Aula 3 – Curso de Introdução à Esquizoanálise
Por Uma Clínica da Vida, com Luiz Fuganti
[Luiz Fuganti]: Boa noite! Boa noite, gente! Muito prazer, de novo aqui. É um prazer. Muito prazer, muita alegria estar aqui com vocês novamente para o nosso terceiro encontro do Curso de Introdução à Esquizoanálise.
Que alegria. Vejo de novo que tem uma galera boa aqui, já. Pessoal aquecido no chat, muita gente dando as boas-vindas, boa noite. Boa noite a todos aí que estão manifestando cumprimentos aí no chat.
E hoje nós temos uma tarefa que vai nos fazer avançar bastante sobre o que nós denominamos de método na esquizoanálise, que tem uma abordagem muito sui generis, a partir disso que eu denominei “as quatro passagens”. Nós vimos aqui, desde o início, a distinção entre as passagens, ou planos de realidade, através dos quais o desejo passa e se transmuta ou eventualmente até se transforma. Às vezes ele se transforma, às vezes ele se transmuta.
Nós, hoje, vamos trabalhar então sobre a terceira passagem. Nós estamos no nosso terceiro encontro, de quatro programados. Para quem está chegando agora, tivemos um no dia 20 de junho, outro no dia 27 de junho, e hoje, no dia 4. Os três aconteceram em um domingo, às 19 horas, e o nosso próximo encontro será em um sábado, também às 19 horas, exceto que não faremos em um domingo, mas sim em um sábado.
E nesses quatro encontros nós pensamos, então, em expor essas passagens, que são, de alguma maneira, extraordinárias. Passagens pelas quais uma mudança muito essencial acontece. Uma mudança no nosso modo de viver, a partir do modo mesmo de desejar, que implica, por consequência, um modo de sentir, de agir e de pensar. Essas passagens, nós denominamos inicialmente como primeira captura: a passagem que faz com que o desejo seja capturado pela primeira vez e sofra uma queda.
Depois, a segunda passagem, que também implica uma captura, uma segunda captura, que é a passagem pela qual o desejo se esforça, depois de sofrer essa queda, se elevar novamente. E nós denominamos essa segunda passagem, essa segunda captura, de empoderamento. Desejo de empoderamento.
Uma terceira passagem é exatamente a que vamos tratar hoje, que é quando, de alguma maneira, o desejo retoma a sua condição de autonomia. A condição de autonomia é ou emerge quando o desejo retoma o seu campo de imanência, o seu plano de imanência, onde fica evidente que o desejo não tem objeto, que o desejo, na verdade, se preenche de acontecimento. E também fica evidente que o desejo não tem sujeito, mas o que deseja através do desejo é a própria potência, e não um sujeito.
Então aqui, nessa terceira passagem, nós vamos reconquistar ou mesmo criar as condições para que o nosso modo de viver retome a realidade no seu plano mais imediato, sem mediações. Nós denominamos essa terceira passagem de superfície, ou simplesmente zona comum de passagem. E essa passagem faz com que o desejo novamente emerja do buraco onde ele havia caído, e também, ao mesmo tempo, despenque das alturas empoderadas de onde ele tinha se pendurado.
A terceira passagem é a condição, portanto, para a emergência da potência ou para a religação do desejo ao que ele pode, à sua potência e à sua potência de acontecer. Portanto, a sua potência de acontecer não será mais fraudada por um ideal, por um universal, por uma lei, por uma verdade, por uma normatividade. Esse momento é o momento em que toda a idealidade vai passar a emergir do acontecimento.
E nós ainda vamos falar de uma quarta passagem, à qual será dedicado o nosso quarto encontro. O nosso quarto encontro falará da passagem do desejo para a sua potência de diferenciar, ou de criar realidade, ou criar valor, a partir mesmo da conquista ou da reconquista da superfície. E essa quarta passagem é quando, portanto, o desejo se eleva não só à sua potência de acontecer, mas à sua mais alta potência de criar real. Potência de diferenciar.
Então, a quarta passagem sempre esteve aí. A terceira passagem sempre esteve aí. Assim como a segunda e a primeira passagens. Em verdade, essas quatro grandes passagens não acontecem, como eu já disse nos encontros anteriores, de modo linear ou cronológico, em uma sucessão linear e cronológica no tempo, mas ela acontece em um plano comum de encontros e, portanto, de coexistência. A própria superfície, que é essa terceira zona de passagem, faz com que tudo coexista. Coexista a partir do modo como o desejo se efetua. Então, eventualmente, quando o desejo é capturado, ou cai pela primeira vez, ele não deixa de se relacionar com a superfície, e mesmo com esse horizonte criativo, esse horizonte criativo que seria a quarta passagem, mas isso fica submetido, isso fica subjugado, isso fica em segundo plano, ainda que isso aja através de nós. Ainda que, se nós não mais agimos, somos agidos através disso. Se não mais diferenciamos, somos diferenciados através disso. Se não mais criamos, somos criados através disso.
Então, essa realidade, é impossível que ela desapareça. Ela sempre esteve aí e sempre estará. Isso faz parte de um plano de eternidade. A zona de passagem que é ao mesmo tempo a condição da diferenciação.
Eu recebi algumas questões, ou muitas questões até, por e-mail, e também as questões que foram expostas aqui no chat, da aula anterior e da aula primeira ainda. Nós vamos contemplá-las no último encontro. E se não der tempo de fazer isso no último encontro, faremos um encontro extra. Eu prometo que eu vou cuidar das questões que chegam. Vamos interagir com isso que preocupa vocês, com aquilo que incomoda ou perturba o pensamento de cada um de vocês, para que possamos facilitar, criar saídas e desmistificar. Desmistificar ideias que já são um tanto correntes. Claro, propagadas por gente que não tem interesse que a esquizoanálise siga operando. E esses, na verdade, são aqueles que mais têm interesse na multiplicação das paixões tristes e dos poderes estabelecidos. E aqueles também que estão preocupados em guardar lugares, guardar titularidades, guardar atos que seriam designados por um poder estabelecido, com exclusividade para uma certa função.
A análise não é propriedade de uma psiquiatria, de uma psicologia ou de uma psicanálise. A análise é efetuada, exercida pela potência do pensamento. É a potência do pensamento que legitima toda a análise. E então nós de modo algum devemos ficar reféns de instâncias que reconhecem esta ou aquela autoridade. Nossa questão é o campo de forças. O que vale uma ideia, o que vale uma visão, o que vale uma prática. Coloque-a no campo de forças e veja o que ela pode.
Então, a esquizoanálise vem para libertar o desejo. Ela tem… se existe um idealismo na esquizoanálise, é esse ideal libertário, que é um ideal que vem do próprio acontecimento. Não é um ideal transcendente, não tem um valor de verdade, tem um valor de gosto, de desejo. É uma visão ético-estética. É um gosto, portanto. É uma estética e é uma seleção, portanto é uma ética de uma maneira de viver que não faz concessões, de uma maneira de viver que sabe que ao desejo nada falta, que sabe que o inconsciente é uma usina, uma fábrica de produzir realidade, e não um teatro, um teatro de introjeções e projeções fantasmáticas de uma vida miserável e separada do que pode.
A esquizoanálise, claro, vai sempre, de alguma maneira, sofrer ataques —como tudo, né? Mas um dos ataques mais recorrentes é que a esquizoanálise é algo hermético demais ou, eventualmente, até um pensamento elitista. E eu já dizia no nosso último encontro: não podemos deixar por menos. Não podemos investir em um pensamento esquemático e simplista, quando a realidade é complexa e cheia de nuances, extremamente rica em nuances, em detalhes, em sutilezas.
Então seria uma leviandade, seria uma violência esmagar a realidade com um pensamento esquemático ou que facilitaria demais para que todos tivessem acesso fácil a esse pensamento e também colhessem os benefícios dessa prática clínica.
É claro que a qualidade que daí emergiria obviamente seria uma qualidade à altura da própria simplificação. Ou seja, não valeria a pena. Então, nós precisamos deixar de ser acomodados, nós precisamos investir no pensamento. Nós precisamos estudar, pesquisar, nos dedicar. Todos têm condição ou podem criar ou conquistar as condições de acesso a esse pensamento. Esse pensamento não é feito para gênios ou para poucos. Todo gênio, na verdade, implica um desejo intenso, um envolvimento intenso. Então só depende de nós, depende de cada um de nós esse envolvimento inteiro, esse mergulho para desfazer as prisões que capturam e rebaixam a vida humana. Não é fácil. Se fosse fácil, nós, as sociedades não estariam operando, existindo de um modo tão rastejante, desqualificado, subestimando as próprias forças.
Nós vivemos em formações sociais que desprezam as potências mais interessantes da vida. E não é por isso, então, que nós devemos jogar a toalha e dizer “ah, as formações sociais nos impedem de viver e só quando houver algum dia uma revolução nós então poderemos ter uma vida feliz”. Enquanto isso, as nossas gerações e as anteriores se sacrificaram e se sacrificam para que um dia nossos filhos possam ter vidas livres. Isso é uma bobagem. Isso é uma tolice imensa. Nós podemos, aqui e agora, ser livres. Nós podemos, aqui e agora, praticar o pensamento plenamente afirmativo, a força plenamente ativa, o desejo plenamente pleno ou preenchido de intensidades ou de alegrias ativas.
Então, não precisamos fazer esse sacrifício. Mas, para isso, precisamos investir. Investir no pensamento. Investir na experimentação. Nos implicar nas questões que envolvem nossa maneira de viver. Porque se tudo está como está, isso está como está não por acaso. Isso está como está porque nós desejamos dessa maneira. Eu insisti, nos dois primeiros encontros, que não faremos nada enquanto não encontrarmos o nosso desejo, implicado nisso que sustenta aquilo que combatemos. Nós temos uma cumplicidade fundamental. Então, essa desconstrução de nós mesmos é fundamental.
Por isso são tão importantes as duas primeiras passagens, que eu denominei de duas primeiras capturas do desejo. Se não cuidarmos disso, se não reconhecermos essa dupla queda; uma que é mais difícil, inclusive, porque ela se traveste de elevação, que é a segunda captura, a do empoderamento. Se nós não reconhecermos isso, nós não vamos perceber que o nosso próprio modo de existir é que sustenta esse estado de coisas. Nós somos um conjunto de desejo e crença que sustenta toda a maquinaria social. E há nessa maquinaria uma produção desejante. Portanto, uma replicação. Há uma produção e uma reprodução do modo de desejar. Essa máquina social está sempre repondo os seus quadros. Uma vez que os quadros morrem um desaparecem, ela tem que repor. Essa reposição dos quadros implica os seus dispositivos de poder e as suas formações de saber, para falar ao modo de Foucault.
Então não adianta querermos simplificar. A visão não é dualista. Não é meramente uma luta de classes. A visão que devemos ter não é binária, não é biunívoca, não é dicotômica, não é dialética. A dialética esmaga demasiado as nuances do real. O real tem muito mais sutilezas e nuances do que a dialética quer nos fazer crer. Então, há um pensamento da pluralidade, um pluralismo radical muito mais profundo e mais importante do que uma lógica dialética. A lógica dialética não dá conta do real. A lógica dialética precisa transformar toda diferença em oposição para que ela possa operar. E nós vimos já, no nosso último encontro, o quanto isso tem a ver com o ressentimento. O quanto isso tem a ver com o modo reativo de viver.
Enfim, então… nós precisamos desmistificar a ideia de que a esquizoanálise seja algo demasiado complexo, demasiado elitista, demasiado inacessível. É preciso que a gente se responsabilize, que a gente tome em nossas mãos a responsabilidade de levar o pensamento mais longe. Não devemos nivelar por baixo. Se outros não vão, por que teríamos que esperar? Porque teríamos que ser pedagogos, esperar que todo mundo tenha acesso, para aí ir junto, em um coletivo nivelado por baixo? Se isso for necessário, nós estamos perdidos. É necessário que aqueles que podem, avancem. E nessa mesma medida em que podem avançar, também distribuam o seu pensamento, distribuam o seu modo de pensar, de sentir, de agir, de experimentar, de viver, para que outros tenham acesso cada vez mais rápido.
O que nós precisamos não é nos dedicar ao futuro da revolução. O que nós precisamos com urgência, com a mais alta necessidade, é já entrar ou conquistar um devir revolucionário. Entrar em um devir revolucionário. Conquistar esse devir revolucionário. Fazer do nosso cotidiano um devir revolucionário. Então, para isso, é necessário que a gente se dedique, que a gente estude, que a gente pesquise, que a gente se aprofunde, que a gente invente dispositivos e operadores práticos, porque a realidade está sempre por ser inventada, mesmo que esses pensadores tenham criado muita coisa, mesmo que nós já tenhamos operadores e dispositivos práticos à nossa disposição. Esses operadores e dispositivos estão sempre entrando em uma linha diagramática do real segundo o momento histórico, social e político em que vivemos. Então, isso vai se modificando e nós precisamos estar sempre renovando nossas armas, inventando novas armas de combate.
O combate, portanto, é uma dimensão essencial. O combate é a dimensão crítica, que denominamos aqui nesse modo de expor o pensamento e a prática da esquizoanálise. A dimensão crítica opera, portanto, uma dupla desconstrução. A desconstrução da primeira captura e a desconstrução da segunda captura. Nós denominamos isso logo no primeiro encontro, se não me engano. Ligamos isso ao “não do leão”, que aparece na obra do Zaratustra, do Nietzsche. Quando o espírito se torna camelo, quando o camelo se torna leão, e o leão, por fim, criança. O “não” do leão é o “não” de uma crítica não ressentida, o “não” de um combate necessário, o “não” de um combate que não cessa.
Essa desconstrução é fundamental, mas esse combate começa, essencialmente, pelo nosso modo de viver. Ele começa, essencialmente, quando detectamos as nossas cumplicidades. O combate, muito mais do que um “combate contra”, que obviamente existe e sempre vai existir, mas que deve existir por efeito. Efeito do quê? De um “combate entre”. O combate, então, muito mais do que um “combate contra”, é um “combate entre”. Entre o quê? Entre as nossas forças que nos constituem.
Nós somos feitos de forças ativas e forças reativas. Então, é necessário que retomemos uma espécie de hierarquia da saúde do desejo em nós. A hierarquia da saúde do desejo em nós. Se fôssemos inventar uma norma, como diria Nietzsche, o “normal”, do ponto de vista da saúde e da vida ativa, é quando a força ativa é dominante em relação às forças reativas. As forças reativas são necessárias, mas elas são funções das forças ativas. As forças de conservação são necessárias, mas são funções das forças de criação. Elas devem ser agidas, e é isso o que deve se passar.
Nós vimos no último encontro o desenvolvimento da segunda captura. O desenvolvimento da segunda captura só se dá à medida em que a primeira captura está estabelecida, digamos assim, está instituída. E qual é a primeira captura? A primeira captura do nosso desejo é quando, em nossa potência de acontecer, acabamos valorizando demais, dando crédito demais ao que nos aconteceu. O acontecido do acontecimento tende a tomar a nossa potência como um todo e reduzir a nossa potência, e nós ficamos presos a isso que nos aconteceu. E por quê? Porque, de alguma maneira, o acontecido é determinado por uma força que vem de fora.
Nós, à medida em que somos passivos, sofremos uma modificação produzida pelo encontro com uma força que vem de fora, seja um bom encontro, seja um mau encontro. Essa determinação que vem de fora faz com que valorizemos demais. No bom encontro, faz com que supervalorizemos o bem que aquilo que nos faz; no mau encontro, que supervalorizemos o mal que aquilo nos faz. Então nós aprendemos a deformar o real, a supervalorizar no bom encontro e a subestimar ou supervalorizar no mau encontro. E essa supervalorização tem uma implicação de uma subestima também. Há uma subestima no sentido de que aquilo que nos faz mal não é mais considerado como uma força necessária. É considerado simplesmente como uma entidade que deve ser eliminada. E então essa supervalorização da dor acaba implicando em uma desqualificação do real, porque toda dor e tristeza e mau encontro se dão porque nós somos parte da natureza no meio de outras partes e não estamos suficientemente preparados para nos relacionar com essas partes que nos afetam. E, nessa mesma medida então, acreditamos que existe um tipo de realidade que é má e que deve ser excluída do real.
Mas toda realidade, mesmo essa que consideramos má, é uma realidade que deve ser considerada naquilo que ela é. E ela é sempre algum tipo de força, e uma força sempre tem algum tipo de necessidade. Se não chegamos aí, nessa inocência do real, não vamos sair do ressentimento.
Então, esse modo de ser capturado, na primeira captura, por supervalorizar um afeto que nos mantém na paixão, seja na dor, seja no prazer, seja na tristeza, seja na alegria, implica então um mau uso daquilo que nos acontece. E esse mau uso, em última instância, resumindo, é a confusão do acontecido com a nossa potência de acontecer. O acontecido tomou o lugar da nossa potência de acontecer.
Ora, é aí que começa a se formar ou se produzir um modo de desejar. Um modo de desejar que vai estar na base de toda a sociedade que cultiva centros de soberania, que cultiva uma máquina social, que cultiva um Estado. Não há sociedade com centro de soberania, não há sociedade com Estado que não implique uma captura do desejo e, portanto, já essa primeira captura. A primeira captura é uma condição para que esse centro de soberania cresça. Esse centro de soberania só cresce, só é investido à medida em que é constituído por esse modo rebaixado de desejar, por esse modo que deseja a partir do acontecido em nós. Isso é essencial e foi isso que fez com que nós, no último encontro, investíssemos um pouco mais, ou mais, na verdade. Investíssemos mais na segunda captura a partir da constituição da primeira captura.
Esse aspecto é decisivo, porque uma das críticas que se faz à esquizoanálise é obviamente ilegítima, crítica absolutamente ilegítima. Inclusive uma crítica que aparentemente levaria a se ter uma ideia falsa de que a esquizoanálise simplesmente não vai fazer uma distinção clara entre esquerda e direita. Obviamente que há uma visão de esquerda profunda. A esquizoanálise é profundamente de esquerda. Esquerda bem naquele sentido que diz Deleuze: não há governos de esquerda. Existem governos que são mais simpáticos às causas da esquerda. Ser de esquerda é, como diz ele, uma questão de percepção, muito mais do que de ideologia. É uma questão de modo de vida. Ser de esquerda é uma questão de estar sempre em devir. E todo devir é minoritário. Jamais o devir se torna o conjunto de uma maioria. Quando a maioria se instala, o devir já não está mais, ou o devir reativo é que domina tudo.
Então, a questão da esquizoanálise, muitos às vezes fazem essa… colocam em dúvida em que sentido seria mesmo de esquerda ou não a esquizoanálise. Eu diria antes de tudo, antes de tudo, que a esquizoanálise, assim como o pensamento nômade, a filosofia da diferença, a filosofia da imanência, são modos de pensar — e de viver, portanto — que focam imediatamente no meio, mas o meio é um meio extremo, não é um meio mediano, não é o meio medíocre, não é o meio de quem é neutro, não é o meio de quem está no meio da esquerda ou da direita, não é p meio de quem está no meio das classes, no meio das raças. Não é o meio daquele liso que quer encontrar uma terceira via que, na verdade, é aquela via medíocre que corrobora com tudo o que está estabelecido.
Esse meio extremo, nós somos do extremo meio, mas é esse extremo meio que faria uma espécie de extrema esquerda, que não tem nada a ver com esquerda ditatorial, com esquerda autoritária, com esquerda que prega o Estado, que prega, enfim, revolução armada, mas é de uma não-concessão. A esquizoanálise é um pensamento que não faz concessão à representação, que não faz concessão ao dualismo. Então, ser de esquerda não implica em fazer polarização com a direita, porque a direita, a rigor, é tudo o que está estabelecido. Ser de esquerda, a rigor, é tudo o que está em devir. Então esse é outro mal-entendido que emerge de críticas demasiado rápidas ou rasteiras, ou que precisam sempre trazer um certo pensamento prioritário de organização dos movimentos e de investimento em um Estado, em um Estado que valorizaria mais o público do que o privado. Tem muitos equívocos aqui.
Eu peço àqueles que ainda têm dúvidas a respeito, que tenham cuidado, tenham calma e busquem se aprimorar, se aperfeiçoar, se aprofundar no pensamento, perceber que tudo é muito mais sutil e mais radical, é mais profundo do que essas dualidades fáceis, do que esses dualismos rasos que o pensamento dialético e mesmo o que está reduzido à consciência opera. Nós precisamos conquistar uma outra maneira de pensar, uma outra maneira de usar a linguagem. Então isso faz parte da desconstrução da primeira e da segunda capturas. Essa lição de casa é fundamental.
Mas então eu dizia o seguinte, que no segundo encontro eu foquei no aspecto de um desejo, da produção e da reprodução de um desejo já reduzido à primeira captura e que, em seu modo mesmo de se efetuar, buscava vagamente uma maneira de se safar, uma maneira de se salvar, uma maneira de ser reconhecido, uma maneira de se empoderar. E essa maneira é dada ou ela, ao mesmo tempo em que é dada enquanto uma condição material, ela é cultivada enquanto uma condição formal, e eu denominei isso como sistema do juízo.
O sistema do juízo, essa instância ideal que vai atravessar vários níveis, não vai permanecer apenas no ideal. Vai ter o estatuto do universal, vai ter o estatuto do Estado, ou estatal, vai ter o estatuto da lei. Inclusive o estatuto mais refinado: da moral, da norma e da espiritualidade.
Então, essa instância vai ser tanto deus, o Estado, o macroestado, quanto também os microestados, quanto os Eus que se formam em nós. Essa instância vai ser uma máquina de reprodução, de fabricação e de reprodução dos prepostos de poder em nós. E todo Eu é um microestado, ou é essa instância do julgamento interiorizada em nós.
Então é preciso entender que, para libertarmos o desejo, libertarmos o corpo, libertarmos o pensamento, libertarmos o nosso modo de viver, precisamos fazer essa dupla desconstrução. A desconstrução da primeira captura, que é o modo de desejar reativo; e a desconstrução da segunda captura, que é uma vontade de empoderamento. E aí sim reencontramos. Reencontramos o quê, exatamente? Podemos reencontrar, se fazemos essa desconstrução, podemos reencontrar as nossas forças. As forças que já estavam aí, como eu disse nos encontros anteriores. Que estavam aí disponíveis, mas nós não tínhamos acesso.
Como acessar as nossas próprias forças? Se ao desejo nada falta, é porque o desejo é preenchido de acontecimento, necessariamente. Como chegar a acessar? Acessar essas forças que vivem, que experimentam o desejo como um ato pleno de se preencher e de produzir real? Isso é preciso, então… para se chegar nisso, é preciso então fazer a desconstrução disso que separa a nossas forças, que estão aí disponíveis, da nossa condição de acesso.
E o que impede o acesso a essas forças? O que impede o acesso a essas forças são as mediações ou as representações. Mediações sensíveis ou representações corporais. Mediações dizíveis, de signos semióticos, ou representações racionais. Mediações afetivas ou representações passionais. Nós precisamos… não que as representações ou as mediações vão desaparecer. Elas não vão desaparecer. Mas não é essa a nossa pretensão, que elas despareçam, porque elas fazem parte do real. Elas não são um mal, exceto quando elas se colocam no lugar da potência de acontecer, exceto quando elas querem se tornar primeiras em relação à realidade imediata, exceto quando elas querem assumir o comando das nossas vidas. Aí as mediações são nocivas, mas as mediações e as representações fazem parte do real, assim como as imagens, assim como os signos, assim como os efeitos. E nós podemos fazer disso tudo brinquedos e alimentos. As mediações são elementos interessantes, desde que eles não assumam os lugares de comando.
Eu dizia, nos nossos encontros anteriores, que há, na nossa maneira de acontecer, uma maneira que é passiva, essencialmente, quando o acontecido se coloca no lugar da potência de acontecer, esse acontecido ganha várias formas. Ele ganha uma forma corporal e se empilha em nós. Ele ganha uma forma no pensamento, através da linguagem, e se empilha em nós. Ele ganha uma forma afetiva, através das paixões, e se empilha em nós.
Então há um empilhamento de paixões, há um empilhamento de movimentos, sensibilidades e sensações, há um empilhamento de pensamentos, de ideias, de imagens, de memórias. Isso tudo vai formando o fundo, o estofo de uma memória de um passado que foi, de uma memória de marcas. Nós vamos nos constituindo por camadas. Essas camadas ou estratos, que são camadas que operam através da sucessão do tempo, a cada acontecimento um acontecido se introjeta e se empilha, e vai formando um adensamento de nós mesmos.
Essas mediações já estão aí formando o edifício do Eu, o edifício da subjetividade. O sujeito se ancora nesse adensamento, e nós precisamos então buscar um outro olhar, uma outra visão, uma outra maneira de acontecer no acontecimento, que, em vez de ficar presa ao acontecido, se mantém na própria potência de acontecer e faz de todo o acontecido um produto que gera mais força de acontecer. Aqui está o segredo: fazer do acontecido um produto que gera mais força de acontecer. Um produto que você consome e que te deixa mais potente, mais intenso, mais criativo, com mais recursos de se mover, de agir, de sentir e de pensar.
Nós precisamos introduzir aqui o quê? Uma espécie de corte que faz com que comecemos essa desconstrução. E esse corte pode ser incentivado de muitas maneiras. Eu, hoje, assim como nos encontros anteriores, eu me servi muito de Espinosa e Nietzsche, hoje vou lançar mão aqui de um outro grande pensador, que é Bergson.
Bergson traz uma visão sobre a realidade indeterminada que tira o chão daqueles que acreditam que a realidade mais valiosa é a realidade determinada. Bergson dá um outro valor, ele retoma um outro valor, uma outra potência de um plano do real que é um plano de indeterminação. O que seria isso? Nós… eu vou, antes de entrar nesse plano de indeterminação, eu vou voltar algumas questões anteriores.
Espinosa diz, “nós somos uma potência em ato”. Nós somos uma potência em ato que se efetua necessariamente. E à medida em que estamos separados do que podemos, vamos nos efetuar de modo inadequado. O efeito, em Espinosa, que efetuaria a causa, justamente ele tem esse aspecto. Ele não é um mero efeito, ele não é uma mera expressão do real, ele não é um mero resíduo, uma mera sobra, um fenômeno. Ele não é… aqui, inclusive, isso faz com que nos separemos da fenomenologia. Não é meramente um fenômeno. O efeito é um elemento efetuador. Então, à medida em que nos efetuamos, de modo adequado ou inadequado, estamos operando a necessidade, no seio da necessidade da própria potência.
Então, o elemento que efetua a potência é um elemento desejante. Ele opera nesse sentido, ele move a diferenciação da potência. Ele move essa potência que se efetua em ato. Então ele é um mobilizador. Ele é um efetuador, ele é um mobilizador, ele é um motor. Ele tem alguma afirmação que faz com que necessariamente a potência se efetue.
E quando estamos separados do que podemos, nós vamos sempre, de modo urgente, responder às demandas que vêm de fora. Porque quando estamos separados do que podemos, não somos nós que damos a regra do jogo. A regra é dada e nós cumprimos, nós estamos sempre correndo atrás da resposta, sempre sendo determinados a fazer isso ou aquilo segundo as demandas exteriores.
Então há uma espécie de urgência na efetuação, na determinação dos nossos atos corporais, mentais ou afetivos. E essa determinação é muito valorizada. Então aqui eu vou fazer um parêntese, eu vou entrar agora em Bergson novamente.
Bergson vai dizer que qualquer ser vivo é um intervalo de movimento. Ele se constitui por um intervalo de movimento. Todo ser dotado de movimento está necessariamente em relação com outros seres de movimento. E esses seres em movimento o afetam. Então, movimentos de fora chegam até mim, chegam até você, chegam até nós. Esses movimentos que chegam até nós são recebidos por uma zona que os indetermina, uma superfície que os indetermina. Essa superfície é constituída pelo intervalo. E o intervalo é um vazio de movimento. O vazio de movimento faz com que o movimento que chega de fora seja suspenso, seja suspenso. E o movimento em nós que recebe esse movimento de fora vai receber esse movimento dividindo esse movimento em micromovimentos.
Bergson vai dizer que esse é o modo essencial do cérebro funcionar. O que é o cérebro? Todo vivo, na verdade, tem uma dimensão cerebral. O cérebro é um intervalo. O cérebro é o que constitui uma dupla dimensão dentro de nós: a dimensão sensorial e a dimensão motora. O sensório-motor.
Esse intervalo de movimento implica, portanto, uma distância. Ele constitui uma distância entre o movimento que chega e me afeta, e o movimento que me constitui. O movimento que me constitui vai receber o movimento que chega de fora, mas não sem diferenciá-lo, não sem suspendê-lo antes, subdividi-lo em micromovimentos. E aí vai depender do nível do cérebro, da complexidade dessa vida, desde uma ameba até os vertebrados superiores. Vai ter toda uma evolução aí. Quanto mais diferenciado um ser, quanto mais realidade ele tem, mais ele é capaz de subdividir um movimento em micromovimentos. E nessa mesma medida, ele é capaz de processar esses micromovimentos, rearranjando-os, recompondo-os e criando uma resposta.
Então aqui eu vou ter que ser, infelizmente, muito breve, muito rápido. Isso aqui exige um desenvolvimento bem maior, com muito mais detalhes, mas eu quero apenas apontar para vocês a necessidade de fazer esse trabalho.
À medida então que nós somos demandados de fora, nós temos em nós uma potência de suspender o que chega de fora. Todo intervalo de movimento constitui uma espera, portanto, esse intervalo de movimento é preenchido não por corpo ou por outros movimentos, ele é preenchido por um tempo, por um tempo puro, por uma duração.
É justamente aí que nós encontramos a matéria da liberdade. Nós nos tornamos mais e mais livres, quanto mais nós somos capazes de esticar, de dilatar esse intervalo de movimento; e de subdividir os movimentos em micromovimentos ou movimentos moleculares; e rearranjar esses movimentos para criar então uma resposta.
Então, a nossa potência de sentir, a nossa dimensão sensorial, a nossa dimensão perceptiva é justamente essa dimensão que, ao ser tocada por um movimento, não cria imediatamente uma resposta: suspende a resposta e subdivide o movimento, ramifica o movimento. Faz do movimento determinado um devir rizomático desse movimento. Esse movimento se ramifica em micromovimentos. E só depois de processado é que isso acaba produzindo uma resposta, que Bergson chama de “ação”. Então essa resposta, essa ação, para Bergson é sempre diferencial, é a produção de uma diferença.
Então o movimento chega até nós determinado, mas se nós fôssemos simplesmente uma matéria sem dobra, uma matéria sem dentro, uma matéria sem interior, uma matéria sem intervalo, a resposta seria mecânica. Nós receberíamos o movimento assim como uma bola de sinuca bate em outra bola de sinuca e produz um movimento determinado, sem escolha. Não haveria escolha. Mas como nós somos dotados desse intervalo, a escolha emerge com ele. Então a escolha vai aumentando, se ampliando quanto mais esse intervalo cresce.
Isso constitui em nós uma potência de não se deixar determinar ou de não se deixar afetar de fora de modo mecânico. Há um estímulo recebido de fora e existe sempre a possiblidade de dar uma, duas, três, quatro, muitas respostas para ele. Quanto mais aumentamos esse intervalo, mais respostas conseguimos dar. Quanto mais somos capazes de indeterminar o movimento que chega, mais somos capazes de diferenciar a nossa ação. Aqui está uma sacada essencial. O foco essencial. Uma pedra de toque para investirmos. É fundamental esse aspecto.
Eu vou ser então, como eu disse, um pouco lacônico aqui, um pouco breve demais, mas simplesmente para dizer o seguinte: nós, todo vivo é envolvido por uma zona de indeterminação, por uma superfície de indeterminação. Ou seja, a indeterminação começa com o vazio. O vazio que forma como uma bolha dentro de cada um de nós. Ninguém existe sem se constituir no vazio. E é esse vazio que faz com que haja uma distância entre aquilo que nos provoca de fora, que nos demanda de fora, e aquilo que deriva de nós. E nesse sentido a diferenciação se produz. É uma fábrica de fazer a diferença que nos constitui, na verdade.
Aqui existe uma maneira de se relacionar. Nós, na primeira e na segunda captura, insistimos em um aspecto. Por exemplo, na primeira captura, nós somos intoxicados. Algum acontecimento nos envenena, nos intoxica de uma maneira tal que nos colamos ao que aconteceu, e isso que aconteceu toma o lugar de toda a nossa potência de acontecer. E nós dizíamos o seguinte: que no ressentimento só existe… na verdade, existem três saídas para que não nos ressintamos. Uma é expulsar isso que nos acometeu, isso que nos intoxicou. Botar para fora quando isso será possível. Mas o ressentimento acontece justamente pelo fato de que algo nos atinge de modo inevitável. Não tem mais como expulsar de nós. Não tem mais como vomitar.
E um outro aspecto de impossibilidade é a digestão, quando não conseguimos digerir. Uma vez que não dá para pôr para fora, também não dá para digerir. Aí, sim, nos resta uma única saída para que mantenhamos a nossa liberdade, a nossa mais alta potência de agir nesse mau encontro: é criar uma distância. Para criar uma distância, precisamos isolar. Isolar o acontecimento e investir em uma potência de não se deixar afetar de modo inteiro ou de não se deixar tomar de modo inteiro por esse acontecido em nós.
De que maneira fazemos isso? Segundo Espinosa, encontrando a razão comum. Segundo Espinosa, acessando o segundo gênero de conhecimento, que é um pensamento de relações. Um pensamento que apreende a zona comum, a noção comum, sem a qual não há a composição com a força que nos afeta de fora.
Aqui, o segundo gênero de conhecimento seria uma maneira de se manter na superfície, de se manter em acontecimento. O comum é essencial. Encontrar ou reencontrar o comum aqui é um ato de liberdade, é essencial. E aqui isso é algo que deveria inspirar aqueles que investem nos movimentos coletivos, nos movimentos revolucionários, na luta de classes, na luta contra o capital, na luta contra as opressões, as repressões, os parasitismos. A noção comum é fundamental. Encontrar a noção comum é um ato revolucionário, porque é, inclusive, a condição da retomada da superfície.
Mas, para isso, nós precisamos investir nessa potência de não se deixar afetar. Nessa potência de indeterminar o movimento. E essa potência de indeterminar o movimento implica aquilo que Deleuze chama de contraefetuação. Na Lógica do Sentido, uma obra de 1969, Gilles Deleuze vai desenvolver muito essa noção, essa ideia de contraefetuação. A contraefetuação é uma arma essencial para que não nos deixemos capturar. Nós precisamos investir nessa arma. Isso pode também se tornar, isso deve se tornar um operador clínico e um dispositivo de libertação do desejo.
O que seria a contraefetuação? Existem muitas maneiras de manifestar uma contraefetuação, mas a contraefetuação implica em uma suspensão da efetuação. Mas uma suspensão da efetuação implica que o desejo não vai se efetuar? Não. Implica apenas que o desejo não vai mais se efetuar do ponto de vista de um fato, de um acontecido ou de uma determinação. Implica que o desejo agora vai se efetuar de uma outra maneira. O desejo vai se efetuar a partir de uma dimensão inesgotável do acontecimento. Será? Depende. Ele pode conquistar essa condição de se efetuar com aquilo que há de inesgotável no acontecimento, se preencher com esse excedente que emerge ou que pode ser extraído de todo acontecimento, com esse algo que está em tudo o que acontece. Em cada acontecimento tem algo que é uma potência de repetir-se como acontecimento. É algo que jamais para de acontecer ao acontecimento. É algo que não para de retornar, que não para de começar, mas também que não para de acabar. Com esse preenchimento no desejo, nós podemos retomar a potência de acontecer. Mas isso implica criar condições. E uma das condições, então, é investir a contraefetuação.
Nós vimos o quê? Que na primeira captura nós éramos constituídos por uma miséria afetiva. E a segunda captura investia nessa miséria. Investia na reprodução dessa miséria, inclusive para oferecer uma riqueza, uma falsa riqueza que compensaria ou extirparia supostamente essa miséria. Um poder que eliminaria a impotência? Um cheio que eliminaria a falta? Uma recompensa que restituiria o desejo do seu atraso? Então, o desejo é investido. Quanto mais miserável ele é, ele investe em um modo de se empoderar, em um modo de se preencher, em um modo de obter a sua recompensa, em um modo de obter o seu objeto. E esse gosto pelo preenchimento faz com que ele perca a oportunidade de suspender a efetuação e investir em uma contraefetuação.
O desejo não larga o osso, ele quer aquilo que o compense, aquilo que recompensa ele, aquilo que vai fazer com que ele se sinta satisfeito. Ele busca o prazer. Ele busca o preenchimento exterior do seu buraco de qualquer maneira. Então aqui está a dificuldade. E a máquina social aproveita esse movimento do desejo, essa falta do desejo, essa carência do desejo, esse movimento desesperado do desejo de buscar o seu quinhão, de buscar o seu objeto, de buscar o seu direito ao prazer. Ela aproveita isso para dizer assim, “Sim, sim”, com todo gosto, desde que você ofereça uma determinação. Desde que você se torne determinado de corpo. Desde que você se torne determinado de pensamento. Desde que você se torne determinado no seu modo de desejar.
E o que são essas determinações? Essas determinações, é incrível aqui, é incrível como isso funciona como um relógio suíço. Essas determinações são determinações corporais de eficiência. Determinações mentais de competência. E determinações morais de responsabilidade. Há um investimento na organização do corpo. O corpo é acoplado a um organismo social que o separa do seu corpo sem órgãos, que o separa do seu corpo intensivo, mas que dá a ele, em compensação, a eficiência de movimentos para combater o corpo vagabundo, o corpo criminoso, o corpo do louco, o corpo inútil, o corpo do perverso. Precisa ter um corpo produtivo, um corpo que seja valorizado porque ele atende as demandas da máquina social.
E é essa determinação que o desejo investe. Por quê? Porque se o corpo se organizar e se tornar eficiente, ele vai ser recompensado. Ele vai ser um corpo padrão, um corpo que vai ter o respeito e o reconhecimento da máquina social. E acontece a mesma coisa com a nossa mente e com o nosso desejo. O que vai acontecer com o nosso desejo? O nosso desejo vai ser investido de uma maneira tal que ele vá assumindo a responsabilidade sobre as próprias paixões, que ele perceba que as paixões devem algo à existência. Devem obediência a uma forma prática de existir, a um dever-ser que na verdade é a norma. O desejo deve ser normatizado. E como ele é normatizado? Quando ele interioriza a lei. Não é quando ele simplesmente obedece à lei e não faz o que é proibido, mas é quando ele extrai da lei as nuances, o elemento normativo que o liga ao que ele deve e não mais simplesmente o alerta do que ele não pode fazer, do que é proibido.
Então, ligar o desejo ao que ele deve: esse é o modo de tornar as nossas paixões endividadas em relação a uma instância moral do desejo em nós. Desejar de modo moral é quando o nosso desejo se torna responsável moralmente pelo uso que ele faz dos afetos. E então a segunda determinação aqui.
A primeira então é um corpo eficiente a partir de uma organização corporal, de um organismo corporal que faz com que percamos o nosso corpo sem órgãos, nosso corpo de intensidade, nosso corpo de potência.
A segunda é uma responsabilidade sobre as nossas paixões, sobre o nosso campo afetivo a partir de um desejo que é soldado à lei e que se institui como uma instância normativa dentro de nós. Assim como Kant queria instaurar um modo superior de desejar, por aquilo que ele chama de “imperativo categórico”. O imperativo categórico do desejo que vai operar uma razão prática. Essa razão prática é a razão moral, é a razão da boa conduta. De uma conduta que se autorregula, segundo Kant, por isso que seria uma conduta autônoma. Obviamente que isso é falso, é uma fraude, porque não tem autonomia junto à moral. A moral impõe algo de fora. Então é impossível que o desejo seja autônomo aqui. Mas essa balela, essa crença de que o desejo se torna autônomo quando ele se torna moral, quando ele incorpora o imperativo categórico, é uma segunda determinação. Uma segunda determinação que é valorizada para que mordamos a isca e sejamos reconhecidos.
Uma terceira determinação — não necessariamente nessa ordem, primeira, segunda, terceira. Se vocês quiserem, vocês podem mudar isso. A primeira pode ser a da mente ou a do desejo. O que importa é que são três que acontecem ao mesmo tempo. Claro que tem uma que é mais profunda e essencial, que é a do desejo, porque é através do desejo que eu capturo o corpo e capturo o pensamento.
Mas essa terceira determinação, então, que eu falava, é a do pensamento. É a captura do pensamento. É aquilo que faz de nós não mais apenas sujeitos morais de uma razão prática, mas sujeitos do conhecimento de uma razão especulativa. O sujeito do conhecimento tem que se tornar competente. Essa é a determinação que ele compra. Então ele compra essa determinação da competência. Um sujeito do conhecimento competente é um sujeito que produz verdades. Que verdades? As verdades que interessam ao campo social, político, econômico de uma máquina social.
Então essas verdades, esse campo do saber, esse plano do saber é investido pelo sujeito do conhecimento. Cada um de nós vira um operário, um assujeitado do pensamento, do desejo, e um submisso no corpo, para produzir essas determinações que são valorizadas socialmente, que nos dão reconhecimento porque elas passam pelo espelho social, pelo crivo social. A sociedade cria um espelho. Esse espelho é o modo de ela interpretar aquilo que você produz, reconhecer aquilo que você produz e devolver a recompensa nesse reconhecimento.
Então há uma recompensa para o corpo, há uma recompensa para o desejo, há uma recompensa para o pensamento. Nos tornamos eficientes, responsáveis, autorizados e por consequência empoderados. E por consequência, ainda, com direito ao gozo. Nos tornamos um sujeito sedentário.
Para resumir em uma palavra: nos tornamos um ser diligente. Um ser humano padrão. Esse ser humano padrão é o que vai ser cultivado e valorizado socialmente. E a partir daí que vai se criar a ilusão de uma forma da maioria. Da maioria que eu poderia dizer “o ser humano médio padrão”. O problema não é meramente a classe média. O problema é o ser médio, é o tipo médio que no fundo é um tipo medíocre.
Então, será que as práticas clínicas, os pensamentos e práticas clínicas da psiquiatria, das psicanálises, das psicologias não estão investidos em fortalecer a eficiência corporal (quando a terapia invoca o corpo), mas, principalmente, a responsabilidade moral e a competência racional de um sujeito que é reincorporado aos quadros sociais? A estruturação do sujeito não responde a essa demanda? A essa demanda de uma máquina social?
E quanto mais fortalecemos esse ser diligente, não estamos fortalecendo justamente o preposto de poder em nós? E quando dissemos “eu”, esse “eu” não é um outro que captura as nossas multiplicidades?
Então aqui nós invocamos uma posição de combate, um investimento em um combate. Eu cheguei a citar para vocês aqui um personagem de uma obra do Melville, chamado Bartleby. Bartleby, o escriturário. Esse personagem vai criar um modus operandi. Ele vai ser contratado por um escritório para exercer a função de escriturário e, em um certo momento, ele começa a se posicionar, reagindo às demandas com um “não”. Um “não” lacônico. Não é nem um “não isso”, um “não aquilo”, um “não aquele outro”. Simplesmente um “não”. Um “prefiro não”.
Quando ele é demandado para fazer uma certa atividade, para ter uma certa ideia, um certo pensamento, uma certa fala, ele simplesmente diz “prefiro não”. Poderia dizer “prefiro não fazer”, “prefiro não dizer”, “prefiro não ouvir”, “prefiro não escrever”, “prefiro não me efetuar”.
É uma posição da contraefetuação. Aqui há uma grande inspiração. Uma grande inspiração. Não que isso baste. Isso não basta. Mesmo porque Bartleby acaba morto. Mas isso é um começo, isso é uma inspiração, isso é uma tendência necessária.
Quando a sociedade investe no nosso desejo, ela investe no nosso desejo de modo que atendamos às suas demandas. E quando atendemos às suas demandas, somos recompensados, autorizados, empoderados e ganhamos direito ao gozo. Mas se percebermos que cada vez que afirmamos as determinações do corpo na eficiência, as determinações do desejo na responsabilidade, as determinações do pensamento na competência, na produção da verdade, cada vez, se olharmos bem, percebermos bem, nós vamos observar que a nossa potência de existir diminui, apesar de nos empoderarmos.
A potência de existir diminui, o empoderamento cresce. Mas aqueles que são mais sensíveis, que são mais honestos, vão perceber não apenas que se está trocando seis por meia dúzia, mas que se está investindo na sujeição do desejo e na submissão do corpo. No conformismo e na docilização do nosso corpo, e no assujeitamento do desejo em nome de um empoderamento, em nome de uma autoridade, em nome de um reconhecimento. Em nome de uma liberdade. Vale a pena isso?
Esse modo rebaixado de existir, que é maquiado pelo empoderamento, pelo sucesso, pelo reconhecimento, pelo direito ao gozo, faz, na prática, uma cratera dentro de nós. Do desejo esburacado, que era o nosso, fazemos dele uma cratera. Nos perdemos cada vez mais.
Mas há um sentimento de angústia, há um sentimento de insuficiência, há alguma coisa, há um pensamento que percebe a corrosão que vai acontecendo à medida em que nossa vida vai passando, à medida em que nós vivemos de uma maneira tal que o nosso devir é solapado, ele é fraudado, ele é sabotado, e que não há um retorno da potência sobre o próprio desejo. Ou melhor, não há um retorno da intensidade que preenche a potência que deseja dessa maneira. Na verdade, quando iria haver o retorno, há um desvio. É como se a nossa vida escorresse pelas mãos, entre os dedos. É como se abríssemos as nossas veias e o elemento vital escorresse, nos desvitalizássemos.
Quanto mais investimos nas determinações do corpo, do desejo, do pensamento e do modo de vida moral, mais sentimos que há uma insuficiência de ser. E desse ponto de vista há uma coincidência com a psicanálise, principalmente a psicanálise lacaniana. Porque de fato experimentamos, realmente, uma insuficiência infinita de ser. Uma asma infinita. E essa falta é, na verdade, percebida como uma espécie de castração necessária, sem a qual ninguém se relaciona em sociedade.
O que é necessário fazer? É necessário que desinvestamos as determinações. Mas por que desinvestiríamos as determinações que nos dão reconhecimento, empoderamento e direito ao gozo? Porque, na verdade, a cratera aumenta e se coloca no lugar do buraco. Na verdade, nós perdemos o quê? Nós perdemos a potência de se diferenciar. A diferenciação é que é a saída, e não a determinação. A diferenciação é fundamental. Daí a importância dessa terceira zona de passagem. Essa que é a superfície mesma, essa que é, na verdade, uma força de indeterminar, e não uma impotência de determinar. É justamente o contrário. É a força de indeterminar os movimentos. A força de indiscernibilizar as competências verdadeiras. A força de gerar ambiguidade e mais nuances nas dicotomias morais.
Então, é fundamental suspendermos essas demandas que nos empoderam, nos autorizam e nos dão direito ao gozo. Desinvestir isso. Desinvestir a segunda captura. Nesse movimento de desinvestimento da segunda captura, começamos a reencontrar a superfície e, ao mesmo tempo, desfazer também a primeira captura. Desfazer também o mau uso daquilo que nos acontece.
De que maneira? Quando você suspende o acontecimento, quando você investe em uma indeterminação do movimento, você investe no vazio. Quando você investe na indiscernibilização do pensamento, você investe no silêncio. Quando você investe na ambiguidade dos afetos e na multiplicação de suas nuances, no pluralismo afetivo, você investe na distância ou na solidão do desejo.
O vazio não é um nada. O vazio é a condição da indeterminação dos movimentos no corpo. Ele é a condição do alisamento do movimento. Ele é a condição da passagem do movimento extenso dos deslocamentos corporais para o movimento intensivo de um motor imóvel. O vazio é a condição do movimento intensivo. É, na verdade, o motor do movimento intensivo. O vazio é, na verdade, um vazio de formas. É uma potência de indeterminar ou de alisar a superfície. O vazio é a potência de alisar as superfícies corporais.
Assim também o silêncio. O silêncio é uma potência de indeterminar o significante e a subjetivação. Esse duplo regime da linguagem, que captura o nosso pensamento e o nosso desejo. O regime significante da linguagem captura o pensamento e constrói o ideal. Quando você investe no silêncio, você quebra as cadeias significantes. Você deixa de gerar a condição para que um significante seja remetido a outro significante, por sua vez a outro, a outro e a outro, e assim ao infinito, formando as cadeias significantes circulares que criam centros de poder. Você desinveste isso.
E então o silêncio é uma potência de investir os signos da linguagem na sua dimensão assignificante, na liberação das zonas indiscernibilidade do pensamento, exatamente para que a matéria do pensamento possa ser diferenciada pelo sentir do acontecimento, que faz a potência diferenciar-se. Aí sim o pensamento volta a estar a serviço da vida intensa, afirmativa e criadora.
Então, o silêncio é uma condição do pensamento afirmativo. É o silêncio que impede que o pensamento se feche em cadeias de signos e constitua seres que negam o devir ou que rebaixam ou que desqualificam o devir. Então ele faz com que essas cadeias do negativo sejam desfeitas e a afirmação do acontecimento emerja na superfície.
Claro, isso aqui precisa explicar em detalhes. Não é fácil de se perceber isso em poucas palavras, como eu estou falando aqui. Mas eu preciso dizer de alguma maneira, e é o tempo que nós temos aqui. Que essa passagem é necessária. É preciso investir o silêncio, muito mais do que a interpretação, do que a “interpretose”, pautada no significante e nas cadeias significantes. A clínica que se dedica à interpretação é uma péssima clínica. Na verdade, é uma clínica a serviço do Estado, a serviço do poder, dos poderes tristes.
Da mesma maneira, há um uso subjetivo dos signos que capturam o nosso desejo. E esse uso subjetivo dos signos tem aí uma dupla dimensão. Ele tanto funda o sujeito especulativo do conhecimento, como também ele funda o sujeito prático-moral. É aqui que o nosso desejo é engolfado por uma arapuca interior, de interiorização, na subjetividade. Nessa subjetividade malcheirosa que vai fazendo com que apodreçamos nas nossas multiplicidades.
Então, a captura do desejo se dá por um uso, um mau uso dos afetos, ao mesmo tempo que acoplados, agenciados com o uso subjetivo dos signos. O uso subjetivo dos signos cria o sujeito ou mesmo a estrutura no lugar do buraco. E o mau uso dos afetos cria o buraco. Então é o buraco e a estrutura. O buraco e o sujeito que se completam.
Então, o silêncio ganha uma importância fundamental. O que é o silêncio? O silêncio, para que atinjamos o silêncio é necessário cessar a tagarelice não só verbal, das cadeias significantes, ou sonoras, mas a tagarelice mental que se dá na nossa imaginação. Lembram de Espinosa, no nosso primeiro e segundo encontro, onde eu foquei nas afecções? Afecções da potência? São acontecimentos de potência a partir do encontro com forças exteriores que geram isso em cada potência em ato. Essas afecções podem se encadear. Uma afecção que se encadeia com outra afecção. A afecção se desdobra em imagem e signo. Em imagem, essa imagem pode ser sensível, que determina a experiência vaga, segundo Espinosa. E essa imagem pode ser dizível, que determina o “ouvir dizer” de Espinosa. As duas dimensões que constituem o primeiro gênero de conhecimento. Feita de signos, de “ouvir dizer”, ou de imagens de experiência vaga.
Então, imagens e signos são os desdobramentos das afecções, mas essas afecções que se encadeiam, se encadeiam como signos e se encadeiam como imagens. Cadeias de imagens ou cadeias de signos são tagarelices mentais. Nós organizamos o real assim? Vemos e organizamos o mundo assim? Nos vemos a nós mesmos e nos organizamos assim? A nós mesmos, nós nos percebemos como cadeias de sentimentos. Então cadeias de signos, cadeias de imagens e cadeias de sentimentos. Isso tudo faz com que então nós retomemos a condição do pensamento, à medida em que quebramos as cadeias significantes, essas cadeias de signos e as cadeias de imagem. E também a solidão, à medida em que quebramos a cadeia das paixões ou dos sentimentos.
Quebrar a cadeia das paixões ou dos sentimentos é afirmar a solidão. Quebrar a cadeia dos signos e das imagens é afirmar o silêncio. O silêncio é a condição do pensamento afirmativo. E a solidão é a condição do encontro. Então é incrível, por quê? A sociedade, a máquina social desqualifica o vazio como sendo um nada, ela desqualifica o silêncio como a ausência do pensamento. E ela desqualifica a solidão como sendo o abandono do desejo.
Ora, então nós vamos para o nada do movimento, para o nada do pensamento e para o nada do desejo, invocando a solidão, o vazio e o silêncio. Quando, na verdade, devemos reavaliar, revalorizar essas dimensões. Essas dimensões são as condições da superfície lisa. As condições dessa terceira zona de passagem. Investir no vazio, no silêncio e na solidão é investir na superfície lisa. Investir na superfície lisa como o silêncio é investir na condição do pensamento afirmativo. Investir na solidão como o alisamento do desejo e das paixões é investir na condição do encontro. Investir no vazio é investir na condição do movimento intenso.
E aí o que se passa, exatamente? Você diz assim, “Bom, mas você vai se preencher, então, de vazio, de silêncio e de solidão?”. Aqui haveria um desespero, talvez? Ou nós simplesmente iríamos nos tornar budistas. Existe um certo budismo… eu não vou aqui entrar em detalhes ou em polêmicas, mas eu vou só simplesmente chamar de “budismo vulgar” para não generalizar. Então existiria, sei lá, um certo uso do budismo, uma certa prática budista que vai investir no não-pensamento, no não-desejo e no não-movimento. E aí as práticas de meditação, as práticas… haveria uma certa renúncia, e a renúncia propriamente da ação é a renúncia propriamente da diferenciação. E, nesse sentido, o desejo iria para um nada, que foi o que Nietzsche diagnosticou com o movimento de Schopenhauer, quando Schopenhauer colocou a compaixão como valor máximo no lugar da ação. Não era mais a ação que era o valor máximo, mas era a compaixão. Ele diz que isso é um budismo que tomou conta de um filósofo.
Quando a compaixão se torna um valor superior à ação, tudo corre perigo. A vida corre um grande perigo. Mesmo assim, Nietzsche dizia que Schopenhauer era o ateu mais honesto que a Europa já teve, que a Europa já produziu. Por quê? Porque Schopenhauer detectava essa ilusão do desejo intencional. Todo desejo intencional, ou pensamento tagarela, ou corpo que se desloca, está em uma ilusão desejante. Essa ilusão desejante que busca sempre um objeto. Um objeto para o corpo, um objeto para o pensamento, um objeto para o desejo e que, no fundo, jamais cumpre o preenchimento ou satisfaz esse desejo, esse corpo e esse pensamento.
Então Schopenhauer preferia dizer assim, “Eu prefiro nada desejar, do que desejar dessa maneira ilusória”. Mas e aqui? Nós estamos afirmando para não desejar? Quando eu digo “viva o vazio, o silêncio e a solidão”? Nada disso. Nada disso. Aqui é uma condição. Quando eu disse que nós temos, na esquizoanálise — segundo o modo como eu a vivo, a experimento, a penso —, essas quatro zonas de passagem e que tem um duplo aspecto crítico e um duplo aspecto criativo, o primeiro aspecto criativo é exatamente a conquista dessa superfície, que é a retomada do imediato. É a partir daqui que nós vamos para uma segunda criação, um segundo aspecto criativo, que é justamente a diferenciação.
Então, o silêncio é a condição da diferenciação do pensamento, ou da afirmação da diferenciação do pensamento. O vazio é a condição ou afirmação, ou, melhor ainda, a ativação da diferenciação do movimento. E a solidão é a condição afirmativa da intensificação do desejo. São investimentos em uma tripla dimensão potencial de nós mesmos.
Aqui existe uma diferença fundamental entre o modo ordinário de existir, o modo de uma sensibilidade ordinária, de uma passionalidade ordinária, de uma racionalidade ordinária que investe o campo do possível, e o possível como novas determinações que vão nos empoderar, nos autorizar, nos dar direito ao gozo. E essa outra maneira que, ao reencontrar a superfície, investe na potencialização das potências. Das potências do corpo, das potências do desejo, das potências do pensamento. A potencialização é completamente diferente da possibilidade. Potencializar é investir na realidade da potência. Já buscar o possível é investir em uma projeção ilusória do limite interiorizado, o que nós vimos nos nossos primeiros encontros, principalmente no segundo, naquela dobra interior do acontecido em nós. Esse limite interiorizado que se projeta através do ideal para que seja melhorado no futuro, e eventualmente até para que vislumbre aquilo que o nega, aquilo que o ameaça, e seja separado e afastado desse possível mal. E se ligue e invista em um possível bem.
Então, o desejo intencional, tornado intencional, ele é prisioneiro do campo do possível, mas o plano do possível, o campo do possível é uma ilusão. Como diria Espinosa, não só o contingente, também o possível é apenas um modo de imaginar, mas não de pensar realmente. O possível não é um pensamento, o possível é uma imaginação.
Então, se investimos na suspensão do acontecimento, investimos na sua contraefetuação, também investimos na potencialização do movimento, do tempo, do movimento e do corpo, do desejo e dos afetos, e do pensamento e do tempo. Investimos nisso.
Há um operador que, junto com essa ideia inspiradora desse personagem do Melville, Bartleby, o escriturário, que diz “prefiro não”, há um operador, na verdade, dos comportamentos animais, que a etologia, a ciência dos modos de existir animais nos revela, que é a ciência da espreita. Praticar a espreita é exatamente praticar a suspensão. Investir na suspensão das demandas. E dilatar o tempo. Fazer com que aquilo dure mais, antes de receber uma determinação. Esticar o movimento, fazer com que aquilo se intensifique antes de receber uma determinação. Intensificar o desejo, fazer com que o desejo dure antes de ele se preencher com o objeto.
A espreita é a condição de um movimento absoluto. Veja alguns exemplos do mundo animal. O sapo que contempla o mosquito. A vaca que contempla o capim. O leão que contempla a gazela. A águia que contempla o peixe. A aranha que contempla a mosca. A aranha, ao contemplar a mosca, captura os movimentos da mosca e tece sua teia. Ela captura os movimentos, o código do movimento da mosca e daí ela extrai a medida da sua teia, para que ela conquiste o seu alimento, por exemplo. Ela entra em um devir-mosca. Há um devir-mosca da aranha que faz com que ela produza a sua teia.
Então, a própria aranha se diferencia no encontro com a mosca, mas ela precisa contemplar os movimentos da mosca, ela precisa suspender as determinações do movimento ou apreender os movimentos nos seus micromovimentos. Ela precisa decompor, mais e mais, tudo que chega de modo muito grosseiro ou misturado. Ela precisa fazer a diferença das misturas que a atingem. Ou, como diria Bergson, distinguir os mistos mal analisados.
Então a espreita e a contemplação do acontecimento fazem com que estiquemos mais os movimentos, lentifiquemos mais os movimentos, nos tornemos mais receptivos, ampliemos a superfície de recepção. Ao lentificar mais os movimentos, ao dilatar mais o tempo, há não só a intensificação do movimento, mas há a duração que necessariamente gera a diferença. Então, investir no movimento intensificado, investir na duração no tempo, investir na intensificação do desejo, isso tudo é um movimento que é contemplado na prática da espreita.
Então, espreitar é uma arte que faz aumentar a nossa liberdade, que faz com que produzamos no encontro aquilo que nos preenche, sem depender de um objeto exterior. Mas, na relação com o objeto, com o sujeito ou com uma força exterior, eu crio esse campo de efetuação que, na verdade, é uma contraefetuação. É uma contraefetuação porque não está atrelado aos fatos, às determinações exteriores e àquilo que o campo social determina como tendo valor. Então é aqui, na verdade, que está todo o campo, o solo, a terra fértil para se produzir valor. Você produz valor à medida em que você tem uma outra relação com o movimento, uma outra relação com o desejo e uma outra relação com o tempo. O valor vem da potência de diferenciar, e a potência de diferenciar implica uma força de indeterminar todas as determinações que chegam de fora. As determinações do movimento em relação ao corpo. As determinações dos afetos em relação ao desejo. E as determinações do tempo em relação ao pensamento. É fundamental, portanto, retomarmos essa potência de suspender ou não se deixar afetar por determinações que nos empoderam, que nos autorizam, que nos dão conhecimento.
Eu diria que aqui é importante desenvolvermos a dimensão que resiste à sedução dos poderes e saberes estabelecidos e sua máquina social. Nós somos fisgados essencialmente aí. A grande captura que torna cada vez mais difícil a libertação do humano em nós, das nossas prisões, é a captura que se dá pela sedução do empoderamento. Então você ganha medalhas, você ganha qualidades, você ganha autoridade, você ganha dinheiro, você ganha, enfim, reconhecimento à medida em que você atende aquilo que é esperado de você. Mas você perde exatamente a sua potência de produzir valor real, porque o valor vem da singularização, ele vem da afirmação da diferença, ele vem da força que te faz o que você é, da força que te faz único. Você é uma fonte de produção de real, uma fonte de produção de diferença, portanto, uma fonte de produção de potências de afetar e ser afetado. Isso é um valor. O que é um valor? É uma potência de afetar e ser afetado. Nós somos potências de criar, potências de afetar e ser afetado. Nós somos essas potências.
E por que deixamos por menos? Por que buscamos compensação? Por que entregamos o nosso tempo próprio, o nosso movimento próprio, ou o nosso desejo intensivo e põe ele a serviço de uma máquina exterior? Então, nós precisamos retomar o tempo próprio, retomar o movimento próprio, retomar o desejo no seu campo de imanência.
Há uma máquina social que não para de desqualificar esse movimento em nós. Que não para de nos ameaçar, de dizer que é perigoso você indeterminar-se, é perigoso você largar o oriente social, largar os valores estabelecidos. É perigoso você ficar louco. É perigoso você se tornar um perverso. É perigoso você se tornar um vagabundo, um criminoso, um louco, enfim.
Há a inoculação da desconfiança no plano dos acontecimentos. A determinação dos movimentos, dos pensamentos e dos afetos é aquilo que geraria a confiabilidade do ser humano. O nosso primeiro inimigo, já dizia Nietzsche, Castañeda, e mesmo Deleuze e Guattari, o primeiro inimigo é o medo. E a máquina social não para de produzir o medo em nós. O medo, diz Espinosa, é da mesma natureza que a esperança. Na mesma medida em que a máquina social produz medo, de outro lado ela produz esperança. Ela produz o medo de você ficar pobre, o medo de você ficar louco, o medo de você se perder, o medo de você ser abandonado, o medo de você não ser mais alguém que pertence a um campo social. O tempo inteiro há uma produção institucional do medo. Medo de perder. E o medo, no fundo, ele é inoculado no coração da vida, que é o acontecimento. Ou seja, a superfície das relações — porque é nas relações que está a superfície, a própria superfície é relação, ela é feita de relação, ela é o relacional das relações, e no relacional das relações é inoculado o quê? A desconfiança.
Cuidado. O devir. Cuidado com a variação, com a mudança. Cuidado com a inconstância. Cuidado com o que é volúvel. Cuidado com o que desmancha no ar. Cuidado, tudo é passageiro, é efêmero, é casual. Isso não vai te garantir nada, então… mas só se vê o devir dessa maneira, se ensina a ver o devir dessa maneira, como se o devir não tivesse um plano de consistência, como se ele não produzisse a própria coesão do real, como se no acontecimento tivesse apenas um elemento acidental e não essencial (por baixo do acidente tem sempre uma essência do acontecimento). Ou então um elemento casual, “Ah, é só acaso”. Por baixo do acaso do acontecimento tem uma necessidade. Ou então um devir efêmero. Por baixo do devir efêmero do acontecimento tem uma coesão.
Então, nós precisamos retomar esse plano de confiança na vida. Entender que o acontecimento tem uma essência e não é meramente um acidente. Que ele tem uma necessidade e não é meramente um acaso. Que ele tem um ser e não é meramente um devir inconsistente e efêmero. Esse plano de confiança é necessário a gente retomar.
E na clínica isso é fundamental. A relação do clínico com o seu analisando precisa necessariamente reconquistar a dimensão da superfície e a confiança na superfície. A confiança no acontecimento, porque é no acontecimento que está a fonte do real. Em nenhum outro lugar. Não vai ser o ideal, não vai ser nenhuma verdade, nenhum plano de verdade, muito menos o capital que vai te dar segurança. Não é o Estado, não é o ideal, não é a lei, não é a verdade. “Ah, precisamos da lei, porque senão vira tudo…”. Claro, a lei em uma sociedade tornada reativa é necessária, mas nós precisamos fazer de toda lei uma regra de passagem. O que é uma regra de passagem? Regra de passagem é quando a lei está a serviço da vida. E que vida? A vida intensiva, afirmativa, ativa, criativa. E não a serviço da moral, a serviço da negação, a serviço da desqualificação, a serviço da inoculação da desconfiança no plano dos acontecimentos. É preciso retomar a confiança na superfície, porque a fonte de qualquer potência é a relação. É o relacional da relação. É algo naquilo que acontece. Nós precisamos retomar isso.
Então, bom, eu sinto que nós vamos desenvolver bem mais esse aspecto da terceira passagem, que é a superfície, que é essa zona de passagem do imediato, no nosso quarto encontro, já ligando essa dimensão, que é uma condição de criação, com o próprio ato de criar, com o próprio ato de diferenciar, de fazer a diferença e de criar, produzir valor. Então aí vamos deixar isso bem mais claro, acredito eu. Não é um tema fácil, é complexo, mas, de novo, eu digo, isso não tem nada de elitismo ou de proselitismo. Se trata da necessidade de abarcar o real em toda sua complexidade. Não adianta a gente tentar simplificar em nome de uma democratização do saber. Todos nós podemos acessar esse pensamento, investir nesse pensamento. Basta querer, se dedicar, criar as condições para isso.
Então é isso o que temos que fazer, e não nivelar por baixo. Nós temos que elevar a todos, e não rebaixar a todos porque a grande parte não teria capacidade. Isso sim seria um desprezo reacionário e não teria nada de revolucionário. Seria uma coisa demagógica, só porque estaríamos cuidando do acesso daqueles que têm menos condição para acessar esse pensamento. Nós devemos multiplicar esses movimentos. Esses movimentos que eu já faço aqui, eu sinto fazendo isso. Eu sinto que isso é tornar esse pensamento pop, popularizar. Não algo demagógico e banal. Muito ao contrário, é expor a complexidade e a necessidade de investir e mergulhar cada vez mais nesses níveis de pensamento. Nós podemos muito mais, nós não podemos nos subestimar. A subestima é um desperdício. É um desperdício.
Então, é preciso a gente se desacomodar. É preciso sempre dizer assim, no fundo, no fundo, aqueles que reclamam de um certo elitismo desse pensamento, nós poderíamos dizer assim, “Talvez não seja esse pensamento que seja elitista, mas seja você que esteja demasiado acomodado”.
Nós precisamos provocar a todos nós a nos superarmos. Nós podemos nos superar. E nós não vamos libertar o nosso desejo das suas prisões, o nosso corpo das suas prisões, o nosso pensamento das suas prisões, os nossos modos de viver desse agenciamento coletivo de desejo e agenciamento maquínico de desejo que torna cada um de nós peça escrava da máquina ou sujeito assujeitado, assujeitando o desejo em nome de uma liberdade, se a gente não investir na espreita, na suspensão, na dilatação do tempo, no esticamento do movimento e naquilo que cabe à cada um de nós.
Quando eu falo em solidão do desejo, é também uma maneira de dizer assim, “Vamos parar de atribuir responsabilidade aos outros, as responsabilidades que são nossas”. Vamos tomar a vida nas próprias mãos. Investir na solidão do desejo é o movimento de tomada ou retomada da vida nas próprias mãos. E a solidão não tem nada a ver com abandono, ao menos essa que investimos aqui. Essa solidão é a condição de encontros ativos. Os encontros só valem quando eles deixam de investir a dependência. Há uma tendência social a uma certa solidariedade passiva. Nós devemos combater a solidariedade passiva. Nós devemos investir em uma solidariedade ativa. Nós devemos querer relações que se potencializam a si mesmas e que crescem afirmando a diferença e não se nivelando na igualdade, em uma igualdade formal, abstrata e fictícia. É preciso que cada um de nós tome gosto pelas diferenciações.
E a condição da diferenciação está no nosso modo de viver, no nosso modo de pensar, no nosso modo de sentir. Portanto, nós precisamos investir nessa nossa lição de casa, na desconstrução daquilo que nos separa dessas potências. Exatamente para que a condição dos nossos encontros e das nossas composições sejam razões de potencialização. Isso seria uma grande política. Deixaríamos de investir em organização e passaríamos a investir em composição. As esquerdas precisam ultrapassar esse modo infantil de se empoderar que é buscando investir as organizações. Mais do que… Organização, ok, mas a organização tem que ser efeito de uma razão de composição. Uma razão de composição entre potências que vão se libertando à medida em que vão se efetuando. De potências que não transferem responsabilidade, mas que tomam a vida para si.
Então eu acho que esse é o foco mais essencial que eu queria iluminar hoje. E dizer que essa dimensão, essa zona de passagem que é a reconquista da superfície faz com que encontremos a fonte imediata da potencialização e deixemos de investir no poder como tutela, deixemos de investir no Estado como tutela, deixemos de investir nos direitos enquanto forma que vai garantir alguma defesa de alguma diferença. Ok, sempre como efeito, mas jamais como causa do nosso modo de existir.
Só uma última palavrinha antes de entrar nas questões. Nós, à medida em que reencontramos a superfície, nós também reencontramos o nosso modo de viver como ritmo e estilo. Nós vimos, nos encontros anteriores, somos todos potência em ato. E entre o ato e a potência, há um ritmo. E esse ritmo é aquele do ato que afirma a diferenciação da potência. Então esse ritmo que afirma a diferenciação da potência tem um sentido de oportunidade. Ou seja, ele tem um tempo. Um tempo oportuno, o que os gregos chamavam de kairós. E junto com esse tempo oportuno ele tem uma condição de incorporação ou de movimento e uma razão de composição.
Isso tudo se conjuga. Há uma conjunção desses três fatores aqui. E nós, a cada ato afirmativo da diferenciação da nossa potência, fazemos da nossa potência mais potência de diferenciar, ou seja, criamos um moto-contínuo. Então, é aqui que o estilo e o ritmo substituem a forma. Nós não somos uma forma de subjetividade, uma forma de consciência, uma forma de Eu, uma forma de identidade. Nós somos uma linha de tempo esticada entre aquilo que jamais deixa de ser em nós e aquilo que jamais deixa de variar. E essa linha de tempo é uma linha de duração. Essa linha de duração existe no movimento, então é um movimento que é atravessado por uma linha de duração. Esse movimento atravessado por uma linha de duração é um movimento intensivo. Então nós somos um bloco de tempo e movimento. Ou nós somos um bloco de espaço-tempo, se quiser. É essa a nossa essência.
E quando retomamos esse circuito da potência de acontecer e efetuar segundo o nosso tempo oportuno, assim como no modo do animal que está sempre à espreita, nessa mesma medida nós criamos o tempo e o lugar, criamos também o movimento. Nós não habitamos mais um lugar que é dado de fora. Nós não gastamos mais o tempo que nos é dado ou que temos de fora, nós fabricamos o tempo. Nós intensificamos o movimento. Nós produzimos desejo.
Não existe liberdade maior do que a produção do próprio desejo, a fabricação do próprio tempo, a criação do próprio lugar. O lugar, o tempo passam a ser efeitos de uma potência que se efetua e que tem ritmo próprio e melodia própria. Então nós não precisamos buscar a verdade da nossa identidade, a verdade do nosso sujeito, a integração identitária de nós mesmos. Isso é completamente dispensável porque nós entramos em uma linha de coesão, em uma linha de consistência. Nós nos tornamos uma linha de duração, uma linha de devir que produz consistência, coesão ao se efetuar. E assim nós criamos, junto com o movimento do desejo, o caminho do próprio desejo, o sentido do próprio desejo. E aqui nós encontramos o elemento que cartografa o desejo ou o cartógrafo que é o próprio desejo, que faz a carta do desejo, que faz o mapa do desejo.
Quando acessamos isso tudo em nós mesmos, nós somos capazes de praticar uma clínica e uma cartografia do desejo, que é algo que vamos falar mais adiante também. Tá bom?
Eu vou então dar uma olhada agora nas questões, se tem algumas questões. Nós estamos já há duas horas e seis minutos de exposição, direto, sem olhar questões. Eu vou avaliar aqui o que eu posso responder, e as questões que ficarem, vamos responder ou no nosso último encontro, ou, como eu tenho repetido aqui, em um encontro especialmente dedicado a respostas das questões colocadas e não respondidas.
Olha, eu não sei, aqui passando uma colocação que eu achei interessante, me chamou a atenção, não é nem, acho, uma pergunta, mas me faz falar de algo que é a questão do dinheiro e do valor.
É Thais falando com Cesar, dizendo “Sempre caio nessa quando tento não fazer concessões, mas preciso de um emprego que me dê dinheiro para viver. Penso: eu não entendi algo ou os esquizoanalistas são todos herdeiros?”
Muito boa essa questão, Thais. Bom, você talvez queira dizer, com bastante graça e humor, que para ser esquizoanalista você tem que estar com a vida ganha. Mas eu diria que é até o contrário. É muito o contrário disso. Eu acho que para se tornar um esquizoanalista, é preciso aprender a criar valor. E é do valor que, por efeito, vem eventualmente o dinheiro ou a sustentação material. A criação de valor é aquilo que está mais escondido na vida cotidiana. Nós somos seduzidos a nos ocupar, a ocupar o nosso tempo, o nosso corpo, a dedicar, a disponibilizar o nosso tempo próprio, e o movimento e o nosso pensamento para atender a demandas que nos recompensem e nos deem dinheiro e uma sobrevida, nos façam sobreviver. Mas quanto mais fazemos isso, mais perdemos oportunidade de nos tornarmos criadores de valor.
Bom, claro, é preciso você inventar momentos de passagem estratégicos para que você aos poucos possa largar aquilo que te rouba seu tempo e que te faz uma espécie de escravo ou assujeitado do sistema, e disponibilize a sua própria energia para fazer um modo criador de existir e, a partir daí, sim, viver.
A meu ver, tornar-se um esquizoanalista é um modo interessantíssimo, um dos mais interessantes de se tornar um criador de valor. E quem se torna um criador de valor dificilmente, só por acidentes muito bizarros, vai acabar morrendo de fome ou não ter com o que se sustentar.
Então, a esquizoanálise deve, cada vez mais, a meu ver, se tornar não uma instituição, mas um movimento instituinte, um movimento instituinte permanente, como uma espécie de máquina de guerra que não para de fazer o combate para desconstruir as nossas capturas e liberar as forças de criação em nós. Porque cada um que se libera das capturas e reencontra as próprias forças ativas e de criação de realidade, também se torna um produtor de valor. E à medida em que se torna um produtor de valor, conquista sua autonomia e é capaz de gerar sustentabilidade e autossutentabilidade.
Então, a meu ver, é o contrário. É que, claro, a questão de você se tornar um esquizoanalista, uma esquizoanalista, envolve uma desconstrução de si, e essa desconstrução de si não é apenas teórica, ela não fica investindo apenas em pensamentos de difícil absorção, ela investe fundamentalmente em um modo de existir. Então o modo de existir é mais importante do que a teoria, mas é claro que a teoria, aqui, precisa ser uma contemplação da potência. Desse ponto de vista, o pensamento se torna um acontecimento e o acontecimento se torna um gerador de diferença.
Então deixa de ser simplesmente uma coisa teórica ou algo que pertence apenas a uma elite, a alguém que tem dinheiro, que possa simplesmente fazer a esquizoanálise e viver de brisa ou de luz. Na verdade, é isso. Nós podemos criar valor. Então achei oportuno dizer alguma coisa nesse sentido.
Cecília Coimbra, boa noite. Boa noite, querida. Que bom te ver aqui.
Joana D’arc, boa noite. Tanta gente aqui conhecida que, enfim, eu não vou…
Parece que as questões estão mais minguadas aqui. Deixa eu ver.
Olha, a Celia diz “Já está difícil sobreviver, quanto mais transformar o modo de existir”.
Eu acho que por estar mais difícil de sobreviver, é uma razão a mais para investirmos na mudança do modo de existir. Sabe? Porque você já tem a existência, você já está existindo. Já é uma coisa imediata, você não tem como deixar de existir enquanto você existe, e você necessariamente existe de uma certa maneira. Então por que, ao mesmo tempo em que você já está existindo dessa certa maneira, já não vai modificando essa certa maneira? Justamente isso é um estímulo a mais, é um incentivo a mais. Você não precisa de nenhum recurso exterior, de nenhum patrocinador para mudar. A mudança se dá no mesmo lugar. A mudança é uma mudança de visão, é uma mudança de olhar. É uma mudança de uso daquilo que nos acontece. Eu foquei o tempo inteiro nisso. Mudar o uso daquilo que nos acontece.
É aqui que está a nossa liberdade. É aqui que está a nossa capacidade, a nossa potência fundamental. Não depende de nada mudar o uso daquilo que nos acontece. É toda a nossa matéria. É toda a nossa oportunidade. Certo? Entende, Celia?
Bom, André Carneiro diz “O que é o desejo?”
Olha, eu peço para você rever, André, as duas aulas anteriores além dessa, porque eu falei de várias maneiras o que é o desejo, e distingui claramente o desejo intensivo, no seu campo de imanência, e o desejo intencional, que deseja a partir de um buraco, de uma captura, de um acontecido que tomou o lugar da potência de acontecer. E o desejo intensivo é aquele que se preenche do próprio acontecimento no campo de imanência. Mas enfim, você vai ter isso nas aulas anteriores.
Bom, e aí tem aqui agradecimentos.
“Desejo é a essência atual do humano, é vontade de potência, é corpo sem órgãos.”
Bom, sim.
Vamos ver aqui.
Tetê Beloni. “Luiz, grata. Reconhecendo-me ignorante, pergunto sobre a prática. Na vida real? Ações? Passo a passo? Novamente reconhecendo a pequenez da minha dúvida, mas ela existe”.
Olha, Tetê, é o seguinte: nós precisamos criar as condições dessa prática. E isso é totalmente viabilizável. Há um jeito de sentir, de agir e de pensar que deve ser experimentado e cultivado. Há um passo a passo, há um uso do cotidiano, há um uso das nossas ações, reações, sentimentos, imagens, memórias, linguagem. Mais cotidianos, mais corriqueiros. É nesse uso cotidiano que vamos mudando. Mas fundamental é investir na dilatação do tempo e no esticamento dos movimentos. Investir na espreita. Investir na criação da condição para que a nossa potência se diferencie. Existem modos de se fazer isso. Eu, na clínica, chamo isso de “operadores e dispositivos clínicos”. Investir no silêncio, na solidão e no vazio já são operadores essenciais nessa direção. E aí não é simplesmente cair no vazio, ou no silêncio, ou na solidão como se fossem um nada. É justamente nesse momento que a nossa potência se põe a diferenciar.
É como uma criança encontrando uma parede vazia, louca para pintar a parede, para desenhar a parede. O desejo dessa criança não vai ver um modelo para desenhar. Ele vai se pôr traçando linhas. Podem ser linhas cegas, linhas tortuosas, linhas errantes. É esse traçar errante do desejo que já é o próprio processo de diferenciação da potência. E esse é o preenchimento real. É com o movimento do desejo que você se preenche, e não com objetos exteriores. Entende?
É aquilo que diz Nietzsche, “a única felicidade é a felicidade da ação”, entende? E não aquela que busca a satisfação, um lago tranquilo.
Gente, eu fiz alguma operação aqui, saí sem querer da tela. Espero que vocês estejam vendo, espero que eu tenha conseguido retornar. Alguém me dá aqui um retorno. Vocês estão me vendo e me ouvindo?
Alguém responde aqui?
Ah, “estamos vendo”. Que bom, que bom. E você me ouvem também? Voltou? Ah, que bom.
Eu fiz alguma coisa aqui, cliquei em algum lugar. Ah, que bom que vocês estão me ouvindo. Cliquei em algum lugar que desapareceu a tela. Ainda bem que eu consegui entrar novamente.
Bom, gente, então, eu acho que é isso, eu vou… como eu disse a vocês, eu vou olhar essas questões todas. Eu já tenho visto algumas de vocês. No nosso próximo encontro, vamos responder, na medida do possível, todas essas questões. E, de novo, se não for possível fazemos um evento extra.
Eu espero que tenha sido produtivo para vocês. No nosso próximo encontro, então, vamos retomar as três primeiras passagens e desenvolver principalmente a quarta passagem, que é justamente o processo de diferenciação e de produção de valor.
Muitas das questões que aqui surgiram, agora no final, que é a questão do dinheiro, da sobrevivência, da ocupação, tem que cuidar da vida, têm a ver, na verdade, com a criação das condições da própria diferenciação, que é o reencontro com a superfície. E isso, não é necessário nenhum patrocínio, nenhuma provisão, nenhuma condição ideal para isso. E sim, a partir daí, você tomar posse de uma potência de fazer a diferença. O fundamental é isso. Toda vida, em essência, é uma potência de acontecer diferenciando. Essa é a mais alta potência da vida e do vivo. E nós temos todas as condições ou podemos criar essas condições para viver plenamente essa realidade e nos tornar dignos do acontecimento extraordinário que é existir.
Eu espero que vocês tenham aproveitado e espero revê-los, revê-las no nosso próximo sábado. Então será sábado o nosso último encontro, às 19 horas, e a gente vai fazer, dar um acabamento nisso que eu chamei de as quatros passagens e que constitui uma espécie de método, mas um método muito peculiar, porque não é um método que investe na mediação, é um método que te leva o mais rapidamente a conquistar a realidade imediata que nos constitui, a encontrar, a reencontrar essa realidade imediata que nos constitui, e a reencontrá-la de uma maneira tal que ela se torna uma potência de criar e de diferenciar em nós. Então é um método que desconstrói as mediações.
Então é isso, tenham uma ótima noite, uma ótima semana. Espero revê-los, revê-las no sábado que vem.
Um beijo, um abraço a todos e a todas. E até a próxima.
Transcrição por Gabriel Naldi