Palestra de Luiz Fuganti para o Ciclo sobre arte e poder no CCSP em junho de 2007
Boa tarde a todos! Gostaria de agradecer o convite que me foi feito pelo núcleo e por essa oportunidade que me é oferecida para pensarmos essa coisa que nos escapa, escapa do nosso modo de vida — não só, eu diria, há séculos (ou há milênios), mas quase que desde o nosso nascimento, porque há uma espécie de atravessamento dos tempos: os da humanidade e os do consciente.
Há uma coexistência de tempos, o que faz com que condensemos em nós, em nosso corpo, em nosso pensamento, uma pluralidade de tempos que não são só os do corpo e seus acontecimentos vividos, mas também os do corpo da humanidade, digamos assim, ao mesmo tempo em que o pensamento da humanidade, que vem criando uma tendência que nos afasta cada vez mais (ainda que com o protesto do nosso corpo intenso e do nosso pensamento) da capacidade de acontecer. Então eu acho que esse é o foco que podemos trabalhar aqui.
Eu dizia que nós vivemos geralmente de modo separado do que podemos. Nós não sabemos muito bem o que é vivermos colados à capacidade de existir na sua abertura máxima ou, no mínimo, na sua abertura que faz a nossa potência crescer. Esse horizonte é cada vez mais ofuscado. Eu diria mais: há uma instituição humana que investe cada vez mais na separação da vida do que ela pode e falsifica o que é viver, assim como falsifica o que é pensar. E não se sabe mais da vida a não ser fora do imediato, a não ser fora do acontecimento. Não se sabe mais da vida ativa, afirmativa, intensiva. Sabemos, geralmente, de uma vida reativa, de uma vida cujo horizonte é negativo, cujo tempo é um tempo aniquilador, cuja ideia da morte é uma ideia de degenerescência pela matéria ou pelo desejo. Nós não sabemos mais, também, o que é agir, do ponto de vista da própria capacidade ou da potência que nos constitui ou que nos faz viver. Geralmente agimos por determinação extrínseca. Chamamos a isso “ação”, mas geralmente nós ignoramos a causa real do que nos determina a agir, a reagir, a pensar, a acreditar, enfim.
Então eu diria que a ideia de um corpo em devir, de um ponto de vista de quem exerce certo tipo de liberdade, seria até uma redundância, pois afinal, existiria alguma coisa fora do devir? O corpo estaria fora do devir? O pensamento estaria fora do devir? Diríamos nós que é impossível estar fora do devir, que o devir não é um acidente na existência, mas que o devir é constitutivo da própria essência, sem o qual não haveria nem a existência, muito menos a autossustentabilidade. O devir é um campo constitutivo não só da experiência vivida, como da produção da eternidade.
A eternidade se produz no devir. Fica esquisito então afirmarmos que existe um corpo separado do devir, se nada se sustentaria fora do devir. Mas nossa ideia é a de que — junto com Spinoza e com Nietzsche, principalmente desse ponto de vista —, há um devir relativo das forças. O corpo segue em devir, mas o horizonte é um horizonte niilista. Nietzsche define, muitas vezes, o niilismo — ou melhor, ele atribui à ideia de niilismo alguns sentidos. Um deles é o tal do niilismo negativo. O niilismo negativo é, digamos assim, um valor de mágoa que a vida toma, que a existência toma, que a natureza toma, que o desejo toma, que o movimento, o tempo, o espaço, o corpo, os afetos tomam. Há uma desqualificação ao pressuposto de que a existência tem alguma carência, alguma imperfeição e, nesse sentido, o homem separado da capacidade de existir busca, desesperadamente ou anestesiadamente, um elemento superior a essa existência devedora, que seria um valor do superior à vida, um valor superior à existência. Então não se diz não à vida, não se diz não à natureza, não se diz não à Terra, se diz sim a um ideal, sim a um outro mundo. Essa é a maneira de dizer não à vida, de desqualificar o corpo, o desejo e o pensamento. E essa também é a maneira mais básica, de um ponto de vista formal, de um investimento de forças coletivamente determinado de separar a vida do que ela pode, ou o corpo do seu devir ativo e o pensamento do seu devir afirmativo.
Na medida mesma em que nós perdemos a capacidade de acontecer, nós não sabemos mais qual a fonte ou o motor do nosso desejo, nós não sabemos qual é a fonte ou motor do movimento do corpo, das velocidades, das lentidões, das modificações que atravessam o corpo, de um corpo intensivo, de um corpo afetivo. De um corpo que vive na ponta do espaço, digamos assim, que toca com sua pele física o próprio ser do sentir, o próprio percepto do perceber, “o ser ciente do sensível”, diria talvez Merleau-Ponty. Nessa medida o corpo perde a sua fonte — a sua fonte não só material, mas a sua maneira própria de se autossustentar, de se automodificar, de se autorregular, de se modificar a si mesmo e as coisas modificadas que resultam dessa própria efetuação. Assim como também o pensamento se separa da capacidade de acontecer e de criar no tempo um tempo imediato que o atravessa. Ele perde, digamos assim, o aspecto ou a superfície imediata do tempo, ele perde o próprio meio com o devir, ele perde o acontecimento sem o qual o pensamento não se cria a si próprio, não cria ao conhecer.
Então nós nos separamos simultaneamente da capacidade de acontecer no corpo e da capacidade de acontecer no pensamento. Nós nos separamos da capacidade de exercer a sensibilidade de ativar os elementos intensivos do corpo, assim como da capacidade de afirmar o pensamento sem a instância da representação, sem a instância do ego ou do eu, sem a instância da consciência. Nós, ao contrário, colocamos a consciência como mediadora do corpo e do pensamento, mas nós atribuímos à consciência uma espécie de eminência sem a qual o corpo estaria perdido, não seria resgatado, não seria salvo, não seria preenchido de modo prudente, de modo responsável, de modo organizado. Nós penhoramos o corpo através da consciência de um organismo, nós deixamos o pensamento através de um regime de linguagem, de certo uso da linguagem numa significação de algo, nós afundamos o desejo, através do sujeito, num buraco negro de uma carência infinita, de uma má consciência, diria Nietzsche, ou de uma ilusão do livre arbítrio, diria Spinoza.
Nós buscamos maneiras de nos ligarmos novamente ao que podemos, de dar o corpo ao que ele pode, de dar o desejo ao que ele pode, de dar o pensamento ao que ele pode, uma vez que estamos impotentes no pensamento, impotentes no corpo e impotentes no desejo. E dessa impotência emerge uma vontade de poder, um desejo de poder, um desejo de se religar àquilo que perdemos. E como, artificialmente, fomos separados do que podemos, do ponto de vista do corpo, do pensamento e do desejo, também artificialmente nos ligamos a esse poder pela invenção de um espelho, pela invenção de uma superfície de reconhecimento, por um repartimento que nos faz existir através do olhar do outro, através da aceitação do outro, que nos ameaça em relação ao ostracismo pela rejeição do outro. Nós criamos, digamos assim, um espelho na medida em que produzimos um rosto em nós. O espelho da sociedade é o nosso próprio rosto. O modo como o nosso rosto se molda gera, emite signos, recebe signos e se torna o porta-voz da nossa voz, da nossa escrita, da nossa leitura, da nossa interpretação. O rosto como uma substância iniciativa que autoriza ou desautoriza, que institui ou desinstitui a consciência ou o pensamento submetido à consciência e o corpo obediente ao organismo. Nós acabamos por perder o corpo, ou, como diz Artaud: nós perdemos o corpo pleno, sem órgãos, que necessita não dos órgãos, mas de uma organização para os órgãos que faz perder exatamente essa capacidade autogerativa e autônoma do corpo, talvez à maneira como perdemos a capacidade autogerativa e criativa do pensamento.
E, com isso, uma vez que nós perdemos a capacidade de acontecer, nós investimos num ideal. Esse ideal inicialmente tem a altura de Deus, tem a altura do outro mundo, tem a altura de uma transcendência que não encontraríamos na existência exatamente pela perfeição ou pelo acabamento; ou pela eterna identidade circular que a experiência inviabilizaria. Evidentemente, seria algo que estaria fora da natureza, mas esse algo fora da natureza é um mero pretexto, é uma mera desculpa, um mero sintoma, não é causa de nada. O mundo verdadeiro, o outro mundo, o mundo de Deus, o mundo ideal, na verdade, é um pretexto, é um instrumento, é um meio exatamente fictício para atribuir ou destituir valor ao corpo e ao pensamento, é uma instância de julgamento. Na verdade, pelo investimento num modelo, pelo investimento na identidade, pelo investimento num ideal, pelo investimento em Deus, pelo investimento num estado espiritual, nós simplesmente nos servimos de uma máquina de destituir o corpo e o pensamento da sua autonomia. Nós dizemos que, através desse valor essencial e verdadeiro, nós podemos medir o valor do corpo e do pensamento.
Então, dessa maneira, nós fundamos a representação. A representação é um lugar privilegiado de reapresentação das coisas imediatas. Nós precisamos mediar as coisas imediatas que não são autossuficientes, que não são dignas de seu modo próprio de acontecer, que têm uma relação muito próxima com o caos. Essa, evidentemente, é uma visão religiosa, uma visão teológica, uma visão metafísica, uma visão moralista, mas, para falar como Nietzsche, o ideal ascético, ou simplesmente esse aspecto do niilismo negativo, é apenas, digamos assim, uma espécie de primeira instância ou primeira desculpa que precisa levar a cabo uma empresa de acusação generalizada da vida. Acusação generalizada em relação a quê, exatamente? Em relação a forças, a potências, a intensidades, a movimentos, a tempos que não têm intencionalidade alguma, que não funcionam por finalidade, que não têm o objetivo de chegar a um alvo superior que os resgataria, porque têm um modo próprio de acontecer no imediato sem o qual não realizam, não efetuam a sua própria natureza e não transmutam. Então, essa grande empresa, essa política do ódio, digamos assim, que é uma instituição humana, uma invenção humana (e os homens se agarram a isso como uma salvação), é exercida de modo sistemático, não simplesmente por poderes exteriores a nós, mas por nós mesmos — nós somos cúmplices dessa política.
Colocamos nosso corpo a serviço desse organismo. Nós destituímos o nosso corpo do devir propriamente ativo e o introduzimos ou entregamos de bandeja a um devir reativo, que busca simplesmente a conservação de si e que põe a questão criativa como secundária. A criação, no melhor dos casos, só passa na medida em que é posta a serviço da conservação. Há uma inversão radical aí: na mesma medida que, quando pensamos, acreditamos que só podemos pensar verdadeiramente, legitimamente, cientificamente a partir de um modelo, de um molde, de uma moldura e também de um modelador, sem que nossas ideias pareceriam de verdade. Introduzimos uma finalidade para o próprio pensamento, imaginamos um pensamento pensado a partir de um sujeito, a partir de uma consciência que tem começo e uma finalidade; imaginamos que o meio, o processo, o devir, é apenas meio de chegar a esse objetivo. Penhoramos a nossa vida e a colocamos a serviço de um projeto, a serviço de uma finalidade. Perdemos novamente a capacidade de criar e desperdiçamos o inédito do que a existência nos oferece a cada momento, a cada entretempo que está subjacente, que subsiste e que insiste nos preenchimentos das significações.
E então vamos entupindo nossa capacidade, os nossos modos de fazer o pensamento fluir e passar. Nós vamos entupindo esses modos, essas pontes, essas passagens, essas janelas, essas portas, esses poros, com as significações e, na medida em que vamos investindo nossas significações, vamos também nos afundando cada vez mais em um buraco que se pretende autorizado para interpretar, para transmitir e para observar e cuidar da aplicação dessas significações. Vamos nos transformando em sujeitos ou legisladores vigiados por um modo de dever-ser que já se introjetou em nós.
Sob esse ponto de vista, atingimos o segundo aspecto do que o Nietzsche chama de niilismo, que é o niilismo reativo. É quando organizamos de modo tal essa empresa, essa política do ódio de acusar tudo aquilo que não tem finalidade, que não tem responsabilidade, que tem uma inocência essencial à acontecer — uma vez que está, digamos assim, dominado ou que foi tornado ineficaz, que há uma omissão, uma separação, há um envenenamento na atmosfera do acontecimento —, que Deus não tem mais a menor necessidade, o tirano não tem mais a menor necessidade, os regimes de soberania não têm mais a menor necessidade e nós passamos agora a investir nos valores do homem. Colocamos o homem no lugar de Deus, achamos que fizemos grande coisa quando, na verdade, apenas ocupamos o velho lugar de julgamento, apenas reformamos o lugar de julgamento. Dizemos assim agora: o juiz tem a estatura do homem, nós não precisamos mais de Deus. Falamos junto com Hegel, dizendo assim: o homem estava alienado em valores divinos, o homem estava alienado em valores de outro mundo, mas esses valores divinos, de outro mundo, eram apenas valores humanos. Esses universais abstratos em si, na verdade, eram universais que o homem inventou para si, portanto, temos que de novo resgatar e buscar esses universais em si e transformá-los em mudanças concretas para o homem.
Essa é a grande revolução hegeliana e um certo marxismo investiu também nesse modo dialético de pensar: a ideia de desalienação, embora tenha um caráter materialista, não rompe a sua filiação com o ressentimento. Inventou-se então o homem e os valores do homem, o homem e os direitos do homem, como se então o homem finalmente fosse capaz de conduzir o próprio destino. Mas o destino desse homem nada mais é do que o destino do velho homem cansado, só agora mais organizado, mais anestesiado, mais satisfeito, mais feliz. O homem que não precisa mais da salvação, agora ele tem a felicidade; não precisa mais da eternidade, agora ele tem o progresso e a revolução; não precisa mais do tirano, do rei que comande a todos, agora ele tem a democracia; não precisa mais de Deus, agora ele tem a lei, uma só lei e uma vontade geral. Como dizia Sade, uma vontade geral de vidas que já não sabem mais o que é acontecer.
E, nessa medida, junto com vidas que não sabem viver sem a lei, vidas que são incapazes de dizer se estimularmos as forças internas do corpo, da mente, do pensamento, do inconsciente humano, aparecem o quê? Monstros, forças do mal, forças criminosas. Como diria Freud: incestuosas e parecidas. Todos os padres fazem coro hoje em dia, junto com os psicanalistas e também com os publicitários, e tantos outros que, inclusive, se servem da arte para anestesiar. Hoje em dia a arte também ocupou, junto com as terapias e com as igrejas, o lugar de tornar a vida miserável mais suportável. Então nós não buscamos mais a concentração, a intensificação, o tensionamento; nós buscamos a direção, nós buscamos o descuido de si. Olhar para o lado, olhar para o próximo, e olhar dentro apenas para reconhecer melhor que somos impotentes. Agora, olhar para dentro e chamar os fantasmas, os monstros, as forças criminosas, as forças malévolas para brincar, será que somos capazes disso?
Eu diria que os devires ativos foram transformados em devires monstruosos, em forças monstruosas, a ponto de o homem não mais admitir que pode viver sem lei, que pode viver sem moral, que pode viver sem Estado, que pode viver sem Deus, que pode viver sem o Eu, sem o ego, que pode viver sem o sujeito, que pode viver sem a significação. Não que nós devemos simplesmente jogar isso tudo fora, é simplesmente aprender o lugar de onde isso vem e como nós investimos nessas coisas, como somos cúmplices de tudo isso, e como investimos na democracia. E esse termo, esse conceito, geralmente temos medo de afrontá-lo por podermos ser chamados de autoritários, de nazistas, de fascistas ou de empregadores de uma ordem aristocrata — quando não há forma mais autoritária e fascista, fingida e escondida, do que a democracia e a lei. Não existe nenhuma diferença de natureza entre a lei civilizada e a barbárie terrorista; o terrorismo e a barbárie, junto com a lei e a civilização, têm a mesma fonte. Não há barbárie, não há monstruosidade, não há crime sem essa produção social da monstruosidade a partir da incapacidade de tolerar os devires ativos do corpo.
Nós somos socialmente educados, codificados, historicamente investidos a cultivar uma forma de organizar o corpo, uma forma de organizar o pensamento, sem a qual o homem cairia num abismo, sem a qual as forças do homem, as mais caóticas, tomariam conta e a vida se perderia naquilo que Hobbes chamou de “um estado de guerra de todos contra todos”, uma vez que só observaríamos as paixões individuais, e na individualidade só haveria esse tipo de paixão de rapina, de transição, de destruição, porque só pensaríamos no interesse individual. Esse pressuposto, então, de que as forças do corpo, as forças do pensamento têm uma deficiência de autorregularão de ordem própria é o pressuposto de todo poder, junto com toda a vida impotente. Não há poder sem vida impotente. A vida impotente é uma condição do poder, o poder cultiva a vida impotente, ele cultiva essas paixões, e toda a vida impotente busca o poder. Há uma cumplicidade entre a vida impotente e a busca pelo poder e o exercício do poder. Não há poder que não seja exercido.
Foucault já dizia isso muito bem: o poder é exercido, ele não está no palácio tal, na realeza tal, na instituição tal, no aparelho de estado tal, ele é sempre exercido pelos dominados e pelos dominantes, ele atravessa todos os corpos. E de que modo ele é exercido? Pela nossa sensibilidade e pela nossa linguagem. O uso que fazemos da nossa sensibilidade e da nossa linguagem atravessa modos de poder. Através do uso da nossa sensibilidade, separamos o nosso corpo do que ele pode; através do uso da nossa linguagem, separamos o nosso pensamento do que ele pode. Nós investimos o pensamento, o submetemos a uma representação. Nós submetemos o corpo a um organismo. Nós perdemos a capacidade de acontecer no imediato porque achamos que isso tudo é uma efemeridade, que o acontecimento é um mero acidente, que o acaso não tem nenhuma necessidade, que o devir não tem nenhum ser, que essa multiplicidade caótica não tem nenhuma unidade. Então nós investimos numa unidade e numa necessidade, num ser, numa essência, numa identidade que nos resgataria. E esse investimento ao mesmo tempo nos apazigua, nos dá o sentido do nosso sentimento em vão, mas no fundo ele é um desperdício, é o sofrimento humano feito de falsos problemas. Nós não sabemos sofrer mais, não sabemos aproveitar a dor. Levamos a sério à dor, somos demasiados sérios e responsáveis diante das injustiças, somos extremamente sensíveis diante de naturezas dolorosas em relação ao que ameaçaria uma existência que já está podre na sua essência, em vez de investirmos na capacidade de adubar a nossa própria terra, de revolver o solo que já está empedrado, onde semente alguma mais brota em nós.
Seríamos capazes de fazer de nós mesmos um arado que are essa terra que já está sem oxigênio? Será que somos capazes de arejar a nós mesmos? Para isso, é necessário ser também destruidor, é necessário ser assassino de nós mesmos, destruir a parte de nós que está podre, que deve ser morta e até honrada. Chorar, fazer o luto necessário e dizer adeus, e alegrar-se quando se ultrapassa novamente essa condição de afundamento, de decadência. Ou seja, nós somos muito piedosos com nós mesmos, nós não somos ainda capazes de aprender o não necessário. Somos educados para dizer sim e para sermos amáveis, e o nosso sim só é permitido na medida em que dizemos o não fundamental, o não inconfessável que destitui a vida da sua capacidade de acontecer. Dizemos um sim que na verdade esconde esse não fundamental, e não sabemos mais dizer não a esse não fundamental que separa a vida do que ela pode. Então, como diz Nietzsche: “não sabemos nem dizer sim e nem dizer não”. O nosso sim é um falso sim, porque afirmamos valores que oneram a vida, que tornam a vida pesada, incapaz de dançar, incapaz de acontecer, incapaz de fluir, e nós, ao mesmo tempo em que oneramos a vida, investimos ainda mais numa salvação que estaria sempre no futuro ou, no caso dos pessimistas, que já foi, que está perdida, num paraíso que não volta mais.
Com isso, nossa vida fica entre a memória e o projeto, mas nunca no devir. Nunca somos capazes de fazer a nossa plenitude, a nossa eternidade aqui e agora sem falta, saber que o caminho é pleno, saber que é no caminho que está a plenitude, que a plenitude não está no fim e nem na origem, que não estamos indo em direção a nenhuma unidade original e nem a uma totalidade final, e que, se existe ainda alguma ideia de salvação, a salvação é pelo meio. É pelo meio que somos capazes de acontecer, mas só somos capazes de acontecer se formos capazes de reencontrar o virtual que atravessa o atual ou o existencial. E o que é essa dimensão do virtual? É o inesgotável de qualquer relação, o inesgotável no espaço, o vazio que nós não sabemos mais valorizar e por isso transformamos todo vazio em nada; ou o entretempo que não sabemos mais valorizar porque há um tempo cronológico e necessário ao bom andamento das coisas e das tarefas a serem cumpridas. Assim, perdemos os entretempos que são destituídos como caóticos, como desviantes, como labirínticos, como condutores da loucura. E então perdemos o virtual do tempo, perdemos o virtual do espaço, perdemos o virtual da superfície, perdemos o meio de acontecer.
Nós preenchemos essa impotência com referências, e inclusive falamos em nome de Nietzsche, de Spinoza, de muitos pensadores bacanas que estão na moda: Deleuze, Guattari, Foucault, Baudrillard, enfim tem uma série deles aí. Como se bastasse, simplesmente, nos servirmos deles. Às vezes é até uma forma de desespero. Você busca aliados, busca algum tipo de luz porque há, de fato, um investimento sincero e honesto na retomada em nossa capacidade de acontecer. Mas muitas vezes é trapaça, é negociação. Muitas vezes é conquista e aprimoramento de um novo nicho de mercado, uma maneira diferente de falar que gera frutos, gera lucros, gera reconhecimentos, enfim, nós sempre existindo pelo espelho que somos incapazes de quebrar. Ao contrário, cuidamos para manter o espelho sempre bem limpinho, para que ele reflita bem a nossa impotência, que é mascarada com o poder que ganhamos a cada dia, com o poder, com a competência.
Então eu diria que, assim como há uma política do ódio e o ódio implica tristeza, há um investimento essencial na tristeza. Há um investimento essencial na desqualificação de nós mesmos ou uma impotência através do medo, através da clareza — temos um pensamento muito claro, científico, racional, temos muita tecnologia —, através do poder, porque ele faz gozar o impotente. E sempre acabamos sucumbindo num grande cansaço, porque a morte tarda, mas não falha, como a justiça — são da mesma natureza essa morte e essa justiça. Assim como há a política do ódio, há uma política da tristeza, mas que é compensada com o prazer. Nós buscamos compensações o tempo todo. Nós somos estimulados a ter desejos, mas o desejo não pode ser exagerado, ele tem que ser comedido. O desejo é um pequeno desejo, é um meio querer, assim como o que ele ganha é um pequeno prazer. Meios quereres e pequenos prazeres. Não há hoje ninguém que ouse falar contra o prazer, não há hoje gente que fale mais contra as diferenças, contra as multiplicidades. São engraçadas essas coisas. Hoje em dia se fala em empoderamento das comunidades e ninguém desconfia. “De graça, empoderamento? Como assim?” E as comunidades mordem a isca. Por quê? Por que elas são tão ingênuas assim? Será que ninguém sabe o que faz? Não, de fato, a vida separada do que pode necessita disso. Fabrica essa doença e oferece essa saúde. O modelo de saúde é o que faz com que essa doença seja reproduzida. A mesma coisa o prazer: oferece esse prazer exatamente para manter o desejo em baixa intensidade.
Desejo em alta intensidade é desejo sem intencionalidade, é desejo revolucionário, incomoda, ele de fato faz a diferença, e desejo que faz a diferença não é tão interessante assim. Só é interessante se essa diferença estiver a serviço da demanda que o estimulou, ou então que o capturou. A diferença não é de fato amada. A multiplicidade não é de fato amada. A mudança e o acontecimento não são de fato amados, no máximo são tolerados. É essa autocrítica que eu quero nos convidar a fazer. Esse rigor com nós mesmos. Até que ponto dizemos viva a multiplicidade, viva a diferença, viva a mudança, viva a acontecimento? Quando de fato nós sofremos disso, nós padecemos disso, nós temos um entristecimento com isso, e vemos que não há outra saída, então vamos inventar uma maneira de passar melhor com isso, apesar disso, quando, na verdade, não existe outra essência, outra eternidade, outra necessidade, outra liberdade, outro gozo do que a afirmação plena do acontecimento.
Essa incapacidade de dizer sim ao acontecimento só é uma incapacidade a partir de uma cumplicidade de quem está separado do que pode. Ela é um investimento social. Há um investimento não só no ódio e na tristeza, como há um investimento num gozo e num prazer ou numa afirmação que reiteram a política do ódio e do entristecimento. Nunca o poder vai chegar e dizer que ele precisa da desqualificação da existência, mas não há poder sem essa desqualificação. Nunca o poder vai falar que vai odiar e entristecer, mas não há poder sem o ódio e sem a tristeza. Nunca o poder vai falar que a vida, ou que a natureza, é insuficiente, mas o poder só existe na medida em que ele cria uma instância que provê uma vida insuficiente. Nunca o poder vai — a não ser nas situações limites e críticas —, nos capturar pela dívida. Ele vai fazer o contrário: vai oferecer o crédito, vai oferecer ajuda, vai oferecer amor, o bem, a verdade, a paz, todos os valores que nós reclamamos, a democracia, direitos (quanto mais direito melhor). De quê? Do homem. Quem é o homem? Não sabemos mais. Será que o homem é essa instância? Essa instância que tem uma vontade livre, que tem liberdade para escolher o bem e o mal, para evitar o falso e buscar o verdadeiro, para denunciar as injustiças e investir na justiça, para investir na utilidade ou desinvestir a nocividade? Será que é essa forma? É essa a forma interessante de ser? É essa a forma interessante de existir e de acontecer? Então será que não vivemos um grande sono e investimos nesse sono? E será que não seria interessante fazer como Nietzsche : não buscar aconselhar a humanidade ou até a nós mesmos a fazer outra coisa, mas acelerar o processo, e dizer com ele, “bem-aventurados os que têm sono, porque em breve adormecerão”?
Por que seguimos investindo em aconselhamentos, em ideologias, em verdadeiros sistemas, em referências? Não queremos outras referências? Então fomos enganados? A ciência está só ocupando o lugar da religião, mas ela tem o pressuposto moral. Qual é seu pressuposto? É que a vida não vale por ela mesma, é que existe um acaso e uma multiplicidade que devem ser recusados. Não somos todos moralistas, em última instância? Queremos o anarquismo então: abaixo o Estado, abaixo tudo, abaixo a lei? E será que o nosso anarquismo também não é uma forma de ressentimento?
Eu estou provocando um pouco, mas não quero pintar nenhum quadro negro. Acho que quem pinta quadro negro quer oferecer salvação. Não é isso. Eu só quero me aproximar de certas nuances que não suficientemente observadas por nós, para liberar o lado potente do corpo e do pensamento. O que pode o corpo, o que pode o pensamento, o que pode a vida (uma vida afirmativa, uma vida ativa, uma vida criativa)? Por que somos tão medrosos, tão covardes, em investir primeiro nas forças de conservação e não nas de criação? Porque não sabemos mais o que é criar. Porque pensamos que criar é só embaralhar as imagens e os códigos, dar uma mexida aqui e ali e já sai algo novo. Não sabemos mais criar produzindo eternidade, produzindo tempo próprio, produzindo espaço, produzindo vazio, produzindo corpo, produzindo elementos, produzindo realidades, em última instância. Nós não sabemos mais que a própria natureza é usina de si e de tudo, e que nós somos parte da natureza. Quem disse que o homem não é animal? Quem disse que o homem não é vegetal? Quem disse que o homem não é mineral? Nós somos parte disso tudo, nós estamos nessa imanência. Da mesma forma, a linguagem e o pensamento não são exclusividade humana. O homem tem a linguagem humana, tem a linguagem dele, mas existem outras linguagens, outros pensamentos.
A natureza pensa, não precisa do homem para pensar. Ao contrário: o homem pode ter inviabilizado o pensamento nele — não como um defeito, um elemento que atrapalha, que incomoda a natureza, que de fato é essa porcaria para a qual estamos levantando uma série de críticas, mas porque, na verdade, isso seria um ressentimento, isso também seria uma desqualificação. Existem forças em nós inteiramente positivas e plenas. O inconsciente é radicalmente inocente, não há falta no inconsciente, não há falta no desejo. O desejo não carece de objeto para se satisfazer. O desejo já começa na capacidade de acontecer, ele já é acontecimento antes de desejar em nós, e quando ele se efetua, ele já é uma diferenciação e um ultrapassamento de si. Ele não precisa de um objeto para se satisfazer, ele inventa o objeto dele.
Assim nós deveríamos inventar o nosso mundo e a nossa realidade, em vez de buscar encontrar a realidade ou nos encontrar. Não tem nada para encontrar em nós e nem fora de nós. Precisamos inventar o que precisamos encontrar. Então é essa tomada de posição. Eu diria que o corpo em devir ativo é aquele que toma parte do processo e se põe fazendo processo. Fazendo o quê? Não só outras coisas: obras de arte, ciência, filosofia, funções, técnicas, objetos. Mas fazendo a si próprio. O homem perdeu a capacidade de produzir a si próprio. Acomodou-se, acreditou que tinha uma forma natural: há um Eu e esse Eu é natural, há um objeto e esse objeto é natural, há uma razão e a razão nos foi dada por Deus. Como diz Spinoza: “Deus, asilo da ignorância”.
Mas então que razão é essa? Essa razão sempre existiu? Ela foi inventada. Isso é um modo de pensar, é um modo, diria mais, de imaginar que essa razão que o homem inventou o separa da própria potência de pensar, assim como a sensibilidade orgânica. É natural do olho ver, mas quem inventou o olho? Não foi a luz? A luz existe sem o olho? Quem inventou o ouvido? Não foi o som? O som não é anterior ao ouvido? Não há um corpo sem órgãos antes dos órgãos, antes das funções? O que é o ouvido e o olho? O que são os órgãos, senão dobras intensivas de forças? Mas nós acreditamos que há um sujeito atrás do olho que faz ver, há um sujeito atrás do ouvido que faz ouvir, há um sujeito atrás da fala que faz falar, há um sujeito atrás do pensamento que faz pensar. Essa existência nossa, nesse limiar que nos faz reféns do medo e que nos faz investir numa falsa clareza de uma certa ciência mistificada, e ao mesmo tempo esse fascínio pelo poder, pelo gozo, pelo reconhecimento, quando na verdade isso são apenas migalhas, são esmolas. Como diria Nietzsche, não somos suficientemente pobres para dar esmola. Quem dá esmola é quem é pobre e quem recebe é ainda pior. Temos que dar presentes, temos que procurar aliados, temos que sair da situação de referência ou de seguidor. Temos que conquistar e afirmar as diferenças para que nos tornemos fortes. A força é a favor da liberdade. Essa ideia de que a força gera violência é a falsificação que o poder introjeta em nós. É exatamente porque somos fracos que somos violentos. O forte não é violento, o forte é generoso. O forte não toma, o forte dá, o forte gera, o forte cria. A ideia que temos de força é completamente deturpada. Nós precisamos reinventar a ideia de força e desinvestir da ideia de lei e de forma. Não precisamos da forma, precisamos inventar a qualidade da força; e a qualidade da força é a afirmação da força ativa ou da força criativa. Isso seria um devir ativo para o corpo e para o pensamento.