Encontrar o comunal em estado puro, no horizonte de cada um de nós. E aí, se você encontra o comunal em estado puro no seu horizonte, não tem como você não fazer do Eu uma brincadeira de passar. Passa. Um Eu emerge, é mais uma passagem. Outro Eu emerge, outra ponte, uma janela, uma porta, uma linha, um furo, um intervalo, um entretempo, um interstício, uma fresta. Todos os Eus. Assim como Nietzsche chegou a dizer em um certo momento, “Eu sou todos os nomes da história”. Um corpo intensificado no mais alto delírio do campo social e cultural atravessando esse corpo, dizendo “Eu sou todos os nomes da história”.
Que delírio era esse? De que nível era? Era um delírio totalmente ancorado no campo intensivo. Os psiquiatras e psicanalistas erram profundamente quando dizem que delírios e alucinações vêm dos fantasmas. Mas de onde vêm os fantasmas, senão de intensidades abortadas? O delírio e a alucinação se ancoram imediatamente em campos intensivos. Se o delírio ou a alucinação são irreais, a intensidade é real. A intensidade é totalmente real. Então não adianta você simplesmente abortar os processos delirantes ou alucinatórios anestesiando esses processos. Você precisa encontrar as intensidades, tratar dessas intensidades, se relacionar com essas intensidades, dizer “bem-vindas” a elas. Dar a mão para elas, brincar com elas e dizer “Ora, ora, onde estávamos esse tempo todo? Que bom é ouvir vozes. Que bom é encontrar essas zonas intensivas que criam vários nomes e brincam de dizer, de flutuar, de delirar e até de alucinar.”
De onde veio essa prepotência para limitar o princípio de realidade? Há, na verdade, um princípio de atolamento. O princípio de realidade dado pela psiquiatria e seguido pela psicanálise e pelas psicologias nada mais é do que um princípio de atolamento da condição humana rebaixada. Então nós temos que deixar de ser humildes. Bergon brincava com Kant e dizia assim, “Nossa, a razão humana, o pensamento humano é tão ousado com Platão, com Aristóteles, com Descartes, fizeram tantas peripécias e, de repente, com Kant se torna tão humilde que incorpora os seus limites. E aí abriu mão daquilo que realmente era: uma realidade sutil, com o campo das intensidades, o infinito das intensidades, o infinito do campo de forças”. E dizia: “Não, nosso conhecimento é limitado para acessar isso”. Bergson não abre mão. Bergson diz “não”. “Se vocês desistiram, eu não.”
Nós não podemos desistir. Se alguém diz assim, “Isso não existe”. “Isso está confutado”. Talvez só aquele ser esteja confutado, porque ele não consegue sair do seu buraco. E Lacan dizia, “Nós sofremos de uma incurável insuficiência de ser”. Mas quem sofre da incurável insuficiência de ser? Não é apenas esse que não consegue ver além do seu buraco? Por que nós não saímos do nosso buraco negro? Porque nós perdemos a superfície. E por que perdemos a superfície? Afinal, o que é a superfície senão esse horizonte que envolve a todos nós? Essa zona de passagem e de acontecimento. Porque o acontecimento não é mais real. Mas o que pode haver de mais real do que isso que a gente não pega, como o tempo? E o acontecimento é da mesma natureza que o tempo. O acontecimento é tempo. Não há vida que não esteja atravessada, produzida, processada, fabricada pelo tempo. E por que o acontecimento se tornou um mero acidente e perdeu sua essência? E se tornou um mero acaso e perdeu sua necessidade? Se tornou um mero devir ou passagem efêmera e perdeu sua consistência? Porque nós nos separamos do que podemos. Então é preciso retomar.
A Esquizoanálise é isso: ela não se concilia. Ela não se conforma. Ela não precisa fazer concessões. E, por isso mesmo, nos tornamos muito mais plásticos e flexíveis. Flexíveis no sentido de que toda a diferença enquanto diferença pode ser afirmada.
Transcrição por Gabriel Naldi
Curso de Introdução à Esquizoanálise 2022 (Aula 1 – Pílula 6)