Como seria se desde já decidíssemos e efetivamente nos colocássemos nesse caminho da prática de si que a esquizoanálise inspira e propõe?
O que desde já começaríamos a nos tornar? E também os que nos são próximos, o que aconteceria com eles, seríam contagiados? – se desde já, nos fizéssemos aliados de um modo de viver e pensar como o que nos inspira e propõe a esquizoanálise?
Se tivesse que dizer em uma palavra o que é e o que pode a esquizoanálise, talvez pudesse defini-la como a mais refinada e potente máquina libertária do desejo, do corpo e do pensamento que apareceu nos últimos 46 anos, e cujo modus operandi é o de um combate implacável e sem tréguas aos modos vis de viver.
Ela despe, escancara à luz de um sol à pino sem sombras, os esconderijos dos modos malogrados de vida, daqueles que tornaram-se máquinas de entristecer e destilar vingança em sua vontade irrefreável de julgar às diferenças da vida.
Diante dela enrubescem e perdem o pé as cabeças fascistas, moralistas, mistificadoras, autoritárias, juízas e suas sentenças de morte, despóticas, sórdidas por covardia. Não cabeças animais, mas cabeças humanas que se autoproclamam do bem.
Mas a esquizoanálise não ataca pessoas ou grupo de pessoas, mas os maus jeitos com a própria vida e com a vida dos outros: isso escapa ao olhar desavisado.
Um combate subterrâneo, visceral, insubstituível e implacável contra as paixões tristes, seus ressentimentos e resignações, seus desmandos, suas permissividades e os corrosivos poderes que delas se nutrem.
Esse combate se faz não apenas à luz, contra as instâncias que operam e investem de fora uma dupla captura do desejo, tanto por rebaixamento quanto por empoderamento das vidas cooptadas.
Mas sobretudo combate os maus jeitos que vem de dentro de nossos atolamentos afetivos, que estão sob nossa responsabilidade e apenas em nossas mãos as transmutações nessessárias do modo de desejar e do uso dos afetos que preenchem esse desejo.
São os atolamentos que não nos deixam viver sem envenenar, sem rebaixar, sem culpabilizar os atos de existir, roubando-lhes a inocência.
É uma declaração de guerra aos que só sabem viver se alimentando das paixões tristes e reproduzindo seus tristes poderes!
São as urgências do presente! A necessidade de um enfrentamento e de uma liberação sempre inadiáveis de um combate intempestivo (contra este tempo) dos modos nômades do desejo (que não tolera nenhum centro de poder que queira se erigir em juízo de direito supremo sobre as vidas criadoras de real!
O que em nós nos faria tão covardes que nos intimidaria ou impoediria de combater os modos de governabilidade que investem em uma soberania de um poder centralizador, opressora, repressora mas recompensadora, desejando assim a repressão do desejo dos outros e do seu próprio, como se se tratasse de sua maior liberdade, pois que supostamente o protege das forças nocivas do fora? Só uma cumplicidade indolente que é preciso escancarar, provocar e pôr a nu!
Essa guerra vital acontece à sombra, implodindo a usina de cumplicidades de nossas impotências – misérias, vitimizações, vontade justiceira e ilusões de recompensas -, entre as forças que nos fazem viver mas que, sabotadas, se esburacam e murcham. E se esse combate é consistente, a um só tempo ético, estético e liberador de potência e forças desconhecidas de nós mesmos, impossível não colher aqui o fruto mais raro, nobre, precioso desse combate, qual seja aquele que nos torna de fato o que já éramos de direito, potências plenas de criar realidade!