Nietzsche diz: “a pedra de toque de todo heraclitiano é a hybris; aquele que entendeu a hybris, entendeu o seu mestre” – diz Nietzsche, em relação a Heráclito. E o que é a hybris? A hybris é a desmesura, é a forma extrema de tudo que é. É o que o próprio Nietzsche chama de super-homem. O super-homem não é uma entidade – não é que eu, enquanto homem, me tornei um super-homem. Não é nada disso. O super-homem – na realidade até é meio equívoca essa palavra – é o tipo superior de tudo que é. E o que é o tipo superior de tudo que é? É exatamente aquilo que afirma tudo plenamente; afirmou plenamente aquilo, você está na forma superior daquilo. Essa forma superior necessariamente te devolve o retorno, que se autocoloca, que se autopõe – é uma autopoiesis, é uma autonomia real. De fato você tem autonomia assim. Sem sujeito, sem identidade, sem ego.
Espinosa seria o segundo momento do unívoco: o ser unívoco, que inicia com Duns Scot… Duns Scot é que enuncia essa proposição explicitamente. Porque na realidade a história do ser unívoco é anterior, você já tem um ser unívoco com Parmênides; em Avicena isso já se passa, com a essência neutra; mas é Duns Scot que vai fazer a proposição. E segundo Deleuze, a única proposição ontológica que existe é essa: o ser é unívoco, o ser se diz num único e mesmo sentido de Deus e das criaturas – no caso de Duns Scot, que é um cristão. A questão da univocidade do ser em Duns Scot não ultrapassa a neutralidade porque Duns Scot precisa manter um ser eminente e transcendente que seria Deus, uma entidade eminente e transcendente. Então Deus transcende a natureza, ainda em Duns Scot. Ele vive no século XIII para o século XIV, isso é uma condição inclusive de sobrevivência dele.
Espinosa tem teses teóricas muito radicais – como uma única Substância para infinitos atributos, os modos que são partes de uma Substância imanente à própria Substância, ou seja, parte de Deus atuando imediatamente na sua existência, que não se separa da causa. Essas teses teóricas levam a uma acusação, a uma denúncia de que Espinosa é um panteísta, de que Espinosa é um ateu, de que Espinosa vai combater o Deus pessoal, o Deus antropomórfico e antropológico das religiões cristãs, judaicas e islâmicas; mas essas teses teóricas não são suficientes para explicar essa mobilização afetiva em torno da figura de Espinosa. Na realidade, Espinosa tem, com a sua obra, um efeito prático muito violento – violento no seguinte sentido: ele é violento para quem se põe do ponto de vista da moral , do ponto de vista da religião, do ponto de vista da racionalidade ocidental; ele acaba construindo teses extremamente violentas e efeitos práticos extremamente violentos.
Espinosa traz de essencial na obra dele, na filosofia dele, uma capacidade, enquanto filósofo, que é raro encontrar em filósofos, que acaba consistindo no seguinte: através da mais pura filosofia, ele conseguir fazer com que a vida seja reencontrada. Ou seja, levar a filosofia para fora da filosofia; ele cria um sistema, ele cria um esquema que, na realidade, é o que estamos chamando de plano de imanência ou de plano de consistência ou de plano de composição – hoje vamos esclarecer um pouquinho melhor as nuances desses termos; através disso ele consegue levar a vida no seu imediato, uma vida que não precisa de intermediação. Espinosa, nesse sentido, cria o mais puro plano de imanência. O plano de imanência não é um plano como um projeto, como um desenho ou como um programa; o plano é mais como um mapa, como uma geografia, é como uma tela que põe os afetos em contato imediato – o que seria um meio, um puro meio, mas não um meio como um intermediário, como intermediação; é um meio puro onde as coisas se dão. Então Espinosa quer encontrar esse meio, ele quer destituir os intermediários; e os intermediários todos, no fundo, se resumem num único nome, que é a transcendência.
Filosofia ou serve para a vida ou não serve para nada. Nós vamos passar um pensamento filosófico desse ponto de vista, do ponto de vista da vida. Eu dizia então que nós colhemos o que plantamos e nós morremos pela boca. Mas também nós podemos viver pela boca. Ou seja, o que há aqui é a idéia de uma necessidade de uma seleção, de uma capacidade seletiva nos encontros. Essa capacidade seletiva é, na verdade, a tônica da grande saúde: a saúde do corpo, a saúde da mente, a saúde das relações sociais, a saúde das relações com a natureza, a saúde das relações com o planeta, a saúde de todos os corpos vivos que se inter-relacionam.
Nós não acreditamos que haja uma contradição essencial entre os desejos individuais e os desejos coletivos. E essa ideia de que há uma contradição entre os desejos sociais, ou o desejo social coletivo e os desejos individuais, é o pressuposto básico de todo pensamento ocidental. Inclusive é um pressuposto para a invenção do Estado moderno, a partir de Hobbes. Hobbes pressupõe que há um estado de natureza do homem que seria um estado de guerra de todos contra todos, em função simplesmente de que os interesses individuais entram em conflito com os interesses coletivos. Esse pressuposto nós acreditamos inteiramente mal fundado, uma vez que já parte de uma condição humana, de um estado humano, de separação das próprias capacidades afirmativas que condicionam a postura humana como aquela que visa realizar desejos individuais que entram em conflito com outros desejos individuais.
A saúde é de todo o corpo e é do pensamento nosso junto com o corpo. A alma e o corpo estão sempre unidos, ligados. Os ocidentais – e eu de alguma maneira tenho de me incluir nisso, porque nós somos filhos do Ocidente de alguma maneira – criaram uma maneira de viver muito enfraquecedora e muito doente, que separa a alma do corpo. E criou–se uma ideia de ciência, uma ideia de medicina que é, na verdade, uma maneira de controlar a vida, de controlar o corpo e de controlar a alma dos indivíduos. Só vou dar um exemplo básico para que vocês possam se situar um pouquinho em relação ao que quero dizer. No Ocidente, inventou-se, por exemplo, uma doença da alma que se chama vulgarmente de loucura. E a loucura, num certo momento, por exemplo, se disse, no século XIX, que era uma doença mental. A doença mental então foi inventada exatamente no século XIX. E com a interpretação que se tinha sobre uma perturbação do espírito, da alma, veio junto um saber de cura para essa mesma doença mental.
Nossa filosofia toca algo fundamentalmente intimo a uma espécie de natureza humana. É também uma questão complexa falarmos da natureza humana, mas enfim seria um ponto talvez problemático a partir do qual nós pudéssemos desenvolver certos temas que têm gerado muitos descaminhos para a humanidade, para as sociedades, ao mesmo tempo em que se criam soluções muitas vezes artificiais e abstratas, como falou o meu amigo Luís, que talvez fizessem parte de um tipo de filosofia que nós não fundamos. Eu só acredito num tipo de abstração, que é a abstração da não existência que segue sendo real.
Esse curso faz parte de um projeto maior, “bem ambicioso” chamado Filosofia na Primeira Idade, que tem uma visão muito diferenciada em relação a educação, a filosofia, a estética, a ética, a memória. São estas as questões que vamos trabalhar aqui. Educação para Potência é um nome que contrasta com os modos tradicionais que, a meu ver, são todos voltados para uma educação para a obediência.
Desde que o homem é homem existe essa necessidade de produzir-se a si mesmo, de criar maneiras de existir. Se a gente observar como as sociedades primitivas vão trabalhar essa questão da auto produção de si, de signos, de corpos, das relações sociais, que nelas tem essa singularidade, o que chama atenção é que elas não lançam mão de nenhum plano transcendente, de nenhuma divindade fora da natureza, de nenhuma referência racional autônoma.