Circuitos intensivos do desejo
03/07/2022
Boa noite! Muito boa noite a todos e a todas. Uma felicidade estar aqui com vocês.
Vamos para o nosso terceiro encontro desse curso de introdução à Esquizoanálise, uma clínica intensa da vida. Vamos hoje falar de um tema-problema essencial, como um divisor de águas, que são os circuitos intensivos de desejo e uma micropolítica dos afetos. Isso faz toda a diferença no nosso modo de fruir a existência e criar as condições para inventar uma maneira ativa e criadora de existir, para assim fazer de nós mesmos grandes viventes.
Nós dizemos sempre, e desde também o início de nossas aulas aqui, neste ano, que a Esquizoanálise não tem sentido fora de uma prática visceral de vida. Não há qualquer separação, ou não pode haver qualquer separação entre teoria e prática. A teoria, na Esquizoanálise, se converte imediatamente em acontecimento de vida. E nós chegamos a essas verdades profundas à medida em que desconstruímos as barreiras que nos impedem de ver. Essas barreiras que nos impedem de ver têm relação direta com o nosso modo de vida. Nós não conseguimos, muitas vezes, acessar nossas próprias forças justamente porque vivemos de uma maneira tal cujo resultado acaba sendo um empecilho para nossas visões, percepções, pensamentos, afetos intensos, movimentos intensos que tocam imediatamente o real. Nós temos insistido muito nisso.
Essa é a grande diferença de uma visão, de um pensamento e de uma práxis como a da Esquizoanálise em relação às outras teorias e práticas psicoterapêuticas, que muitas vezes se contentam em constatar a natureza decaída do humano. Na verdade, é uma natureza apenas decaída, ela está em um estado de decadência. E essas teorias, esses pensamentos e práticas psicoterapêuticas se conformam, como se esse estado de decadência coincidisse com uma natureza humana. É por isso que nós nos insurgirmos contra essas teorias dominantes que invadem e dominam o pensamento e a prática psiquiátricos, o pensamento e a prática psicanalíticos, o pensamento e a prática de muitas correntes da psicologia dominante.
Afinal, nós não contentamos em constatar o estado das coisas, e muito menos confundimos o estado das coisas com a natureza da força que nos faz existir. A natureza da força que nos faz existir é algo que está ligado a uma potência de acontecer, e não se confunde com aquilo que acontece. Esse ponto é essencial, e aqui nós vamos traçar um divisor de águas.
Hoje, então, nós vamos falar disso. Eu tenho dito aqui, antes de iniciar esse mergulho, propriamente, nesse tema-problema tão importante, eu tenho lido aqui todas as manifestações no chat e e-mails que chegam também, e fico muito alegre, muito contente com as manifestações de carinho, de incentivo, enfim. E, ao mesmo tempo, as manifestações de gratidão por esses encontros gerarem tantas mudanças, deslocamentos que fazem com que comecemos a ver a vida de outra maneira. Fico muito emocionado, muito grato com o carinho de vocês. Quero dizer novamente que estou lendo tudo e que, de alguma maneira, as questões que vocês fazem ao longo da minha fala, que eu não tenho muito como ficar lendo aqui o chat, senão acabamos atrasando e atrapalhando a exposição dos conteúdos viraria um debate e, pelo pouco tempo que temos aqui, é melhor aproveitar com a exposição. Mas quero dizer que, de alguma maneira, eu incorporo as questões que estão aí, e senti que no último encontro tinha algum participante que estava muito preocupado com o entendimento dos conceitos, mas um pouco preso às palavras. Então, eu queria dizer novamente, assim como eu disse logo no nosso primeiro encontro, que é muito importante se deixar penetrar pelo pensamento. Deixar de brigar com as palavras, que as palavras, ao mesmo tempo, vão ganhando sentidos novos.
Muitas palavras que eu uso aqui não têm o sentido cotidiano — por exemplo, a palavra “comum”. O ser comum é uma coisa muito diferente de um senso comum. Não há a banalização do senso comum. O ser comum é um ser raro, um ser extraordinário, apesar de não haver nenhum ser vivente que não esteja imediatamente acoplado a esse ser comum. Há algo de comum a todo vivente, mas não só a todo vivente, a todo modo de potência. Todo modo de potência está acoplado a uma zona de passagem que eu identifico como um ser que é comum a todo existente. Então, o comum implica na própria condição da existência. Logo, o comum não é algo ordinário. O comum é algo sem o qual a existência nem acontece, nem existe. Então o comum é uma das faces do absoluto. Não tem nada a ver com essa coisa ordinária, “ah, isso é comum demais”, “Isso é banal demais”.
principalmente, elas vão ganhando um sentido que é esculpido pelo movimento do pensamento. Nós não estamos presos à linguagem. Eu, inclusive, faço questão de não me ater ao discurso estabelecido por Deleuze e Guattari nas suas obras. Eu me sirvo muito deles, sou absolutamente inspirado por eles, assim como por outros pensadores ditos nômades ou da filosofia da diferença, mas eu não me prendo à linguagem propriamente dita. A linguagem vai ganhando sentido.
Então eu queria dizer que isso aqui é um curso de introdução, e não dá para, evidentemente, esclarecermos todos os pontos, mas nós introduzimos principalmente uma maneira de colocar os problemas ou o problema por excelência que envolve todo o existente. O problema que envolve todo o existente, a nosso ver, e sob o ponto de vista da mais alta potência ou daquilo que podemos fazer da própria vida, elevando-a à sua máxima potência de acontecer, eu diria que o problema por excelência desse tipo de vida, que faz de nós grandes viventes, é colocar o nosso desejo sob um horizonte de uma evolução criadora de si mesma. Uma evolução criadora do próprio desejo, que traça o caminho da potência à diferenciação de toda potência que nos faz existir. Isso é essencial.
E, à medida em que colocamos o problema dessa maneira, isso já gera todo um horizonte novo. Faz emergir algo que geralmente não está nos nossos planos, nos nossos sonhos, nos nossos desejos. É como se essa dimensão não pudesse fazer parte da existência porque nós fomos habituados ao fato de que à existência falta um tanto de realidade. A existência sempre se confunde, à medida em que o nosso desejo existe, com uma certa insuficiência, com uma certa incapacidade. E isso é corroborado pela presença do sofrimento e das paixões tristes, e muitos de nós usam isso para dizer “Viu? Por isso mesmo a existência é imperfeita”.
Então, na verdade, nós aqui fazemos questão de afirmar que isso é um curso introdutório, apesar de termos a oportunidade de desenvolver isso em cinco encontros de uma hora e meia, praticamente, cada um. Então são sete horas e meia, quase oito horas. Dá para fazermos bastante coisa, mas sempre de um ponto de vista introdutório. No momento oportuno, vamos anunciar um curso, uma oportunidade de um aprofundamento, e aí um aprofundamento bastante denso, bastante intenso, no qual dá para desenvolver, estudar e experimentar, fazer da sua própria vida um laboratório, ao longo de uma longa duração de experimentação, e aí sim dá para entrar em detalhes. Não que aqui fiquemos nas generalidades, não é isso. Mas marcamos bem esse divisor de águas entre um modo de vida sedentário e um modo de vida nômade. Todos nós somos capazes de reestabelecer um modo de vida nômade. Um modo de vida nômade no qual o desejo se torna pleno, nosso corpo se torna pleno, nosso pensamento se torna pleno. E nós podemos — e devemos, uma vez que podemos, por que não efetuarmos? Então nós devemos criar as condições para que nós tenhamos acesso a esse modo de vida. Todos nós podemos fazer isso.
E isso é uma condição, ao nosso ver, para quem quer também, por derivação, se tornar esquizoanalista. Não há esquizoanalista íntegro, no nosso ponto de vista… Não se pode ter toda a integridade, a potência ética, a potência seletiva e a potência estética que constituem essa prática, sem fazer essa desconstrução de si (o que temos chamado aqui de “lição de casa”), a desconstrução das prisões do corpo, do pensamento e do desejo. Essas prisões são envolvidas pelo nosso próprio modo de existir, portanto, há uma cumplicidade aqui.
E isso, hoje, nós vamos marcar bem, pela questão dos circuitos de desejo. Vamos fazer uma distinção clara, aqui, entre o modo intencional de desejar, um circuito intencional que, na verdade, constitui os círculos viciosos do desejo; em contraposição ao modo intensivo que constitui os circuitos intensivos. O círculo vicioso do modo intencional de desejar desembocando em uma maneira passional e reivindicativa de viver, de um lado; e, por outro lado, em uma maneira paranoico-fascista. E, no contraponto do circuito intensivo de desejo, nós temos uma maneira ativa e criadora de existir. Em vez de ser passional e reivindicativa de uma compensação, ela é ativa e criadora das próprias condições de existência no acontecimento, ao mesmo tempo em que tem uma expressão esquizorevolucionária — “esquizo” no sentido de diferencial, ela se diferencia e produz uma revolução molecular permanente no próprio cotidiano. Então são duas maneiras completamente distintas, que divergem em natureza e que produzem destinos bem diferentes também. Então é esse o ponto.
E isso também nos leva a entender que há uma micropolítica dos afetos, mas, no fundo, tudo é micropolítica, inclusive no modo passional reivindicativo e paranoico-fascista, que envolve o círculo vicioso do desejo intencional. Tudo é micropolítica, apesar de, nessas posições, nesse estado passional, reivindicativo e paranoico-fascista do desejo, identificar-se o movimento da política como um movimento molar ou macro. E, no caso do modo de vida ativo, criador, que ao mesmo tempo é esquizorevolucionário, se apreende o molecular do campo afetivo, um uso molecular do campo afetivo que cria uma micropolítica do desejo nesse circuito intensivo, gerando diferenciação e criação de valor, gerando uma autonomia real. Então, há uma grande diferença aí entre as duas maneiras.
Nós falamos, no final do nosso primeiro encontro, que iríamos fazer o desenvolvimento desse tema-problema na segunda aula, mas, na verdade, acabamos deixando para a terceira aula porque na segunda aula resolvemos antecipar a questão do inconsciente maquínico. E por quê? Porque a questão do inconsciente maquínico remete a uma multiplicidade mais do que ao múltiplo, a uma diferença autossustentável mais do que uma diferença representada, e nós resolvemos expor a maneira como se fabrica o real, como se produz realidade. E, inclusive, nessa dimensão do inconsciente, como o inconsciente é molecular e não está em dicotomia com a natureza, nem em dicotomia com a física quântica, com a biologia molecular, com toda a dimensão molecular da vida e também da potência, para que nós reencontrássemos o seu meio de autofabricação de si e de fabricação do que dele deriva, inclusive a consciência e eventualmente o sujeito, o Eu e outros signos que acabam sendo experimentados em uma zona de representação.
Tudo dele deriva, mas aí já é o inconsciente que é pura zona potencial, mas jamais como possível, e sim como uma realidade virtual que necessariamente se apresenta e se exprime na superfície das relações. E, ao se apresentar na superfície das relações, no acontecimento mesmo desse potencial ou dessa potência, ele se diferencia da própria potência, se tornando um existente. E, ao se tornar um existente, ele se torna uma diferença na existência que gera mais realidade, que retorna sobre o potencial e se relança no existencial, no atual, formando um circuito intensivo de desejo. E a isso nós ligamos o inconsciente denominado maquínico, cuja maquinação não tem nada a ver com mecanização. Não é uma visão mecânica da vida, de um lado, e nem vitalista de outro, mas há desejo nessa maquinação e há maquinação no desejo. É uma relação intrínseca e imanente dessas duas dimensões.
Então, a retomada da superfície que é perdida na primeira e na segunda capturas. Na primeira captura, a superfície faz com que a potência caia em um buraco, e na segunda captura a potência decaída busca um empoderamento no plano ideal. Ela investe propriamente o ideal, uma espécie de altura, de verticalidade. Então ela gera uma falsa profundidade na primeira queda, na primeira zona de passagem; e na segunda zona de passagem ela inventa uma altura que resgataria essa vida decaída, salvaria essa vida decaída. E esse momento de resgate empodera essa vida, autoriza essa vida, dá direito ao gozo para essa vida.
O inconsciente maquínico faz com que a potência e o desejo deixem de ficar separados, ou, melhor ainda, que o desejo deixe de ficar separado da sua potência e, portanto, suba à superfície, se apresente nas relações — mas não apenas como expressão ou como uma expressividade, como acontece no existencialismo e na fenomenologia, mas, à medida em que sobe à superfície, não mais apenas funciona como um fenômeno ou como uma expressão, mas funciona como uma produção de si, como uma fabricação de real. Então esse inconsciente maquínico produz a si e a tudo que dele deriva, assim como, em Spinoza, há uma natureza naturante que produz a si mesma e a própria natureza naturada que dela deriva.
Nesse sentido, então, o inconsciente remete a uma positividade do real, uma positividade plena, e não simplesmente a isso que foi ligado, depois da emergência da psicanálise, a uma dimensão com uma falta de ordem, uma dimensão selvagem, uma dimensão ameaçadora, uma dimensão que não poderia se manifestar plenamente sem necessitar de um recalque e de uma introjeção de um limite, sem os quais não haveria civilização. Então, o inconsciente da Esquizoanálise tem, na verdade, todo um modo afirmativo de se exprimir e produzir a si e o que dele deriva, inclusive a consciência. Nós temos a consciência que merecemos, segundo o modo como produzimos a nós mesmos e o que de nós deriva.
E aí eu posso até falar em Eu, em sujeito. Isso tudo se torna derivado, isso tudo perde a importância, porque isso deixa de ocupar os lugares de comando da nossa vida. A nossa vida deve ser comandada por um acontecimento que nos singulariza, e não por um ideal, por uma verdade, por uma missão, por algo que designam para nós, que impõem para nós, que demandam de nós mesmos ou que esperam de nós mesmos. Isso é essencial.
Vamos lá. Mais um detalhe que eu queria dizer é o seguinte: a Julia, em algum momento, deve entrar aí no chat. Ela ia entrar um pouquinho depois do início da nossa aula, e ela deve relacionar um conjunto bibliográfico que eu passei para ela, porque nós percebemos que uma das demandas que havia aqui nos comentários era sobre bibliografia. Então eu passei uma vasta bibliografia dos principais pensadores e suas principais obras que contribuem para o modo nômade de viver, para a filosofia da diferença e, em consequência, para a própria Esquizoanálise. A indicação bibliográfica serve para quem quiser começar a se aprofundar, levar a sério a necessária e urgente desconstrução de si. Necessária porque, sem essa desconstrução, nós não conquistamos uma relação com o imediato do real, não seremos capazes de produzir as nossas próprias condições de existência e fazer da nossa vida a vida de um grande vivente; e urgente porque, como eu disse no outro encontro, a vida é agora. A vida se passa no presente. Então é isso. Ali tem indicações fundamentais de obras de Spinoza, de Nietzsche, de Bergson, de Deleuze, de Guattari, enfim, o suficiente para começar já um belo mergulho. Tá bom?
Então vamos lá. Circuitos intensivos de desejo. Nós precisamos entender o contraponto, o aspecto crítico que eu já mencionei aqui na primeira e na segunda aulas. Qual é o aspecto crítico? O aspecto crítico tem um duplo foco. O primeiro é sobre aquilo que nos acontece e o uso que fazemos disso. Torna-se crítico quando fazemos um mau uso disso que nos acontece. E o segundo foco crítico é o desinvestimento em uma resposta equivocada, que seria uma resposta que buscaria uma espécie de salvação em um plano que não estaria exatamente na existência, ou ao menos que escaparia sempre da existência em direção a uma verdade. Esse plano coincide com um princípio transcendente, que transcenderia o plano da realidade que nos atravessa. Estaria fora, portanto, e de um modo eminente, se sobreporia às nossas vidas. Estaria em um plano superior, criaria uma verticalidade.
Esse segundo mau uso do que nos acontece é uma má saída da primeira captura. A segunda captura aprofunda ainda mais a nossa decadência. É esse o ponto essencial dessa crítica. E é aí que acontece um circuito intencional, aí que se estabelece o circuito intencional do desejo. E o circuito intensivo se dá exatamente primeiro pela desconstrução desse aspecto, desse círculo vicioso; e em segundo pela tomada da vida nas próprias mãos, que entraria em um processo de diferenciação. E isso faria com que nós conquistássemos a conduta da própria vida, que se torna ativa e criadora de realidade, criadora de valor, portanto. Valor que seria suficiente para nos autogerir, para nos acoplar ao movimento de autonomia de um devir ativo e autossustentável. É isso que faria então com que nós aderíssemos a uma micropolítica ativa e criadora das territorialidades existenciais que funcionariam como uma expansão, uma abertura no campo relacional de todo o vivo.
O primeiro foco crítico se dá da seguinte maneira… Eu dizia antes, não vamos nos prender às palavras, não vamos tentar decifrar o significado profundo neste momento. Eu acho que é suficiente se cada um de nós aqui tentar entender, pelas palavras que designam conceitos, o mínimo de realidade que isso toca.
Por exemplo, quando eu falo “potência em ato”, estou me referindo a uma realidade que tem toda uma dimensão potencial sem a qual a nossa vida não entraria em variação, sem a qual a nossa vida não se sustentaria, e cujo ato dessa zona potencial é justamente o movimento de diferenciação dessa potência na existência. A potência, que é o plano da essência, se diferencia dela mesma se tornando existente. E, ao se tornar existente, ela gera um produto. Esse ato que produz, que gera um produto, tem algo dele, algo desse produto que retorna sobre o próprio ato. Então, a potência em ato acontece aí. Eu posso substituir também o ato por acontecimento. Então, uma potência em ato é uma potência que se atualiza, ou que se efetua, ou que se realiza na existência. Portanto, é uma potência em acontecimento, em variação. Não é difícil de entender inicialmente isso. É que, claro, o entendimento e o pensamento têm muitas camadas. Então não se preocupem inicialmente. Mesmo que esse entendimento seja de leve e mal toque esses sentidos mais sutis, é suficiente para avançarmos. Então é assim que eu vou avançar aqui também. Eu peço a generosidade de vocês para contribuírem com o próprio corpo, desejo e pensamento de cada um, para dar sentido a essas palavras, segundo minimamente essa sinalização que eu aponto aqui desse lado.
Cada um fará um uso interessante disso, mas o que dá para dizer é que a potência pode ser o que você quiser: sujeito, Eu, consciência, alma, espírito. Vamos falar de uma maneira simples: é aquilo que nos faz existir. Sem a potência, nós não existimos. É a fonte da nossa força. O que seria a força, em relação à potência? A força é já a potência em ato. É aquilo que liga essa potência ao seu devir, ao seu movimento diferencial, ao seu movimento de efetuação. Isso já é uma força de existir. Então essa força de existir, o que importa? É que ela não tem forma prévia, isso é fundamental. Esta é uma das grandes diferenças do pensamento da Esquizoanálise para as outras teorias e práticas psis. É que nós não pressupomos uma forma prévia para a nossa essência. E a nossa essência, à medida em que é uma potência de acontecer, esse acontecimento também não tem uma verdade, também não tem uma forma. Ele é uma linha de variação. Isso é essencial.
O que acontece? Quando a forma emerge? Quando o desejo começa a se estratificar? Quando o nosso desejo cai, submetido a um estado afetivo? É quando a nossa potência de acontecer se confunde com aquilo que aconteceu a ela, e esse acontecido dela mesma se cola e a reduz a si, a reduz a esse limite que ela se tornou. Então esse acontecido toma o lugar da potência de acontecer. Ao nosso ver, aqui está um foco, aqui está um elemento crítico que passa despercebido para a grande maioria das teorias e práticas dominantes ligadas ao desejo, ao inconsciente e à psiquê humanos. Isso é uma condição que faz com que percebamos que nós humanos estamos atrelados a um estado afetivo, e esse estado afetivo não é percebido como estado, ele é confundido com a nossa essência. E foi isso, inclusive, que fez Freud confundir a natureza do desejo com um desejo incestuoso e parricida. O desejo que ele denominou como “edipiano”, apesar de isso não ter nada a ver com o Édipo de Sófocles, o Édipo grego. Mas Freud fez essa interpretação.
É preciso que façamos essa diferença, e essa diferença acontece exatamente quando aquilo que nos determina de fora, uma força, uma potência em ato que nós encontramos fora de nós, nos toca de uma maneira tal que faz com que a nossa existência, a nossa força de existir seja determinada prioritariamente por essa força externa. No encontro com essa força, a nossa potência em ato, a nossa força de existir é marcada, é afetada e acaba acontecendo a ela uma modificação, ou uma afecção, como diria Spinoza. Toda potência em ato encontrando outra potência em ato se preenche de uma afecção, de uma modificação. E essa modificação se refere à força exterior como uma causa, seja do bem ou do mal, que a ela acontece. Uma afecção pode levar a um afeto triste ou a um afeto alegre. Ou seja, ela pode fazer a nossa potência e a capacidade de existir que corresponde à nossa potência variar de uma realidade menor para uma realidade maior — e aí seríamos preenchidos de alegria, e a causa exterior seria investida de amor, nós ligaríamos a nossa alegria a essa causa que elevaria a nossa potência de existir, e então amaríamos essa causa, um outro que gerou esse bom encontro; ou nós, no caso de um mau encontro, preenchidos de tristeza que estaríamos, pois a nossa potência de existir, a nossa capacidade de existir que corresponde à nossa potência diminuiria de realidade, iria de uma realidade maior para uma realidade menor, seríamos, portanto, preenchidos de tristeza e remeteríamos essa tristeza a essa causa exterior, que por sua vez se tornaria inimiga de nós mesmos e seria fonte de ódio. Então nós odiaríamos aquilo que diminuiria nossa potência de existir e ameaçaria a nossa existência.
Há aqui uma ilusão, uma imaginação, à medida em que atribuímos a causa a essa exterioridade, e não vemos em nada a nossa cumplicidade, à medida em que nos deixamos dominar inteiramente por essa causa. Ou amamos e queremos nos apropriar dessa causa que nos faz bem, queremos que ela se mantenha ali porque ela é fonte do nosso fortalecimento; ou a odiamos, queremos eliminar ou no mínimo afastar essa causa da nossa tristeza, que ameaça nossa existência. Basicamente, é esse movimento.
Nietzsche vai falar que os dois elementos mais críticos da existência humana se chamam “ressentimento” e “má consciência”. A má consciência vai levar Nietzsche a dizer que foi a planta mais venenosa que nasceu sobre a Terra. A pele da Terra ficou doente tanto com o ressentimento quanto com a má consciência. Esse duplo movimento do ódio contra o outro e do ódio conta si. A culpa do outro e a culpa de si que, claro, é todo um plano imaginário que estabelece uma política de vingança do desejo e ao mesmo tempo faz com que o desejo deseje um ideal, deseje uma verdade, deseje uma instância superior à própria vida que resgataria a vida e que faria da vida um ponto crítico que incorporaria a vida a uma falta, uma insuficiência de ser que só seria resgatada por esse plano ideal transcendente.
Quando Nietzsche vai falar de ressentimento — ele começa pelo ressentimento, por exemplo, em uma obra chamada Genealogia da moral, que está, inclusive, entre as indicações bibliográficas que eu passei aí para você. Na primeira dissertação ele fala de ressentimento, e ele vai dizer que o ressentimento inicialmente é uma intoxicação. E o que é uma intoxicação? Aqui, ele fala de uma intoxicação do acontecimento (ainda que ele não use exatamente essas palavras). Algo que acontece, há um encontro de um desejo com outro desejo, de um corpo com outro corpo, de uma vida com outra vida, e esse encontro se torna, para essa vida intoxicada, indigerível, indigesto. A intoxicação que acontece ao desejo é uma incapacidade de digerir algo do acontecimento. Mas, uma vez que o acontecimento não pede licença e é sempre surpreendente, quando ele chega, ele já está no processo de modificação desse que é envolvido no acontecimento, e não há como simplesmente ele recusar.
Então, uma vez que esse acontecimento invade o vivente separado do que pode, de uma maneira tal que ele se intoxica, ele teria algumas saídas. Primeiro, devolver esse acontecimento. Vomitar, botar para fora, já que a coisa é indigesta. Mas, uma vez que, nesse caso não tem como, porque o acontecimento de alguma maneira já penetrou a zona intrínseca da força que nos faz existir, ele precisaria ser digerido. A outra opção seria então a digestão, mesmo que fosse difícil digerir. Mas a digestão não se dá. Não se consegue digerir. O acontecimento talvez seja grande demais. O acontecimento precisaria de um preparo maior. O corpo está fragilizado, enfraquecido, limitado, precisaria de uma distância, de um tempo, de uma condição outra. Ele não consegue, ele não tem essa condição.
Ainda restaria uma saída. Qual saída seria essa? A capacidade plástica que nos envolve. Nós temos uma potência plástica de não se deixar fixar ou cristalizar, desde que saibamos criar distância. Criar distância de nós com nós mesmos, ou seja, o acontecido de nós mesmos não pode tomar o lugar de toda a nossa potência de acontecer. E isolaríamos esse acontecido até criar as condições para cuidar dele. Esse isolamento seria uma capacidade plástica, conquistada por uma ética e uma estética de si. Mas isso implicaria toda uma potência de se manter na superfície, de se manter aberto, nas zonas de passagem, de manter o nosso campo receptivo da materialidade sonora, da materialidade luminosa, da materialidade olfativa, gustativa, tátil e toda a materialidade que possa nos tocar de fora. Essa zona anfitriã de nós mesmos deveria permanecer ligada a esses fluxos, investidas nesses fluxos e, portanto, aliada a uma potência de esquecer. A uma faculdade do acontecimento, diz Nietzsche, que faria com que essa distância entre o acontecido de nós mesmos e a nossa potência de acontecer não fosse transposta, mas mantida. E o trabalho de digestão inconsciente seguiria o seu curso. A preparação para essa digestão seguiria o seu curso, inclusive alimentada ainda mais pela manutenção da abertura do vivente aos novos acontecimentos. O acontecimento sempre inédito nessa superfície aberta que implicaria uma ativação das nossas forças reativas. A nossas forças reativas devem ser investidas para uma digestão profunda, de um lado; e para uma recepção superficial, de outro — a recepção dos fluxos na zona de passagem, cujo alimento é essencial para se manter em processo criativo.
Mas no ressentimento nada disso acontece. Acontece o quê? Como diz Spinoza, a tirania de uma paixão. A tirania de uma paixão é quando uma força de fora é suficientemente determinante para que fiquemos fixados e não consigamos dar conta dela. E, nessa fixação, o acontecido de nós mesmos toma o lugar da nossa potência de acontecer e forma o nosso primeiro buraco. Primeiro, ou segundo, ou terceiro, aqui você nunca sabe quando a coisa começa, quando o trem descarrila, quando a coisa começa a se fixar ou perder o movimento do devir. Mas em algum momento a coisa acontece. É sempre pelo meio e por um mau jeito. E esse meio de queda vira um princípio em nós. O nosso primeiro buraco, ou segundo buraco, ou terceiro buraco, a nossa primeira, segunda, terceira, quarta, quinta separação de nós mesmos e, claro, vai haver aí um valor, alguns buracos serão mais importantes do que outros, que vão virar, inclusive, crateras em nós, e que vão tomar a hegemonia do ponto de fixação. Então, o nosso Eu profundo, a nossa alma profunda vai, na verdade, começar nesse buraco mais decisivo, nessa fixação maior de nós mesmos, que implicaria um princípio sedentário do nosso desejo.
Aqui seria então a origem de um desejo intencional: quando a vida, separada do que pode, com um acontecimento que não se dá conta, que nos intoxica, ao qual não criamos distância, que nos envenena à medida em que nós reduzimos a nossa potência de acontecer a esse acontecido e todo um processo se desencadeia a partir daí, nós começamos a fazer o quê, exatamente? Nós começamos a desejar de uma maneira tal que estamos sempre atrasados diante do acontecimento. Nos sentimos atrasados. Nos sentimos injustiçados. Nos sentimos preteridos. Nos sentimos segregados. E começamos a reivindicar um preenchimento, reivindicar uma compensação, reivindicar uma justiça, reivindicar direitos, reivindicar uma verdade ou um ideal que nos salve. Nós nem sabemos direito o que é isso. Nós vamos precisar de uma organização social. Nós vamos precisar de um déspota, talvez. De um paranoico, de um líder religioso, de um líder político, de um líder publicitário. Nós vamos precisar de um guru. Nós vamos precisar de algum horizonte, alguma referência que nos tire do buraco. Nós não sabemos qual.
É aí que vai entrar a segunda captura. O papel da segunda captura vem exatamente da vida separada do que pode, tornada escrava e assujeitada, que vai então reivindicar uma salvação, uma compensação, uma justiça — divina ou humana, seja lá de que natureza, mas essa justiça estará identificada em um déspota ou uma autoridade. Pode ser um déspota paranoico-fascista, ou até uma autoridade democrática, depende muito do nível de formação e de atualização dessa formação social. Vai do déspota fascista ao democrata. Vai haver aí uma zona suficiente para manter essa altura, para manter essa representação, para manter essa dimensão de tutela sobre o direito de uma vida decaída, intoxicada, que busca uma salvação.
O desejo esburacado vai interpretar a si mesmo como origem do próprio desejo. Essa origem é a origem de um ser ensimesmado, de um ser encapsulado, de um Eu solipsista que vai, a partir da sua origem, buscar uma finalidade. E a finalidade é retomar o poder, retomar a autoridade, retomar o direito ao gozo, retomar aquilo que lhe cabe nessa existência, como um ideal que compensa o sofrimento e a sua miséria existencial.
Então aqui começa o círculo vicioso do desejo intencional. Um desejo intencional, então, vai de uma fixação interior de si, a partir de um acontecido que tomou o lugar da potência de acontecer, a um horizonte que estaria para lá do existente, um horizonte que seria ideal — e ideal, por definição, é o que não existe. O ideal é apenas uma referência para o existente. Então essa referência para o existente jamais vai fazer com que o existente se preencha, mas dá uma orientação para o existente. Essa referência se torna um modelo sem o qual não é possível comparar as vidas, não é possível julgar aquelas vidas que ameaçariam essa vida separada do que pode.
Aquele que ficou preso nessa intoxicação e no ressentimento busca no ideal uma referência, um termo de comparação dos existentes, para poder enquadrar os outros existentes que não atenderiam àquilo que ele espera, àquilo que ele necessita para compensar o seu modo de vida miserável. E esse enquadramento, operado a partir do momento em que o ideal emerge, precisaria de uma outra instância para investir no ideal. Nietzsche chama isso de sacerdote, quer dizer, o padre ou o sacerdote é quem vão inventar esse ideal, mas, na verdade, o padre ou sacerdote podem adquirir vários nomes. É sempre aquele que vai esculpir o ideal, a ficção do ideal como um meio de pôr as vidas em comparação e assim poder enquadrar, destituir, excluir ou submeter aquelas vidas que não se submente ao próprio ideal. Desqualificá-las, enquadrá-las e, ao mesmo tempo, submetê-las a um regime gregário de um suposto bem comum que é o bem que atenderia a todos os modos de vida que vão se tornando reativos. Esses modos de vida necessitam investir no próprio poder e no próprio ideal para se salvarem. Eles acabam fazendo aquilo que o Anti-Édipo chama de “desejar a própria repressão”. Reich já falava em desejar a própria repressão, e é o que um pensador lá do final da Idade Média, começo do Renascimento, La Boétie, chamava de “servidão voluntária”. Essa aberração do modo humano de existir que faz com que desejemos a nossa escravidão, que invistamos no poder despótico que nos submete e captura, como se se tratasse da nossa salvação.
Esse movimento do desejo intencional é tão sutil e profundo que pode envolver, inclusive, muitos movimentos de esquerda. É por isso que as esquerdas deveriam ser mais críticas de si mesmas: para poderem destituir o investimento em salvadores da pátria ou em líderes que, apesar de serem muito importantes em certos momentos, acabam se confundindo com um plano transcendente, muitas vezes, de organização. Nós não vamos nos salvar se não na medida em que formos capazes de produzir uma superfície, nos acoplar imediatamente a uma zona de passagem, podendo extrair dessa zona de passagem o alimento e o combustível para a criação de um modo de vida que gera novos valores, um modo de vida realmente autônomo. Aí, sim.
Seguindo, nós poderíamos dizer o seguinte… Eu vou aqui resumir, porque senão vamos nos estender demais. Nós poderíamos dizer que esse modo passional reivindicativo faz um mau uso do que lhe acontece. Um mau uso do mal que lhe acontece e um mau uso do bem. É um duplo mau uso do mal que lhe acontece e um duplo mau uso do bem que lhe acontece. Por exemplo: quando lhe acontece um mal, ou seja, ele se preenche de paixão triste, ele diminui a sua capacidade de existir, acontece o quê, exatamente? Ele se vitimiza, ele sente aquilo como uma injustiça. Aquilo que vem de fora o atinge como uma causa que o ameaça, que o decompõe, e ele identifica essa causa como a causa do mal. No entanto, essa causa é sempre imaginária, porque faz com que ele não perceba a sua cumplicidade. Aquilo não o atingiria se não tivesse algo de comum nessa relação. Ele não percebe a zona comum, ele só vê no outro a causa do seu mal. Como diria Sartre, “O inferno são os outros”. Ele se vê como vítima.
Esse é o primeiro mau uso do mal que lhe acontece: um uso piedoso, um uso vitimista de si, ele sente piedade de si, ele sente pena de si, ele se sente injustiçado e vítima. E o segundo movimento decorrente disso, o segundo mau uso do mal que lhe acontece é ter um desejo justiceiro, um desejo vingativo. Ele vai querer fazer justiça a qualquer custo, mas essa justiça, na verdade, se confunde com uma vingança. E essa vingança, como diria Nietzsche, é sempre imaginária, ainda que se passe algo de real com a vida de quem assim procede. Ela é imaginária porque identifica em um outro imaginário a causa do seu mal, e esse outro deveria ser eliminado. Mas ela não pensa, em nenhum momento, em fazer a lição de casa, em perceber que ela está sendo cúmplice daquilo que a está vitimizando, e que de alguma maneira há ali uma cumplicidade.
Reconhecer essa cumplicidade é o elemento essencial. Se não se reconhece essa cumplicidade — que não tem nada a ver com culpa, a culpa é movimento oposto, que não reconhece a cumplicidade — não há como fazer o movimento de libertação do desejo.
Eu vou deixar esse elemento para o momento em que eu falar do circuito intensivo de desejo, que seria fazer um bom uso do mal que nos acontece. Aqui então estamos no duplo mau uso.
Eu vou deixar esse elemento para o momento em que eu falar do circuito intensivo de desejo, que seria fazer um bom uso do mal que nos acontece. Aqui então estamos no duplo mau uso.
E qual seria o duplo mau uso do bem que nos acontece? O duplo mau uso do bem que nos acontece é, primeiro, um desejo que é preenchido de um prazer tal que nos acomoda. Em um bom encontro, esse bom encontro faz aumentar a nossa potência de existir, mas por acaso, de modo ainda passivo e passional; e à medida em que faz aumentar a nossa potência de existir, nós identificamos a causa desse aumento como esse outro que nós vamos amar, devotar-lhe amor, porque vamos ligar o nosso preenchimento de alegria a essa causa imaginária do aumento da nossa potência que seria o outro, e esse movimento do desejo seria amor. Nós amaríamos o outro, mas em qual sentido? No sentido de que precisamos que o outro se mantenha naquele lugar do aumento da nossa potência. Nós desejamos desesperadamente, e temos um medo incrível de que esse lugar seja destituído, que essa pessoa saia de lá. Nós desejamos desesperadamente que aquilo se mantenha naquela mesma posição, por isso nós amamos nos apropriando do outro e querendo exercer um controle sobre o outro.
Nós vamos fazer então o duplo mau uso do bem que nos acontece. Primeiro, nós vamos ser complacentes com o prazer que nos preenche. É um prazer que vai nos acomodar. É um prazer que vai fazer com que as forças de conservação em nós se tornem mais importantes do que as forças de criação. Nós vamos nos acomodar em uma conservação. É a complacência de um prazer que vai descarregar o nosso desejo intensivo, esse vai ser o primeiro mau uso do bem que nos acontece.
E o segundo mau uso do bem que nos acontece é esse desejo de manutenção do outro que supostamente faz aumentar a nossa capacidade de existir. Esse aumento da nossa capacidade de existir, atrelado ao controle do outro, esse desejo de controle, esse desejo de manutenção vai coincidir com um desejo de empoderamento. Então, o segundo mau uso do bem que nos acontece vai ser esse desejo de empoderamento. Mas esse desejo de empoderamento ainda não tem forma, assim como a complacência do nosso prazer ainda não tem forma. Assim como a vitimização ou a piedade sobre as nossas dores também não têm forma, e o sentimento justiceiro também não tem forma. Isso tudo acontece na primeira captura. Isso tudo acontece no mau uso que fazemos do bem e do mau que nos acontecem. No duplo mau uso que fazemos do bem e do duplo mau uso que fazemos do mal que nos acontece. Essa é a primeira zona de captura. Essa primeira zona de captura é constitutiva do nosso buraco, da coincidência da potência de acontecer ou da redução da nossa potência de acontecer ao acontecido em nós, e vai haver uma tendência de desejar de modo passional e reivindicativo. Vai reivindicar o empoderamento, vai reivindicar a justiça ou o movimento justiceiro, e vai sentir de modo complacente o seu prazer, e de modo piedoso a sua dor.
Esse movimento do desejo, que é passional e reivindicativo, vai investir uma instância paranoica, fascista ou despótica, que vai coincidir com o centro de soberania de uma sociedade. Nós vamos investir o poder que vai nos salvar. E aqui vão se criar circuitos viciosos do desejo, círculos viciosos de um desejo intencional. O desejo, agora separado de sua potência — e como ele é separado? Pelo duplo mau uso que ele faz do bem e do mal que lhe acontecem. Ele é separado por isso. Então é esse movimento do desejo sem potência que vai buscar o poder. Vai buscar uma potência que na verdade vai coincidir com um poder, com um empoderamento.
E esse investimento do empoderamento vai coincidir com uma formação social cujo centro de soberania necessita das vidas rebaixadas em nós. Então vai unir a fome com a vontade de comer. Esse segundo plano, essa segunda zona de passagem do desejo, essa segunda captura, que é a zona do empoderamento, vai ter então o investimento direto da máquina social sobre as máquinas desejantes, usando a linguagem de Deleuze e Guattari no Anti-Édipo. Um centro de soberania que investe o nosso desejo, o nosso modo de existir. Uma vida separada do que pode vai investir o poder, a autoridade e o direito ao gozo. E essa instância de soberania vai fazer o papel de guarda-chuva, guarda-sol, salvador, provedor de uma vida que seria insuficiente por si só.
E aí o círculo se fecharia. Isso constitui não só um círculo vicioso do desejo intencional, mas o sistema do juízo do sujeito moral e do sujeito de conhecimento. É todo um sistema de juízo que é instaurado e formalizado aí. E, uma vez que isso toma forma nesse segundo plano que é a segunda captura, o sistema funciona. Até, claro, se exaurir, se esgotar, porque isso uma hora esgota.
Como quebramos esse círculo vicioso do desejo intencional? Primeiro, fazendo um bom uso tanto do mal quanto do bem que nos acontece. O que seria fazer um bom uso do mal que nos acontece? Fazer um bom uso de um mal que nos acontece — de um mal obviamente inevitável, porque, se você pudesse evitar o mal, você evitaria. O bom uso do mal… Primeiramente, o que seria primeiro mau uso do mal que nos acontece? O uso piedoso da dor. O que seria um bom uso da dor? Encontrar o seu sentido alegre. E aí, em vez da piedade, nos relacionaríamos com a crueldade, só que a crueldade que emerge daqui não é uma crueldade do ódio. A crueldade do ódio é aquela do justiceiro, da vítima que depois quer se vingar. Esta é a crueldade do ódio. Essa outra crueldade, que se contrapõe à piedade e ao mau uso da dor — que é um uso triste, que encontra um sentido triste para a dor —, faz o contrário, vai encontrar o sentido alegre da dor. Vai ver na dor uma aliada, vai ver na dor uma ocasião de produzir uma distância sem a qual não retomamos a nossa potência de acontecer.
Então esse uso afirmativo e alegrador da dor, encontrar o seu sentido alegre e dizer assim “Olha, eu estou sofrendo porque, no fundo, eu não criei a distância, e a distância está sendo criada à medida em que eu não criei”. Ela é necessária. E quando essa distância é criada, você faz a diferença entre o acontecido e a sua potência de acontecer. Você resgata a sua potência de acontecer. Esse é o sentido alegre. Você aproveita aquela dor para entrar em variação e abrir um novo horizonte de acontecimento. E aí você não vai precisar fazer o segundo mau uso, que é o uso justiceiro, porque você vai entender que havia uma cumplicidade em você, e você pode criar uma nova maneira de se compor, inclusive com aquilo que te fazia mal. Ou seja, com algo daquilo que te fazia mal, segundo uma outra maneira de ver. Perceber a zona comum sem a qual aquele mal não te atingiria. Mas pela zona comum não pode te acontecer mal. Pela zona comum só pode ter afirmação e dupla afirmação, tanto de você quanto da força que te atingiu.
Então você aprenderia, inclusive, a agradecer esse mal que não te matou e te deixou mais forte. Esse seria já aquilo que eu chamo de “passo atrás”. Em vez de você se apressar em sentir piedade de si mesmo, você encontraria um sentido alegre da dor. Em vez de você julgar de modo justiceiro, você usaria essa dor para diferenciar, encontrar uma zona comum, e criar uma nova maneira de se relacionar com essa força que te atingiu. Incorporar a força do inimigo em você.
E qual seria o bom uso do bem que te aconteceu? O bom uso do bem que te aconteceu não é um uso complacente, primeiramente, do prazer. O prazer, em vez de te entorpecer, em vez de te acomodar, em vez de ser um bálsamo do seu desejo e descarregar a tensão intensiva do seu desejo, te livrar do desejo, ele, na verdade, vai extrair uma intensidade. Então, da mesma forma que eu tenho que extrair uma força ou uma intensidade do mal que me aconteceu — por exemplo, ao encontrar um sentido alegre da dor, eu estou extraindo força dali. Criar uma nova maneira. Em vez de julgar o outro, eu estou extraindo uma força dali, uma intensidade dali. Então eu estou extraindo intensidade do mal que me aconteceu. E estou extraindo uma intensidade do bem que me aconteceu. Por exemplo: em vez do bem me acomodar, eu vou extrair uma intensidade desse prazer que vai gerar mais desejo em mim, vai intensificar o meu desejo.
Ao mesmo tempo em que eu não vou precisar investir no controle do outro que supostamente me faz bem, porque eu vou extrair mais potência em vez de buscar o empoderamento. Eu vou me preencher de uma diferenciação de mim mesmo. A diferenciação da minha potência que gera um plus de potência. Eu vou me potencializar, em vez de querer me empoderar. Esse seria o duplo bom uso do bem que me acontece. E às vezes é mais perigoso o bem que me acontece do que o mal que me acontece, porque o bem que me acontece me seduz, ele não me coage. Aquilo que me coage torna mais fácil dizer assim, “Isso é meu inimigo, eu não quero ser coagido”. Mas aquilo que me faz bem pode me acomodar, pode me comprar, pode me iludir, e eu vou querer me manter ali ligado, lambendo o saco do tirano, digamos assim. Lambendo as botas do tirano. Sendo, inclusive, um adulador do poder, porque aquilo me acomoda, aquilo é um bálsamo para minha existência miserável, aquilo é um aliviador da existência e é um compensador.
Então, extrair força do bem que me acontece é ainda mais importante, porque o bem que me acontece é onde eu mordo a isca. Eu mordo a isca e faço as prestações de serviço ao poder e me torno funcionário de um outro que supostamente me salvaria. Essa segunda maneira, agora ligada ao bem que me acontece, ao bom uso do bem que me acontece, extrair intensidade e força do bem que me acontece, é o caminho para que o potencial em mim se apresente na superfície. Em vez de um desejo sem potência, buscar uma altura ideal. Agora é o potencial em mim que encontra um modo de se compor com os outros potenciais, e se conecta. O desejo quer fazer conexões. Quanto mais conexão ele faz, mais em variação ele pode entrar; e quanto mais em variação ele pode entrar, mais ele pode se diferenciar de si mesmo, mais ele cria tensores e tensões, e se intensifica, mais realidade ele adquire. E, ao mesmo tempo, mais realidade ele sente de si mesmo. Ele sente o real que aumenta nele, ao mesmo tempo em que ele sente a potência de abarcar mais realidade e fazer coexistir, em um circuito intensivo de desejo.
Ou seja, desejar agora a partir dessa potência que se apresenta na superfície de cada potencial dessa potência, cada linha de acontecimento, cada conexão do desejo que faz com que um potencial se apresente na superfície. Aí se estabelece um circuito intensivo de desejo. E esse circuito intensivo de desejo cria em nós uma autossuficiência. Não para nos isolarmos, muito ao contrário. Quanto mais somos autossuficientes, mais nos misturamos e nos relacionamos com as multiplicidades de fora. Fazemos com que as multiplicidades de fora entrem em contato direto com as multiplicidades de dentro. O dentro e o fora se tocam, além ou aquém da representação ou das mediações. As representações sensíveis, racionais e passionais passam a ser efeitos que servem como adubo ou como fantasmas brincantes, como delírios e alucinações e divertem o desejo, mas não têm mais nenhuma ascendência e nenhum comando sobre nosso modo de existir.
Aqui o circuito intensivo de desejo faz com que nós desconstruamos tanto o duplo mau uso do bem e do mal que nos acontece na primeira captura, quanto esse falso movimento, ou esse movimento de uma falsa liberação que investe no empoderamento. E aí sim ele sai do buraco e se apresenta em uma superfície. À medida em que ele se apresenta, o que é a superfície? É se relacionar com os outros, se relacionar com o fora de modo imediato, sem a mediação de uma lei, de um ideal, de uma verdade ou de uma forma prévias, mas apreendendo as próprias potências nos encontros, que não têm nenhuma previsão ou previsibilidade, mas têm um horizonte comum. O horizonte comum é a condição de relação ou de mistura. Esse horizonte comum, essa zona de passagem é o princípio afirmativo de toda a potência e de todo vivo, é o que afirma imediatamente as nossas diferenças. É isso que é comum a todos nós. Comum a todos nós é o sentido de diferenciação da própria potência.
Quando nós atingimos isso que eu chamaria de outra maneira de comunal, ao mesmo tempo nós nos colocamos em processo de diferenciação. É esse processo de diferenciação que gera aquilo que há de único em nós. Nós nos tornamos únicos. Não há substituto para o nosso modo de existir. Nós não somos mais trocáveis, não há mais uma axiomática da troca, uma axiomática generalizada de uma troca. Ao contrário: nós somos insubstituíveis. E cada movimento do desejo cria uma distância de si para consigo mesmo, e aumenta a nossa multiplicidade qualitativa. Vai haver mais elementos heterogêneos dentro de nós mesmos, em um movimento rizomático do desejo — eu usaria aqui um termo de Deleuze e Guattari.
O circuito intensivo do desejo implica um movimento rizomático. Ou seja, cada ato que atualiza e diferencia a potência faz retornar sobre a própria potência um plus de potência, e esse plus de potência se relança novamente para um novo ato, criando superfície, criando o comunal, mas, à medida em que cria o comunal no extremo meio de si mesmo, faz com que o próprio desejo brote como um novo caminho de diferenciação da potência e estabeleça um novo circuito. Assim nós vamos criando circuitos sobre circuitos e, ao mesmo tempo em que há circuitos sucessivos, esses circuitos vão coexistindo em um outro plano. A coexistência dos circuitos de desejo, agora de modo intensivo, preenche o nosso corpo — que não é mais meramente um corpo orgânico, mas é um corpo de potência, um corpo sem órgãos (para usar a expressão de Artaud, cara a Deleuze e Guattari), que agora se preenche de intensidades. Um corpo agora que se torna pleno porque preenchido de intensidades e não mais esburacado, buscando uma compensação exterior.
Esse circuito intensivo de desejo faz com que conquistemos uma nova maneira de nos conduzirmos na existência, faz com que invistamos em uma micropolítica do desejo, tomando a vida nas próprias mãos. Isto é, criando as próprias condições de existência, em vez de buscar as condições ideais, em vez de reivindicar uma condição ideal, em vez de ficar apontando o dedo para o outro — e até para si, muitas vezes, dizendo assim, “Não observamos suficientemente o ideal. Você é um perverso, você é um desviante do ideal”. Não precisamos disso. O foco principal é essa afirmação que acontece pelo meio. E a afirmação que acontece pelo meio faz com que a diferença se diferencie. E a diferença, ao se diferenciar, ela gera valor.
Então nós não só vamos conquistar essa superfície, essa zona de passagem do nosso desejo, do nosso corpo e do nosso pensamento, encontrar esse plano comum dos encontros de modo imediato, vamos ligar novamente a nossa potência à potência de acontecer, nessa zona de passagem, como também, ao ligar novamente a nossa potência de acontecer a essa zona de passagem, nós vamos ter a oportunidade, a ocasião de nos pormos em diferenciação. Isso seria a quarta zona de passagem.
A quarta zona de passagem é quando, além de novamente nos ligarmos à nossa potência de acontecer, nós acontecemos criando realidade. E criar realidade é, inclusive, criar e fabricar o próprio inconsciente que ultrapassa a consciência que temos do nosso pensamento e o conhecimento que temos do corpo. Atingimos outras camadas do real, outras dimensões do real. Agora o real não mais como camadas estratificadas, mas um real com N dimensões. Um real com N dimensões, menos uma dimensão, diriam Deleuze e Guattari no início do Mil Platôs. Menos uma, que seria a dimensão que quer se arvorar e ser a única. Como diria Nietzsche, os deuses morreram de rir quando um deus se arvorou à suposta verdade, à ficção de que ele era o único. Os outros morreram de tanto rir. E nós morremos de rir quando uma dimensão quer se sobrepor a todas as outras. Há infinitas dimensões do real, menos uma, que é essa dimensão do uno, da transcendência, do Estado, de uma verdade ou de uma forma ideal que quer se sobrepor a todo campo de forças e toda zona potencial do real. Nós agora nos relacionamos com N dimensões, e não mais com as formas do múltiplo submetidas ao uno.
Gente, olha, nós estamos chegando aqui ao final. Eu acho que só faltou eventualmente eu desenvolver um pouco mais o movimento micropolítico de desejo ligado ao modo passional-reivindicativo de um lado, e paranoico-fascista de outro, que fecha esse circuito do círculo vicioso do desejo intencional.
Há sim, uma micropolítica aí também. É por isso que não adianta atacarmos os poderes estabelecidos sem confrontar os modos de vida, e por que essas vidas, separadas do que podem, necessitam investir o próprio poder. Não adianta você falar mal do poder. Não adianta você atacar o poder se você não ataca a própria impotência sem a qual o poder não se alimenta. Assim como uma célula cancerígena necessita de um certo tipo alimento, e para você vencer um câncer, você precisa deixá-la em uma condição de inanição, assim nós precisamos deixar o poder em uma condição de inanição. Mas para deixar o poder em uma condição de inanição, nós temos que deixar de ser cúmplices, porque o que alimenta o poder é a cumplicidade do nosso modo de existir, uma vez que estamos separados do que podemos e nos perdemos nesse processo. Criar visões é fundamental, mas visões que se tornem acontecimentos da nossa potência. Isso tudo é essencial para que comecemos a tomar a vida nas próprias mãos. E isso não é um processo meramente individual. Isso remete, como eu disse, ao modo de vida. E o modo de vida implica uma imediata relação com o coletivo ou, melhor ainda, com as multiplicidades de dentro e de fora de nós mesmos. É o que faz com que ultrapassemos o Eu e o outro, e uma dimensão supostamente unitária do real.
Então é isso, gente. Nós estamos aqui praticamente há uma hora e meia, que foi mais ou menos o que eu prometi fazer nesses encontros. Estamos aqui no nosso terceiro encontro, finalizando esse terceiro encontro. O nosso quarto encontro será sobre o corpo sem órgãos e o adoecimento do desejo, da mente e do corpo. Vamos focar em algumas patologias do desejo, como, por exemplo, a própria depressão.
Então nós vamos fazer aqui um mergulho sobre esses circuitos do círculo vicioso do modo intencional de desejar, como ele esburacam o desejo e o corpo sem órgãos, e como o corpo sem órgãos vai sendo sistematicamente não só esburacado, como esvaziado. Ele se torna oco, vazio de intensidades e há uma sabotagem do desejo que leva tanto para a paranoia quanto para a depressão. Esse aspecto crítico nós vamos desenvolver na quarta aula.
E na quinta aula nós vamos focar no aspecto afirmativo de um corpo pleno sem órgãos. Então nossa quarta aula vai focar no esburacamento e no esvaziamento do corpo sem órgãos, que vira um corpo esburacado e esvaziado; e na quinta aula vamos focar na plenitude, no modo de fazer o preenchimento, a maneira de viver que gera intensidade e que preenche esse corpo sem órgãos com intensidade e o torna pleno.
Então é isso. Eu espero que vocês tenham aproveitado assim como eu. Sempre me alegro muito em poder compartilhar isso com vocês, disseminar esse pensamento, essas visões, para que a nossa vida, cada vez mais, ganhe esse movimento de um devir ativo, criador de real. Nós podemos fazer isso. Nós podemos mudar radicalmente a nossa maneira de viver. E há um caminho necessário, como eu digo sempre, é necessário e urgente, mas esse caminho é preciso ser encarado, é preciso começarmos. Começarmos, no mínimo, a nos preparar, porque se dissermos “Ah, não estou ainda preparado” …. Mas em algum momento você precisa começar. Então comece já a preparação. E essas aulas, eu espero que elas ajudem nesse processo de preparação. São uma preparação para um mergulho ainda maior e mais decisivo para a vida de cada um de nós. Nós podemos, sim, ter um modo pleno de vida, alegrador, afirmativo, criador do real e criador de si mesmo.
Tá bom, gente? Olha, prometo de novo que eu vou ler aqui tudo, todas essas manifestações extremamente carinhosas que eu vejo aqui, rapidamente, en passant, aqui no chat. Como eu disse, a Julia tem me ajudado a extrair o chat e aí eu vejo não só o resumo das questões que realmente se tornam questões, como eu acabo vendo os comentários e as manifestações mais singelas que aqui aparecem. Então é isso.
No nosso próximo encontro, eu vou continuar gerando aqui conteúdos que também contemplem as dúvidas e as questões que aparecem aqui no chat. Tá bom? É isso? Vamos embora, então? Tenham uma ótima noite, uma ótima semana, e até o próximo domingo, dia 10 de julho. Grande abraço, grande beijo a todos e a todas, e até o próximo encontro.
Transcrição por Gabriel Naldi