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Ética como potência e moral como servidão

Ao primeiro sinal da palavra ética o que salta à atenção comum do cidadão é um chamado para que ele, ao ponderar seu sentido mais frequente e ordinário, procure ascender a uma postura de vida e de comportamento que por princípio o colocaria no caminho do Bem, seja de natureza espiritual, seja um Bem para a humanidade ou, simplesmente, uma disposição por parte daquele que é qualificado com atributos ditos éticos, a assumir um comportamento que tenderia para o tão propalado bem comum da sociedade em que vive.

 Bastaria, para isso, apenas seguir o referencial da Lei, com o ideal de igualar-se a sua pura forma e introjetar seu paradigma universal. Mas ao mesmo tempo em que esta concepção do senso comum é compartilhada como sendo a que melhor conduz o indivíduo a um modo de vida responsável e justo, concedendo-lhe o direito a uma espécie de liberdade assistida por fora e vigiada por dentro (como num panópticum ), relativa ao grau de liberdade que a própria sociedade poderia suportar sem ser ameaçada em sua constituição, instaura-se, na mesma proporção, a contraparte de um assujeitamento sutil e inaudito que submete e desvia tanto o desejo quanto mais ele adere, na espera de recompensas ou ganhos, ao modo moralmente útil de ser.

O modo que agrega o indivíduo ao corpo da sociedade, através de uma relação dicotômica de boa ou má vontade para com o corpo de leis, o qual devolve ao indivíduo o troco em forma de recompensas ou castigos, remonta já ao nascimento do Estado. Mas não é apenas o Estado arcaico que cultiva este tipo de código. Pertence a própria natureza do Estado este modo de codificar seus membros pela relação de obediência e transgressão. É por isso que o Estado é um grande estimulador e reprodutor das paixões tristes, como diz Espinosa. É por medo dos castigos e esperança das recompensas que o indivíduo submete-se a um poder que o separa da sua própria capacidade de agir e pensar livremente, desejando sua própria servidão. Ainda que aquele modo se alimente – por pura crença – de investimentos subjetivos de um indivíduo habituado ao esforço cotidiano de sobrevivência, dissimulando concórdias e inviabilizando relações reais de solidariedade ou – por pura conveniência utilitária e objetiva – de investimentos de desejo (de poder) nem um pouco desinteressados (ao contrário do que invoca o sujeito legislador de Kant), desvela-se assim como seu contraponto um comportamento de um tipo de vida inteiramente subserviente, tragado por um círculo vicioso, como num buraco negro, sempre realimentado pela repetição da perda da capacidade de criar as próprias condições existenciais de efetuação de suas potências. É assim que tombamos. Por morder a isca dos “nossos” interesses, interesses de um “Eu”, caímos cativos de uma moral que impõe dever a uma instância exterior como o Estado, o Bem, a Lei ou, em uma palavra, a valores de uma época que, apesar de serem criados por uma determinada sociedade historicamente formada, são publicados e estabelecidos como universais e perenes, enfim, transcendentes ao tempo e ao espaço nos quais emergiram.

Expressos por discursos que pretendem representar e justificar os chamados “bons costumes”, autoqualificados de científicos, cultuados como verdades em si ou formas puras do saber, esses valores bloqueiam e separam o indivíduo de sua capacidade imanente de pensar e agir por ordem própria, desqualificando seus saberes locais e singulares como meras crenças ou opiniões e destituído-os de suas potências autônomas que criam seus próprios modos de efetuação. É dessa maneira que indivíduos tornados fracos, por paixões de medo e esperança passam a clamar por uma ordem heterônoma que os salvaria do caos, da impotência e da miséria, tal como no exemplo extremo do nazismo. Como diz Wilhelm Reich, os alemães não foram simplesmente enganados, eles desejaram o nazismo.

É de tais valores, aos quais uma suposta vontade humana deveria se curvar, que curiosamente se extrai uma significação intrínseca, a substância real, ao mesmo tempo forma em si e oriente para o Homem, para falar hegelianamente. Desenhando um plano de tal ordem transcendente à natureza material tida como caótica, o investimento em tais valores atribui à Lei a irônica tarefa e o crédito infinito de piedosamente salvar o Homem, já que, sobrevoando a natureza, estaria imune também às tendências perversas de uma natureza humana decaída, sempre em falta com o bem e a verdade, demasiado atolada nas paixões do corpo e da alma. É, portanto, nesse modo de instituir valores e vínculos que fundam-se dívidas infinitas e impagáveis, onde não sobra outra alternativa aos “cidadãos” senão rolar indefinidamente o principal da dívida e pagar interminavelmente seus juros. Eis como uma dívida de poder, por natureza impagável, se torna dívida de existência. Por esses bizarros caminhos é que se chega a desejar a própria sujeição como se da liberdade se tratasse. Quando queremos formar nossos cidadãos, investimos em assujeitamentos. Eis todo o cinismo da ideia moderna de liberdade.

Mas é a partir de modos de relações microfísicas de poder, imanentes ao próprio tipo de formação social, que se mostra realmente como se instaura e triunfa esse nihilismo, essa negação das qualidades nômades da vida, tornando as sociedades puramente reativas e conservadoras de uma maneira baixa de existir. Assim, a constituição da crença em formas metafísicas fechadas em si – que na verdade são geradas e cultivadas de dentro pelo próprio tipo de formação e desenvolvimento sociais – consolidaria um plano puramente transcendental, a partir do qual tudo o que acontece em sociedade poderia ser julgado, resgatado ou condenado. É sobre esse plano que geralmente a consciência ingênua é, simultaneamente, determinada e tornada cúmplice, pois corrobora verdades que toma como justas e neutras, eternas e externas, isto é, dotadas de uma transcendência que justificaria lógica e moralmente sua racionalidade legisladora. Numa espécie de coação de interesse mútuo, determinam-se as justas formas e prescrevem-se limites normativos como modelos autenticadores de idéias justas e de discursos unificadores, de atos equilibrados e de comportamentos responsáveis. No entanto, talvez a transposição mais sintomática deste processo moralizante apareça no ideal de unificação aspirado pelo poder, que se destaca e controla uma sociedade civil submetida aos seus interesses. Consequentemente, o poder produzirá o simulacro de uma conciliação, de um achatamento ou dissolução das diferenças.

Naturalmente, do ponto de vista político, a encarnação máxima da unificação se efetuaria na figura do Estado Nacional, sendo secundário o aspecto ideológico de sua bandeira, isto é, de quem o controla, operando invariavelmente a serviço do interesse privado ou parcial e em nome de um simulacro de conceito universal de coisa pública, sempre destacada da sociedade. O mais importante seria superar o estado de natureza, o qual, na visão de Hobbes, tende à discórdia, à dissolução e à guerra, para substituí-lo, na prática, por forças capazes de dominar, controlar e estancar a ferida das disputas individuais. É assim, por exemplo, que Hobbes concebe a ficção da unidade e da paz civil a partir de uma superação do estado de direito natural do homem, que alimentaria, na diversidade, a guerra de todos contra todos, para um estado de direito civil, onde o indivíduo delega parte de seus direitos naturais e recebe, em contrapartida, direitos de civilidade que lhe garantem a segurança, o desenvolvimento e a paz. Nesse sentido, o indivíduo submeter-se-ia a uma rede de direitos e deveres coextensivos a esta instância unificadora da sociedade, antes dividida e agora pacificada, a que se denomina Estado.

Para nós, toda essa visão da Lei, do Bem comum e da Obediência a um plano de organização de direitos e deveres que normatizariam as condutas e levariam a uma pretensa ordem universal, numa palavra, tudo o que constitui a atitude Moral propriamente dita na relação do indivíduo com a sociedade, precisa ser claramente distinguida de uma outra atitude, a postura a que chamamos Ética.

Contrariamente ao modo ascético e moral de ser, o modo de vida ético instiga, não a obediência a um conjunto de regras e valores prescritos pelo poder alheio, interiorizando formas e incorporando atitudes vindas de fora para podermos comungar das benesses do poder ou de vantagens que são, no final das contas, aguilhões. Não o modo de ser dos bons sujeitos legisladores guardiões do Juízo e da Lei abstrata, do Bem ou dos valores transcendente à vida cotidiana.

É a partir de outro lugar que não o da dominação e da sujeição, é a partir de um topos ocupado pela potência de afirmar as próprias diferenças constituintes dos seres ou ponto de vista da vida em processo de diferenciação, que o modo de vida ético se instala. O modelo da ética não é o do livre arbítrio para o Bem a partir da livre recusa do Mal. Bem e Mal são ficções fundadas numa mesma ilusão de consciência. E essa suposta liberdade nada mais é do que a ignorância das causas que determinam tal escolha ou recusa. A originalidade de Espinosa não consistiu em afirmar que o Mal, enquanto substância, não tinha realidade, mas justamente aquilo que o Ocidente mais cultuou: o próprio Bem, como substância do ser, também perdeu toda realidade. Mas, como diria Nietzsche, para além do Bem e do Mal não significa para além do bom e mau. Estes adjetivos qualificam agora não apenas atitudes e conseqüências, mas também e sobretudo tipos ou modos de vida, maneiras de existir. Mau é tudo aquilo que se serve das paixões tristes, da tristeza mesma para firmar e conservar seu poder ou separar as potências da vida de suas condições de afirmação, isto é, do que podem. Assim são maus, para Espinosa, não apenas o tirano que só consegue reinar sobre a impotência alheia, mas também o próprio escravo que alimenta a necessidade do tirano como seu provedor, bem como um terceiro tipo que vive da miséria dos dois e extrai dela um poder espiritual: o sacerdote. Eis a trindade do tirano, do escravo e do sacerdote, as três cabeças do ressentimento que estariam na base de todo poder. Sobre essa tríade, Epicuro, Lucrécio, Espinosa e Nietzsche dizem praticamente a mesma coisa. Denunciam tudo o que precisa da tristeza, da impotência e da miséria alheias para triunfar.

A ética, ao contrário, se funda num modo de viver sinalizado pela alegria. O problema ético parte da compreensão de que, como diria Espinosa, tudo na natureza participa de uma ordem comum de encontros. Bons e maus encontros, eis o objeto da problematização ética. Tudo se compõe e decompõe na natureza do ponto de vista das partes que a constituem. Assim, para explicar a natureza do mau, Espinosa lança mão de um modelo não moral, mas alimentar ou natural. O mau é sempre um mau encontro que, como a ingestão de um veneno, decompõe parcial ou totalmente os elementos que estão sob a relação característica que constitui o nosso ser existente e diminui ou destrói nossa potência de existir, agir e pensar, nos entristecendo ou matando. O bom seria como um alimento que se compõe com o nosso corpo constituindo um bom encontro, na medida que aumenta nossa potência de existir, de agir e pensar, produzindo consequentemente afetos de alegria.

Mas, como um alimento ou um veneno, nem tudo que é mau num momento, para um indivíduo, num determinado lugar, o é necessariamente se um dos elementos no encontro variar, como o lugar, o tempo, o indivíduo, corpo ou ideia. Desse modo, o que me envenena num tempo ou lugar, pode me alimentar noutro tempo ou lugar, bem como o que é alimento para um pode ser veneno para outro. O mau não é proibição, a não ser para o homem prisioneiro da consciência e da imaginação. O mau significa sempre um mau encontro que decompõe minha natureza por ignorar ou não partilhar suas leis; não leis humanas ou divinas promulgadas por um Senhor como palavras de ordem ou sentenças, mas leis da natureza que simplesmente nos fazem compreender o modo como a própria natureza funciona por si, a partir de si e para si e que nos afetam também na medida em que somos parte da própria natureza e agimos e pensamos por estas mesmas regras.

É, portanto, a partir de uma atitude bem diversa que se promove uma Maneira de Viver conforme critérios de conduta imanentes ao próprio ser do desejo, ser da vida, ser da sociedade, ser da natureza (tudo isso é uma e a mesma coisa no ser, não obstante sua distinção modal ou diferença de regime). Um conjunto de diferenças singulares livres não se deixa reduzir ou atrelar em relações contratuais, legais ou institucionais, as quais buscariam simplesmente silenciar os conflitos sociais ou deles extrair mais valia. Por não comportar mais a ideia de um indivíduo atomizado – cindido entre a impotência de afirmar e a obediência redentora – ou do eu pessoal – prisioneiro de atributos constituintes do sujeito como instância moral ou racional – o conceito de uma cidadania liberadora é pensado a partir de uma multiplicidade de singularidades como potências autônomas ou com tendência à autonomia. O campo social passa a ser compreendido ou constituído por um conjunto de forças em relação e não mais como um agregado de formas atomizadas, fechadas em limites morais e capturadas por valores utilitários ou finalistas. A vontade social torna-se propriamente plural, um autêntico campo de multiplicidades virtuais ou potências de atualização (com repulsa a unificações e fechamentos totalitários), torna-se verdadeiramente autônoma e aberta.

Como, enquanto cidadão, tornar-se uma potência pluralista, um agenciador de relações civis intensas e realmente solidárias ?

Tudo aquilo que por si só ou apenas a partir de si – de modo imanente – cria e condiciona modos de composição entre indivíduos e elementos que lhe atravessam, usando como critério seletivo do que se passa em sociedade a capacidade de afirmação e diferenciação, incorporada em cada acontecimento, constitui um filtro ou um plano de composição gerador de realidades livres, constitui um campo de atração e consistência como potência autônoma.

No mais profundo do nosso ser e na mais superficial das nossas superfícies de ser, somos não uma unidade ou identidade formal como um eu, mas multiplicidades singulares sem sujeito. No entanto, quanta potência, quanta diferenciação, quanta generosidade nesses modos próprios e singulares de ser ! Os laços que estabelecemos conosco, com outrem, com as multiplicidades sociais que se atualizam e nos afetam, enfim com a natureza, são catalizadores de acontecimentos, são condições de encontros e de transmissões de realidades, são o arco para flechas que trazem o futuro, mas que redimem o passado e fazem do presente um verdadeiro campo de experimentação e de produção inocente de realidade.

Somos potências individuantes que selecionam e extraem destes encontros ou relações o que realmente comunga na pura afirmação de tudo o que difere, criando singularidades intensificadoras da vida, como se atingíssemos um duplo do real em cada acontecimento, um real virtual que inflama a existência atual e acelera os processos que precipitam a geração do novo. Somos irredutíveis a formas médias de igualização. Participamos na afirmação, portanto, de diferenças criadoras que propiciam a expansão da vida em sociedade, superando limites que buscamos ultrapassar.

Chamamos ética não a um dever para com a Lei ou o Bem, nem tampouco a um poder de segregar ou distinguir o puro do impuro, o joio do trigo, o Bem do Mal, mas a uma capacidade da vida e do pensamento que nos atravessa em selecionar, nos encontros que produzimos, algo que nos faça ultrapassar as próprias condições da experiência condicionada pelo social ou pelo poder, na direção de uma experiência liberadora, como num aprendizado contínuo. Fazendo coexistir as diferenças, conectando-as ao acaso dos espaços e dos tempos que as misturam e tornam seus encontros, ao mesmo tempo, contingentes e necessários num plano comum de natureza adjacente ao campo social, (pois a vida não existe fora dos encontros e dos acontecimentos que lhe advém), afirmamos o que há de fatal nestes encontros, algo como o sentido superior de tudo o que é. Pois é querendo o acontecimento no próprio acontecimento, que liberamos algo que se distingue dos simples fatos cotidianos.

A apropriação e criação de regras e códigos que comandam a interpretação dos acontecimentos pelos intérpretes do poder, seja do ponto de vista político, econômico ou midiático, impõem o que se deve pensar, como se deve agir e em que ou quem acreditar, sob a guilhotina dos prêmios ou dos castigos por Bem ou por Mal, pelo útil ou nocivo, pelo legal ou ilegal, sempre conforme ao sentido dominante dado pelo poder em questão. A invenção dos fatos – ou do que deve ser destacado como histórico ou possuindo sentido relevante, como o que faz a notícia – é sempre dada no modo como o poder se apodera dos acontecimentos e lhes confere significado, na maneira como essa verdade é produzida pelo poder, a verdade do poder.

Encontramos algo diferencial dos fatos nos acontecimentos de uma sociedade e naquilo mesmo que nos acontece, pela simples razão de vivermos em sociedade, sendo capazes de experimentar por nós mesmos e apreender aquilo que constitui os acontecimentos, do mesmo modo que constituímos os acontecimentos. Tornamo-nos acontecimentos! Encontramos algo que duplica nossa experiência sensível e casual em vivência necessária e experiência do pensamento, isto é, algo como sentido ativo que nos leva a contrair e antecipar o futuro, ganhando velocidade e liberdade. Assim se constitui uma cultura nômade e uma memória virtual do futuro que nos distancia do presente cristalizado e faz fugir todo poder paralisador da vida. Através do sentido vivo em devir que não se deixa fixar ou capturar quando é rebatido sobre o plano dos fatos ou das significações dominantes do poder constituído.

Deste ponto de vista, como poder-se-ia formar autênticos agentes sociais, isto é, verdadeiros modificadores ou criadores de novas condições sociais de existência? Como formar cidadãos livres no pleno sentido da palavra ?

Como diria Nietzsche, sem o Não destruidor do leão, não geramos a condição para o grande Sim criador da criança instaurar uma roda que gira por si mesma, um novo começo, uma nova inocência. Por isso a necessidade da crítica. É preciso começar por denunciar as armadilhas que nos reservam os valores estabelecidos pelos poderes que se descolam e se voltam contra o campo social. Os Estados enquanto máquinas de submeter o conjunto das relações sociais, correspondem a investimentos que a própria sociedade faz para se manter coesa e que acabam voltando-se contra ela mesma.

Somos capazes de inventar outros modos de relações sociais ou estamos fadados ao tédio e à repetição do enfadonho? Para responder esta questão, precisamos antes problematizar a natureza das relações que constituem o tecido atual das nossas sociedades e o modo como são reproduzidas. Somos prisioneiros de um “pré-conceito” ou de uma imagem que subjaz nas mais recônditas camadas da nossa história e do inconsciente coletivo e que coexiste no modo atual de transmitir conteúdos materiais, energéticos ou espirituais. Somos prisioneiros do mito que reza que toda relação social pressupõe uma troca concretizada por meio de um equivalente, isto é, por meio de um valor abstrato capaz de axiomatizar ou igualizar qualquer relação, destituindo-a de toda e qualquer singularidade que possa diferenciá-la e afirmá-la como um valor autônomo insubstituível. Assim, não só os produtos materiais transformaram-se em mercadorias. São todos os processos espirituais de singularizações e subjetivações humanas que caem na axiomática delirante do campo econômico – já que a axiomatização primeira é a do tempo – e que as reduzem todas a elementos com unidades mínimas equivalentes e permutáveis entre si. Não é o Dinheiro que constitui a forma privilegiada da mercadoria no capitalismo. É o modo de produção de subjetividade ou dos processos de subjetivação que constitui a condição fundamental geradora de todos os estofos ou substratos para a existência e a reprodução bem sucedida do próprio Capital.

A subjetividade é a mercadoria por excelência em nossas sociedades. Ela é a criação e a reprodução, pelo poder, de um território que não para de faltar a si mesmo, alimentando assim a infindável insuficiência de ser: sempre preenchida pelo “poder” de compra, sempre frustrada pela ilusão insuperável do consumo ideal que escapa no instante mesmo em que o atingimos; sempre reproduzida em sua falta territorial, abismal carência, impotência real de conquista da moeda que tudo pode mas que sempre cava mais fundo, pela sua dupla face esquizofrênica, o buraco da dívida existencial. Fenda intransponível.

Estamos em novos ambientes. O capitalismo fabricou para si atmosferas ainda mais complexas. Como diria Deleuze, não mais a toupeira disciplinar, mas a serpente fluida do controle. A subjetividade já não é produzida simplesmente pelas velhas máquinas disciplinares. As máquinas a vapor e de carbono deram lugar às máquinas de silício, de terceira geração. O modus operandi do poder disciplinar, fechado e segmentarizado no tempo e no espaço, como descreveu Foucault, cedeu lugar para as cifras magnéticas que conectam ou desencaixam fluxos de energia em espaço aberto e controle ininterrupto.

Tanto o poder quanto a produção do seu estofo, a subjetividade, se realizam atualmente por modulação de fluxos sob controle aberto, infinitamente permutáveis e em comunicação permanente, como modo de produção de canais e mais valia de canais, de fluxos e mais valia maquínica, de ideias e mais valia de saber e poder. Controle num espaço tornado aberto simultaneamente no interior e no exterior e em velocidade absoluta no tempo que nos constitui como cifras simultaneamente comunicantes.

Não obstante, do mesmo modo que o poder tornou-se mais sutil com suas novas máquinas e formas de exercício, a vida, os devires ativos da vida também encontram ocasiões inéditas, inauditas e poderosas para reagir, criar, fazer passar o inesperado, o ar puro de novos devires e a potências de novas composições no seio mesmo de suas máquinas cibernéticas de controle.

A vida em última instância não se deixa trocar nem avaliar a partir de uma axiomatização abstrata das transmissões de energia. Pois é ela quem avalia e faz passar no modo da intensidade excedentes não mensuráveis, excessos pelos quais se torna possível a constituição de novos tipos de relações. Pois, na verdade, a natureza ou a própria vida, que é um modo de produção da natureza, é quem produz realidade e portanto, por esta capacidade de gerar o excesso, torna ao mesmo tempo possível e necessário novos modos de se relacionar em sociedade. Essas novas maneiras de ser ou modos de relação se caracterizam pela capacidade de fazer passar o excedente não codificável, as intensidades não mensuráveis, as quantidades de energia não axiomatizáveis.

Podemos fazer de nós mesmos um elemento sempre diferencial e diferenciante, gerador de novos devires, um agente imperceptível porque excêntrico e em mutação constante, senhor das modificações que fazem das relações verdadeiras alianças propulsoras de uma vida social em plena expansão. Só pelo excesso nos tornamos aptos a dar e ser generosos. E só nestas condições poderemos formar cidadãos aptos a construir um campo de consistência e composição de tecidos sociais libertários. Homens realmente livres – com força suficiente para resistir e conjurar as ingerências de poderes alienígenas ao campo de imanência de uma sociedade civil – livres de um modelo de acumulação e consumo de energia mortificada e de produção de relações de troca ou de transmissão abstratas, que separam os homens de suas próprias capacidades de agir e de pensar.

Livres por estarem ligados a sua própria potência de produzir e afirmar seus devires criadores. É a partir do modo como se produz e transmite energia, que não mais parasita, mas que estabelece autênticas simbioses, que as condições de existência da vida poderão encontrar seu meio de expansão e expressão da alegria, efeitos do aumento da capacidade de agir e pensar da Terra, na Terra, pela Terra.

Referências Bibliográficas

  • Deleuze, Gilles – ‘Controle e Devir’, in Conversações, Ed. 34, SP
  • Epicuro – Epicuro e les épicuriens (textes choisis), PUF, Paris
  • Espinosa, Baruch de – Tratado Teológico Político, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, Maia, Portugal
  • Espinosa, Baruch de – L’Éthique, Gallimard, Paris.
  • Espinosa, Baruch de – Tratado Político, Os Pensadores, Ed. Abril, SP
  • Foucault, Michel – Microfísica do Poder, Ed. Graal, RJ
  • Foucault, Michel – Vigiar e Punir, Vozes, Petrópolis.
  • Fuganti, Luiz – Saúde, desejo e Pensamento, Hucitec, SP
  • Hobbes, Thomas – Leviatã, Os Pensadores, Ed. Abril, SP
  • La Boétie, Etienne de – Discurso da servidão voluntária, Brasiliense, SP
  • Lucrécio – Lvcrecio De rerum natura, Bosch, Barcelona.
  • Nietzche, Friedrich – Além do Bem e do Mal, Cia. das Letras, SP
  • Nietzche, Friedrich – Genealogia da Moral, Ed. Brasiliense, SP
  • Reich, Wilhelm – Psicologia de Massas do Fascismo, Martins Fontes, SP

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