninguém sabe, é uma inversão absoluta. Por ex a ONU, que é o Bush e sua laia. Mianmar. Lá existe um governo que é anti americano. Aí tem um desastre, nada como isso para eles oferecerem sua ajuda humanitária, e eles já estão fazendo propaganda que o governo não aceita ajuda humanitária e que eles estavam pensando no modo de ajudar a força. Eles são tão bons! E a mídia em eco, não tem nenhum ponto crítico. Então se justifica a forma pela presença de uma força monstruosa. Mas a força monstruosa foi produzida pela presença forma. É ao contrário, a forma é que torna aquela força monstruosa. Uma sociedade assim reativa não se vê cúmplice desses monstrinhos que aparecem. Imagine, o outro que é o mal! Que bom que tem um bode expiatório que eu posso expurgar. Olha, de fato, isso eu não posso fazer. Agora, não há um diagrama que é comum, que atravessa as pessoas todas e que aparece num ou noutro e que eu posso julgar como bode expiatório. Essa hipocrisia social – de querer esconder que a própria maneira da sociedade se constituir, de se relacionar – é que gera essa decadência, essa violência. Por isso que tem que sair da moral das formas e entrar na qualidade das forças. Isso é necessário, focar na qualidade das forças. Tem a ONU, Tribunal Internacional de Haia, de que adianta? Que neutralidade têm? As forças que estão por trás comandam as formas. A forma é só uma desculpa para a força chegar e exercer aquilo que no fundo ela já queria, aquilo já estava determinado. Já estava determinado que Sadam ia morrer na forca. A questão não é saber se ele é bom ou mal, dane-se. Daí, de um outro ponto de vista, se tem o que se merece. É essa mistificação, que a forma é redentora de tudo e que a educação tem que focar nessa formatação do homem, nessa produção de uma subjetividade boa, justa, veraz, útil, é isso que precisamos desmistificar e desconstruir. Como? Só se faz isso desinvestindo na necessidade de uma instância fora da vida, ou superior à própria vida, que seria essa forma – não importa se esta forma esteja em deus ou na cabeça do homem ou no modo do homem se relacionar, porque no fundo é isso. De onde vem essa forma se a natureza é só imanência? Vem do modo de se relacionar. É aí que uma ficção se destaca e diz, como Nietzsche, um deus que se acha o único, ou uma forma que se acha universal. Isso seria mais importante que as formas particulares. É no modo de viver, por não encontrar o imediato, que essa forma é eleita e investida. Não só ela é tolerada e a gente se conforma, como a gente gosta e quer ela. A gente investe nela. È por isso que essa educação por mais liberal que seja, na verdade é uma educação piedosa e hipócrita, pois onde há piedade há hipocrisia. Ela é piedosa com a natureza selvagem, incorrigível, que atravessa o corpo, o movimento, o desejo, o tempo da decadência, o movimento que leva para os desarranjos, devires, disruptivos. Ela então é piedosa com isso e vai resgatar, formatar, organizar e na organização você está corrigido e você vai conservar sua vida. Por isso a forma é piedosa, mas justamente essa forma esconde um duplo mecanismo. A própria presença dela já é uma desqualificação da vida, já é um reconhecimento, um conformismo que a vida não tem ordem própria. E ao mesmo tempo em que ela desqualifica a vida, ela vem e diz, mas eu estou aqui para te requalificar. Eu te dou a qualidade a partir de mim, de eu que sou uma forma universal. É a dupla pinça, o poder sempre funciona assim, não funciona sem criar uma zona de impotência. Ele cria insegurança para oferecer segurança, cria violência para oferecer a paz. É por isso que essa cultura da paz que atravessa sociedade, até entre as melhores cabeças, tem essa hipocrisia radical que não é falada. A violência traz essa paz. A violência traz a boa educação, o polimento das falas que não alteram o tom de voz. Apesar do modo panfletário de Michael Moore, é interessante o que ele expõe nos seus filmes. Ele chega a dizer que existe uma taxa de pânico social, uma taxa de medo. Você gera medo, introjeta o medo. A mídia faz isso todo dia, as novelas. O produto mais rico das novelas é introjetar a desconfiança na vida, sempre tem a maldade, a trama, sempre do ponto de vista mais baixo. Tudo acaba bem para justificar a existência do bom. Como diz Nietzsche, esse bom tem sempre a necessidade que o outro seja mal para ele se sentir bom. Ele não é bom por ele mesmo, ele tem que encontrar antes um mal. Como o poder, que antes tem que desqualificar para ele… Não tem um poder que não diga que oferece o bem. Ele age por sedução. Ele vai proteger, dar ajuda humanitária ao povo de Mianmar, à África. Mas para oferecer ajuda aquela vida já tem que estar no estado de demanda, ela precisa de ajuda. Então eu te ofereço ajuda. Mas já existe uma máquina anterior que separa a vida do que ela pode para daí dizer eu ligo a vida ao que ela pode. Mas gerando um certo saber que integram as forças de poder que integram a sociedade. Você vai quere ligar ao que pode pelo poder. Ao invés de ser potente você vai procurar o poder. Só o impotente precisa investir no poder. É assim que atua essa piedade, essa oferta generosamente gerada. É uma oferta para que você reforce a condição de fraqueza da vida.

O problema então está na natureza da relação ou da experiência. Se você precisa de algo que legitime a sua experiência, necessariamente você cai nesse modo de desqualificar a vida. Mas se você encontrar o imediato sem essa dimensão intermediária ou supérflua, que organizaria ou legitimaria a vida, você entra no plano da qualidade das forças. Aí você vai trabalhar a qualidade. O que importa, o que me move, o que me sustenta? É um modo ativo de ser? O que é dominante em mim, ainda que haja forças ativas e reativas? As forças reativas ou ativas? As de criação são mais importantes que a de conservação ou o inverso? As sociedades reativas precisam que a conservação seja mais importante que a ousadia, que a invenção e a criação. Na medida em que eu entro nesse campo de forças, sou capaz de experimentar, eu posso novamente investir nisso que inventa, que experimenta de fato, nisso que cria o inédito. Eu posso investir nessa dimensão ativa como dominante em relação da dimensão da conservação, reativa.

Como a gente começa a acessar essa zona do imediato? Claro, há uma pressuposto: Enquanto eu não sei, eu acredito. Dá uma enrabadinha na ideia de crença. Em vez de acreditar em outro plano, fora da natureza, porque não acreditar na natureza? Uma vez que eu não sei, que eu preciso acreditar, então vamos usar a ideia de crença, vamos dar uma chance à vida. A vida, enquanto vida, na existência mesmo, sem precisar de nenhuma referência, na relação direta. Porque não dar uma chance a vida nesse sentido? Começar a investir num plano de confiança da vida. Se a sociedade, o poder introjeta desconfiança a gente faz o contrário, e quando desconfiam da gente, acham que queremos tomar algo, faz o oposto, dá mais. Dá não só aquilo que imaginavam o que a gente ia tomar como ainda oferece mais um pouco. Dessa maneira você é capaz de reinjetar confiança na vida. Eu diria que para reconquistar uma ideia de experimentação extraordinária, digna, rara, não essa experimentação vulgar, seria necessário antes, ter essa postura de confiança e para isso tem que vencer o medo. No ultimo encontro falamos dos quatro perigos do guerreiro. O medo é o primeiro, é por onde entra a desconfiança. Por onde é inoculado uma espécie de um não sem forma, um não anterior, uma covardia primeira que impede gostar da experimentação, de criar um gosto pela estética, pelo acontecimento, pelo movimento, pela variação, pela modificação, pela diferenciação. Você vai tendo muito cuidado, muita modificação, muita variação e pode se dar mal. A gente faz o contrário. Ma não é uma crença boba, ingênua, uma experimentação porra louca, idiota. Existe um jeito, uma questão de dose, a arte das doses, colocar a prudência no lugar do medo. Não a prudência para limitar a ousadia, justo ao contrário, é a prudência que vai levar a ousadia ainda mais longe. É inverter, não é a paz para impedir a guerra, mas a paz para produzir guerras mais interessantes, guerras vivas, combates e não guerra como máquina de morte. Como diz Nietzsche, é justamente o oposto da cultura da paz – a paz como pausa para novas guerras. Guerra, bem entendido, não como maquina de morte. A gente só entende guerra do ponto de vista do Estado, que capturou a máquina de guerra e faz dela uma máquina de morte. Guerra no sentido de combate. A vida não é ativa sem combate. Fomos recentemente influenciados pelo oriente, pela filosofia do não combate e no ocidente isso entrou por Schopenhauer, que de alguma maneira era um budista. Não estamos aqui julgando o budismo, mas desse uso dominante, não só do budismo como outras religiões orientais, onde a questão essencial seria do não combate e da renúncia. Como Cristo, que também adere a essa filosofia, dê a outra face e seja crucificado. Toda ação na existência gera sofrimento e uma reação de destruição. Então é melhor não agir. Esse é o niilismo passivo, ele não tem ódio, não é ressentido, nem tem má consciência, mas ele apenas renuncia, adere a grande compaixão universal. Por isso é tão importante entender essa ideia de combate. O combate é ativo, afirmativo, pois é ele que faz com que a ação seja necessariamente positiva, uma oferenda, uma geração de realidade – não um ato de rapina, no sentido reativo, de apropriação, onde eu ajo, ferro com outro e ganho o poder. Não tem nada a ver com isso. A ação é generosa, é geradora de riqueza e de valor. Mas só se tiver esse combate. Quando o ativo se torna dominante. Como? É um aprendizado que se dá na experiência.

O que é experimentar?

A gente tem uma ideia vulgar de experimentação. Experimentar, do mais nobre que se imagina é apenas enriquecer. Você experimenta para se enriquecer, para ficar mais veloz, mais sábio, mais experiente. Mas esse tipo de experiência é um tipo de aquisição, investe-se numa aquisição de discursos, de ideias, de saberes. Aliás, é a instituição mais valorizada hoje em dia – a instrução, a capacitação, a eficácia – criar indivíduos dirigentes. Quanto mais experiente mais dirigente você se torna, mais útil, mais verdadeiro, mais bom, etc. A experiência é um aproveitamento. Mas desse ponto de vista, ela não passa de um consumo ou de uma troca. Você dá algo de você e recebe algo em troca e isso é no máximo uma transformação ou transfiguração de você mesmo, mas jamais uma transmutação, que é completamente diferente. Uma coisa é transformar, outra é transmutar. Você só produz a si mesmo quando transmuta, se diferencia de si mesmo, realmente. Então estamos aqui ligando a ideia de experiência a um – para falar ao modo de Hume – empirismo superior, não esse empirismo vulgar, simplesmente sensível, que reduz a experiência ao sensível, que inclusive é redutor do próprio corpo, porque o corpo não se reduz ao sensível. É um empirismo superior no sentido que a experimentação se dá necessariamente no campo relacional, no plano dos encontros e, de fato, produz uma mudança no campo de forças que te constitui. Uma mudança real, você se torna outro, você se diferencia de si mesmo, se distancia de si mesmo, tenciona, se multiplica, se dilata, se amplia, cria novas vibrações, novas capacidades de entrar em ressonância, na medida em que você experimenta, na medida em que acontece. Acontecer é mudar a relação de forças que atravessava até então. Na medida em que há o acontecimento, há modificação de si, modificação real e que se dá no imediato, da seguinte maneira: ao mesmo tempo que algo de você vai, algo de você vem e algo de fora entra também. Essa mistura entre o dentro e o fora, essa relação ziguezagueante, esse ir e vir ao mesmo tempo, ao mesmo tempo que algo vai, algo te torna. O que é entrar em devir? É isso, no encontro que você faz, em vez de você virar o outro, imitar, copiar, se identificar ao outro, fazer como o outro, você se torna diferente de você mesmo no encontro que você faz com o outro. E o outro que encontra com você também se torna diferente dele mesmo no encontro que ele faz com você. Aí existe produção de si, aí existe uma experimentação que a gente está trazendo aqui.

Esse si já é uma multiplicidade, nunca é um eu, uma unidade. São sis em mim. Nietzsche chama de ser próprio. Deleuze e Guattari chamam atenção para um certo uso da linguagem do nome próprio. O nome próprio é sempre esmagado pelo nome comum. Nós imaginamos que temos nomes próprios, mas na verdade nossa relação com o nome próprio é uma relação com o nome comum. O comum, que na verdade é uma generalização, é universal, ele se põe no lugar de uma singularidade, que seria o próprio. Próprio não próprio de um ego, é próprio de uma multiplicidade que acontece no imediato sem a relação intermediária desse nome comum que te constitui. Eu é um nome comum. Eu não é eu. Eu é o preposto do poder em mim. É o que me torna uma correia de transmissão do poder, o próprio eu. Individuo no corpo e eu na linguagem ou no incorporal ou no campo dos signos.

Para acessar essa dimensão da experimentação é preciso de uma espécie de disposição. Isso que Nietzsche chama de sim, que não é um sim da consciência, é o sim de uma presença. É algo que se apresenta em nós. É a presença do movimento que nos sustenta, em nós, na dianteira, na fronteira de nós mesmos. É esse movimento em nós que se apresenta e que está na dianteira de nós mesmos, no extremo de nós mesmos, no limite. Ou esse tempo que nos constitui ou nos diferencia de nós mesmos, que também está na fronteira. É essa presença do corpo ou do incorporal, do desejo em ambas, que gera confiança. Não adianta dizer não ou fazer a crítica sem essa dimensão afirmativa que, por mais que a gente não tenha a forma dela, a apropriação dela, a gente sente. Então, há um sentir antes. Esse sentir, essa presença, essa apresentação do movimento enquanto movimento, essa apresentação do tempo enquanto tempo em nós que , de alguma maneira, alimenta a confiança. Não é uma confiança boba, ingênua, não é uma crença cega. Essa presença tem um outro tipo de luz, que não é a luz da consciência – que é uma falsa luz, é só um reflexo, já é secundária. Essa luz não, ela é uma luz que constitui a própria presença de nós mesmos. Essa confiança começa a criar a condição da transmutação do medo em prudência, que é o primeiro inimigo do guerreiro, o medo.

O que a sociedade faz para nos separar desse plano de experimentação imediato? Medo, medo o tempo inteiro, desde criancinha: não faz isso, vai queimar, vai quebrar… É o não que já vai quebrando os agenciamentos. Deve-se proteger sim, más com crueldade e não com piedade. Proteger da necessidade da formação de um corpo forte, formar um corpo forte, produzir um corpo forte, não é com piedade que se faz isso. É uma questão de doses, como vacina, vai produzindo anticorpos. Piedade não educa ninguém, não protege ninguém. O SUS tem toda uma política de humanização que eles acham o máximo, do cuidado, da distribuição da atenção generalizada. Que cuidado é esse? O que é dominante é a ampliação máxima da atenção, mas com o mínimo de qualidade. Para tudo você pode ir lá demandar. E existe um tipo de oferta, por mais que essa oferta seja uma trapaça. O que acontece? Você mantem a vida sob controle. A prática da saúde como um refinamento das instâncias de poder, inclusive de uma certa esquerda que quer se perpetuar aí. Apesar de que a direita é ainda pior. Não estou querendo dizer que o PSDB é mais interessante que o PT, não é isso, o contrário. Existe uma zona que é lamentável, estão no mesmo preconceito, no mesmo tipo de atitude, mas o buraco é mais embaixo, ou mais em cima ou mais no meio ou mais no imediato e não nessas zonas hipócritas de trapaça. Você troca um atendimento por um poder, é uma barganha. Não é o fortalecimento da vida. Cuidar, proteger, como? Gerando força, gerando potência. O que as escolas fazem? Ou mesmo os sábios, os cientistas e os gênios? A maioria pelo menos. Busca discípulos, busca seguidores. Onde está a genialidade da vida? Em fazer justo o contrário, em criar aliados. Em vez de alunos, aliados. Em vez de paciente, ter o mais rápido possível um aliado. Saia dessa instância que você resgata o paciente, que você educa um aluno. Que algo vai trazer a vida para um plano superior. O que é o proteger? A mesma coisa que o educar. Que natureza é essa? Por isso, reencontrar a confiança, ultrapassar esse primeiro perigo que corre uma vida em combate, guerreira, uma vida que se faz, que se auto produz é começar a estimular uma capacidade receptiva em nós. Receptiva de que? Talvez não tão receptiva do que está fora quanto receptiva de algo em nós mesmos. Escutar mais as nossas próprias forças, estar mais atento, mais alerta a isso que vibra em nós, essa presença em nós. Aí o fora também. Você vai encontrar isso fora também, quando ouve uma música, quando assiste um filme, quando faz amor, quando se alimenta, toma banho, escova os dentes, não importa. Cada momento você vai ter mais… Algo de você mesmo e de fora de você mesmo vai se apresentar de modo mais imediato, sem a imediação das nossas imagens, das nossas representações. Para isso é preciso primeiro, trabalhar a capacidade receptiva, a abertura. O que fecha? O medo. Do que o medo se alimenta? Da dor. Porque? Porque a dor é vista como má. O mau uso da dor. E a gente se apieda de nós mesmos. Ai! Doeu! Fecha. Em vez de: doeu, reage, será que dá para agüentar, doe um pouco mais, reage. É um excitante, é outra atitude, completamente diferente. É o sentido alegre da dor. Encontrar isso é fundamental para vencer o medo. Aí também implica a arte das doses. Até onde eu posso agüentar, posso ir nesse encontro? Às vezes a tristeza é tão interessante. Não tem nada a ver com o cristianismo, isso. A tristeza é a dor real mesmo, te acontece e você tem ali a oportunidade, é um presente que está recebendo para ultrapassar uma certa zona onde a vida se coagulou. A dor é um instrumento, um aliado da vida intensa para descoagular a vida, para descristalizar os fluxos. Porque não criar esse gosto? E aí a crueldade. O que é a crueldade? Não é fazer sacanagem, humilhar a vida, ser cruel, humilhar. Não nada disso. Geralmente a gente tem ideia de crueldade como humilhação, que é o que se faz no exército, pega o soldado e humilha, tortura. A crueldade não tem nada a ver com isso, até tem, mas é uma ideia bisarra de crueldade. Crueldade tem a ver com uma necessidade real de crescimento, de fortalecimento. Esse dilatar a si mesmo, a própria ideia de doença tem isso também. Nietzsche diz isso em algumas passagens da obra dele, que muitas vêzes uma doença, a sociedade se apressa em qualificar como doença, mas na verdade é uma oferta experimental que a vida está te dando. Você entra numa zona de experimentação. Você fica com febre, você se enfraquece, é algo muito potente que está te atravessando e quem sabe você não consegue ser sufocado, em respirar, criar um jogo, dobra, cria distâncias. Daqui a pouco estabelece um jogo lúdico com isso, se fortalece. Então aquela doença era uma dilatação do corpo, era criação de novas capacidades. É como a vacina. É uma espécie de dose de inimigo no seu corpo que vai gerar uma recomposição das forças que exercem um combate, ou que se expandem, que é o sistema imunológico.

Então a questão da receptividade, o que o Spinoza chama aumentar a capacidade de ser afetado, é a primeira porta de entrada para essa experimentação no sentido mais nobre da palavra. Experimentação como modificador de si. Ser capaz de ser afetado realmente. Na medida em que você é afetado você deseja de modo diferente, pensa, sente de modo diferente. Se permitir a isso. Ficar mais a espera de si mesmo. Não ficar a espera de uma providência futura. Espere as forças, fique atento, à espreita das forças que te atravessam. Exercer a espreita, ser menos ansioso, mesmos atuante, ficar mais parado, investir na idiotia, na catatonia ao invés de ter sempre uma resposta pronta. Seja desajeitado, é interessante. Não receie que o outro vá te rejeitar porque você está desajeitado. Invista nisso. Não em ser desajeitado se não vira um estilo, um novo marketing, não é isso. Porque a vida claudicante, do porto de vista do dirigente, algo no acontecimento problematiza e faz a vida tremer, variar, ficar insegura, mas isso está no próprio acontecimento. A estrutura do acontecimento já é problemática. E porque a gente ao investir no acontecimento a gente se recente com o problemática como se fosse algo negativo? O problemático é justamente o que põe a vida em variação. O que é o encontro? É o princípio da diferenciação. Não há encontro que não tenha esse principio atuante. Porque que eu vou ressentir a diferenciação. Aproveita. Não “relaxe e goze”, más “ tensione e goze”. É outro tipo de gozo, que não tem nada a ver com relaxar, é um gozo tensionante, é outro tipo de prazer. Aí sim existe um consumo, que não tem nada a ver com o consumo da experimentação vulgar. Você passa a consumir intensidades e não mais discursos, pequenos prazeres que satisfazem o corpo, imagens opacas que vão preencher os nossos órgãos, sejam imagens visuais, auditivas, olfativas, táteis, gustativas.Elas são opacas pois já estamos reduzidos a um estado de corpo. Consumimos imagens mortas, desse ponto de vista. Assim como consumimos palavras mortas. Pode observar, geralmente as pessoas disputam e brigam por causa de palavras, confundem a palavra com o pensamento. Na medida em que a gente consome palavras, a gente está separado da capacidade de pensar. É por um certo uso da linguagem, do consumo de palavras, que separamos do imediato do pensamento ou desse tempo próprio que gera sentidos em todas as palavras, que rasga as palavras, que abre as palavras em linha. Essa dimensão da experiência vulgar que é da aquisição, da instrução, da formação, ou do ponto de vista do corpo, que é da etiqueta, do consumo do gesto, da segmentação dos movimentos, aquilo que é socialmente aceito no andar, no dirigir, no fazer, no circular, enfim tudo o que envolve o corpo, esse regime de corpo que nós consumimos nos separa da nossa capacidade de variar imediatamente o movimento que nos constitui. Assim como a linguagem, os signos impede de acontecer no pensamento. Para que invistamos na capacidade receptiva, nessa experimentação que abre, que gera uma confiança, que chama uma presença de forças que nos atravessam, é preciso desconstruir aquilo que faz o efeito contrário. O que faz com que a gente se afaste do movimento que nos constitui? O consumo de imagens opacas, na medida em que a gente se reduz ao nosso estado de corpo, de humor, de impotência. O que faz com que agente se afaste do imediato do pensamento? Um certo uso da palavra que põe a palavra e o signo no lugar do próprio pensamento, do próprio tempo. Então é, ao mesmo tempo que eu chamo essas presenças em mim, que eu vou me abrindo e aumentando as minhas capacidades e que eu vou desconstruindo o que me impede a experiência com o imediato. É uma atitude simultaneamente crítica e criativa. Crítica para desentupir os poros e criativa para criar novas pontes, novos canais, novos poros, novas janelas, novas portas, novas ligas, novas linhas. Ela te põe em devir. O devir antes do ser, antes do final e antes do tempo inicial, antes do sujeito e do objeto, antes da coisa e da palavra, o devir. O devir tem uma ponta na fronteira do acontecimento e outra ponta na potência, dobrada, que se apresenta nessa mesma fronteira. O ato como fronteira e a potência como distância. Aqui se dá uma ampliação da capacidade receptiva. E o que se passa nessa ampliação, nesse investimento real de modificação de si mesmo? Faça algo que os homens sequer suspeitam, nem em sonho, que a fonte da eternidade está bem defronte do nosso nariz. Está em cada acontecimento que nos atravessa. A fonte do real está aí, assim com a fonte da potência. Não tem nenhum deus, nenhum estado, nenhuma lei, nenhum capital que possa se apropriar da fonte. Essa fonte é uma distribuição generosa, inesgotável, nômade, direta, não precisa pedir licença a ninguém. Então se você quer um anarquismo, uma revolução socialista, comunista, acesse esta fonte. É aqui que está a distribuição nômade que faz com que você deixe de ser mesquinho, que deixa de ficar disputando, que fica retendo saberes. Não há nada para economizar, para arquivar, para estocar. Ao contrário, quanto mais você se abre mais a fonte é inesgotável. Justo o contrario, o mesquinho é um estúpido, ele investe numa espécie de conservação. Na medida em que você começa a exercitar você começa a ganhar gosto e confiança. Você percebe que essa zona do imediato é justamente aquilo que te dá mais força e potência para você criar, para aumentar a potência de afetar. Na medida em que você aumenta a potência de ser afetado, você aumenta a potência de afetar. Dá-se ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo em que algo vem, algo vai. É por isso que Nietzsche diz que a justiça é imanente, é imediata. Temos aquilo que merecemos, segundo o modo de vida que somos capazes de criar. Claro que é preciso nuançar isso. As pessoas dizem: mas não tem uma máquina social, uma máquina de miséria? Claro, tudo isso existe, mas em cada miserável, em cada oprimido há uma cumplicidade. Não uma culpa, uma fraqueza constituída por natureza, mas uma cumplicidade que produz o enfraquecimento. É aí que a educação para a potência teria que atuar. Onde a vida se torna cúmplice de um enfraquecimento? Onde ela pode ser cúmplice de uma potencialização? Há algo em nós mesmos que nos deixa enfraquecer. Há algo em nós mesmo que investe na potencialização. Essa distinção é fundamental. Como a gente apreende, exercita, pratica e transmite isso? É toda nossa questão.

O investimento nessa capacidade de abertura de ser afetado, ao mesmo tempo vai nos pondo em contato com uma nova maneira de fazer a seleção. Ao mesmo tempo em que você contata o movimento enquanto imediato, o tempo do pensamento enquanto imediato, você também, porque isso implica uma abertura… Como você vai selecionar? Tudo entra? Onde eu faço a diferença, a escolha? Digo sim para tudo? É isso que diz Nietzsche, saber dizer sim. O homem não sabe dizer sim. O que é dizer sim? Não é nem dizer, não é verbal. Até passa pelo verbal. Esse verbal que está investido por esse sim anterior que é silencioso, que não é da consciência. Dizer sim é essa abertura, essa confiança, esse gosto pela variação, é a própria diferenciação antes de diferenciar no acontecimento que gosta em você, que deseja em você, isso é o sim. O sim é algo que te ultrapassa, um campo de imanência, um horizonte absoluto que te diferencia. Mas como que você faz para que este horizonte não te engula, não te destrua? Que não venha dele, desse fora, campos ou forças que te aniquilem? Justamente amando as distâncias. Amar a si e não ao próximo. Amar a si enquanto esse si difere de si mesmo, esse si que cria distância no tempo e no movimento. Distâncias não como separação, mas como presenças necessárias que se mantêm inteiras e em pé, sem fazer concessão. Porque a distância que gera uma aproximação por constrangimento, ela abaixa a cabeça. Aqui estou usando um antropormofismo para força dizendo que a força tem uma cabeça, a força abaixa a cabeça quando ela é constrangida, quando a distância é invadida. A distância é fundamental. É essa distância que opera a seleção na fronteira de si mesmo. Não entre uma coisa ou outra coisa, que é a seleção moral, mas a seleção em qualquer coisa que chegue até essa superfície, a extração do necessário daquele acaso. A extração da essência daquele acidente. A extração de um ser daquele devir. A extração de um duplo do acontecimento. A extração de um ato imanente daquele ato que aparentemente era exterior……. É uma extração e uma criação ao mesmo tempo, é um duplo movimento, uma co-autoria. Eu sou co-autor com o acaso, com o caos, com o fora que me atravessa, de um modo que faz com que qualquer coisa que me chegue seja transmutado em força aliada que cria uma consistência, um plano de consistência, um plano até de continuidade. Nessa medida, a natureza da escolha muda completamente. Não é escolher entre o bem e o mal. Não é que eu escolho o bem e evito o mal, invisto no verdadeiro e destituo o enganador, etc. Na verdade, seja bem ou seja mal, seja verdadeiro ou seja falso, justo ou injusto, vinde a mim, como dizia Nietzsche, todo acaso porque ele é inocente como uma criancinha. A inocência do acaso. Aqui sim tem abertura como horizonte absoluto e não como um horizonte parcial do bem, que é investido e horizonte parcial do mal, que é recusado. Dividir a natureza em bem e mal, dividir o devir em bom e mal devir, que é o que o homem faz o tempo inteiro e o que a educação investe o tempo inteiro. Essa confiança, essa abertura, esse horizonte absoluto não é um horizonte bobo, idiota, é totalmente seletivo. Mas é uma seleção de outra natureza. Isso não só é possível como é necessário. Spinoza nos ajuda muito aqui. Ele nos põe diretamente no rigor. Onde está o rigor dessa seleção? Vamos agora pensar no mal ou na doença. Uma coisa me faz mal ou me torna mais fraco, mais miserável. Mas para ela me atingir é preciso ter relação. Se ela não se relacionar comigo ela não me atinge. Como ela relaciona comigo se não tiver nada em comum comigo? Seria impossível. Como você estabelece relação com algo se não tem algo de comum entre você e esse algo? Alguém consegue imaginar uma relação sem uma zona comum? Sem uma natureza comum? De que maneira uma coisa passa para outra ou a outra passa para a coisa? De que maneira algo modifica algo se não tiver uma relação? E de que maneira vai haver relação se não há uma zona comum? Spinoza vai dizer, ora, não é pelo que uma coisa tem de comum com outra que ela vai sofrer um mal ou adoecer ou se decompor. Ao contrário, na zona comum está o começo da transmutação. Como eu opero uma transmutação real? Da doença em saúde, da miséria em riqueza. Isso é real, não tem nada de sobrenatural, isso é alquimia real, você transmuta os elementos. Você precisa encontrar essa zona comum, necessária, é impossível que não exista essa zona comum. Se é difícil encontrar… não é impossível. Aliás, é porque é difícil que a maioria dos homens ou da humanidade está onde está. Isso é outro tempero da vida, outra dinâmica, é uma espécie de provocação para a vida ir mais longe. Não é uma inconsistência da vida, uma imperfeição da existência, uma falta na natureza, não tem nada a ver com isso. Ao contrário, a natureza é perfeita. Sob que ótica, sob que ângulo, qual o ponto de vista que transforma tudo em perfeição? Esse ponto de vista a gente pode habitar. Primeira coisa é encontrar o comum, o ser comum que não tem nada a ver com o universal, muito menos com o bem. O ser comum não é nem bem nem mal, ele é simplesmente, ele é necessário, é uma zona de acontecimento, um plano de imanência, onde tudo começa, um plano de encontro. Há uma zona comum em qualquer encontro, há uma seção imediata entre algo e algo que se encontra. Há um relacional que põe diretamente em contato, sem mediação. Esse plano é um elemento direto, é como um verbo no infinitivo: andar. Andou no passado ou andará no futuro? Andar é para os dois sentidos ao mesmo tempo, para o futuro e para o passado. A seção do andar é um plano do imediato, essa zona comum está aqui. Um andar para todos os andares. Um animal para todas as animalizações. Esse animalizar é um ser singular onde todos os modos de animalizar modificam o animalizar. O animalizar é modificado por cada intensidade que entra nele, por cada relação que entra nele. O animalizar é a zona comum do animal, mas ao mesmo tempo, é incrível, porque de um ponto de vista ele é uma zona comum e do outro, ele é uma singularidade. O animalizar é diferente do vegetalizar, que é diferente do humanizar. Existem zonas singulares, existe uma comum idade dos elementos que humanizam, que vegetalizam, que animalizam, mas ao mesmo tempo, o humanizar, o animalizar, o vegetalizar são diferenças irredutíveis, são singularidades. A primeira coisa é encontrar essa zona comum que opera a transmutação e nos dá a condição de uma escolha ética e não uma escolha moral. Você não escolhe mais pelo dever se ligar ao bem e evitar se ligar ao mal. Você escolhe agora naquilo, seja bom ou mal que te acontece, o necessário antes de tudo. Se algo me aconteceu é porque tinha uma necessidade ali. E se é necessário eu desculpabilizo, eu digo, não poderia ser diferente, isso me era necessário, eu encontro a zona onde aquilo era necessário e não poderia ser diferente. A partir daí eu posso transmutar. Então aquilo que me fazia mal não pode me fazer mal, pelo que tem de necessário. Então, ao invés de eu me aliar ao outro que eu julgo que era mau, que eu quero eliminar, odiar, destruir, eu me ligo a maneira de ser que tem uma necessidade. Na maneira de ser é que eu transmuto. Assim que despessoalizo, que eu deixo de acusar o outro, amar ou odiar o outro. Mas eu amo ou odeio algo que se passa na relação com o outro. É um entre, eu começo a investir no entre, mudo de foco. A educação tem que trabalhar esse foco e não o foco do eu ou do outro, ou da instrução que deixa o eu mais bom, mais verdadeiro ou da instrução que deixa o outro mais civilizado, mais obediente. Na maneira de acontecer, aqui está a zona de modificação real. Ao mesmo tempo em que eu aumento a capacidade receptiva, que eu sou capaz de ser afetado ao máximo também eu posso modificar, ser capaz de afetar. E o que modifica? Antes de tudo, a própria condição da experimentação. Eu sou capaz de criar a condição da experiência que a minha vida entra. Aqui eu posso dizer que tem autonomia? E porque de outro modo não tem autonomia? Porque eu reduzo a vida a um campo de possibilidade. O campo do possível, ele já elege um certo conjunto de formas de referências que vão limitar o meu leque de escolha, como um jogo de xadrez: é todo fechado, tem um limite, uma hierarquia, as regras fechadas. O campo do possível é como um jogo de xadrez, é fechado e ao mesmo tempo me faz acreditar que tem um certo limite que eu não consigo ultrapassar. Ele me põe em uma certa zona de acontecimento limitada a valores de épocas, por exemplo. Uma certa época inventam um modo de ver ou de criar zonas cegas, um modo de ouvir ou de criar zonas surdas, um modo de falar ou criar coisas mudas , um modo de pensar e criar zonas impensadas. No limite do leque de possibilidades você diz não aqui não pode. Aqui é o não que a vida não acessa. Isso porque não somos capazes de criar a própria condição da experiência. A gente diz: isso é possível? Ah, então tá. É impossível, então deixa. Em vez de: impossível? Mas eu quero o impossível. É possível? Mas é muito pouco. É como diz o Nietzsche, o vosso máximo é tão pequeno e o vosso péssimo? Nossa, esse era o péssimo? Isso não faz nem cócegas. É uma cobra? Mas eu sou um dragão. Então, é ampliar ao máximo, ultrapassar o possível bem e o possível mal, que é uma coisa achatada, mediana, de homem medíocre e entra nessa zona onde você cria a própria condição da experiência. Na medida em que você investe na singularidade que é a afirmação própria de cada diferença. Quando você investe nessa afirmação que está em construção, que precisa ser construída inclusive, ela não está dada. A singularidade é uma linha de acontecimento. Ex: você diz, lá está o limite do mar ou daquela avenida, aquele prédio é o ultimo. Se eu estou acostumado a viver aqui, o limite é lá. Mas na medida em que eu começo a me deslocar o próprio horizonte começa a deslocar comigo, então não existe limite. O limite é um limiar. Na mesma medida em que eu afirmo a singularidade eu afirmo o limiar e não o limite. O limiar é uma ponte que vai me diferenciando e no limite, no corte, muda de natureza, há uma transmutação. Isso que é a transmutação na experiência. A vida, ela é de brincadeira, mas uma brincadeira real. A vida é um brinquedo, é lúdica, mas é totalmente real. Não é metáfora. Por isso a metáfora é tão pobre. É o como se… E não é o como se… É totalmente real. Você produz a si mesmo nessa medida. E produzir a si mesmo não é criar um eu forte, poderoso. É ampliar a multiplicidade, é se constituir enquanto multiplicidade, que se torna cada vez mais dinâmica, mais veloz. E ao mesmo tempo imóvel, porque ao afirmar o acontecimento não se trata de sair agindo e se movimentando. Ser ativo não é sair fazendo um monte de coisas. Não tem nada ver com imperativo, ainda que o imperativo seja já sintoma de uma sociedade que limita, que impõe e que demanda. Produz o imperativo, uma reação histérica de uma ação que está presa ou obsessiva.

Pergunta: existe uma zona comum entre a massa e Hitler?

Na verdade ali já é a perda do comum, uma espécie de captura do comum. Há o comum? Há, mas está esmagado por um universal. É a trapaça quando você acredita que o comum é universal, é uma forma. Aí, necessariamente, acaba mal, não tem como. Como isso acontece? Como se chega nesse momento em que invés de você apreender aquilo que é comum e geraria uma liberação de uma linha de fuga ativa faz com que você invista no ódio, em um não a priori? Hitler dizia claramente naquele filme Triunfo da Vontade: os nossos inimigos sequer suspeitam e ficam abismados com a nossa unidade…, o que eles não sabem é que estamos unidos pela dor, pela miséria, pela impotência. Fala claramente, está ali para todo mundo ouvir. O comum na miséria, na impotência, o comum no não, que faz a troca para o universal. É essa trapaça. Então é preciso apreender a afirmação como algo que tem diferença de natureza em relação a negação. Ultrapassar a dialética. Hegel, por ex. vai dizer que o estatuto do sim e do não é o mesmo. O mesmo estatuto para a afirmação e a negação. Isso para a dialética. E Nietzsche vai dizer a dialética é a ideologia própria do ressentimento. Dá em Hitler, em Stalin, em totalitarismos, Bush, nessas coisas aí. Quer dizer, Bush, Stalin, Hitler, o que é o corpo, o espírito deles? É toda a trama social que está ali. É toda a sociedade que está ali investida. Não é o Hitler. Isso é ridículo. A gente sempre buscando o bode expiatório. Claro, Hitler protagoniza, foi ele que num indivíduo catalisou todo o diagrama social. Se não tivesse esse Hitler, seria outro. Freud por exemplo não inventou a neurose ou o Édipo. Freud já era um neurótico já produzido pela máquina social que inverte tudo a relação, o inconsciente enfim…e se não tivesse aquele Freud ia ter um outro. Porque o poder precisa de um certo saber que regule essa relação de adoecimento e introjeção da falta. Se a família não funciona bem a psicanálise está aí para edipinizar. A edipinização é uma função do poder. É necessário ter, senão não tem consumo. Não há desejo no sistema capitalista sem que seja fundado pela falta. Pela falta do objeto a ser consumido. Essa é a máquina do consumo necessário. Não que isso aconteça só no capitalismo, existem outras maneiras de consumir, inclusive eternidade e salvação. São Paulo inventou uma maneira de você consumir eternidade, introjetando a má consciência ou a falta dentro de você como o pecado original. Porque as religiões vão muito bem, obrigado, mesmo numa época que não precisa mais de deus? Na verdade o que é a moral sem deus? É essa mesma falta que é filha de deus e deus é filho de um corpo impotente e de um mau uso desse corpo. Uma vida impotente, que faz mau encontro, uma outra vida que faz mau uso desse encontro, cria deus, que por sua vez cria a moral que deve seguir a deus. Daqui a pouco deus não serve mais, não precisa mais de deus, a moral basta. Assim é o capital, agora nós precisamos só da falta. Édipo basta, não precisa mais da alma pecadora, nem de uma conjugalidade humana, muito menos heterossexual, pode ser homossexual. E pode ser até uma conjugalidade com animal ou com um objeto de estimação qualquer. Aí que você já introjeta a falta. Há uma cultura da falta. Mas isso é que alimenta esse fraudar da zona comum. Aquilo que Artaud disse: deus esse ladrão, esse ladrão de superfície. Todo poder é um ladrão de superfície. Rouba a superfície. Superfície é o imediato do movimento, do tempo, da escolha. O poder, o tempo inteiro, desqualifica essa zona do imediato, desqualifica a superfície, o comum e oferece o bem, a lei, o universal no lugar do comum. Mas a lei, o bem, o universal, é fruto do negativo, do ódio, da impotência. É por isso que eu digo, junto com Freud, há um mal estar necessário da civilização, porque todo desejo para acontecer em sociedade tem que entrar na lei. É o Ferreira Gullar, se não tem lei é a barbárie. É essa substituição do comum pelo negativo do universal. Essa invenção já é socrática. Sócrates que vai dizer que tem um ideal, a ideia em si, o objeto geral e a ideia em si é universal e então ela é representante do bem, porque o bem contempla a todos. Se ela não fosse universal ela seria parcial ou particular, e o particular só contempla a um ou a outro, que gera disputa, intriga, inimizade, guerra, destruição, que gera o mal. Então o particular deve ser obediente ao universal. A educação opera o tempo todo aí, nessa disciplinização, nessa homogeneização, nessa universalização, essa normatização. A educação é uma máquina de normatizar, ou seja de ligar o particular que você é no universal que é necessário para se viver em sociedade. Quando você nem é um particular, você é um singular, que é completamente diferente. Singular não é particular, mas sim uma multiplicidade. A gramática nos engana, de novo. A gramática diz que o singular é o oposto do plural e a gente confunde o conceito com a gramática. Na verdade não há singular sem a pluralidade que constitui o singular e não há pluralidade sem afirmação singular que faz dessa multiplicidade uma linha. Essa máquina educacional, esse sistema de negação pela universalidade criam um referência universal, liga a vida que era singular a este universal, ou seja, esmaga a singularidade, cria uma fórmula média de particularidade que vai se encaixar na universalidade. E a singularidade mesmo está desperdiçada. As sociedades enfraquecidas desperdiçam vida, desperdiçam desejos, afetos, são supérfluos. A terra está cheia de supérfluos. O supérfluo é aquele que não faz a diferença, que não cria nada, não inova, não inventa, que só vive do sangue dos vivos. É o próprio parasita, que não faz a diferença existir ou não existir. Cuidado, isso não é pessoal. Supérfluo é o modo de se relacionar com a força, não é a pessoa que é supérflua. Se não eu vou olhar o que é supérfluo e daí aniquila, aí é o Hitler. A gente sempre fala de forças e de singularidades, não é uma pessoa. No indivíduo tem pluralidade de forças que atravessam então você deve se relacionar com singularidades que afirme a vida e não com os modos que submetem a própria vida. Esse não não é um não contra o outro e sim contra uma maneira. Por isso que tem que ser cruel e implacável, é o não. Mas não à maneira e não ao outro, não pode confundir a criança com a água do banho. É um problema de confundir a linguagem com o pensamento.

Chegamos nessa zona da escolha que não é uma escolha moral, mas uma escolha ética: não importa o que me aconteça ou as relações que eu estabeleça, em cada relação que me atravessa, encontrar aquilo que é necessário, que é essencial, aquilo que se compõe. Não é pelo comum que perco potência, ao contrário, o comum é a condição da composição. É no comum que começa uma unidade de composição. A unidade é a zona comum. A única unidade que existe é essa zona comum. Mas não é uma unidade que salta fora e fica olhando as multiplicidades se relacionarem e ai relaciona essa multiplicidade com essa unidade e assim respectivamente, atomiza as duas, bioonivociza, binariza a nossa multiplicidade com a unidade, tipo juiz- réu, aluno-professor. Você tem as várias substâncias, indivíduos e pessoas sociais que se relacionam a partir de uma unidade que saltou fora. Não, a unidade é o meio, é o próprio acontecimento, tem algo no acontecimento que faz a unidade, que é uma zona comum do acontecimento. Essa zona comum, se não existe, temos que inventar. É o que Deleuze Guattari dizem do corpo sem órgãos, que é aquilo que já está dado, mas ao mesmo tempo está tudo por fazer. Existe uma zona dada, mas ao mesmo tempo, existe outra que está por fazer. Então, essa outra que está por fazer cabe a nós fazermos. Ninguém vai fazer por nós. A gente tem que ser não apenas parte, mas tomar parte. Essa atitude de tomar parte implica uma ousadia e para que haja essa ousadia é preciso que haja confiança, receptividade, uma relação com a própria fonte, senão como você vai ousar? Do nada? Saltar como macaco? Com perdão dos macacos, pois eles saltam bem. Você não pula etapas, precisa criar uma continuidade imanente e é esse o processo de aprendizado. O aprendizado te liga novamente a essa necessária continuidade. Um processo engendrando um outro processo, um movimento engendrando outro movimento e não movimento sendo segmentado de fora, sendo recortado e depois religado artificialmente. Não, é o próprio movimento engendrando e cortando de dentro, diferenciando, um corte a-significante, não racional, não representativo, não moral, um corte necessário que faz com que aquele devir mude de natureza e seja capaz de continuar a si mesmo, na mudança de natureza. É essa zona de escolha que vamos trabalhar ao longo do terceiro bloco, teremos seis aulas especificas para isso. Essas declarações de intenções são apenas simulacros, às vezes é mais tempo, às vezes menos, é uma maneira de distribuir no programa, que não é formal, ele é uma zona de dobragem e de desdobramento e esse tempo a gente nunca sabe qual o tempo necessário para desdobrar suficientemente para ir adiante, mas é mais ou menos isso.

A escola segmentariza o aprendizado e a educação para a potência seria uma continuidade intensiva e expressiva ou qualitativa. Uma quantidade entre intensiva e uma qualidade expressiva. É essa zona de continuidade que a gente precisa habitar, uma continuidade real e não artificial feita pelo homem, ou por deus, ou pela representação. Assim como também nessa continuidade você encontra o processo de diferenciação real, de corte, de descontinuidade. Aí você entende a descontinuidade real e a continuidade real no lugar de uma continuidade artificial ou de um corte ou uma descontinuidade artificial. A representação opera corte e descontinuidade artificial a partir desse não, dessa impotência. Quer dizer, o solo para essa falda descontinuidade e para essa falsa continuidade é a impotência, é a separação da vida do que ela pode, em cima disso que ela cresce. A invenção do Estado faz isso, o Estado é um falso corte e cria uma falsa continuidade. O estado vai querer ter uma memória bem grande, de longa duração, uma memória da forma, uma filiação, uma genealogia, uma dinastia. O poder, ele se continua. É uma falsa continuidade, implica uma captura.

Partindo da síntese que Deleuze faz, pensar não é contemplar, que tampouco é refletir e que menos ainda é comunicar. Não é contemplar um objeto pronto, transcendente. Não é refletir o objeto no sujeito e não é comunicar uma informação entre sujeitos ou intersubjetiva, que é o caso de Kant. Nem Platão, nem Descartes, nem Kant, que são os três modos ocidentais de formatar e capturar o pensamento. Isso não é pensar. Pensar, como diz Nietzsche, é criar. E criar, do ponto de vista da filosofia, é criar conceitos. Mas o conceito não é uma forma, é uma singularidade como potência de acontecer. Do ponto de vista da arte, criar é criar sensações. Do ponto de vista da ciência, criar é criar funções. Pensar, então, não é exclusivo do filosofo. O cientista, o artista, outros pensam. Mas pensar é antes de tudo, criar. Vamos desenvolver esse conceito no próximo encontro. O que é pensar e o que não é pensar. Vamos ligar a primeira idade e a primeiridade a esse pensar, a dimensão da experiência no pensamento e depois iremos para outras experiência, do corpo, da escolha, da memória e do aprendizado.

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