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Curso de Introdução à Esquizoanálise em 2021 (Transcrição – aula 1)

Aula 1 – Curso de Introdução à Esquizoanálise

Por Uma Clínica da Vida, com Luiz Fuganti

Aula completa no Youtube

[Luiz Fuganti]: Olá! Olá, gente. Muito boa noite. Boa noite a todos, a todas.

É uma grande, uma grande alegria estar aqui de novo, neste dia 20 de junho de 2021, falando sobre esquizoanálise. Esse pensamento e essa prática que vêm contagiando as pessoas mais sensíveis e desafiando, nos desafiando a criar novas maneiras de existir, de agir, de sentir e de pensar.

É um grande prazer, é uma grande alegria. E saber que de novo nós estamos — eu acabei verificando há pouco e percebi que nós, anos passado, estávamos aqui exatamente no dia 20 de junho, só que daquela vez era um sábado. E coincidiu de ser dia 20 porque nós mudamos para domingo os nossos encontros — exceto o último, que será em um sábado novamente.

Mas nós constatamos o quê? Constatamos que cada vez mais esse movimento cresce. E que nos deixa tão contentes no sentido de que percebemos o quão sensível é a vida. E uma vida que se diferencia, uma vida potente, que sabe que, no fundo, estamos aqui para criar e para fazer a diferença.

Então isso cresce cada vez mais e eu sinto realmente que nós também crescemos em responsabilidade. Nossa responsabilidade aumenta. Eu vejo aqui, já têm 764 pessoas segundo o número que eu estou vendo aqui no meu visor. É muita gente, é bastante gente.

E com esse número… não que o número exatamente nos afete profundamente, mas de alguma maneira aumenta muito a nossa responsabilidade. A gente sabe que nós vivemos tempos muito sombrios. Ano passado eu já me reportava ao que a gente vivia. E de um ano para cá, as coisas pioraram — e muito — do ponto de vista social, do ponto de vista político, do ponto de vista da qualidade da vida humana.

Nós nos deixamos governar pela ignorância, pela prepotência, pela arrogância e pela tirania das paixões tristes. Quem nos governa atualmente são as paixões tristes. Nós necessariamente estamos ligados a isso, ou somos reféns disso? Não, não necessariamente. Mas isso afeta toda a atmosfera onde vivemos. Afeta toda a sociedade, afeta a sociedade como um todo. E a esquizoanálise, nesse sentido, é cada vez mais urgente e necessária. O pensamento e a prática de uma clínica da vida.

Nós estamos nos propondo aqui a dar um curso de introdução à esquizoanálise com esse subtítulo: “Por uma clínica da vida”. E significa muita coisa dizer “clínica da vida”. Parece óbvio: toda clínica deveria ser da vida. Mas, em verdade, não é. Na realidade, não é isso o que se passa.

E, é claro, nós vivemos em um momento extremamente difícil e, por isso mesmo, com uma necessidade ainda mais profunda de criarmos novas condições de existência. Mas novas condições de existência não vêm sem a criação de um governo de nós mesmos. Aprender a conduzir as nossas vidas, a governar as nossas vidas independentemente dos estados, independentemente dos poderes tristes que criam centros de soberania e que investem contra toda vida ativa, criativa e afirmativa.

Nós precisamos investir nisso, e isso é, sem dúvida, um problema de política, mas de política do desejo. É, na verdade, uma micropolítica que nos implica, que nos envolve. Não vamos fazer nada, não mudaremos nada profundamente se não acessarmos essa dimensão micropolítica do nosso desejo.

E a dimensão micropolítica do nosso desejo está de alguma maneira soterrada, de alguma maneira encoberta, ao menos de modo dominante. E esse encobrimento é que faz com que a clínica seja de fato uma dimensão que salta exatamente para fazer saltar essa micropolítica do desejo. Porque não mudaremos nada enquanto seguirmos enxergando o inimigo como meramente exterior ou o inimigo como sendo um outro. Nós, hoje, atacamos Bolsonaro, sem dúvida, esse genocida. É assim que temos que realmente tratá-lo, mas, junto com esse genocida, muitos outros pequenos genocidas dão sustentação a ele. E não apenas gente ignorante, não apenas as paixões tristes dos pequenos, das vidas pisoteadas, das vidas separadas do que podem, que se tornaram fascistas ou microfascistas, mas os poderes que lucram com a morte e com as paixões tristes. Que não têm um propósito propriamente fascista, mas são cúmplices do fascismo. Como a grande mídia, obviamente, e toda essa direita, mesmo a chamada “direita civilizada”, ou isso que se diz como “centro” que, obviamente, isso é de direita também, que dá sustentação a isso tudo em um cinismo jamais visto.

Nós vivemos em uma época cínica. E os inventores da esquizoanálise, Deleuze e Guattari, já na sua primeira obra destinada ao pensamento e à prática de esquizoanálise, denominavam nossa época, a era do capitalismo, como a “era do cinismo por excelência”.  As eras anteriores ao capitalismo, os estados ditos despóticos, fossem arcaicos ou evoluídos, eram referidas como “épocas paranoicas”. Sociedades com o aspecto dominante da paranoia, sociedades paranoicas. Mas a era do capitalismo é a era do cinismo.

Então é muito importante percebermos que o cinismo se esconde. Se esconde, há um devir imperceptível do cinismo. A grande mídia nem chega a esconder. Não chega a esconder. As grandes corporações não chegam a esconder. Mas muitos de nós acabamos por nos acovardar e nos tornar cúmplices de vidas malogradas e tristes. Vidas que precisam a qualquer custo exercer o poder para quê? Para multiplicar as paixões tristes e lucrar com isso. É o ideal do tirano. Há sempre um pequeno tirano em cada um de nós quando cada um de nós se acovarda diante do presente. Há sempre um pequeno tirano à espreita em cada um de nós quando, no malogro de nossa existência, nós aderimos a um sistema de compensação. Há sempre uma espécie de microfascismo em cada de nós, à medida em que acreditamos que um sistema de empoderamento nos dará novamente a liberdade.

A esquizoanálise não faz concessões. Ela não está aqui para fazer conciliações. A esquizoanálise é, sobretudo, um modo de viver. Um modo de viver, de sentir, de agir e de pensar que se pauta fundamentalmente no princípio da afirmação. Não fazemos nenhuma concessão ao princípio do negativo. O negativo não passa de um efeito. Um efeito que pode ser usado de várias maneiras. Nosso problema não é exatamente o negativo e principalmente o negativo como efeito, mas o uso que se faz dele, assim como o uso que se faz das paixões tristes ou das dores.

Eu não sei exatamente para o público que falo. Eu imagino que a maioria de vocês deva me conhecer. Aqui eu vejo que já tem quase mil pessoas ao vivo. E então eu acho que devo me apresentar.

Meu nome é Luiz. Luiz Fuganti, da Escola Nômade de Filosofia. E eu já venho exercendo esse pensamento, que invoca um princípio afirmativo, sem negação, desde muito cedo. Desde a minha juventude eu venho investindo em um modo de pensar que nós denominamos “nômade” ou uma filosofia da diferença, uma filosofia da imanência.

A filosofia da diferença, a filosofia da imanência implica pensar ou conceber um modo inteiramente afirmativo de existir, que não negocia com a falta. De um desejo tal, ao qual nada falta. Então isso é uma condição essencial. E a esquizoanálise traz esse pensamento. Ela traz o pensamento de que ao desejo nada falta. Se ao desejo nada falta, nós temos de cara um problema: por que então nós, humanos, vivemos em sociedades onde o desejo talvez seja aquilo que há de mais miserável. O desejo deseja sempre de modo carente, de modo a investir em algo que não tem. O desejo sempre separado da sua potência, sempre buscando alguma forma de compensar a sua miséria, a sua falta, a sua carência. Por que então isso é dominante? Ou seja, será que a realidade contradiz isso que nós queremos, isso que nós pensamos, isso que nós estamos invocando aqui como princípio afirmativo? O princípio absolutamente afirmativo que nos invoca, nos provoca e nos conduz?

Na verdade, existe um jeito de perceber, que é um modo singular de cada existente. Todos nós temos uma singularidade. Uma maneira única de existir que contempla necessariamente a plena afirmação da nossa diferença. Ou a plena afirmação da diferenciação de nossa potência. E, dessa maneira, nós nos tornamos o que somos a partir da própria força que nos faz existir. Não importa o encontro que façamos. Não importa com o que estejamos conectados. Importa a maneira como nos conectamos, e o uso que fazemos da maneira que nos conectamos e daquilo que nos acontece quando nos conectamos com isso ou aquilo, dessa ou daquela maneira.

O uso que fazemos disso que nos acontece, segundo os objetos ou sujeitos com os quais nos conectamos, os campos de forças com os quais nos conectamos e o que nos acontece e o uso que fazemos disso que nos acontece. Aqui está o ponto crítico essencial. Nós podemos ter a plena condição de liberdade nas nossas mãos, independentemente do estado de coisas, social, político e histórico. Nós temos essa capacidade como um dom da vida. Quando nos é dada força de existir, também nos é dada a força de fugir, de escapar das prisões, dos aprisionamentos, ou da realidade pronta, e criar novas maneiras de existir.

Ou seja, há uma plenitude do desejo, há uma plenitude do corpo, há uma plenitude do pensamento que nós denominamos como “processo de singularização”. Nós somos capazes de nos tornar criadores de realidade na mesma medida em que criamos a nós mesmos e as condições da nossa existência. De direito, nós temos essa potência. Mas, de fato, o que nos acontece? De fato, nos acontece de estarmos separados do que podemos, estarmos rebaixados, estarmos diminuídos, estarmos preenchidos de paixões tristes, supondo que ao desejo tudo falta. Um desejo carente, passional, reivindicativo, que está sempre atrás de compensações.

E aqui o buraco é bem mais embaixo. Não é apenas a direita, não são apenas os fascistas, não são apenas as pessoas que se dizem isentas — que daí é pior ainda —, mas boa parte de nós que nos dizemos de esquerda, temos muitas cumplicidades a desconstruir. E, na verdade, esse estado de coisas só está aí sustentado por nossas cumplicidades. Cumplicidades encobertas. Cumplicidades de difícil visualização, porque elas já são objetos de uma manipulação, digamos assim. Já são objetos de um escurecimento, de um sombreamento. De uma escusa que, na verdade, borra tudo aquilo que nos torna impotentes, tudo aquilo que nos esburaca, tudo aquilo que nos pisoteia, para iluminar aquilo que nos arranca do buraco. Aparentemente nos arranca do buraco e nos enche de autoridade, de poder e de direito ao gozo.

E assim seguimos. Hoje dizemos “Fora Bolsonaro”, mas poderíamos dizer “fora todos os o que sustentam Bolsonaro”, “fora todo esse modo de desejar”, “fora todo esse mau jeito”. Bolsonaro é apenas um preposto. Há toda uma rede desejante. A sociedade é formada por uma rede desejante que ao mesmo tempo cria um horizonte de crença. No fundo de tudo, de qualquer sociedade, há um campo preenchido de desejo e crença. No fundo, o que nos governa é o nosso modo de existir. Talvez isso seja duro de ouvir, mas nós precisamos dizer que nós somos governados pelo nosso modo de existir, mais do que por um Estado, mais do que por religiões, mais do que pelo capital. Capital, Estado, religiões: são sintomas, são efeitos. Claro que são operadores também. São meios de captura, não há dúvida. Mas eles não existem sós. Eles não existem como entidades malévolas. Eles existem, na verdade, como excogitados pelo nosso modo de desejar e de acreditar, pelo nosso modo de inventar valores.

Então, é disso que se trata. A esquizoanálise, talvez, seja uma empresa de detectar cumplicidades, do ponto de vista crítico. E do ponto de vista crítico, temos uma dupla tarefa, porque a cumplicidade é uma coisa complexa. Há uma cumplicidade no uso que fazemos daquilo que nos acontece, à medida em que nos deixamos capturar. Não somos apenas vítimas, somos cúmplices, de alguma maneira. Por que somos cúmplices? Porque nada se exerce sobre nós se nós não formos alguma coisa. Nós somos uma força. Cada um de nós é uma força. Não há poder que se exerça em cima do nada. E esse poder não pode aniquilar essa força.

Vamos aprender com o vírus. O próprio vírus tem que entrar em mutação, porque ele não pode se apropriar do hospedeiro e destruir o seu hospedeiro, porque ele se destrói junto. O poder é assim também, exceto no fascismo. O fascismo já é uma linha de abolição. O fascismo já é uma linha de perdição absoluta. Mas os poderes, em geral, tratam de nos preservar. Preservar a vida em estado de rebaixamento.

Então, não existe capitalismo, não existe centro de soberania sem a cumplicidade dos seus pares, das suas peças, das suas peças humanas. Não existe. Mas como pode, então? Pode se… eu afirmei há pouco que há um princípio afirmativo, absoluto. Se há um princípio afirmativo e absoluto, nós participamos dessa afirmação. E como pode, se nós participamos da afirmação, da afirmação da nossa potência, portanto, a afirmação que diferencia a nossa potência — e isso seria o desejo. O desejo é a afirmação de um processo de diferenciação da potência. Como que o nosso desejo chegaria a desejar a própria repressão? Como que o nosso desejo chegaria a desejar o preenchimento por paixões tristes? Como o nosso desejo chegaria a desejar capturas para si mesmo? Ordenamentos externos para si mesmo? Em prol de um empoderamento.

Então isso, de fato, invoca ou nos provoca a perceber o quê? Que não há poder que se exerça sobre nada. Todo poder se exerce sobre força. Então, se nós somos objetos do poder, alguma coisa em nós resiste. Alguma coisa em nós é cúmplice. E essa cumplicidade é o aspecto crítico fundamental. Mas é uma dupla cumplicidade. Uma dupla cumplicidade. A cumplicidade do mau uso que fazemos daquilo que nos acontece; e a cumplicidade daquilo que buscamos para escapar desse mau uso daquilo que nos acontece, aquilo que buscamos para escapar da nossa vida separada das nossas potências. Quando a nossa vida fica separada do que pode, ela busca se ligar novamente a um poder. Ela quer poder novamente. Mas é aí que nós mordemos a isca e acionamos uma segunda captura.

Quando acionamos a segunda captura, nós temos a segunda cumplicidade. Então nós temos uma dupla cumplicidade. A esquizoanálise aborda, ela invoca, ela se dirige a esse duplo aspecto crítico dos modos de viver da humanidade. Mas ela não se dirige a esse duplo aspecto crítico sem ao mesmo tempo liberar a vida. Liberar as forças que estão em nós. Se nós somos uma força, no mínimo uma força de resistir — já que nenhum poder se exerce sobre nada (se exerce sobre forças, portanto) —, ao reencontrar essas forças, nós percebemos que a melhor maneira de resistir é criar.

Mas nós percebemos que há um modo de viver que, ao reencontrar as suas forças, sente que o essencial do seu modo de viver é criar realidade. Então aqui a esquizoanálise nos libera para uma outra tarefa, ou invoca uma outra tarefa, que é a tarefa de resgatar as forças que nos constituem, porque, se ao nosso desejo nada falta, também não faltam forças para a nossa vida, para a nossa existência. Nós precisamos apenas reencontrar essas forças. Nós estamos separados dessas forças. E, à medida em que estamos separados dessas forças e fazemos a crítica e a desconstrução da dupla captura em nós, nós podemos perceber que não só nós acessamos as nossas forças, como as nossas forças se destinam a criar novas maneiras de existir, novas condições para a própria existência. E, além disso tudo, e sobretudo, criar a si mesmo.

Então, aqui se destaca uma tarefa positiva que, na verdade, também é dupla. É dupla por quê? Porque, se é necessário fazermos a crítica para descontruir as nossas prisões e reencontrar as nossas forças, quando reencontramos as nossas forças, percebemos que elas não precisam mais da muleta da representação. Não precisam mais do sistema do julgamento. Não precisam mais do uso estratificado da linguagem, do uso estratificado do movimento, e do uso estratificado das paixões. Não precisam mais das mediações. Nessa mesma medida, nossas forças e nossa potência de existir reencontram a dimensão imediata, sem a qual aquilo que está na existência não encontra outros existentes, não coexiste com outros existentes. Há uma dimensão, há um plano comum dos encontros sem o qual não há encontro, não há relação.

E o que nós descobrimos, à medida em que fazemos essa desconstrução? Descobrimos que há, na verdade, uma zona imediata do acontecimento que nos põe imediatamente em acontecimento. E essa zona que nos põe imediatamente em acontecimento também pode nos ensinar a criar realidade. Não apenas nos ligar novamente à nossa potência de acontecer, mas nos tornar criadores. Diferenciar, fazer a diferença na existência. É a isso que qualquer existência se destina. Não existe outro destino mais interessante para a vida ou para o sentido do existir.

Então, uma vez dito isso, que a esquizoanálise tem esse propósito de encontrar a dimensão política do desejo. Ao mesmo tempo, a dimensão política, que é uma dimensão micropolítica do desejo, não vai sem modo seletivo ou ético de existir. E é esse sentido ético que nos invoca à crítica.

Desculpem, uma interferência aqui da Siri.

Há a questão que traz a necessidade da crítica. A esquizoanálise então investe, portanto, o desejo do ponto de vista político, que já libera uma dimensão ética na desconstrução das nossas prisões, das nossas cumplicidades, daquilo que eu gosto de chamar de “lição de casa”, que é a lição do nosso corpo, a lição do nosso pensamento, a lição das nossas paixões que, na verdade, nada mais é do que a desconstrução das prisões do corpo, a desconstrução das prisões do desejo, a desconstrução das prisões do pensamento, a desconstrução da prisão que é o nosso modo de existir.

Essa lição de casa invoca uma dupla crítica, uma dupla desconstrução. E essa dupla crítica e desconstrução, portanto, é feita por uma visão ética-afirmativa do desejo. E é nessa medida que, quando a gente reencontra as nossas forças, nós acabamos por perceber que, junto com a dimensão ética necessariamente há uma dimensão estética. A dimensão estética ou a dimensão plástica da existência é a dimensão que nos revela um ser comum sem o qual a vida não se encontra imediatamente em relação, em mistura e em processo de diferenciação. Essa dimensão estética, então, se libera junto com a efetuação ética.

E aí, nessa mesma medida, a ética libera uma terceira potência, que é a potência de diferenciar, de criar-se a si mesmo, de se singularizar.

Bom, eu vou dar nome a isso. Nós inventamos um modo de apreender isso e também de nomear. Eu, há um tempo já, venho destacando que isso pode ser nomeado em quatro momentos, de quatro maneiras.

Nesse curso de introdução à esquizoanálise, que se dará em quatro encontros, nós vamos abordar em cada um dos encontros uma dessas zonas de passagem. A primeira zona de passagem é o que eu denomino como primeira captura. Primeira captura do desejo, ou primeira captura da nossa existência. Como nós nos deixamos capturar? Pelo nosso mau jeito, pelo nosso próprio modo de viver, pelo nosso próprio modo de usar aquilo que nos acontece.

Então, uma primeira grande zona de passagem. Passagem do quê? O desejo ou a nossa potência de existir passa a um nível tal que ela se rebaixa, ela é reduzida, ela cai. Um buraco se instaura em nós. O nosso desejo é constituído por um buraco, por uma queda, por um acontecido, por uma experiência vivida, mal passada, por uma falta. A falta é inventada. E a gente vai ver como.

A segunda grande passagem é aquilo que acontece a esse nosso desejo decaído. A essa nossa potência reduzida ao que ela se tornou. O nosso desejo passa a desejar a partir desse estado que reduziu a potência de acontecer a um limite vivido, mal passado, interiorizado, introjetado em nós. A partir dessa introjeção, o desejo capturado se lança e se projeta, idealizando, buscando uma verdade, buscando uma salvação. Ele, que está no buraco, busca sair do buraco. Ele, que está no inferno, busca um céu. Ele, que está na impotência, busca o empoderamento. Ele, que está no ostracismo, busca o reconhecimento. Ele, que não tem nenhuma qualificação, busca as qualidades e a autorização. Ele, que não goza, que se frustra e é impotente, busca o direito ao gozo.

Esse movimento do desejo e a conjunção desses modos de desejar criam um agenciamento tal de desejo e crença que acabam dando sustentação a um centro de soberania, a um centro de poder. Um centro de poder que, de alguma maneira, vai providenciar a nossa satisfação, a nossa felicidade. Vai nos reconhecer. Vai nos empoderar. Vai nos pegar pela mão, à medida em que também o servimos. E esse sistema de empoderamento vai dar origem a isso que eu chamo de segunda captura.

Então é uma segunda passagem do nosso desejo. Primeiramente, o desejo decaído. A passagem para a queda. Nietzsche, no seu Zaratustra, diz assim, logo na primeira parte da obra, depois do prólogo, tem um fragmento denominado “As três metamorfoses do espírito”. E ele diz que há três metamorfoses do espírito: quando o espírito se torna camelo; depois o espírito de camelo se torna leão; e de leão se torna criança. Camelo, leão e criança.

Quando nos tornamos camelo? O camelo aqui, em Nietzsche, implica essa dupla captura em nós. A primeira queda já é um modo de nos confundir àquilo que nos aconteceu. Acreditar que aquilo virou um fato, um fato consumado que vai ganhar uma eminência sobre o nosso modo de desejar. E a segunda captura vai implicar um encontro ou uma criação de valores transcendentes à existência que vão nos fazer levantar, que vão nos fazer ascender, nos empoderar, mas jamais deixaremos de ser camelos, desse ponto de vista.

E poderíamos até dizer aqui: a crítica que a esquizoanálise faz é o modo do camelo? Jamais. Jamais. E aqui nós queremos provocar. As psiquiatrias, quase não precisa nem falar. Mas as psicanálises e psicologias que pretendem realmente se aliar à vida ativa ou criativa, ou investir em um modo libertário do desejo, será que esse investimento é realmente honesto?

Quando a crítica é feita a partir de um ressentimento, quando a crítica é feita a partir de um rebaixamento, quando a crítica é feita a partir da visão do negativo — negativo que rebaixa a vida, ou negativo que ressente, ou negativo passivo, essa crítica não faz nada. Ela não desconstrói nada. Ao contrário, ela só reforça a necessidade de uma compensação e de um empoderamento.

Então é preciso realmente levar a crítica a fundo. Mas a crítica só é levada a fundo quando operamos a segunda metamorfose. A segunda metamorfose, como diria Nietzsche no seu Zaratustra, é a fase do leão. É quando o espírito de camelo se torna leão. E o leão é aquele que diz “não”. Não a tudo que está estabelecido. Não aos valores transcendentes ou divinos. Não aos valores humanos. Não aos valores passivos. Dizer esse “não” é, na verdade, aliar-se a um “não” ativo, um “não” a serviço das forças ativas, um “não” que libera novamente a vida, que simplesmente destrói aquilo que rebaixa ou captura a vida. É o “não” do leão, necessário à reconquista da superfície, à reconquista do imediato. É o “não” que desconstrói a representação em nós.

Esse “não” do leão em Nietzsche é o que eu chamo de Terceira Passagem, aqui na esquizoanálise.

Então há, de fato, uma mudança no desejo. O desejo, quando cai pela primeira vez, se torna impotente. Mas o desejo, quando cai pela segunda vez, é mais difícil de perceber, porque ele se empodera. Um escancara as paixões tristes; o outro esconde as paixões tristes com falsas alegrias. Mas, na terceira passagem, há uma mudança real do elemento que deseja em nós. O próprio desejo é apreendido no seu campo de imanência. Uma coisa que vamos ver aqui, um pouco, como funciona isso.

É preciso a gente reencontrar o campo de imanência dos nossos modos de desejar. Qualquer um de nós tem esse campo de imanência. Nós precisamos reencontrar o campo de imanência, é fundamental. E o leão em Nietzsche não se dá sem esse campo de imanência do desejo. Quem diz “não” já não é um impotente. Quem diz “não” já não é um ressentido. Quem diz “não” já não é um idealista. Quem diz “não” já não é o reativo. Quem diz “não” já não é o passivo.

Quem diz “não” é aquele que é atravessado por uma visão afirmativa e por forças ativas. O “não” está a serviço da afirmação e da força ativa. O “não” é uma espécie de limpeza. O “não” é uma espécie de desentupimento dos poros.  O “não” é uma espécie de desconstrução, de destruição de tudo aquilo que nos aprisiona e nos captura. Então, esse “não” não tem nada a ver com ressentimento, não é o “não” do ressentido. É a destruição do sistema de julgamento. É esse “não” que é a condição para que acessemos o campo imediato e o plano de imanência do desejo.

Nessa medida, então, que a gente opera essa terceira passagem onde o desejo muda o seu elemento… na primeira passagem, o desejo muda o seu elemento também. Muda o seu elemento, mas, na segunda passagem, ele não muda, ele apenas progride em direção a um buraco maior, ainda que a aparência seja de empoderamento. Mas na terceira passagem há uma retomada da potência, do ponto de vista do desejo imanente em nós. Quando reencontramos a terceira passagem, nós reencontramos um desejo que deseja a partir da própria potência que o constitui; e não um desejo impotente, que busca uma potência que não tem.

A terceira passagem é importantíssima. Nós poderemos chamá-la de ponto focal ou ponto de transmutação do nosso modo de desejar. E, junto com o nosso modo de desejar, vão o nosso modo de sentir, o nosso modo de agir, o nosso modo de pensar. Então há um ponto de transmutação do desejo, que não é, vejam bem, não é uma transformação, não é uma mudança de forma. É uma mudança no modo de desejar. Uma mudança no elemento do desejo que emerge da própria potência. É o desejo que emerge da própria potência que, ao desejar, se preenche de acontecimento.

Então aqui está uma diferença fundamental. É aqui que percebemos que o desejo não tem objeto e também não tem sujeito. Ele não carece de sujeito e muito menos de objeto. Ele não carece de um objeto que o preencha porque ele se preenche de acontecimento. Quando eu reencontro a superfície, eu reencontro a condição de acontecer de modo imediato. E quando eu reencontro essa condição, eu percebo que o que me preenche não é um objeto que está do outro lado, mas é o próprio acontecimento ou a própria maneira de acontecer.

E é nessa mesma medida que também eu percebo que não é mais um sujeito que deseja em mim, mas é uma potência que emerge e é envolvida por esse acontecimento. A própria potência sobe à superfície. Ela sai do buraco onde estava reduzida ao que tinha lhe acontecido e agora ela se libera e acontece de modo imediato na superfície dos encontros. O que é a superfície dos encontros? Nós vamos ver mais diretamente no nosso terceiro encontro.

E quando nós operamos essa terceira passagem, então, que é uma transmutação do elemento do desejo — em um certo sentido eu posso dizer que é uma retomada da inocência, que é uma retomada do desejo sem falta, que é uma retomada da plenitude do modo de desejar —, essa mutação libera também a nossa potência de criar valor, a nossa potência de diferenciar, a nossa potência de criar não só obras que de nós derivam, mas a nossa própria maneira de existir. Ou seja, as nossas próprias condições de sociabilidade nas nossas relações de sociabilidade. E também, principalmente, a nós mesmos, porque nós deixamos de ser o que éramos. Nós nos tornamos diferentes do que éramos. Nós nos modificamos, necessariamente. Nós nos fabricamos. Nós deixamos de existir como uma substância atolada, como uma forma de identidade, como aquilo que não muda.

Então, esse momento é quando nós nos tornamos, de fato, o que éramos de direito. O que éramos de direito? Um pensamento límpido, puro, pleno, imediato, que encontra a afirmação da dimensão absoluta do real. Sabe que o que nós somos de direito é uma potência de acontecer, mas não apenas de acontecer, mas de acontecer criando o real — o real que deriva de nós, o real que é a condição da nossa efetuação e o real que nos tornamos. Então, a gente se torna aquilo que já era: a nossa potência de acontecer se torna uma potência de criar real.

Nietzsche, no seu Ecce Homo, diz… Ecce Homo que em latim significa “eis o homem”. É até uma referência a Jesus, quando é entregue ao poder romano, para julgamento e ao povo judeu. “Eis o homem”. Eis o homem é “eis o homem que criou essa obra.” “Eis Nietzsche, que criou uma obra de pensamento”, mas eis a vida dele, eis o modo de viver dele. E ele diz assim, nesse Ecce Homo, nesse “Eis o homem” além da obra, o subtítulo de Como alguém se torna o que é.

O que nós somos? Nós somos uma identidade? Nós somos um projeto de Deus? O sonho dos nossos pais? Um ideal social de empoderamento, de sucesso? Qual é a nossa missão? De fato, não tem nenhuma forma prévia para o nosso destino. Nós somos, de direito, uma potência de criar realidade. Mas nós precisamos conquistar essa potência. O que nos é dado? Nos é dada a potência de acontecer, mas não necessariamente nos é dada a potência de criar realidade — que é uma conquista da potência de acontecer.

E, se é uma conquista da potência de acontecer, é porque nós não acontecemos de qualquer maneira. Dependendo do modo como nós acontecemos, nós nos separamos da nossa própria potência. Dependendo do modo como nós acontecemos, nós nos ligamos à nossa mais alta e plena potência de existir, que é fazer a diferença.

Então, a esquizoanálise, a meu ver, junto com filosofia da diferença, com o pensamento nômade, não deixa por menos. Nós sabemos que há um modo pleno e singularizante de existir, que não se satisfaz com a identidade, com o sujeito, com a pessoa, ou mesmo com o bem coletivo. Sabe que existir é se singularizar, e você só se singulariza se realmente você encontra um ser comum, uma zona comum de passagem. É um modus operandi que tem uma dupla afirmação: a afirmação do comum e a afirmação do singular. A singularização não se opõe ao comum, e o comum não se opõe ao singular. Quanto mais nós afirmamos e diferenciamos a nossa potência, mais nos singularizamos. E quanto mais nos singularizamos, mais produzimos o comum. E quanto mais produzimos o comum, mais o comum se torna afirmação da nossa própria diferença. É o círculo virtuoso do desejo.

Então há, sim, uma maneira de existir que dispensa o Estado, que dispensa a Lei, que dispensa a moral e que nos torna plenamente autônomos. Uma autonomia real. Mas isso só é feito se, de fato, a gente se empenhar na crítica, na desconstrução de nós mesmos. E por que a gente precisa se empenhar na crítica e na desconstrução de nós mesmos? Porque somos filhos do tempo, somos filhos da história, somos filhos da cultura, somos filhos de uma sociedade, de uma máquina social, muito mais do que filhos de um pai e de uma mãe. Nós somos filhos do acontecimento que nos trouxe até aqui.

É preciso perceber o que aconteceu em tudo isso que nos trouxe até aqui e que nos mantém separados do que podemos, e que nos leva a desejar de modo torto, buscar empoderamento em vez de potência, buscar reconhecimento em vez de criar novos horizontes.

Algo se passou no caminho da humanidade. Muitas coisas se passaram, e nós somos feitos de tudo isso. Nós não somos um indivíduo isolado como uma cápsula, ou mesmo uma pessoa. A pessoa e o indivíduo em nós são apenas sintomas. É isso que as psicanálises, psicologias e psiquiatrias deveriam começar a perceber mais profundamente, e não fazer de conta que percebem. O indivíduo e a pessoa em nós, o Eu em nós é efeito e também instrumento. É meio de efetuação. É preposto de poder de uma sociedade. É fundamental que a gente perceba isso.

Nós somos feitos de linhas. De linhas de desejo, de linhas de devir, de linhas de tempo, de linhas de acontecimento. E essas linhas têm ritmos, velocidades e tempos diferenciados. Existem… Geralmente, as linhas que nós percebemos conscientemente são aquilo que Deleuze e Guattari denominam como “linhas duras” ou “linhas de estratificação”. Segmentos que apenas a consciência percebe, mas que, no fundo, escondem linhas mais finas, outros tempos, outras durações, outras velocidades, outros ritmos. Linhas flexíveis que mal percebemos, ou que nos assustamos com elas, ou que, muitas vezes, identificamos como causa de doença, ou como causa de perversão, ou como causa de alguma ameaça, que põem em xeque as condições de sociabilidade, que já mostram as portas para uma zona virtual. Então são linhas flexíveis que já desembocam nas portas da realidade virtual. E, mais profundamente ainda, somos feitos de linhas de fuga. Linhas de fuga que, na verdade, são linhas de acontecimento. Linhas de acontecimento, ou seja, algo acontece imediatamente à nossa potência de existir, sem forma prévia e que necessariamente nos diferencia. Nós somos feitos dessas linhas também.

Então, é preciso romper com a personologia, que determinou a psiquiatria já desde as suas origens, determinou a psicanálise — a freudiana e também parte da psicanálise lacaniana —, mas, também precisamos desconstruir a estrutura e o estruturalismo. Nem a personologia, nem a estrutura explicam aquilo que faz a vida escapar e muitas vezes faz a vida adoecer, porque quando escapa, se não cria consistência, ela adoece. E aí nós vamos reestruturar essa vida ou vamos ligar novamente uma personalidade fendida, como no caso da psicose? O que faremos? Na verdade, existe algo muito mais profundo do que isso. Estrutura e pessoa são sintomas de processos desejantes. Há processos desejantes. São esses processos que nós precisamos entender. Esses processos que são constitutivos do inconsciente.

Então, para resumir, inicialmente. A esquizoanálise traz uma dupla tarefa crítica, que é a desconstrução do mau uso daquilo que nos acontece e a desconstrução daquilo que nos empodera — que, no fundo, faz aumentar o buraco em nós. À medida em que a gente opera essa dupla tarefa crítica, nós criamos as condições para desentupir os nossos poros, para liberar a nossa superfície, para nos relacionarmos sem forma prévia ou verdade prévia. A gente conquista uma condição de criação. Ou seja, a gente entra no duplo aspecto criativo que a esquizoanálise nos propõe.

Eu digo “esquizoanálise” porque tem tudo a ver com a esquizoanálise, mas a maneira como eu exponho aqui não está exatamente nos livros de Deleuze e Guattari — ainda que tenha tudo a ver, e que ressoe perfeitamente, e que, enfim, eu possa até estar usando outros nomes, mas vocês, que já se relacionam com esses textos ou vocês que vão se relacionar com isso, vão perceber que, na verdade, tem tudo a ver e que nós precisamos avançar no pensamento e na prática da esquizoanálise, porque tanto o pensamento da esquizoanálise, ele tem uma abertura incrível para criar além do que já está dado, assim como a clínica ainda está por ser inventada, de uma certa maneira.

Então, isso que eu nomeio aqui como dupla tarefa crítica e dupla tarefa criativa, ou os quatro portais, as quatro zonas de passagem, vocês não encontram exatamente dessa maneira nem no Anti-Édipo, que é a primeira obra que propõe a esquizoanálise, nem no Mil Platôs, que é a obra que complementa e encerra esse ciclo de uma grande obra denominada Capitalismo e Esquizofrenia, cujo primeiro tomo é o Anti-Édipo, de 1972, e o segundo tomo é o Mil Platôs, de 1980. Em francês saiu apenas um tomo. Em português, isso está traduzido e dividido em cinco tomos, em cinco volumes. O Mil Platôs, pelo menos. O Anti-Édipo está em um volume só. Mas enfim.

Vocês não encontram, então, exatamente dessa maneira nos textos, mas, obviamente vocês encontram isso em pensadores… de alguma maneira, sob algum aspecto vocês encontram isso em pensadores como Espinosa, como Nietzsche, como Bergson, como Foucault e mesmo na obra de Deleuze, anterior à sua proposição clínica. Vocês encontram essa realidade nomeada também de modo diferenciado. Vocês encontram o que Espinosa chama de “plano de imanência”, o que Espinosa chama de “plano comum dos encontros”. Vocês encontram o que o Espinosa chama de “ética” e o uso das paixões em Espinosa. Vocês encontram o que Nietzsche chama de “ressentimento” e de “má consciência” sob o ponto de vista crítico. E, ao mesmo tempo, toda a condução criadora da obra de Nietzsche, que opera no sentido da transmutação do elemento do desejo. Vocês encontram uma relação com o tempo e com a realidade virtual em Bergson, que ressoa inteiramente com a esquizoanálise e com isso que eu estou veiculando aqui.

Então, essa dupla tarefa crítica e criativa da esquizoanálise vai nos inserir em um outro modo de viver. Um outro modo de viver. Na verdade, nós podemos nos tornar esquizoanalistas. Cada um de nós pode se tornar um esquizoanalista. Mas não sem fazer a lição de casa. Não sem desconstruir a si mesmo. Não que necessariamente você tenha que se descontruir de modo absoluto em tudo. Você pode iniciar a clínica, de alguma maneira, a partir de um bom processo de desconstrução já feito, já operado em você mesmo. Mas a gente não para de se desconstruir, porque a máquina social não para de nos querer capturar. E também há uma zona de nós mesmos que eventualmente está sempre flertando com algum tipo de cumplicidade. Então é fundamental a gente manter essa autocrítica permanente e se relacionar com um modo de viver que lança mão, ou melhor, abre mão das escoras, das muletas, das mediações, das representações, das compensações. Essa lição de casa é fundamental.

Há, então, uma prisão, um aprisionamento no modo de usarmos os movimentos do corpo. Há uma prisão, um aprisionamento no modo de usarmos o tempo, a memória, através da linguagem. O pensamento que acontece com o tempo e com a memória através da linguagem. Há uma maneira de usarmos as paixões, os afetos.

Então, aquilo que aprisiona o nosso corpo depende do modo como usamos o movimento. Aquilo que aprisiona o nosso pensamento depende do modo como usamos a linguagem. E aquilo que aprisiona o nosso desejo depende do modo como usamos as nossas paixões. Então há um convite aqui para essa desconstrução, essa tripla desconstrução: do nosso modo de mover ou de produzir corpo; do nosso modo de pensar, ou criar, ou investir valores; e do nosso modo de desejar e se preencher de afetos, que podem ser afetos ativos ou afetos passivos.

Nós podemos, então, dizer o seguinte: dedicar, nesse momento, um tempo — talvez vinte minutos ou meia hora — para apresentar a primeira grande passagem, que é aquilo que denominamos como primeira captura. E depois eu posso, eventualmente, olhar um pouco aqui as questões e responder as questões, porque eu imagino… nós temos aqui praticamente quase mil pessoas, já passamos um pouquinho. Em média, estamos em torno de 890 pessoas aqui, agora, neste momento. E eu imagino que tenha muita coisa aqui já no chat, que eventualmente eu vou começar a dar atenção daqui a pouco.

Então, e ideia é falarmos em torno de uma hora e meia, e reservar meia hora para dar atenção ao chat e às questões que surgem. E aqueles que tiverem questões e eventualmente conseguirem segurar essas questões para o nosso próximo encontro, ou para os encontros finais, isso pode ser interessante também, porque as questões vão mudando à medida em que vamos acessando, à medida em que vamos mergulhando nesse pensamento.

Vamos lá, então. Eu vou abordar aqui a primeira captura.

A primeira captura depende de nós mesmos. Ela revela a nossa cumplicidade de cara. Eu diria que podemos partir da ideia espinosista, de Espinosa, que cada um de nós é uma potência em ato, é uma potência de acontecer. Vamos usar o termo “potência” para evitar nomes que geram muita confusão, mas, ao mesmo tempo, esse termo “potência” é um termo muito preciso. Potência é uma realidade em nós que não tem forma. É uma realidade em nós que nos sustenta, mas é uma realidade que não tem concretude, exceto quando se atualiza.

Então, a potência não é feita exatamente de uma realidade atual, se bem que não haja potência sem ato. Portanto, sempre, mesmo que tenha um mínimo de ato, a potência é uma realidade, exatamente porque ela tem essa face ligada necessariamente ao ato, mas na sua dimensão essencial ela é abstrata. Ela é uma realidade abstrata, uma realidade que não existe, mas que é real. É uma realidade feita de tempo. É uma realidade feita de acumulação de tempo. O tempo, aqui eu não posso entrar em muitos detalhes, mas o tempo tem uma qualidade fundamental. Na verdade, não é nem uma qualidade fundamental, é um aspecto da sua essência. A essência do tempo faz com que o próprio tempo conserve a si mesmo. Se há uma duração no tempo, se há acontecimento no tempo, não há nada que aconteça no tempo que não se conserve no próprio tempo.

Então, isso que conserva o próprio tempo, que faz com que o tempo se acumule, também faz com que o tempo se acumule em nós. À medida em que o tempo se acumula em nós, isso vai gerando mais potência em nós. Depende da qualidade do tempo acumulado, obviamente. Então, nós somos feitos de tempo, nós somos seres de tempo, em última instância. Mas nós não somos seres de tempo sem um outro polo, que é o polo da existência. Nós não somos essa essência sem a existência. Nós existimos a partir do movimento. O tempo que toca o movimento. E o movimento é o princípio do corpo, é o que cria a corporeidade. Nós somos potências em ato. Potências em ato, ou seja, tempos e movimentos. Dobras de espaço-tempo, digamos assim.

Se nós somos essa potência de acontecer, nós acontecemos nos encontros com outras realidades, que também são potências de acontecer. E nos encontros com essas outras realidades que são potências de acontecer, nós somos modificados. E à medida em que somos modificados, nós sofremos uma variação na nossa capacidade de existir. A toda potência corresponde um ato ou uma capacidade de existir.

O que é uma capacidade de existir? É uma capacidade de ser afetado e de afetar. É uma capacidade de ser modificado sem ser destruído, e de modificar ou de gerar uma realidade que de nós deriva.

Então essa capacidade de existir varia segundo os encontros que fazemos. Há encontros que nos decompõem e há encontros que se compõem conosco. Os encontros que nos decompõem nos separam da nossa potência de sentir, de agir e de pensar. Ou, melhor dizendo, diminuem a nossa capacidade de existir, ou seja, de sentir, de agir e de pensar. Os encontros que nos decompõem, portanto, nos preenchem de paixões tristes. O que é a tristeza? A tristeza é a passagem de uma realidade maior, ou de uma capacidade de existir maior para uma capacidade de existir menor. É essa passagem. Essa passagem que nos preenche quando fazemos um mau encontro.

E se fazemos um bom encontro? Um bom encontro faz com que a gente aumente a nossa capacidade de existir. Então, o que é um bom encontro? Um bom encontro é um encontro de algo com a nossa potência que faz com que a nossa potência aumente a sua capacidade de efetuação; de agir, de sentir e de pensar.

Então, a passagem de uma capacidade menor para uma capacidade maior, essa passagem é a própria alegria. Nós nos preenchemos de paixões alegres. De paixões, se formos determinados de fora, se tivermos a sorte de fazer um bom encontro, se por acaso fizermos um bom encontro. No caso do mau encontro, é sempre paixão. Não existe um mau encontro por ação. É sempre paixão. Então há paixão triste, mas há paixão alegre. Enquanto é paixão, tanto na triste quanto na alegre, nós ainda estamos separados do que podemos — porque na paixão alegre, nós ainda somos passivos, nós ainda não estamos ligados à nossa potência de acontecer, nós ainda não temos a vida nas próprias mãos. Nós ainda não tomamos parte da potência que nós somos. Nós ainda somos afetados de fora, simplesmente, modificados de fora e determinados, coagidos ou ajudados, no bom e no mau encontro, a fazermos isso ou aquilo, a sentirmos isso ou aquilo, a pensarmos isso ou aquilo.

Agora, quando nós somos determinados de fora, portanto, então nós somos necessariamente preenchidos, porque nós nos modificamos, e o que nos preenche é a nossa modificação e não exatamente o outro. Não é um objeto que nos preenche, é a modificação. E essa modificação depende da ação da força exterior. A força exterior tem um poder tal sobre a nossa potência que ela nos obriga a fazer isso ou aquilo, a pensar isso ou aquilo, a sentir isso ou aquilo. Tanto na paixão triste quanto na paixão alegre, só que no caso da paixão alegre, essa obrigação vira um presente, porque ela nos ajuda a ficar mais fortes. Mas mesmo assim, estamos sendo determinados de fora.

O que é uma ação? Uma ação é um tipo de afeto que depende inteiramente da nossa potência. A ação é um tipo de afeto que implica já em uma maneira ativa de existir, e não há uma maneira ativa de existir sem um horizonte afirmativo do desejo. Então, o horizonte afirmativo do desejo, na verdade, ele constitui essencialmente a nossa potência. É o ato que constitui essencialmente a nossa potência. A nossa essência é constituída por uma afirmação, necessariamente por uma afirmação. Não tem nenhuma negação dentro de nós.

Hegel não entendeu Espinosa. Achava que o negativo e o afirmativo tinham o mesmo estatuto. De modo algum. Em Espinosa, a afirmação é primeira. A negação sempre vem de fora. A morte sempre vem de fora. Então há uma afirmação plena que nos coloca na existência. E quando encontramos essa afirmação em nós, há uma maneira de apreender essa afirmação em nós que faz com que aquilo que nos preenche dependa inteiramente de nós, ainda que a gente se mantenha e se abra ainda mais para as relações com o fora, o com o mundo exterior. E é nessa medida então que isso que nos acontece e que nos preenche depende exatamente de algo em nós que cria a nossa maneira de se efetuar.

Espinosa diz que nós necessariamente nos efetuamos. Que, se a nossa potência é uma causa, o nosso ato, um efeito, necessariamente esse ato efetua essa causa, ou essa causa produz esse ato. Melhor dizendo: há um ato que efetua a causa, há um ato efetuador da causa. Não há causa sem ato e não há ato sem causa. Ou não há efeito sem causa, melhor dizendo. Então, esse aspecto é essencial.

Nós necessariamente, na existência, nos preenchemos. Seja de paixões tristes, seja de paixões alegres, seja de afetos ativos. Afetos passivos e tristes, afetos passivos e alegres, ou afetos ativos — que são necessariamente alegres. É isso o que necessariamente nos preenche. E se a gente for dizer que a potência aqui é idêntica ao desejo, podemos dizer que ao desejo nada falta. Mesmo que o desejo esteja preenchido de paixões tristes.

Então, há necessariamente um preenchimento do desejo à medida em que a potência em ato encontra outras potências em ato e se modifica nessas relações. O que a preenche é uma modificação que Espinosa chama de “afecção”. A afecção é o objeto propriamente do desejo. Ou, melhor, é o acontecimento da nossa potência. Mas esse acontecimento da nossa potência pode ficar em estado de efeito ou pode revelar a sua dimensão inesgotável, a sua dimensão causal.

Então, enquanto ele se mantém em estado de efeito, nós somos passivos. Nós somos tanto passivos no corpo quanto passivos no pensamento. Mas à medida em que a afecção encontra a dimensão do afeto e o afeto se torna ativo, necessariamente o efeito envolve a causa que o produz. E é nessa medida que a gente se torna ativo.

Claro que não dá para falar isso em poucas palavras, mas dá para apenas sinalizar o processo que faz com que diferenciemos o modo passional de existir do modo ativo de existir. E no modo passional de existir necessariamente o nosso pensamento se reduz à imaginação. Nós imaginamos e imaginamos que pensamos, mas nós não pensamos de fato. Então nós temos a paixão e a imagem ou a imaginação. Mas quando acessamos a dimensão ativa, necessariamente o nosso pensamento se torna um pensamento real, aquilo que Espinosa chama de pensamento ou ideia adequada. E a ideia adequada já é aquela que envolve a causa. Quando a causa que é envolvida é uma potência de agir, de sentir e de pensar, uma potência de criar, nós estamos no pleno pensamento.

Espinosa vai distinguir ainda — eu não vou entrar em detalhes aqui — um segundo e um terceiro gênero de pensamento. O primeiro gênero é a imaginação que nos mantém separados do que podemos, que nos mantém separados da nossa potência de pensar; o segundo gênero é o entendimento, que revela (ou que cria, na verdade) uma razão de composição, uma razão de relação; e o terceiro gênero é o que ele chama de intuição que apreende a essência. O segundo gênero apreende relações e o terceiro gênero apreende essências.

Bom, mas por que eu estou falando isso tudo? Na verdade, aqui nós já temos uma dica de como podemos fazer um mau uso daquilo que nos acontece. À medida em que estamos passivos, nós não temos ou não acessamos a nossa força de pensar. Nós apenas imaginamos. E quando nós imaginamos, nós identificamos aquilo que nos faz mal ou que nos faz bem como vindo de fora, como vindo de um objeto. Nós também não apreendemos quem somos realmente. Nós confundimos nossa essência com aquilo que nos tornamos na existência. Uma existência reduzida, uma existência separada. E essa existência reduzida ou essa existência separada, ao se introjetar em nós, vai fazer uma ideia deformada de nós mesmos.

Quando confundimos a nossa essência, que é uma potência de acontecer, com aquilo que nos aconteceu, necessariamente nos separamos não só da plenitude da existência, da abertura plena da existência para uma multiplicidade do acaso, que não se divide em bem e mal. Mas quando nos separamos, vamos dividir o acaso em bem em mal. Não apenas reduzimos, mutilamos o campo da existência, como também nos separamos da nossa realidade virtual, que é a realidade constitutiva da nossa potência. E deixamos de nos perceber como potência e passamos a nos perceber como sujeito, ou passamos a nos perceber como uma alma, ou passamos a nos perceber como um Eu.

Aqui tem um grave equívoco. Aqui acontece a primeira queda. A primeira queda é quando reduzimos nossa potência de acontecer, a nossa essência a isso que se passa conosco. Só que isso que se passa conosco não para de se passar. Estão sempre se passando coisas. Então, do acontecimento, vira um acontecido. Do acontecido, vira uma camada em mim. Novo acontecimento, um acontecido. O acontecido, nova camada em mim. Então esse acontecido reduz o acontecimento. Ele, na verdade, reduz à medida em que ele é mal pensado, é mal digerido, é mal vivido. Em uma palavra: ele é mal passado. Há um mal passado que se torna esse passado em mim e que se empilha, formando aqui uma camada subjetiva. Quanto mais essa camada cresce, mais endurecidos nós ficamos. Quanto mais endurecidos ou engessados nós ficamos, mais nós precisamos buscar aquilo que nos satisfaria, e menos encontramos. Mais precisamos adequar o exterior àquilo que nos tornamos. Aquilo que nos tornamos é um limite, um vazio, um oco, uma falta de ser, uma falta de realidade que vai precisar ser preenchida por um objeto exterior.

É essa percepção que vai fazer com que busquemos então uma maneira de viver que nos mantenha na existência, nos conserve na existência e nos afaste daquilo que pode nos destruir. Mas se nós só temos a imaginação para isso e as paixões, necessariamente vamos atribuir isso que nos acontece a uma causa exterior, imaginária. Aqui está o grande problema. Nós vamos ter a tendência a achar que o mal que nos atinge vem de um outro, ou que o bem que nos atinge também é provido por um outro.

Por exemplo, existe na obra de Espinosa, na Ética, no Livro II, nas proposições 17 e 18, e principalmente nos seus escólios… principalmente o escólio da proposição 17. Espinosa vai dizer que uma coisa é a ideia de Pedro, outra coisa é a ideia de Paulo. Aliás, uma coisa é a ideia de Pedro, outra coisa é a ideia que Paulo faz de Pedro. A ideia de Pedro é a ideia da natureza de Pedro, é o que Pedro é na realidade, na sua natureza essencial e também na sua essência — na sua existência, o que envolve a sua existência. A ideia que Paulo faz de Pedro é o modo como Paulo se relaciona com Pedro. Na hipótese de Paulo sofrer uma decomposição na relação com Pedro, ou seja, Pedro acaba, nessa relação, fazendo mal para Paulo. Paulo vai sofrer uma modificação, que vai ser uma afecção. O que é uma afecção? É um rastro no desejo do Paulo, é uma marca, poderíamos dizer, usar um outro nome. É um efeito, é uma modificação ou um acontecimento em Paulo que imediatamente ele vai atribuir a Pedro. Antes de encontrar Pedro, Paulo estava em um estado. Depois de encontrar Pedro, Paulo ficou triste, diminuiu a sua capacidade de existir. Logo, Paulo vai dizer que a ideia de Pedro é a ideia de um Pedro que é mau, é a ideia de um Pedro que faz isso ou aquilo. É a ideia necessariamente parcial do Pedro.

O que Paulo tem para conhecer Pedro? Apenas o que aconteceu a ele. Mas geralmente aqui existe uma coisa muito curiosa. Espinosa vai dizer assim, que a ideia que Paulo faz de Pedro não exprime ou não explica a essência de Pedro. Nem mesmo a existência. Mas indica muito mais. Nem explica e nem exprime, mas indica muito mais o estado de Paulo. Então é uma ideia que indica um estado, é uma afecção, é uma ideia parcial, uma ideia mutilada, porque é apenas um efeito que depende, que foi gerada pelo próprio estado de Paulo na relação com Pedro.

Então a causa da ideia em Paulo que é feita de Pedro é muito mais o corpo de Paulo do que o próprio Pedro. Isso é regra na condição humana, enquanto ela se mantém passiva. Isso é uma coisa fundamental. Enquanto somos passivos, nós necessariamente acreditamos que aquilo que nos atinge é efeito de uma intenção de um outro. Paulo diz “Pedro certamente quis fazer isso comigo, quis produzir esse mal em mim”. Então essa afecção em Pedro, que depende muito mais de Pedro, que indica muito mais o estado do corpo… aliás, desculpa, do Paulo. Essa afecção em Paulo no encontro com Pedro, que depende muito mais de Paulo, que indica muito mais o corpo de Paulo do que releva a natureza de Pedro, vai ser atribuída a Pedro. Como o quê? Como a causa final do desejo de Pedro em relação a Paulo. Ou seja, Pedro tinha a intenção de produzir isso em Paulo. E, nessa medida, Paulo vai dizer “Pedro é mau, porque ele quis fazer mal para mim. Ele quis fazer esse mal para mim”. Ou seja, eu atribuo ao desejo de Pedro uma intencionalidade.

Então, a causa final do desejo de Pedro nada mais é do que o fantasma e a produção de uma ideia parcial, uma afecção parcial que aconteceu em Paulo porque Paulo estava separado da sua potência de agir.

Ora, então Paulo identifica a causa do mal como sendo um outro. Obviamente, o desejo de Paulo… ou a potência de Paulo, em vez de se servir da tristeza para entender o que na verdade estava implicado no modo de Paulo se relacionar com Pedro, ele simplesmente pega aquele efeito e atribui a Pedro, e perde a oportunidade de perceber-se como cúmplice naquela relação. E perceber que principalmente a ideia que ele faz de Pedro, na verdade, indica muito mais o estado afetivo que ele se encontra.

Então aqui eu já tenho não só uma separação da minha potência de existir, mas um mau uso daquilo que me aconteceu. Eu me relacionei com Pedro e fiquei triste, e em vez de eu usar a tristeza para me implicar, me envolver com o que gerou aquilo, que dependia de mim também, eu simplesmente atribuí a responsabilidade a Pedro. Eu deixei de fazer um uso interessante da dor ou do mal que me aconteceu, fiz um mau uso do mal que me aconteceu e eu tendo então a associar a minha tristeza a essa causa imaginária que seria Pedro. E essa relação, diz Espinosa, se chama ódio. Então, o que é o ódio? O ódio é o sentimento de tristeza ligado à ideia imaginária da sua causa.

Em Nietzsche isso vai se chamar ressentimento. Ressentimento em estado bruto ou em estado animal. Por quê? Porque ainda não tem a forma do ressentimento, que é um sistema de julgamento. Então aqui, a primeira captura começa a se constituir assim. Ou seja, Pedro, na verdade, se confundiu com o acontecido nele mesmo. O que foi o acontecido? Uma decomposição. Algo que não caiu bem com ele. Uma velocidade que não se compôs com a velocidade do corpo de Pedro, um tempo que não se compôs com o tempo da mente de Pedro, da maneira de existir de Pedro, um ritmo que não se compôs, naquele momento, com uma ou outra parte de Paulo.

Então, ele simplesmente deixou de perceber que ele poderia investir em uma distância, criar uma outra maneira de se relacionar que depende inteiramente dele, independentemente se Pedro fizesse ou não mal a ele. E ele poderia, inclusive, aproveitar o mal que lhe acontece para ficar mais forte. Mas ele, em vez de aproveitar o mal que lhe aconteceu para ficar mais forte, ele simplesmente se desresponsabilizou, atribuiu essa responsabilidade a um outro, a Pedro, e perdeu a chance de encontrar a sua cumplicidade e, portanto, perdeu a chance de inventar uma maneira de viver diferente, de se modificar com isso. Ele desperdiçou essa energia. A gente vai ver isso melhor com Nietzsche, o que Nietzsche chama de ressentimento é exatamente isso que se passa.

O ressentimento é o quê? O ressentimento, em Nietzsche, ao menos no estado animal, é uma intoxicação. Nós somos intoxicados. Intoxicados por quê? Em geral pensamos que a intoxicação é de um alimento. Eu como, sei lá, uma maionese com salmonela e eu fico intoxicado. Agora, o acontecimento também intoxica. Algo me acontece e eu não dou conta. Eu não digiro aquilo. O problema é que já me aconteceu e eu não consigo mais tirar isso de mim, não consigo vomitar, botar para fora. E um terceiro problema é que eu não consigo nem isolar. Então isso toma conta de todo o meu ser. Quando isso toma conta de todo o meu ser, eu me confundo com isso que me aconteceu, com esse malogro. E o meu desejo vai passar a desejar a partir daí, o meu pensamento vai passar a pensar a partir daí, o meu sentimento vai passar a sentir a partir daí. O meu fazer, a minha ação vai passar a fazer a partir daí.

Então eu sou inteiramente reduzido a esse mal que me aconteceu. Me confundo com isso. E, claro, vou fazer necessariamente uma imagem deformada do outro, uma imagem deformada do mundo, uma imagem deformada de mim mesmo e, nessa mesma medida, vou me tornar impotente para mudar esse estado de coisas. Vou ficar realmente separado do que eu posso, e à mercê do acaso dos encontros, e até de alguma esperteza, alguma vontade de me vingar, de alguma vontade astuta de contornar essa situação. Eu vou virar, como diz Estamira, um “esperto ao contrário”.

Esse mau uso do que nos acontece revela-se no mau encontro e revela-se também no bom encontro. O que acontece no mau encontro? No mau encontro, eu tendo a me sentir vítima, simplesmente. Eu me reduzo ao estado de vítima. Algo me aconteceu que não era merecido por mim. Eu sinto assim. Não era merecido. Eu não merecia ser atrasado dessa maneira. Eu não merecia ser separado dessa maneira. Eu me sinto vítima, eu me sinto impotente e vítima, e sinto piedade de mim mesmo. Sinto compaixão de mim mesmo. Junto com o sentimento de compaixão, o que eu posso? De que maneira eu posso reagir? Na verdade, eu não posso reagir. Como diz Nietzsche, “aquele que está intoxicado não reage, ele ressente”. Ele sente pela segunda, pela terceira, pela quarta vez. Como? A partir de qualquer novo acontecimento que chegue a ele. Todo acontecimento lembra o que ele viveu, rememora o que ele viveu. E instiga novamente ele a quê? A criar um modo, um modelo, um dever-ser no acontecimento. Mas ele ainda não sabe como fazer isso. Ele vai precisar de um líder, de um padre, de um publicitário, de um messias, de uma coisa qualquer para dar esse ideal para ele, esse critério para ele. Mas enquanto ele não tem essa segunda instância, que é uma instância de poder, de empoderamento, ele tende a ver no outro a causa do seu mal e a acusar o outro, e há uma tendência a vingança aí. Um sentimento de vingança. Um sentimento de reparação. Um sentimento de justiça que se confunde com a vingança.

Então é um duplo mau uso do mal que me acontece. O mau uso por sentir simplesmente pena ou piedade de mim; e o mau uso por, nesse sentimento de injustiça, buscar a justiça e atribuir a causa desse mal a um outro, e buscar reparação, buscar restituição, buscar retomada ou compensação. Então isso, na verdade, faz com que o estado de impotência que me aconteceu se solidifique ainda mais. Em vez de eu mover isso, em vez de eu investir em uma fluxão, fazer com que isso se dissolva em mim, e que eu transmute esse movimento, eu vou soldar ainda mais, eu vou afirmar essa coagulação, eu vou cristalizar isso, e é esse estado que vai se colocar no lugar da minha potência de acontecer.

Então, o primeiro mau uso, a primeira captura é quando aquilo que me acontece vira um estado em mim e eu ainda reforço esse estado com esse duplo mau uso, esse duplo sentimento de piedade, por um lado, e de vingança ou de um movimento justiceiro, de outro. Esse é um duplo mau uso do mal que me acontece.

E o bem que me acontece? Se me acontecer um bem e não um mal? Também há aqui um duplo mau uso. Um duplo mau uso que faz o quê? Que reforça aquilo que me acontece como um estado que vai se solidificando em mim. Eu vou me tornando uma substância. Eu vou me engessando. Meu desejo vai se solidificando. O que é um bem que me acontece, o que acontece no bem, no bom encontro, se eu permaneço passivo? Eu vou ter um sentimento de complacência. Eu vou ter um sentimento de recompensa, um sentimento de compensação. E, nessa mesma medida, eu vou investir na permanência daquilo, supostamente, que causou esse bem-estar em mim, esse prazer em mim, esse aumento de potência em mim.

Então, ao mesmo tempo em que eu vou ter a complacência como uma espécie de direito ao prazer, eu vou ter também um gosto pela manutenção disso que me gera prazer. E esse gosto vai ser uma vontade de apropriação, que nós chamamos de amor. Na verdade, o que chamamos de amor geralmente é uma vontade de apropriação daquilo que nos faz bem. Um controle sobre aquilo que nos faz bem. E aqui nós vamos investir, aqui vai ser a porta para investir na segunda captura, porque aqui é um passo para investirmos no empoderamento, na compensação de uma vida impotente ou separada do que pode. A compensação de uma vida passiva.

Aqui vai ter um duplo mau uso e um perigo ainda maior, porque justamente é com esse prazer, com essa alegria, essa alegria, esse prazer que vai alimentar a nossa vontade de investir um desejo intencional de empoderamento que vai garantir, digamos assim, a nossa continuidade na existência, o nosso desenvolvimento e o nosso crescimento. Nessa mesma medida vamos, portanto, reforçar o quê? Reforçar um estado de prazer, ao mesmo tempo em que vamos combater um estado de dor a partir de um outro exterior. Ou odiando um outro ou amando esse outro, mas esse ódio e esse amor ambos são passivos e reativos. Ambos não nos implicam. Ambos não nos envolvem. Ambos apenas reforçam o bem e o mal que viriam de fora, e nos dispensam da lição de casa, do nosso trabalho sobre as nossas forças.

O que seria importante fazer, no caso do bom encontro? Seria importante eu perceber que no prazer é preciso encontrar aquilo que me fortalece, e não aquilo que me acomoda, não aquilo que me acalma, não aquilo que me entorpece, não aquilo que me compensa. É preciso aprender a extrair força do bem que me acontece. Se eu não faço isso, eu fico na complacência e no pequeno prazer, no prazer reativo. Ora, é preciso extrair intensidade do prazer. Aqui a gente seria ativo, a gente faria um uso interessante do bem que nos acontece. Mas geralmente a gente simplesmente se acomoda, se torna complacente, passa a mão na cabeça e diz “oh, eu mereço”. “Eu mereço esse bem”.

E o segundo mau uso é a vontade equivocada, deformada, que atribui a uma instância exterior a geração daquele bem. E aí eu tenho que controlar ou me apropriar dessa instância exterior. Quando, na verdade, eu preciso fazer o quê? Eu preciso perceber que a causa tanto do mal quanto do bem que me acontece depende do meu modo de viver. Aqui está a pedra de toque. Aqui está o ponto de transmutação. Eu só faria um bom uso do mal e do bem que me acontecem se eu percebo que tudo que me acontece, de bom ou de mal, depende do meu modo de vida. Envolve, portanto, a minha potência de criar ou de investir uma maneira de viver. Maneira que pode ser adequada ou inadequada. Maneira que pode ser interessante ou desinteressante. Boa ou má. Desse ponto de vista, sim, existe uma boa maneira, um bom jeito; ou uma má maneira, um mau jeito. E a gente deveria investir então nisso.

Mas essa maneira só é encontrada no segundo gênero de conhecimento em Espinosa, por exemplo. Que é quando eu percebo o elemento comum que tem em cada relação. Esse mal não me atingiria se não tivesse algo de comum, assim como esse bem também não me atingiria se não tivesse algo de comum. Mas o comum está além do bem e do mal. O comum é uma afirmação. Uma afirmação de uma diferença. À medida em que eu me relaciono imediatamente com o comum, com o modo de existir que implica, que envolve o comum, necessariamente também eu encontro a linha de afirmação da minha diferença, ou o processo de singularização da minha diferença.

Então aqui existe algo que é preciso investir, mas isso só é investido quando eu descontruo não só a primeira captura. Bom, se eu descontruo a primeira, eu não chegarei na segunda, ou eu já desconstruo automaticamente a segunda. Mas se eu estou na segunda, eu tenho que desconstruir necessariamente a segunda, para aí desconstruir a primeira também. E ao desconstruir a segunda e a primeira, eu reencontro essa maneira de acontecer na superfície onde também está a realidade do ser comum. E a realidade do ser comum não é uma forma da lei, não é uma forma do universal, não é uma forma do ideal, ou seja, não é uma forma de verdade. E muito menos uma norma do desejo, uma norma subjetiva do desejo. Nem o ideal objetivo, nem a forma objetiva da lei, nem a forma objetiva do universal, nem a norma subjetiva. Mas é uma zona comum sem forma, que eu encontrarei à medida que eu envolvo a minha potência de acontecer naquilo que me aconteceu.

E aí eu crio uma distância através desse comum. Eu sou capaz de criar uma distância, descolando o que me aconteceu da minha potência de acontecer. Então eu retomo a minha potência de acontecer. Criar essa distância tanto no corpo quanto no pensamento, quanto no campo afetivo. É uma tripla distância. Então isso é essencial, mas isso vai depender de eu fazer um uso interessante da dor, encontrar um sentido alegre da dor e uma razão não vingativa da tristeza. Nem vingativa nem piedosa da tristeza.

Bom, eu acho que é um momento de eu olhar um pouco aqui as questões, porque nós já estamos há quase duas horas nesse encontro. Mas só para resumir antes de entrar nas questões, então. A primeira captura depende inteiramente de nós. Ela envolve a nossa potência, mas nós não percebemos isso. Nós ficamos presos naquilo que acontece à nossa consciência. A nossa consciência aqui é feita de afecções. Essas afecções são meros efeitos que não envolvem ou não percebemos como envolvendo a causa. E a causa é necessariamente a potência, a minha e a dos outros que se encontram comigo.

Então se eu não sei envolver essas causas, eu fico preso aos efeitos, necessariamente eu acredito que a realidade do meu desejo começa nesse efeito, e há aqui uma inversão. Eu coloco esse efeito no lugar da causa. E é isso o princípio do buraco. Aqui que eu começo o esburacamento do desejo. Aqui que se começa a produção da falta. Então a falta está em mim não sem a minha cumplicidade. É preciso que eu já faça um mau uso daquilo que me acontece. Mas eu posso ser treinado para isso. Eu posso ser educado para isso. Eu posso ser cultivado para isso. Não existe uma cultura? Não existem as igrejas? Não existem as escolas? Não existem as ciências? Não existem os valores humanos, as práticas humanas, fomentadas por um centro de soberania nas nossas sociedades? Então aqui existe um braço do Estado, um braço da soberania, um braço das religiões, um braço de deus, chame do que você quiser, que vai aproveitar essa nossa deixa, essa nossa passividade para sugerir que existe um outro modo de se salvar. Ou seja, quanto mais esburacados nós estamos, mais esse centro de soberania vai crescer, vai ver matéria para o seu crescimento. É um interesse do centro de soberania que as paixões tristes se multipliquem em cada um de nós. E eu posso chamar o centro de soberania de capital, de déspota, de deus, do que você quiser, enfim. Do que a gente quiser nomear. É sempre um poder exterior ou transcendente ao uso imanente do nosso desejo. Então há um interesse em uma instância exterior a nós. Nós vamos ver mais, no segundo encontro, como essa instância se constrói. E para vermos como essa instância se constrói, eu vou ter que fazer um mínimo de retomada disso que eu falei aqui sobre essa primeira captura, então isso também vai ficar mais claro.

Os movimentos que vamos fazendo aqui funcionam ao modo de uma espiral, porque vamos retomar o que foi dito aqui, aprofundar e trazer novos elementos para já entendermos o que seria essa segunda passagem, que é a passagem para o empoderamento, que é uma captura ainda mais profunda, mais terrível, que acontece conosco.

Então, basicamente isso. A mediação começa com o nosso mau jeito. Com o mau uso daquilo que nos acontece. Aquilo que nos acontece se coloca no lugar da nossa potência de acontecer. Essa é a condição do esburacamento do nosso desejo para a constituição do nosso desejo como falta. E nessa medida, o desejo vai, portanto, buscar uma compensação. Aqui está a origem do desejo intencional. É quando o desejo perde o seu campo de imanência. Ele deixa de perceber que ele se preenche do próprio acontecimento. E ele passa a buscar um objeto que jamais vai preenchê-lo. É quando ele perde a imanência e vai buscar uma transcendência. É o sentido da idealidade. Tudo o que é ideal vai tentar compensar.

Gente, antes ainda de eu entrar nas questões, existem algumas coisas importantes que eu acho que é bom falar agora. Acho que é mais oportuno eu falar agora, que é o seguinte: é muito importante fazermos uma distinção da maneira como a esquizoanálise vê o inconsciente do desejo. A psicanálise, na verdade, não acessa o inconsciente na sua realidade imediata. Ela só acessa o inconsciente a partir de representações. Ela acessa um inconsciente recalcado, uma dimensão recalcada do desejo. Seja o recalcamento primário, seja o recalcamento secundário. E, nessa medida, ela não consegue se relacionar senão com uma representação do inconsciente. E essa representação do inconsciente é que vai criar toda a condição da edipianização do desejo. Nós aqui pouco falamos disso, mas eu queria trazer outros elementos que fazem a positividade da esquizoanálise, mas é importante realçarmos aqui um contraste, um modo de pensar da esquizoanálise em relação à psicanálise e outros pensamentos e práticas clínicas.

Nessa medida, a psicanálise vê o inconsciente como uma cena, um teatro, um modo de representar. E o próprio desejo aí constituído é um desejo que é constituído da falta. E esse desejo constituído da falta é, na sua natureza, incestuoso e parricida. Essa é a natureza do desejo edipiano. E esse esquema vai ser reproduzido, vai ser atribuído a aqueles que eventualmente caiam na clínica psicanalítica. Vai ser estabelecido como um complexo padrão que se projeta nas manifestações do desejo e interpreta o modo como o desejo se efetua a partir desse complexo que atribuiria ao desejo um sentido parricida e um sentido incestuoso.

Claro que isso vai ter uma implicação em um sentimento de castração também. A própria castração vai operar no sentido de haver a necessidade de uma proibição do incesto para se entrar na cultura ou na civilização. Todo o modo então do inconsciente psicanalítico funciona ao modo de um teatro ou de uma representação. O modo do inconsciente esquizoanalítico é um modo onde o inconsciente é pura produção, é pura fábrica, é pura usina. O inconsciente não é um teatro, o inconsciente é uma usina onde o real se produz. E essa usina é feita de realidades virtuais e também atuais. E essas realidades virtuais e atuais são processos e fluxos. O inconsciente-fluxo, o inconsciente-processo, o inconsciente-fábrica. É como o deus de Espinosa. É como a natureza naturante de Espinosa. A natureza naturante de Espinosa é uma realidade que é causa de si mesma e de tudo que dela deriva, como a natureza naturada. Então ela é causa de si mesma e de tudo que dela deriva, portanto ela produz a si mesma e tudo que dela deriva.

Assim é também o inconsciente da esquizoanálise. É um inconsciente como a natureza naturante de Espinosa, ou como o campo de forças e a vontade de potência em Nietzsche. É esse o inconsciente da esquizoanálise. E esse inconsciente necessariamente não é apenas múltiplo, ele é muito além do múltiplo que é derivado de uma unidade fictícia, ele é uma multiplicidade. Ele não é uma substância. A própria multiplicidade é uma substância. É a última palavra do real, digamos assim. É o último nível de realidade, é a própria multiplicidade, e não um substrato que tem por trás da multiplicidade.

Esse inconsciente esquizoanalítico é uma fábrica. E o desejo, na esquizoanálise, ao contrário do desejo na psicanálise, na psiquiatria, na psicologia e nas metafísicas em geral, é um desejo ao qual não falta nada. É um desejo que funciona no campo de imanência. É um desejo que se preenche de intensidades. É um desejo que não tem objetos e também não carece de se tornar sujeito. Esse desejo, na esquizoanálise, não é um desejo que representa e não é um desejo que quer adquirir, como era o caso do desejo em Platão, que vingou até Kant. O desejo como aquisição, o desejo como cobiça, o desejo como vontade de apropriação, o desejo como o movimento daquilo que não tem em direção àquilo que se tem. Não é esse desejo, assim como não é o desejo kantiano. Porque o desejo em Kant parece que tem uma evolução, mas, verdade, é uma falsa evolução, porque em Kant o desejo se torna produtor de realidade? Não. Em Kant, o desejo se torna produtor de fantasma.

Então aparentemente foi um ganho, porque o desejo produz em Kant, mas produz fantasma. Ora, é esse desejo que a psicanálise tomou para si. A psicanálise é kantiana, os psicanalistas são kantianos, porque eles acreditam somente no desejo que produz fantasmas e não realidade.

O desejo na esquizoanálise é um desejo que produz realidade. E essa realidade é tripla, digamos, assim. É aquilo que dele deriva, é a maneira dele se efetuar e também aquilo que acontece a ele mesmo. É uma tripla produção desejante. Esses pontos são fundamentais.

Outra coisa que é fundamental destacar como diferença entre a psicanálise e a esquizoanálise. Não só a psicanálise, mas as outras áreas psis, e a esquizoanálise. É que o delírio, por exemplo, que é um sintoma de uma psicose ou de uma doença mental, jamais é visto pela esquizoanálise como o delírio de um indivíduo ou o delírio de um sujeito. A esquizoanálise combate a personologia, mas a personologia é constitutiva das principais teses da psiquiatria, da psicanálise e de várias psicologias dominantes.

A personologia é aquela que acredita que, no fundo, a doença vem de uma cisão da pessoa, de uma decomposição da pessoa ou de uma degradação da pessoa que se descola da realidade ou que se fende à si mesma. Uma outra visão equivocada é a visão estruturalista. Porque a visão personalista é um acidente que acontece à pessoa, mas a visão estruturalista é, na verdade, um acontecimento que acontece a uma posição e a uma situação dos elementos que envolvem o desejo nas relações. Então é um acontecimento funcional da estrutura que sofre algum desarranjo. Na verdade, nem uma coisa nem outra coisa explica a psicose. A psicose, seja paranoide, seja esquizofrênica, seja mesmo neurótica — e aqui há uma diferença também. A psicanálise vai fazer uma distinção e uma contraposição entre neurose e psicose. A gente sabe do ódio que Freud tinha dos psicóticos. Ele gostava muito mais dos neuróticos, mas a neurose, na verdade, se constitui na psicose. Não há diferença de natureza, exatamente. A neurose, o que ela é? Ela é um ponto de parada no movimento psicótico. É só isso. Mas atrás de uma neurose tem uma psicose.

Mas o que causa a doença? O que causa a psicose? O que causa a fissura, a separação? Na verdade, o que causa são os processos. Não exatamente os processos do desejo, os processos desejantes, mas a interrupção do processo. É sempre por uma interrupção do processo que alguma realidade se fende ou se separa. Então, para se entender isso é preciso entender que nós não somos indivíduos e nem pessoas, essencialmente. E muito menos estruturas. Muito menos estruturas. Lacan estava radicalmente equivocado quando supostamente ele ultrapassou a personologia em direção à estrutura. Porque Lacan também, ou primeiro Lacan, a sua tese sobre a psicose paranoide é inteiramente personalista. Depois aparentemente ele evolui. Quer dizer, ele evolui para uma visão estrutural, estruturalista. Mas jamais essa visão vai dar conta do que acontece com o desejo de um psicótico.

O que se quebra, na verdade, é o processo. É uma realidade que deixa de fluir, que se separa do devir, que se separa das suas conexões. Por quê? Porque há encontros e desencontros, há tempos diferenciados, há velocidades diferenciadas, há cortes, há segmentações do nosso desejo. Nós somos feitos de linhas de vários níveis: linhas duras, flexíveis ou de fuga. E essas linhas têm tempos, velocidades e ritmos diferentes. E nem sempre nós percebemos o que nos faz cair. Nem sempre, ou geralmente não apreendemos ou não nos antecipamos, mas muitas vezes aquela realidade já está em curso há muito tempo, de modo sutil, de modo imperceptível nas linhas flexíveis. Está ali se corroendo alguma coisa, ou se fragilizando, trincando, fissurando, quebrando o desejo.

A maneira de se perceber isso é uma maneira que se leva ao campo social, ao campo político, ao campo histórico. Na verdade, o delírio é histórico e mundial, e nunca pessoal ou individual, e nem mesmo familiar. O familiar, o individual, o pessoal são meros efeitos de passagem de um campo social que atravessa o desejo. O desejo investe imediatamente o campo social. O ser delirante, aquele que está delirando, ele está investindo imediatamente o campo social, o mundo e a história. E não papai e mamãe, e não Édipo, e não a família. A família é apenas meio, é apenas instrumento. A própria família, cada elemento da família está instituído em um campo político e social. Um pai está todo atravessado por um campo político e social. Uma mãe está toda atravessada por um campo político e social. É isso que é a realidade essencial, inicial, que atinge um ser e o separa do que ele pode, o faz adoecer e adoecer mentalmente. São as linhas de sociabilidade, de economia, de política, de raça, de cultura, de história, enfim, que atravessam cada um de nós.

Então esse campo do desejo, o investimento do desejo é sempre um investimento de conjunto, de uma multiplicidade, e não o investimento de uma individualidade, de uma pessoa, da imagem de um pai, da imagem de uma mãe, da imagem de um filho. E muito menos de uma função estrutural. Este é outro aspecto importantíssimo para lembrarmos de destacar a diferença de natureza que existe no pensamento e na prática da esquizoanálise em relação às outras teorias e práticas clínicas.

Então, a partir de agora eu passo a ver se tem alguma questão que eu possa ler aqui e comentar. Eu vejo aqui inicialmente, temos… vamos ler algumas coisas.

A Cecília… não.

Bougleux Bomjardim da Silva Carmo… ah, ele está falando com a Cecília. “A esquizoanálise é uma profunda e produtiva subversão da psicanálise, um outro modo de ver as forças humanas. Por isso, há a interlocução o tempo todo com ela. Fuganti tudo questiona!”

Bom, muito bem, isso aqui é uma colocação, um comentário. Deixa eu ver uma coisa aqui. Tem o Rafael, que diz, “Parece irônico…”. Vamos lá. Eu vou mostrando aqui, a gente vai lendo aqui.

“Parece irônico perceber que para alguns ‘sábios’ em esquizoanálise perguntar é uma problemática. Fico imaginando como foi o processo de aprendizado dos mesmos sobre a própria.”

Gente, eu acho que não, viu, Rafael. Não acho. Primeiro que, em esquizoanálise, se tiver “sábio” já tem algum tipo de equívoco. O sábio é sempre um crente em uma realidade pronta. Segundo, eu acho que a questão, o questionamento, a problematização é fundamental, é sempre bem-vindo. É que o problema, a arte de colocar o problema de fato é uma arte, que é mais importante ainda do que as soluções que se dá. Sabe? Mas a gente pode eventualmente discutir alguma coisa nesse sentido aqui, para esclarecer melhor.

Bom, aqui mais um comentário, da Celia. Deixa eu ver se existe alguma questão aqui.

“O que é o comum?”, alguém me pede. Ah, essa é uma questão boa. Marlette Menezes.

O comum, Marlette é, na verdade, algo extremamente importante e essencial. Essencial. E a coisa menos percebida por nós, humanos. O comum não é o que a gente chama “ah, é comum, é ordinário”. O ser comum, aqui no sentido ontológico do termo, é o que é comum a todo existente. O que é comum a todo vivente. O que é comum a toda força que aparece no campo de atualidade da nossa percepção, das nossas sensações. Comum às diferenças que coexistem na existência.

Ora, exatamente para as diferenças coexistirem na existência, é preciso que haja um campo comum de encontros, um plano comum de encontros. O comum é uma zona de passagem onde a vida está passando. Qualquer vida ou potência — pode ser algo que não seja vivo, também. Pode ser algo como o sol, pode ser algo como o vírus — está sempre em ato, em acontecimento. O ato, o primeiro ato que atualiza o existente é o comum. O existente não existe senão numa face do absoluto que é a própria face da existência. E essa face da existência é o que faz passar todo o presente. O comum, em última instância, é o que faz passar todo o presente. O comum é aquilo que necessariamente faz a cada um de nós estar em devir. Necessariamente nós estamos em devir, mesmo que nós sejamos reativos, mesmo que estejamos tentando frear o devir, bloquear o devir, impedir o devir, o devir acontece de qualquer maneira. Ele nos violenta. O acontecimento necessariamente está aí se efetuando e acontecendo.

Então há, necessariamente, um acontecimento que faz passar todo o presente. Isso nos é comum. Mas isso que faz passar todo o presente, que constitui o devir, que faz com que a mudança, que a variação seja constitutiva da existência, não tem forma. Eis a questão mais complicada e difícil, porque nós sempre tendemos a deformar o comum. A primeira grande deformação humana do ser comum é feita pelo Estado. O primeiro Estado é necessariamente o criador do público. E o que é o público, senão a captura do comunal, a captura do ser comum? O que é o comunal? É, na verdade, o comum de uma sociedade. Esse espaço comum, essa zona comum, essa zona de passagem que é comum, que ao mesmo tempo é preenchida de tempo. É um espaço que é atravessado pelo tempo. É sempre uma linha de tempo que atravessa esse plano imediato da existência.

O plano imediato da existência acontece aqui e agora. E aqui e agora nem mesmo o instante tem forma. É um acontecimento sem forma. E essa zona de passagem, que é um acontecimento sem forma, é, ao mesmo tempo, uma afirmação. O elemento comum não é neutro; ele é afirmativo. Um exemplo: o Estado vai inventar o ideal. O ideal é uma forma de captura do comum. O ideal, na verdade, é o que não existe na existência. Se não tem na existência, não é comum à existência. É o que faz com que aquilo que seria comum na existência seja de ninguém. Ora, isso que é comum na existência e é de ninguém é exatamente o público. O que é o público? O público não pode ser privado, o público é de ninguém. O público não é o comum. O público é a captura do comum.

Isso que os movimentos de esquerda deveriam entender cada vez mais. Se nós somos de esquerda realmente, queremos realmente ir a fundo nessa ideia de libertação do desejo, nós precisamos encontrar essa dimensão sem forma. Então o comum não é nem o ideal, o comum também não é o universal — o universal já tem uma estatura no plano da existência. O ideal está fora da existência, mas o universal já está no campo da existência e no campo da razão. Mas não é, porque o universal é uma forma que incorpora e submete as suas partes. E no comum não há incorporação e submissão das partes. No comum há a afirmação da diferença.

Então, o comum é a condição da transversalidade das relações, não é nem a hierarquia do ideal, nem a verticalidade do universal, da lei. O universal e a lei andam juntos aqui. Então todos estaríamos submetidos à lei — mas submetidos. “Ninguém está acima da lei”, não é essa a regra? E nem mesmo o comum é o normal, a norma, o normativo, que é um puro dever-ser, que é quando se solda o desejo à lei, ou a lei ao desejo. É o imperativo categórico em Kant.

Então o comum não é o ideal fora da existência, o comum não é o universal racional, o comum não é a lei da sociedade, o comum não é o público, o comum não é o coletivo, o comum não é o dever-ser, o dever-ser universal. O comum não tem forma. O comum é a condição sem a qual nenhum existente estaria em acontecimento. Isso que é o comum. Espero que tenha atendido a você. E se ele é isso, e se necessariamente cada diferença ou cada um de nós está na existência, nós necessariamente estamos em acontecimento. É como se ele fosse… é como se ele fosse, não, ele é o motor do acontecimento. Ele faz passar todo o presente. Faz variar tudo o que está dado. Então ele é a condição de mobilidade, de intensificação, de variação intensiva e infinita daquilo que se apresenta no presente. Ou seja, nada do que está dado permanece, porque essa força indetermina isso que foi determinado a existir. O comum, então, também é uma zona de indeterminação. Ele indetermina tudo o que está determinado. Ele é o aliado do criador e do inventor. Ele é aliado daquilo que nós entendemos como a potência de criar o real. Por quê? Porque existir é sempre se desviar do que está pronto. No mínimo isso.

Então vamos lá. Bom, a Luiza, aqui ela diz algo ligado a isso: “Alguém consegue reproduzir esta última fala, por favor? Da singularização ao comum?”

Então, o comum, à medida em que ele se torna uma afirmação… o que tem de comum entre todas as nossas diferenças? A afirmação. O que a diferença quer, em essência? Se diferenciar. E onde ela encontra esse convite e essa afirmação? No que é comum. O que é comum a toda diferença é essa vontade de se diferenciar e a afirmação dessa diferenciação.

Então, o comum não é uma forma, ele é um sentido afirmativo da diferença. E o sentido afirmativo da diferença é o começo da singularização. Por isso eles não se opõem. Certo? Ao contrário, formam um círculo virtuoso do desejo. Esse modo de desejar é algo completamente inédito nas sociedades humanas, experimentado por um ou outro de nós, mas não é de modo algum dominante, de modo algum uma realidade que nos contempla aí, socialmente, politicamente, economicamente, culturalmente, e muito menos espiritualmente. Agora, isso pode ser conquistado? Totalmente. Totalmente conquistado.

Vamos ver o que mais aqui. Bom, esquizoanálise e anarquia. “Pode falar um pouco mais sobre esquizoanálise e anarquia?” Isabella Valandro que diz isso.

Gente, eu acabei de dar aqui a essência de uma anarquia, como diz Deleuze citando Artaud e Espinosa, “uma anarquia coroada”. Artaud vai escrever uma obra chamada Heliogábalo ou O anarquista coroado. Heliogábalo, vocês sabem, virou um imperador romano e ele levou a anarquia para o império. E Deleuze vai dizer isso do Espinosa. Espinosa eleva o ser mais profundo, a substância ou a natureza naturante, a esse estado de uma anarquia coroada. É um grande plano de imanência, distribuidor das diferenças ou das singularidades a partir do comum. Enfim, mas eu acho que falei o suficiente, ao menos agora, para contemplarmos outras questões sobre a questão da anarquia. E obviamente que aqui a anarquia é uma anarquia… vamos chamar de “anarquia superior”, por falta de outra palavra, mas não é essa anarquia espontaneísta daqueles que acreditam que a realidade acontece de qualquer maneira, sem nenhum tipo de comando. Há, sim, uma diferença de natureza entre as forças ativas e as forças reativas, diria Nietzsche. E as forças ativas são superiores às forças reativas. As forças reativas são forças de conservação e são funções das forças de criação, que são as forças ativas.

Assim também em Espinosa, há uma diferença entre natureza naturada e natureza naturante. Há sempre um comando da natureza naturante em relação à natureza naturada, ainda que a natureza naturada seja atravessada pela natureza naturante e coexista com a natureza naturada.

Então é uma anarquia, mas não é uma anarquia qualquer. Assim como é um empirismo ou uma experimentação, mas não é um empirismo ou uma experimentação vulgar, que reduz tudo ao sensível. Na verdade, há um comando de razões de composição, que implicam detectar o mínimo de comunidade nas relações. Isso é necessariamente a afirmação da diferença. O que sustenta o real é a afirmação da diferença. É por isso que Bolsonaro, bolsominions, fascistas, microfascistas, tudo que nega não voltará, como diz Nietzsche. Não se repete. Ou não há como manter-se na roda do eterno retorno.

Maria Tinda diz: “Luiz, você poderia dar as referências bibliográficas de cada aula?” Eu posso fazer isso, sim, só que… bom, vamos falar mais para o final, essa questão. Vocês me lembram para que eu fale mais no final, porque… mas eu dei basicamente as duas obras principais que inauguram a esquizoanálise, que fazem parte de uma obra maior que é o Capitalismo e Esquizofrenia. A primeira, o Anti-Édipo, de 1972, e a segunda, o Mil Platôs, de 1980. Ambas estão traduzidas em português. O Mil Platôs foi dividido em cinco volumes. O Mil Platôs está pela editora 34 Letras, o Anti-Édipo também está pela editora 34 Letras, agora com uma tradução muito boa do Luiz Orlandi.

Então, basicamente é isso. Agora, bibliografia complementar. Eu diria que a Ética do Espinosa, da editora Autêntica. A Genealogia da Moral, do Nietzsche, da editora Companhia das Letras. E eu temo, mas eu vou dar uma obra aqui, indicar uma obra que é uma obra difícil, muito complexa — todas elas são —, mas que eu não cheguei a falar quase nada dela aqui, mas eu já vou adiantar, Matéria e Memória de Henri Bergson, ou “Hénri Bérgson”, como queiram. Tá bom?

“Fuganti, esta autonomia estaria na política pensada por Espinosa?” Sem dúvida. Sem dúvida está na política pensada por Espinosa. Espinosa deixou uma obra inacabada. Ele viveu muito pouco, 45 anos, morreu em 1677, e de 75 a 77 ele estava fazendo uma obra sobre política, que restou inacabada justamente no capítulo sobre democracia. Mas o Espinosa com certeza chegaria nesse ponto onde a comunidade estaria liberta do Estado, porque toda sociedade, diz ele, está submetida de alguma maneira. A sociedade é uma sociedade de escravos. Só a comunidade, o que ele entende por comunidade, já envolve, implica essa visão que eu estava falando há pouco, ainda que ele não chegue a dizer nessas palavras, do comum e do singular.

Aqui tem algumas questões. “Mas a intimidade da mãe nos forma.” “Todo início está no tempo e todo limite da extensão no espaço”.

Vamos ver aqui. “Me libertei a ponto de registrar meu devaneio aqui, no sentido da interação possível…”. Bom, não é uma questão ainda. Vamos ver aqui se eu encontro alguma questão.

Alguém dizendo aqui: “Frantz Fannon já falava isso, ‘há muito tempo que parei de gritar’”. Sim, Fannon é um grande aliado.

Vamos ver o que tem aqui. “Eu nem sabia da existência da esquizoanálise, falei…”.

É muita coisa mesmo, Cristiane. Não é fácil se é a primeira vez. É por isso que eu fico na dúvida às vezes, de aprofundar aqui, aprofundar muito ou dar mais uma panorâmica. Mas ao mesmo tempo não tem jeito de ficar só na panorâmica, é necessário aprofundar uma ou outra questão. Mas a gente vai, nos próximos encontros vamos ter oportunidade de avançar bastante, tá? E eu vou retomar muita coisa que eu falei aqui.

“Sou estudante de psicologia, estou estudando muito a psicanálise, por minha conta mesmo, e essa aula está dando um nó na minha cabeça… e estou amando.”

Bom, muito bem.

Vamos ver o que mais aqui.

Aqui existe uma questão muito interessante, gente. A Cecília diz “Aquilo que nos empodera aumenta o buraco em nós?”.

Sem dúvida. Sem dúvida. E aqui existe o grande perigo das minorias que seguem investindo no empoderamento. Claro que a gente entende, muitas vezes, que a coisa é mal nomeada, mas nem sempre é apenas algo que tenha a ver com o nome ou o modo de nomear. Geralmente, quando é mal nomeada também envolve uma confusão, e essa confusão traz o risco sério de investirmos no empoderamento em vez da potencialização.

Quando buscamos o empoderamento, nós buscamos uma compensação para a nossa impotência. O empoderamento jamais é um preenchimento real do nosso desejo, que diferenciaria a nossa potência e criaria novas realidades e fonte, portanto, de plena autonomia. O empoderamento, ao contrário, ele depende de uma instância exterior. Ele depende de um modo de conexão ou de uma cadeia de relações tais que uma vez que essa cadeia é modificada ou desfeita, a compensação deixa de retornar. Como um sistema de direitos. Não adianta você criar leis que protejam isso ou aquilo, se não tem um campo de forças que é qualificado o suficiente para manter aquelas formas de se relacionar e aquelas regras de passagem, de modo que aquilo seja realmente uma instância afirmadora da vida. Não adianta nenhum direito formal, instituído, estabelecido pelo Estado como direito público vai garantir realmente a vida. Então, investir no empoderamento é, na verdade, investir em uma compensação. É, na verdade, um movimento de trapaça do desejo. E isso implica um aumento do buraco, porque no fundo, no fundo, nada vai preencher esse desejo separado do que pode.

O que é necessário fazer? É necessário ligar novamente o desejo ao que ele pode, mas isso não se dá através do empoderamento. Isso se dá através do reconhecimento das nossas cumplicidades. E quando isso acontece, nós temos a condição de retomar as nossas forças, de reaver as nossas forças. E só reavendo as nossas forças também somos capazes de encontrar a zona de passagem que é fonte de criação. É na zona de passagem que nós aprendemos a extrair daquilo que nos acontece e do acontecimento o que nos fortalece, e o elemento inesgotável dele mesmo, que é uma fonte infinita de realidade. É ali que a gente aprende a beber imediatamente da fonte. Beber diretamente da fonte, entende?

Bom, enfim. Estamos chegando ao final, gente. Já tem aqui duas horas e trinta e quatro minutos de transmissão. Eu só vou ver se tem mais alguma questão mais forte aqui, senão a gente deixa essas questões até para o nosso próximo encontro.

Olha, alguém diz aqui: “Se trata de entender Deleuze e Guattari para abandoná-los”. Eu diria que sim, a gente deve abandonar toda forma de verdade e crença. Na verdade, Deleuze e Guattari sempre fizeram isso com os autores que eles trabalharam ou com as obras que eles trabalharam também. Isso se chama digestão. A gente não pode acreditar na forma da verdade de alguma coisa. Nunca eles investiram nisso. Agora, aquilo funciona ou não funciona? Essas matérias que eles levantam, o modo de eles colocarem os problemas provocam em nós acontecimento ou não? Devemos nos ligar àquilo que nos põe em acontecimento. E aquilo que nos põe em acontecimento nos liga à nossa potência de criar realidade. E quando encontramos a nossas potências de criar realidade, reencontramos o Anti-Édipo, por exemplo, o Mil Platôs, reencontramos pensadores tão criadores quanto Espinosa, Nietzsche, Bergson, Hume, estoicos gregos, Foucault, Deleuze, Guattari e tantos outros.

Então é essa a maneira de encontrarmos os criadores. Não sendo devotos de verdades prontas, mas se relacionando com as matérias e com as forças que nos fazem agir, sentir e pensar, que são forças imperceptíveis. As obras servem — até essas nossas falas servem para nos colocar em conexão com aquilo que nos faz agir, sentir e pensar e criar o real. Tá bom?

Então, gente, eu acho que é isso. Nós nos estendemos bastante aqui. A ideia era termos duas horas de encontro, já nos excedemos. Vamos deixar para o nosso próximo encontro, eu retomo essas questões que não foram respondidas. E espero que tenha sido proveitoso para vocês, assim como sempre é para mim. Eu gosto muito de expor esse pensamento, e o modo de experimentá-lo, porque não adianta nada isso ficar no campo das ideias. Aí não tem acontecimento. Aí não tem realmente o que nós chamamos de pensamento. Para nós não há separação entre teoria e prática. O pensamento necessariamente cria a visão, e a visão necessariamente envolve a potência no acontecimento. Ela coloca a potência em processo de diferenciação. Então, para nós é extremamente alegrador esse modo de viver e praticar o pensamento. E nós sabemos, de experiência, que há, sim, um modo perfeito de se relacionar com a existência. Um modo onde não falta nada ao desejo, não falta nada ao pensamento, não falta nada ao corpo. Um modo de produzir corpo sem órgãos, um corpo intensivo, além do corpo orgânico. Um modo de se preencher de afetos ativos, além das paixões. E um modo de criar um pensamento afirmativo, além da negação imaginária que nos envolve quando estamos separados da potência de pensar.

Então nós sabemos, nós sentimos, nós experimentamos isso. E é realmente uma grande alegria poder trazer esse gosto para vocês, minimamente. Eu sei que aqui é um encontro rápido para falar de tanta coisa importante, urgente e necessária, e desse nível de complexidade, mas nós fazemos o que podemos, e temos ainda mais três encontros para aprofundar muitos elementos. E é isso, o mais importante é que, se com isso que a gente puder fazer aqui nesses encontros, a gente puder provocar vocês a encontrarem as próprias forças e se colocarem minimamente em acontecimento, já terá surtido muitos frutos.

Mas é isso. A esquizoanálise é essa grande prática e esse grande pensamento que é ao mesmo tempo uma máquina de guerra para combater a covardia, a cumplicidade, o malogro na existência e criar novas maneiras de existir. Para a gente se tornar esquizoanalista, isso seria maravilhoso, cada um de nós virar um esquizoanalista, a sociedade precisa muito disso. Mas é preciso a gente fazer a lição de casa. É preciso a gente desconstruir as nossas prisões. E o que eu chamo de nossas prisões são essas duplas capturas que acontecem no corpo, duplas capturas que acontecem no pensamento, duplas capturas que acontecem no modo de desejar ou no nosso campo afetivo. E claro que implica na dupla captura dos nossos modos de se relacionar. A gente fazendo quádrupla desconstrução das duplas capturas em nós, a gente ganha a condição de entrar em devir — não em devir qualquer, porque todos estamos em devir, em devir reativo, os devires reativos estão aí, mas em devir ativo. Um devir ativo que faz de nós criadores de realidade.

Tá bom, gente? Então uma boa noite a todos e a todas, espero que vocês tenham aproveitado bastante. E nos vemos no próximo domingo. Teremos um encontro no domingo, dia 27, às 19 horas. É sempre no mesmo horário. Depois um encontro no mês de julho, na outra semana, que será no dia 4 de julho, no domingo também, às 19 horas. E o último encontro será no sábado, dia 10. Só o último encontro que será no sábado, mas sempre às 19 horas. Dia 10 às 19 horas.

Então é isso, espero revê-los no próximo encontro do dia 27. Grande abraço, beijos a todos e a todas, e até o nosso próximo encontro.

 

Transcrição Gabriel Naldi

 

 

 

 

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