Esse pedaço de exterioridade chamado Eu vai aos poucos se inoculando em nós, se interiorizando a ponto de acharmos que é uma interioridade profunda, e que fala o nosso nome, e que é o nosso nome, esta é a grande sabotagem. Nós somos sabotados pelo nosso próprio Eu. Nosso maior inimigo é o nosso Eu.
Por que deixamos isso acontecer? Porque começamos a confundir a zona de passagem não com o acontecimento, mas com o acontecido. E esse acontecido era atribuído a nós, era atribuído ao outro. Cada acontecido que ganha uma atribuição como traço de caráter de cada desejo é, na verdade, a maneira como vamos criando tijolos e cimento para fazer o muro dentro de nós. Vamos produzindo camadas, empilhando essas camadas, criando o nosso buraco inicial e, a partir dele, vários outros vão sendo inoculados e tapados, inoculados e tapados, inoculados e tapados. O nosso desejo não para de ser esburacado, e ao mesmo tempo estratificado. Esburacado e estratificado. E assim vamos construindo a nossa história pessoal, a nossa origem, de onde viemos, o que estamos fazendo, para onde estamos indo, o que queremos no futuro. E criando o grande processo do desejo intencional. E perdemos a oportunidade de brincar com o Eu. Não mais se importar se dizemos o não-Eu. Mas, toda vez que dizemos “Eu” quando de fato reencontramos a superfície, reencontramos esse código de linguagem como código de passagem, o Eu se torna uma máscara, ele se torna uma presentificação. Ele se torna uma maneira, a presentificação de uma voz. Uma voz que acontece ali. E outra voz acontece ali. E outra voz, e outra voz. Atrás de uma voz, uma pluralidade de vozes. Atrás de uma paixão, uma pluralidade de paixões. Polifonia. Glossolalia. Multivocidade. Muitos sentidos do desejo que diferencia a nossa potência e que cria dobras dentro de nós, multiplica as nossas distâncias, fazendo com que nos tornemos cada vez mais diferentes de nós mesmos.
O Eu como zona de passagem, sim. Ok. Tanto faz dizê-lo ou não. Importa que, quando eu digo “Eu”, é apenas uma janela, uma porta, uma ponte que faz passar uma voz, um afeto, uma intensidade. E, no seu retorno, um acontecimento que preenche o meu corpo de potência, com uma nova intensidade, uma nova nuance do real, produzindo o inédito em mim. O Eu como zona de passagem. Ok. O Eu como zona de passagem pode, sim — não ele como uma forma, mas ele, como passagem, exprimir o nosso nome próprio. Mas aí não é mais o nome de um Eu. É o nome de uma intensidade. É o nome da nossa singularidade. A nossa singularidade é completamente diferente de um Eu. Agora, o Eu como zona de passagem é um brinquedo das singularidades. Não tem problema. Eu posso dizer e brincar com ele.
Quando alguém chega a um consultório, a uma clínica, ou seja lá em que condição for, buscando ajuda psicológica, psicanalítica, psiquiátrica para se reencontrar, para se reestruturar, eu vou investir em quê, exatamente? Em uma identidade que esse alguém perdeu? “O que essa pessoa é, o que ela poderia ser?”. “Olha, toma aqui ferramentas. Toma aqui recursos. Recursos linguísticos, recursos estruturantes, recursos personificantes. Recursos que vão te dar uma identidade.” É como dar Ritalina, é como dar antidepressivo, é como dar camisa-de-força química para o desejo. Não se fala em nome próprio quando se diz esse Eu, quando se busca esse Eu estruturado. E o que estrutura o nosso Eu? O que estrutura o nosso Eu é o que separa a nossa potência de pensar do nosso desejo. A nossa potência de usar os afetos. A nossa potência de usar o movimento do nosso corpo e do nosso desejo. É isso. O que produz esse Eu estruturado é a aderência a um modo subjetivo de usar a linguagem, a um modo significante de usar a linguagem. As maneiras subjetivas e significantes são, na prática, muito concretas, apesar de serem semióticas. Nós podemos acompanhar isso. Nós podemos ver o que acontece com a nossa vida quando fazemos isso de nós mesmos.
Essa desconstrução, você só a percebe no outro se você a faz em você também. Qual uso nós fazemos da linguagem? Quando usamos a linguagem de modo subjetivo, uma transformação incorporal a cada ato de linguagem está sendo produzida em nós. Se eu uso a linguagem de modo subjetivo, eu estou produzindo subjetividade em mim. Uma transformação incorporal é uma perspectiva do meu desejo, do meu pensamento. Uma transformação incorporal significante muda o horizonte e o objeto do meu pensamento, ela produz ideais. O uso significante produz valores, produz ideais. E o uso subjetivo? Produz capas para os buracos do desejo.
Isso é uma prática. Nós vivemos isso na prática. Então nós temos que encontrar esses lugares no dia a dia, no cotidiano. Como usamos a linguagem? Não basta apontarmos o inimigo fora de nós. E muito menos acreditar que ele está dentro de nós como nossa essência. Ele está no meio, ele está sempre à espreita, ele está se colando nos nossos vacilos. Onde vacilamos, onde estamos ausentes, onde não temos presença. Onde há ausência da potência, o poder cola.
Transcrição por Gabriel Naldi
Curso de Introdução à Esquizoanálise 2022 (Aula 1 – Pílula 4)