fbpx
Ler outros textos

Curso de Introdução à Esquizoanálise em 2021 (Transcrição – aula 2)

 

Aula 2 – Curso de Introdução à Esquizoanálise

 Por Uma Clínica da Vida, com Luiz Fuganti

Aula completa no Youtube

[Luiz Fuganti]: Boa noite! Boa noite a todos, boa noite a todas. Que prazer, que alegria estar aqui de novo para esse nosso segundo encontro deste curso de introdução à esquizoanálise que denominamos também como “Por uma clínica da vida”. É um prazer, é sempre uma alegria poder compartilhar todo esse trajeto e prática de pensamento e modo de viver com vocês que já nos acompanham há algum tempo. E para aqueles que são novos aqui, enfim, eu me apresento brevemente.

Eu sou Luiz Fuganti da Escola Nômade de Filosofia. Este então, portanto, é o nosso segundo de quatro encontros que temos programados para esse curso de introdução à esquizoanálise — por uma clínica da vida. E nós hoje vamos adentrar em um tema-problema que nós já denominamos, no nosso primeiro encontro, de segunda captura. É a passagem do desejo para uma espécie de segunda queda, mas bem mais sutil e perigosa, de difícil saída, porque ela é travestida por uma elevação, por aquilo que chamamos de empoderamento.

Então, o tema-problema de hoje é exatamente a passagem do nosso modo de existir, do nosso modo de desejar, de sentir e de pensar para um modo que busca o empoderamento. É isso, é disso que se trata.

Bom, nós… eu vejo que tem de novo muita gente aqui. É sempre muito alegrador saber o quanto esse movimento está crescendo. E como eu disse no nosso primeiro encontro, a gente sente a responsabilidade aumentando cada vez mais. E, claro, nós invocamos aqui e nos provocamos a criar uma outra maneira de existir para as forças de humanidade em nós. A esquizoanálise não é apenas uma teoria, e nem mesmo uma clínica incipiente, simplesmente. É todo um modo de viver. É todo um modo de vida que ela envolve, que ela implica. E nós temos aqui o propósito de mostrar o quão necessário e urgente é nos servir, poder nos servir dessas ferramentas, desses instrumentos, desses conceitos e práticas, dessas lentes que fazem ver e que fazem acontecer, e que transmutam o nosso modo de desejar. O quão urgente e necessário é para o nosso atual meio social, político, econômico, cultural.

Nós vivemos inseridos em formações sociais que estão em franco processo de decadência, mas nossas vidas não precisam seguir o mesmo curso dessa decadência social, econômica e política que vêm sofrendo as sociedades humanas. Nós, de fato, precisamos chegar a uma fronteira. A uma fronteira tal que nos permita ultrapassar ou superar aquilo que nos rebaixa, aquilo que nos entristece, aquilo que nos captura, aquilo que faz com que a vida humana se arraste, rasteje e seja indigna do grande acontecimento que é existir. Nós podemos, sim, criar um modo de vida inteiramente alegre, ativo e pleno. Pleno de real. Preenchido por potências de criar realidade. Nós não apenas pensamos isso, nós sentimos isso. Nós estamos envolvidos, implicados nesse propósito, nessa promessa que é, na verdade, uma memória de futuro.

É isso que nos move no presente. Isso coexiste com a nossa maneira de existir. Então é um horizonte que não está dado. É um horizonte que não existe, mas é um horizonte que é real à medida em que se torna uma memória de futuro que nos contempla, que nos envolve, que nos arrebata, que nos arrasta. Então é disso que se trata.

Nós sabemos o quão importante e necessário e urgente é detectarmos aquilo que nos aprisiona, aquilo que nos rebaixa, aquilo que aprisiona o nosso corpo, os movimentos do nosso corpo e torna a nossa sensibilidade algo vulgar ou ordinário. Aquilo que aprisiona o nosso pensamento e torna o nosso modo de conhecer algo que julga, um sistema de julgamento. Aquilo que rebaixa o nosso modo de desejar e preenche o nosso campo afetivo por paixões tristes. Isso tudo nós precisamos desconstruir, e é para ontem. É para agora. É para sempre. Nós não podemos ser coniventes e cúmplices com os poderes tristes e com os regimes de escravidão e tirania. Muito menos com regimes de consoladores. Nós não podemos deixar por menos. A existência não tem, na verdade, nenhum estatuto que determine a ela uma falta de ser.

Há um ser pleno na existência. E esse ser pleno pode ser conquistado aqui e agora. E para que a esquizoanálise se disponha cada vez mais como uma arma de combate, como uma ferramenta essencial na libertação dos nossos modos de viver, para que a gente se torne o mais rápido, o mais breve possível, com a maior consistência, criadores de real, é preciso a gente entender que essa tarefa crítica, essa tarefa da desconstrução é essencial.

A esquizoanálise tem, como eu já sinalizei no nosso primeiro encontro, uma dupla tarefa crítica, assim como uma dupla tarefa criativa. Eu diria que isso é da esquizoanálise, mas é essencialmente do modo nômade de pensar e de viver. É essencialmente disso que denominamos Filosofia da Diferença. Disso que denominamos um pensamento da imanência. Disso que nos importa, que nos arrasta, que nos invoca a partir de uma natureza naturante, plena de si, à qual nada falta, e tampouco às suas partes, aos seus graus, àquilo que dela deriva. Nós não somos seres carentes, exceto por algum desvio ou crença que nos captura por interesses escusos de poderes que nos escapam.

Então, fazer esse trabalho de desconstrução é fundamental. Assim como, eu dizia, a esquizoanálise tem uma dupla tarefa criativa. A dupla tarefa crítica nós denominamos, no nosso primeiro encontro, de primeira captura e segunda captura. O combate à primeira captura e o combate à segunda captura. A dupla tarefa afirmativa ou criativa implica em conquistarmos uma zona de passagem para o desejo sem mediação, uma zona de passagem lisa, sem formas prévias, determinadas. Uma superfície que, à medida em que nós dela nos servimos, serve como zona de indeterminação de tudo o que nos chega pronto, de indiscernibilidade de tudo o que chega demasiado distinto e claro, de ambiguidade de tudo o que chega demasiado definido. Criar essa zona, essa superfície lisa de acontecimento é a primeira tarefa afirmativa da esquizoanálise ou da filosofia nômade.

E a quarta zona de passagem, que refere-se à segunda tarefa criativa ou afirmativa é o desejo que ganha a sua potência de diferenciação, de fazer a diferença. É quando o desejo deseja do alto da sua mais plena potência e se torna o caminho da diferenciação da sua potência. Então é aqui que reside, então, ou é nisso que reside as quatro grandes passagens, os quatro grandes passos pelos quais nosso desejo passa.

Mas a primeira passagem, uma vez que nós somos seres históricos, uma vez que nós estamos envolvidos por um campo social, econômico, político, uma vez que nós somos herdeiros de uma cultura, a primeira passagem é feita como que automaticamente. É como se fôssemos filhos de uma sociedade que necessariamente necessita rebaixar os modos de existir, sem o que ela não consegue formar centros de soberania. Então a máquina social, a formação social necessita que seus pares, que suas peças necessariamente sejam separados de um autocomando. É necessário que essa máquina invista na nossa dependência, sem o que ela não captura o nosso desejo e não conduz a nossa vida.

Essa primeira passagem, para a primeira captura, nós vimos com um certo nível de detalhes no nosso primeiro encontro. Hoje nós vamos avançar e vamos ver que é necessário, para que esse sistema funcione, para que essa máquina social produza os seus efeitos e reproduza o seu poder, ela tem que erigir, junto com o seu centro de soberania, um plano transcendente de organização. E esse plano transcendente de organização não é um inimigo simplesmente exterior. Não é simplesmente um mal que se instala. Não é simplesmente uma entidade malévola que cai de paraquedas sobre os agrupamentos humanos.

Essa máquina social, junto com o seu plano transcendente de organização, depende inteiramente do nosso modo de desejar, do nosso modo de investir o desejo. Esse plano transcendente de organização é justamente aquilo que denominamos, junto com Nietzsche, junto com Artaud, junto com Deleuze, o sistema do juízo, o sistema do julgamento.

Então é o sistema de julgamento que será abordado hoje aqui. E esse sistema de julgamento é tão importante que muitas vezes ele é partilhado por movimentos de direita e de esquerda, e ambos os movimentos, ou nessa pluralidade toda de movimentos, muitas vezes se compartilha dos mesmos preconceitos. Então é necessário a gente destituir, a gente desconstruir realmente esse modo de pensar que no fundo não passa de um modo de ignorar o pensamento e colocar o julgamento no lugar do pensamento.

Nessa medida, isso é uma condição sine qua non para que a gente realmente se torne seres livres e ao mesmo tempo libertários e libertadores. A esquizoanálise pode ser uma prática exercida por qualquer um de nós. Por qualquer um de nós, sem dúvida, desde que faça a sua desconstrução. Desde que desfaça as suas capturas de movimento no corpo, as suas capturas de pensamento na linguagem e as suas capturas de afetos no modo de desejar. Então, essa desconstrução é fundamental para que a gente reconheça as nossas cumplicidades e perceba que há uma outra maneira de ser afetado e usar isso que nos acontece em prol de uma potencialização, e não em prol de um empoderamento. Aqui está um divisor de águas. É fundamental, então, essa segunda passagem.

As pessoas me dizem: “É possível exercer a esquizoanálise? A esquizoanálise não é um pensamento muito difícil ou inacessível?” Na verdade, nada é inacessível. O que a gente precisa reconhecer é que a esquizoanálise é deve ser tão complexa, no mínimo, quanto é a realidade que nos constitui e que nos envolve. Então não adianta nada, com um pensamento simplificado, querer libertar um desejo que está preso por redes muito complexas. O pensamento também tem que ser complexo, mas complexo não significa ser prolixo. Complexo significa ser rico em nuances e perceber que tem muitos níveis, muitas passagens, que não adianta dar saltos na representação, que não adianta ser bem articulado nos discursos, que não adianta ter uma visão racional que vai simplesmente orientar as paixões, porque isso jamais vai funcionar. É fundamental que o pensamento coincida com o campo afetivo. É fundamental que o corpo e o pensamento andem absolutamente juntos, que um afirme o outro e que o outro ative o um. É fundamental que seja de fato um revezamento, uma coexistência, uma pressuposição recíproca entre afirmação e ativação. E nós podemos, sim, fazer isso. E só nessa medida nós podemos nos tornar esquizoanalistas.

A esquizoanálise está ao alcance de todos, de qualquer um, desde que faça essa desconstrução, esse trabalho crítico. Porque se você não faz essa desconstrução, você não desconstrói as suas mediações, a condição mesma que te impede de acessar o imediato do real, aquilo que é mais caro à esquizoanálise, ou ao pensamento nômade, ou ao modo afirmativo de existir. O que há de mais caro é exatamente viver de modo tal, em uma relação imediata com o movimento, imediata com o tempo, imediata com o campo afetivo, de maneira que nenhuma representação se interponha entre o acontecimento e a potência de acontecer, entre a realidade virtual que nos constitui e atravessa e o ato que a atualiza. Nós não precisamos de mediadores, nós não precisamos de intermediários, mas é preciso que desconstruamos as mediações que, na verdade, ao mesmo tempo, nos impedem de ver, de perceber, de sentir, de agir, de reagir, de pensar de modo libertário e nos tornam reféns. Essas mediações nos fazem reféns, fazem com que paguemos pedágio, com que sigamos verdades extrínsecas à própria vida.

Então essa desconstrução é essencial. E é necessário que se faça em passagens reais e não simplesmente na teoria ou na cabeça. É preciso que realmente a gente aprenda a cultivar as passagens e não os saltos. Os saltos, ok, desde que sejam efeitos de passagens reais. Não adianta saltar etapas. Mas esses saltos de etapas, ou essas etapas, não são degraus, não são níveis de uma progressão. Essas passagens são, na verdade, limiares, zonas de intensidade que vão multiplicando as nuances, multiplicando o nosso campo afetivo, o nosso campo de força, o nosso campo potencial. Então, nessa mesma medida, nós vamos nos enriquecendo, criando dobras de força, dobras de afetos, dobras de tempos, dobras de movimentos que nos preenchem, que nos atualizam.

Só nessa medida nós podemos praticar, pensar e praticar uma clínica realmente libertária, uma clínica da vida, mas de uma vida intensiva, de uma vida afirmativa, de uma vida criadora, e não de uma vida reprodutora, de uma vida reativa, de uma vida impotente. Então essa condição é essencial.

Vamos lá. Bom, então, posto isso, é muito importante, vocês que estão acompanhando mais de perto, que revejam a aula anterior e sigam nas próximas, porque assim nós completamos esse ciclo dessas passagens necessárias, onde o desejo primeiro cai uma primeira vez, depois cai uma segunda vez, depois, eventualmente, pode retomar o seu plano de imanência, o seu plano comum dos encontros e, a partir daí, tornar-se novamente criador. Essas passagens não são lineares ou não funcionam a partir de um tempo cronológico. Essas passagens, na verdade, coexistem em nós. Essa ideia de coexistência é fundamental. O nosso desejo coexiste com a primeira captura, com a segunda captura, com a zona lisa de passagem e com a potência de diferenciar. Nós podemos viver essas quatro passagens ao mesmo tempo em camadas diversas de nós mesmos. Nós somos feitos de linhas, de tempo, de movimento, de afetos. E essas linhas têm muitas frequências diferentes. São linhas heterogêneas. Têm tempos diferentes. Têm movimentos diferentes. E elas se atualizam também oportunamente de modo diferente, dependendo das condições sociais dadas ou criadas por nós.

Então é muito importante nós percebermos que no fundo nós não somos um Eu, não somos uma identidade, não somos um sujeito. Nós somos linhas de tempo como duração, e linhas de movimento como movimentos intensivos. Nós somos linhas afetivas. Nós somos uma aglutinação de linhas afetivas. E essas linhas têm ritmo, têm melodia, têm estilo, têm ética. Ou seja, são seletivas, são também estéticas, são musicais, são melódicas. Nós somos fluxo e processo na nossa essência. Não somos substância, não somos forma, não somos identidade. Então, para que a gente acesse essa realidade, é extremamente importante a gente fazer essa desconstrução de si.

Bom, eu vou só olhar rapidamente aqui no chat. Tem muita gente se manifestando. Vocês me desculpem, eu falei “boa noite” de modo genérico, mas é que se eu for começar a ler o chat, eu acabo deixando esse tempo que é necessário à exposição da aula se repartir um pouco e talvez isso não seja uma boa estratégia agora. Eu vejo aqui que tem muitas manifestações afetivas, calorosas, então eu quero agradecer essas manifestações todas e dizer que eu sempre leio as questões, e que essas questões que eventualmente forem surgindo aí no chat nós vamos deixar uma parte para responder no final, e as que não forem contempladas no final serão contempladas no último encontro, ou em um encontro especial, se for o caso, só para responder questões. Então é isso.

Nós estamos aqui fazendo essa incursão. Estimamos um tempo necessário para, minimamente, apontar as linhas principais tanto de desconstrução da forma humana em nós quanto para liberação das forças ativas e das potências criativas em nós. Então nós estimamos que quatro encontros sejam suficientes para termos essa aproximação e para perceber que a esquizoanálise não é um bicho-papão, não é uma coisa de outro mundo, não é uma coisa inacessível, basta querer. Não tem nenhum pressuposto exceto a vontade de pensar, a vontade de viver, a vontade de sentir, agir e pensar intensamente. Vida na veia, esse é o pressuposto. Então, com isso nós podemos, nos empenhando o suficiente, fazendo essa lição de casa, fazendo essa desconstrução, acessar o campo de forças que nos constituem e perceber que ao desejo nada falta.

Na primeira aula, no nosso primeiro encontro, eu apontei alguns — podemos chamar até de princípios, mas… pressupostos, digamos assim, que a esquizoanálise envolve. E um deles era que ao desejo nada falta. E é dele que nós vamos partir hoje, para começar a desenvolver aquilo que vai nos levar à segunda captura.

Nós vimos, com Espinosa, no primeiro encontro, uma diferença entre imaginar e pensar, entre agir e padecer. E eu queria retomar, a partir do próprio Espinosa, certos pensamentos para que a gente avance nessa segunda captura, nessa segunda passagem. E invocar novamente, junto com Espinosa, Nietzsche. Esses dois grandes pensadores, nômades, da filosofia da diferença e da imanência, operam uma crítica profunda e definitiva nos modos de existir que se preenchem de tristeza e buscam a compensação pelo empoderamento.

Espinosa, bem antes de Kant, empreendeu uma autêntica crítica, uma autêntica desconstrução. E Nietzsche, depois de Kant, apontou que a crítica de Kant, na verdade, era uma falsa crítica, era uma crítica reformista, era uma crítica piedosa, era uma crítica que queria preservar a forma humana em nós, em vez de superar essa forma humana que pressupõe o rebaixamento das nossas zonas mais excelsas, criativas e ativas. A condição da crítica kantiana implica uma renúncia, implica a incorporação de um limite. Nietzsche vai ver o quão de conformismo ainda havia nessa crítica kantiana e vai retomar a crítica espinosista e levá-la ainda mais longe.

Então esses dois grandes pensadores vão efetuar uma desconstrução de tudo aquilo que nos rebaixa. E é com eles que eu vou contar nesse segundo encontro.

Claro que eu tenho um modo peculiar de usar esses pensadores, mesmo de me servir da esquizoanálise, mas nada que estaria em contradição ou que implicaria um desvio, uma deformação, uma deturpação desse pensamento. Muito ao contrário. Se bem que nós somos daqueles que não precisamos de devoção a nenhuma ideia ou verdade pronta, e aqui, justamente, com esses pensadores, não se trata de nenhuma verdade pronta, se trata exatamente da liberação da potência do pensamento e das potências de criação de realidade em nós. É disso que se trata.

Então vamos lá. Eu queria partir de algo simples com Espinosa, para que a gente possa avançar. Espinosa vai dizer que nós não somos um sujeito, não somos uma substância, não somos meramente uma consciência. Nós somos, na nossa essência, um grau de potência. Diz ele, toda a natureza, ou a realidade absoluta é uma potência absoluta de produzir ou de criar, ainda que ele não se sirva dessa palavra “criação”. Uma potência absoluta de produzir ou de fabricar. E o que deriva dessa potência são modificações. As modificações ele denomina como modos ou realidades que constituem a natureza naturada. Há uma natureza naturante, absolutamente infinita, e dessa natureza naturante tudo deriva. Ela se autoproduz e produz tudo que dela deriva. Nós somos modos ou graus dessa natureza naturante, graus dessa potência absoluta, então somos graus de potência.

Segundo Espinosa, não há nenhuma potência sem ato. Toda potência necessariamente é real. Mesmo que não tenha existência, ela tem uma realidade. Significa dizer que ela tem um ato. Não há potência sem ato. Para abreviar, eu vou logo para esse ponto. Nós somos uma potência em ato. Qualquer um de nós é uma potência em ato. Tudo na natureza são modos ou potências em ato. Não só os seres humanos. Os animais, os vegetais, os astros, o cosmos, o que você quiser. Todos os modos corporais, todos os modos do pensamento, todos os modos de outras maneiras que eventualmente possam vir a existir são potências em ato.

Então nós somos uma potência em ato. Significa dizer que nós não existimos apenas como possibilidade, nosso desejo não investe uma possibilidade. Ele já vem, ele já emerge de uma potência que necessariamente se efetua. Enquanto potências em ato, nós somos preenchidos de três maneiras, basicamente. Inicialmente, vamos dizer que são duas maneiras. Nós vimos isso já no primeiro encontro.

Nossa potência é preenchida por paixões ou por ações. Por afetos passivos ou por afetos ativos. Basicamente isso. Ou seja, aquilo que nos preenche é aquilo que nos acontece, segundo os encontros que fazemos e as modificações que sofremos. São essas modificações que nos atualizam ou que nos preenchem. Nós nos efetuamos necessariamente. Significa dizer que nós nos efetuamos de modo adequado, de modo pleno? Não. Na paixão, nós nos efetuamos de modo inadequado. O que é o inadequado em Espinosa? O inadequado em Espinosa é o parcial. O adequado é mais importante do que a verdade, e o inadequado é diferente e mais decisivo do que um erro ou do que um engano. Porque o inadequado pode levar inclusive ao empoderamento. E muitas vezes a gente achar que isso é o mais adequado, porque a gente quer se empoderar. Mas nunca vai deixar de ser inadequado.

Então o adequado é um modo de viver cujo encontro que faz com outras potências em ato o modificam de modo que a modificação dependa inteiramente dele, inteiramente dessa potência que se encontra. De maneira que essa modificação jamais vai gerar uma descompensação, um desarranjo, uma decomposição do modo de desejar naquele que assim deseja.

Então há uma maneira, que depende inteiramente de nós, de se relacionar com o que está fora de nós, que necessariamente gera um acontecimento que nos modifica e que, por isso mesmo, nos potencializa. Isso, em Espinosa, é a ação. Então a ação é sempre alegre em Espinosa. Ou seja, um afeto que é uma ação, um afeto ativo é necessariamente algo que nos potencializa. Isso nos preenche? Nos preenche. E as paixões? Também nos preenchem. As paixões são modos de existir que nos determinam de fora, à medida em que a nossa potência em ato, ou força de existir, encontra outras potências em atos ou forças de existir e sofre uma determinação de fora, cuja modificação na nossa potência gere não importa se um aumento ou uma diminuição da nossa capacidade de existir — nós vimos isso no nosso último encontro, que a toda potência corresponde uma capacidade de existir. O ato é preenchido por uma capacidade de existir. Então não importa se a nossa potência em ato, ao encontrar outra potência que nos determina de fora, aumente ou diminua a nossa capacidade de existir, esse ato é sempre uma paixão. Se aumentar, obviamente, a nossa capacidade de existir, vai ser uma paixão alegre; mas se diminuir a nossa capacidade de existir, vai ser uma paixão triste.

Então isso significa dizer o quê? Que necessariamente nós somos preenchidos ou por ações — que são sempre alegres e potencializadoras e singularizadoras do nosso desejo — ou por paixões que podem ser alegres ou tristes. Se for um bom encontro, sou preenchido por paixão alegre; se for um mau encontro, sou preenchido por paixão triste.

Na paixão triste, o que se passa? A minha capacidade de existir diminui, e eventualmente eu me sinto ameaçado e eu vou me esforçar para afastar essa ameaça ou destruir essa ameaça e resistir, perseverar na existência. Essa ameaça pode chegar inclusive a ser uma ameaça de morte.

Então, eu vou me esforçar para permanecer na existência, mas toda a minha força de existir vai ser comprometida nesse esforço, e eu vou empenhar, na verdade, aquilo que me constitui nessa tarefa. Significa então que eu vou estar reduzido à sobrevivência. Certo? Eu vou estar me esforçando para perseverar na existência. E aqui vai acontecer algo curioso, por quê? Porque existem muitas maneiras de sobreviver ou de perseverar na existência. Sobretudo quando comparamos com o outro campo das paixões, das paixões alegres. De um lado, as paixões tristes; de outro lado, as paixões alegres. As paixões alegres são produtos de um bom encontro. Bons encontros que aumentam a nossa capacidade de existir. Bom, essa capacidade aumentada de existir que nos potencializa não nos torna mais livres. Pode nos tornar mais livres, mas não necessariamente. Pode, inclusive, nos tornar mais dependentes — e aqui existe uma ambiguidade: não basta fazer bons encontros, é preciso se tornar causa imanente, intrínseca dos bons encontros. Esse ponto é essencial.

E essa causa imanente, intrínseca, que geraria uma maneira de existir que é capaz de nos tornar ativos, não vem de uma consciência, muito menos de um sujeito ou de um Eu. Esse ponto é essencial. E aqui começa um divisor de águas entre a esquizoanálise e as outras psicoterapias, psicanálises, psicologias e psiquiatrias. Porque a autonomia do nosso desejo não depende da nossa consciência, não depende que o desejo se torne sujeito, não depende da nossa pessoa. E também não depende de uma estrutura ou de um uso estruturante da linguagem. Não depende disso. Tem uma outra instância em nós que está inteiramente disponível, que faz parte da nossa essência, mas, apesar de estar disponível, nem sempre está acessível. E você diz assim, “Mas você está falando uma contradição aqui. Você está caindo em contradição”. Não. É necessário a gente distinguir estar disponível e estar acessível.

As potências fazem parte de qualquer existência. Não significa que elas estejam acessíveis. Muitas vezes elas estão escondidas. Então nossa questão é essa. É: por que nós nos separamos do que podemos? E, mais do que isso, nós perdemos a ligação de tal maneira que nós nem sequer sabemos ou sonhamos que essas forças estão em nós. E é por isso que a gente acredita que ao desejo falta o objeto.

Vamos lá. Então… aqui é preciso a gente ir com calma. Com a calma que permite esse tempo destinado aqui aos nossos encontros. Eu vou ter que fazer alguns… eventualmente, alguns saltos, mas eu vou ao menos apontar as passagens por onde se deve passar necessariamente para que isso se desconstrua e para que a gente crie o nosso plano de consistência que torna dispensável qualquer estrutura ou sujeito. Certo? O plano de consistência é algo a ser conquistado por um modo imanente de desejar. Há um modo imanente de desejar que produz coesão e consistência do real, que dispensa estruturas, dispensa pessoas, dispensa o Estado, dispensa a moral, dispensa as religiões. E cria um estilo e uma ética. Um modo ético-estético de existir, libertador.

Então é isso que precisamos trabalhar, ao menos vislumbrar aqui, minimamente, para que possamos nos aprofundar em outras ocasiões e oportunidades.

Então vamos lá. Eu dizia que aquilo que nos determina de fora nos mantém separados do que podemos, mesmo nas paixões alegres. E por quê? Porque, quando somos afetados e determinados por forças que vêm de fora, uma modificação acontece —ou modificações acontecem — no nosso desejo e na nossa potência. E essas modificações são apreendidas ou percebidas apenas nos seus rastros, nos seus resultados. Espinosa chama isso de “imagem” ou “afecção”. Uma afecção da potência é uma modificação que muda o seu curso de efetuação, e essa mudança pode aumentar ou diminuir a capacidade de existir.

Bom, uma vez que a nossa consciência é feita exatamente disso: dessas imagens ou dessas afecções… por que imagens? Imagens, aqui, não são figuras. Não são formas sensíveis. Imagens aqui são rastros de energia, rastros de desejo, rastros de potência que se formam em nós. São esses rastros que eventualmente se colocam no lugar da nossa potência de acontecer. Esses rastros são efeitos. Não necessariamente esses efeitos envolvem a causa, aquilo que os causa, porque, uma vez que somos determinados de fora, aquilo que acontece à nossa potência não envolve a causa que faz necessariamente esse efeito surgir, esse efeito emergir. Mas nem por isso a causa deixa de estar implicada, então essa percepção é a percepção que a consciência tem. A consciência percebe apenas efeito. Essa consciência é uma consciência material. É uma consciência que se satisfaz com aquilo que chama a atenção do nosso desejo, aquilo que nos põe em vigília, aquilo que nós chamamos de “atenção”. A atenção mesma, ela é capturada por esse efeito.

Nós vimos com o exemplo de Pedro e Paulo, em nosso primeiro encontro. O que nós vimos aí? Nós vimos que a ideia de Pedro não é, necessariamente, a ideia que está em Paulo, que Paulo faz do próprio Pedro. A ideia que Paulo faz de Pedro é uma ideia que acontece ao pensamento de Pedro à medida em que Pedro se encontra… aliás, que acontece ao pensamento de Paulo à medida em que Paulo se encontra com Pedro, estando em um certo estado, em uma certa condição afetiva, em uma certa condição corporal, em uma certa condição mental. E essa ideia, esse efeito depende muito mais do estado de corpo, de afeto e de mente de Paulo do que da natureza de Pedro.

Oras, mas isso está o quê? Está preenchendo o desejo de Paulo. Mas vocês me dizem, “Mas é uma ideia inadequada”. Por quê? Porque é um efeito, claro. É uma ideia inadequada. É uma ideia parcial, portanto é uma ideia mutilada. Por quê? Porque se ela se pretende ser inteira, à medida em que ela é apenas um efeito, ela está reduzindo a causa àquele efeito. Ela está mutilando a realidade. Ela está reduzindo a realidade. E, ao mesmo tempo, é uma ideia confusa. É uma ideia confusa por quê? Porque ela depende do encontro com Pedro nas condições em que Paulo está. Então há uma mistura das potências de Pedro e Paulo no corpo de Paulo.

Ora, essa ideia inadequada, apesar de ser inadequada, apesar de ser mutilada, apesar de ser confusa, apesar de ser uma mera imaginação, ela atualiza, ela efetua o pensamento de Paulo. Mas ela efetua o pensamento de Paulo na imaginação. Então Paulo pensa? Eu posso dizer “Paulo imagina”. Imagina que pensa. Ele está se efetuando? Está. Falta alguma coisa a Paulo? Não. Mas vocês me dizem, “Mas ele não está pensando”. Mas ele está necessariamente se preenchendo. É impossível que aquilo que esteja acontecendo a Paulo não esteja preenchendo inteiramente o seu desejo.

Então nós estamos habituados a quê? Nós estamos habituados a imaginar que Pedro é o objeto do desejo de Paulo. Ou vice-versa. Paulo é o objeto do desejo de Pedro. Então que o que preenche o desejo de um ou de outro é um ou outro. Mas, na verdade, o que preenche o desejo de Paulo é o acontecimento na relação com Pedro. O acontecimento que acontece a Paulo.

O que eu quero enfatizar com isso? É que, à medida em que não falta nada ao desejo, que o desejo necessariamente se efetua, mas, uma vez que necessariamente ele se efetua e ele pode, e geralmente está nessa condição, se efetuando de modo inadequado, aqui começam a acontecer os problemas. Porque se efetuar de modo inadequado é se efetuar de modo parcial. A falta de adequação que Pedro, eventualmente… aliás, que Paulo eventualmente vai sentir vai ser a partir de uma ilusão, a partir de uma superstição. Paulo vai acreditar que Pedro age por intencionalidade. Que Pedro tinha exatamente a intenção de produzir isso em Paulo. De produzir isso que aconteceu a Paulo. A certeza de Paulo é o sentimento de Paulo. Porque a imagem que está em Paulo, que acontece a Paulo, é a que conhece Pedro, mas essa imagem voltada para Pedro, voltada para o mundo, voltada para o exterior é a mesma que, na sua face reversa, exprime o que Paulo está sentindo. Se Paulo está sentindo tristeza, essa imagem que remete a Pedro é a causa dessa tristeza. Então a tristeza associada à causa, a causa imaginária (porque é uma imagem) se chama ódio.

Se fosse o contrário? Se fosse um bom encontro? A imagem atribuída a Pedro teria o reverso, que seria não a tristeza, mas a alegria. Então a alegria, o sentimento de alegria, remetido a Paulo, se chama amor.

Bom, então existe um movimento do desejo: a partir da alegria, desemboca no amor; a partir da tristeza, desemboca no ódio. É o movimento natural, digamos assim, de quem se preenche de modo casual. Acontece que, se você está separado do que você pode, você vai seguir se esforçando para perseverar na existência, e ao seguir se esforçando para perseverar na existência, dispondo apenas da imaginação — porque você está separado do que pode, então você está separado da potência de pensar. Dispondo apenas da imaginação, você vai se esforçar para imaginar aquilo que te satisfaz, aquilo que te alegra, aquilo que te empodera. Aquilo que te potencializa, talvez. E vai tentar evitar aquilo que te ameaça, aquilo que te entristece, aquilo que te ameaça.

Bom, você vai pensar em termos de origem e fim. Algo começa em você. O que começa em mim? O que começa em mim é esse desejo que deseja a partir do quê? Esse desejo que deseja a partir daquilo que eu preciso, daquilo que eu careço. Eu careço de um bom encontro? Então eu vou em busca de objetos que se componham comigo. Eu evito o mau encontro, então eu vou em busca de me prevenir contra os maus encontros. Então eu sempre me esforço para isso. Ao mesmo tempo, aquilo que me atinge eu percebo como sendo uma causa final do desejo do outro. O que é a causa final do desejo do outro? É que o outro tinha a intenção, ou ele tem a intenção de produzir aquilo que me acontece, aquilo que eu sinto. Eu estou atribuindo ao outro aquilo que, na verdade, depende de mim.

Então aqui existe uma primeira zona cega, quando a imagem se coloca no lugar da ideia. E com ela vamos exercer o conhecimento. Nós vamos utilizar essa imagem como arma. Como arma para nos efetuarmos. Para nos efetuarmos no sentido de favorecer a nossa existência, e ao mesmo tempo no sentido de um escudo e de prevenir aquilo que pode ameaçar a nossa existência. Isso aqui tem a ver com a primeira captura.

Mas como é que a segunda captura se constitui? Eu vou agora trazer, junto com esse pensamento de Espinosa, aquilo que Nietzsche chama de “modo reativo de existir”. E a partir daí, eu vou chegar na chamada segunda captura, que é o investimento no empoderamento. Nietzsche vai dizer que nós, humanos, nos tornamos reativos. Por que nos tornamos reativos? Porque, de alguma maneira, ao sermos separados das nossas potências, nossas forças ativas de criar foram capturadas e tomadas pelas forças reativas. As forças reativas se tornaram mais importantes e dominantes nos nossos modos de existir. Então, uma vez que as forças reativas tomaram o lugar das forças ativas, nós nos tornamos seres que investem na conservação muito mais do que na criação. Uma vez que as forças ativas são forças de criação e as forças reativas são forças de conservação, as forças de conservação, ao se tornarem dominantes em nós, vão produzir um modo de existir tal que tudo que nos acontece deve ser lido, interpretado, investido a partir do quê? A partir da conservação. A conservação se torna um valor principal.

No ressentimento, o que acontece? Diz Nietzsche, há no ressentimento o quê? Uma condição reativa. O que é a condição reativa? É a força reativa no lugar da ativa. Uma vez que algo me atinge e eu não sou dominado por forças ativas, ao contrário, são as forças reativas que dominam em mim, uma vez que algo me atinge, o que se passa? Eu, muitas vezes, não consigo aproveitar ou digerir aquilo que me acontece. E aquilo que me acontece, assim como na relação de Pedro e Paulo, pode ser que Pedro aconteça de um jeito tal que Paulo não consiga digerir aquilo que acontece a ele. Então, em um encontro, em um mau encontro pode acontecer o quê? Uma intoxicação. Em um encontro obviamente inevitável. E o que é uma intoxicação? É quando aquilo que me acontece se torna indigerível, se torna tóxico. Mas haveria o quê? Restaria uma saída para mim? Sim, restaria a saída da expulsão, do vômito, do botar para fora.

E se não tem essa saída? Uma vez que já te atingiu e o estrago está feito? Bom, haveria uma segunda saída que é uma digestão difícil. Talvez você passe mal, mas consiga digerir e você recobra a saúde. Mas acontece outra coisa, muitas vezes. Acontece que coisa? Acontece que a gente nem consegue expulsar de nós, nem consegue digerir, mesmo uma digestão difícil. Haveria ainda uma saída para isso? Haveria, se as forças ativas fossem dominantes em nós. Se a força do esquecimento fosse dominante em nós. Se nós não ficássemos presos em memórias de marcas. Mas o que acontece? Uma vez que as forças reativas são dominantes em nós, eu não consigo isolar. Eu não consigo criar uma distância disso que me aconteceu. E isso que me aconteceu toma o lugar da minha potência de existir, da minha potência de agir, da minha potência de sentir, da minha potência de pensar.

Então, se toma o lugar da minha potência de sentir, inclusive, mas eu vou deixar de sentir? Não, não vou deixar de sentir. Eu apenas vou sentir de novo, e de novo, e de novo a partir daquilo que me aconteceu. Ou seja, eu vou sentir… não importa que os acontecimentos sejam novos, importa que aquilo que vai ser o anfitrião desses acontecimentos em mim vai ser o meu estado de indigestão. Vai ser o meu estado de intoxicação. Eu vou deixar ou permitir que esse estado de intoxicação tome toda a realidade do meu ser. Então é esse estado que vai virar um limite dentro de mim. Eu vou introjetar um limite. E esse limite vai coincidir com aquilo que eu chamo de “alma”, ou com aquilo que eu chamo de “sujeito”, ou com aquilo que eu chamo de “consciência”, ou de “Eu”. Aqui eu posso mudar os nomes, não importa. Quem vai dar o Norte é esse estado de indigestão. E é isso que Nietzsche chama de “marca”. Isso é uma marca, isso é uma memória de marca. Isso é o modo como o tipo reativo produz registro do campo afetivo. Esse modo de registrar é um modo reativo. Esse modo reativo produz uma memória que é uma memória da vingança.

Nietzsche associa essa memória a um sentimento de vingança. E por quê? Porque se eu perco a potência imediata de acontecer porque um acontecido indigesto não para de regurgitar em mim, não para de retornar. A cada provocação do novo, a cada provocação dos devires, das diferenças exteriores que me envolvem ou que me atingem, invoca sempre o quê? O meu estado de indigestão. Essa marca vai cristalizar ou estriar a minha superfície. Qual era a minha superfície? A minha superfície era o meu ato. Aquilo que me coloca na porta do existir. É a porta da existência. É o meu portal para a existência. Eu existo a partir dessa zona de passagem. E o meu ato começa nessa zona de passagem. Ora, o meu ato é substituído — vai ser um ato ainda, mas vai ser substituído por essa marca.

Então essa marca, esse regurgito não vai parar de retornar e se apresentar como o anfitrião maior, que eu vou chamar de Eu. Eu recebo os fluxos de fora. O sujeito em mim recebe, a minha consciência recebe esses fluxos. De que maneira? A partir de uma lente já codificada, já riscada, já arranhada, já estriada, já redutora. Por que redutora? Porque esse acontecido vai fazer a leitura de toda a potência de acontecer. Vai sobrecodificar toda a matéria fluida, os fluxos de matérias sonoras, luminosas, olfativas, táteis, gustativas e mesmo os sentidos da linguagem vão ser filtrados por essa marca, por esse limite interior.

Ora, isso vai gerar o que exatamente? Vai gerar um reforço e uma cristalização sobre isso que eu me tornei. Isso que eu me tornei vai ganhando camadas. Vai ganhando camadas de uma maneira tal que o meu desejo, ausente da potência imediata de acontecer, busca uma compensação.

Por que isso acontece? Vamos tentar ver os afetos do tipo reativo. Aqui não é exatamente um tipo reativo ainda, é uma espécie animal reativo. Como diz Nietzsche, é uma espécie de sentimento animal aqui, o ressentimento, ainda. O que é o ressentimento animal? É aquele que ainda não tem a forma, que não recebeu a forma do discurso, a forma das narrativas, a forma do ideal, a forma dos gurus, a forma dos líderes, a forma dos padres, a forma de deus, a forma de algum Estado. Não recebeu.

Então existe um campo afetivo nesse ser tornado reativo. Como ele deseja? Ele deseja sempre de modo retardado. Como ele pensa? Ele pensa sempre de modo retardado. Ele pensa a partir da consciência, a partir das marcas, a partir desse limite. Ora, as marcas, o limite sempre remete àquilo que aconteceu. O que aconteceu impede ele de viver o acontecimento enquanto acontece. E, se a fonte do real vem do próprio acontecimento, como é que ele vai apreender aquilo que no acontecimento é o alimento da potência? Como ele vai extrair do acontecimento o sentido que necessariamente potencializa a potência? Ele não consegue. Por quê? Porque ele não vive o acontecimento enquanto acontece.

Nessa mesma medida, ele não tem a retroalimentação a partir do acontecimento. Ele está sempre no acontecido, no que foi. Como diz Nietzsche, ele tem e cultiva um olhar de caranguejo. Está sempre olhando para trás, para o que foi, enquanto o que acontece está se passando. Enquanto o que acontece está se passando, ele está perdendo a oportunidade de aproveitar, de extrair o que o acontecimento tem de inédito. Como diria Deleuze, “o esplendor eterno e neutro do acontecimento”. A sua dimensão inesgotável. O alimento essencial do desejo. E ele se sente o quê? Ele se sente preterido, ele se sente segregado, ele se sente injustiçado. Por quê? Porque ele não consegue se reestabelecer na sua potência plena de acontecer.

Uma vez que o acontecido toma o lugar da potência de acontecer, ele busca desesperadamente o quê? Aqui existe um modo já. Ele é passivo, certo? Ele não reage mais, ele apenas ressente, ele sente de novo tudo o que provoca ele. Ele ressente, ele não reage. Ele só reagiria se ele agisse as suas forças reativas, mas as forças reativas são dominantes. Não são agidas pelas forças ativas, que já estão fora de serviço, não estão mais aí.

Então ele ressente, ele não age, ele não produz, ele não cria. Então ele não se preenche de uma realidade que ele mesmo seria capaz de produzir. Não se preenche disso. Então ele vai precisar o quê? Extrair um lucro ou uma vantagem disso que age ou produz, disso que vem de fora. Ele vai ter então uma tendência, um sentimento que é passional, porque ele é passivo, e esse sentimento é também um ressentimento, porque o que o intoxicou, o que o separou do que ele pode segue nele como uma realidade dominante, imperativa, e ele busca o quê? Ele busca uma compensação. Ele busca uma restituição desse atraso que ele sofre.

Então o sentimento essencial do reativo é duplo. Por que eu estou falando isso? Porque em toda a obra de Deleuze e Guattari, no Anti-Édipo e no Mil Platôs, há uma espécie não apenas de denúncia, mas de desconstrução de todo modo passional, reivindicativo que constitui a subjetividade capitalística. Ora, aqui está a essência do passional reivindicativo. Nietzsche faz um raio-x do tipo reativo. E você percebe exatamente, ao vivo e a cores, como ele se cria, como ele existe, do que ele se alimenta. O que ele investe. Como ele afeta e é afetado. Quais são seus valores, seus desejos, seus sentidos de vida.

Então a primeira coisa: se ele é passivo, ele não produz, ele não cria. E ele se sente vítima, ele se sente atrasado, ele se sente injustiçado, ele se sente preterido, segregado, excluído, rebaixado, mas ele precisa reivindicar, ele precisa buscar uma salvação, ele precisa buscar uma saída. Então está se produzindo um buraco no desejo. Está se produzindo uma falta no desejo. Está se produzindo uma carência tal que todo modo de desejar vai ser no sentido de se contrapor a essa carência e a essa falta. Vai ser no sentido de buscar a restituição, de buscar a compensação, de buscar, a partir da sua impotência, um empoderamento.

Então aqui é uma linha básica, é uma linha muito esquemática de como se cria um buraco e a partir daí se instaura um desejo que vai desejar uma altura. Porque sem esse desejo de altura não existe a segunda captura. É no desejo de altura, é no desejo de resgate, tipo “segura na mão de deus”, ou vai buscar proteção do Estado, ou do capital, seja do que for, é esse movimento do desejo que morde a isca. E aqui existe todo um investimento sedutor. Há toda uma sedução do campo social que faz com que haja uma produção e uma reprodução do poder. Uma produção de impotência e uma reprodução de poder. Mais do que repressor ou opressor, o poder captura e produz as condições e reproduz aquilo que o sustenta.

Esse aspecto é essencial porque ele está constituindo, aqui no modo de existir, uma orientação para o desejo, para o corpo e para o pensamento. Um investimento em uma instância que reconheça e que restitua essa vida. Em uma instância que autorize, que empodere e que dê direito. Então há essa tendência. É aqui, essencialmente, que nós aderimos a um segundo movimento que nos torna cúmplices. Duplamente cúmplices das nossas impotências e da multiplicação da miséria humana. Justamente quando queremos sair da miséria com esse mau jeito.

Espinosa diria, “Você vai investir em uma narrativa”, “Você vai investir em um modo de se comportar”, “Você vai investir em um modo de se preencher que vai te devolver o direito a existir e se empoderar”. Vai ter um gosto aí. Vai ter um investimento aí. Não é simplesmente uma mera… não é uma repressão apenas. Ou uma opressão. Existe um movimento do desejo. O desejo jamais abandona o campo social. Ele está sempre por trás de tudo. É por isso que se a gente não tocar o desejo, o desejo não toca nada. Não adianta querer salvar as vítimas. A gente precisa encontrar um modo de desejar. Esse ponto é essencial.

Bom, vamos lá. Investir, então, aquilo que me conserva, aquilo que me desenvolve e aquilo que me empodera vai ser uma tendência, mas, voltando para Nietzsche, esse ser tornado reativo no seu estado bruto, no seu estado animal, sem forma ainda, sem ter virado um sistema, ele não sabe muito bem o seu inimigo. Quem é o inimigo de um ser tornado reativo? O acaso é um inimigo? Certamente. As ameaças do acaso? Certamente. As diferenças são inimigos? Certamente. Aquilo que não tem intencionalidade ou que vai ser confundido com aquilo que tem uma má intenção? Certamente isso vai ser o inimigo, vai ser ameaçador.

O que ameaça esse tipo? O que um tipo reativo, ressentido, mais teme? Ele teme exatamente aquilo que o ameaça, de que maneira? Aquilo que evita atendê-lo nas suas necessidades. E, pior, que pode se tornar uma animal de rapina. Um animal predador, um animal que vai se apoderar do impotente. Digerir, dissolver, decompor o impotente.

O sentimento de quem está separado do que pode, de quem está preenchido por um estado de intoxicação é o quê? É que tudo que vem de fora, uma vez que tudo o que vem de fora é necessariamente força, e força, necessariamente, se diferencia na existência — uma força é aquilo que não tem intencionalidade, uma força é aquilo que tem intensidade. Necessariamente essa força vai se tornar uma ameaça para o ressentido. Vai haver uma figura aqui, uma figura que vai emergir. A figura…

Nietzsche, inicialmente, na Genealogia da Moral, ele vai identificar como sendo a figura do padre. O que é o padre, para Nietzsche? O padre é aquele que inverte os valores. Uma das definições que Nietzsche dá para padre é aquele que inverte os valores. É aquele, por exemplo, que vai dizer que na existência só tem negação ou ameaça, que a ação é essencialmente nociva se ela não for subjugada a um ideal. Então é preciso filtrar as ações, as ideias e os sentimentos através de um ideal. O ideal é aquilo que não está na existência. O ideal é um modelo, é um princípio que serve para você se organizar, para você gerir o seu comportamento e o dos outros; para gerir os seus pensamentos e os dos outros; para se responsabilizar com o seu desejo e com o dos outros. O ideal se torna um intermediário, um meio de enquadrar aquilo que difere e que pode se tornar uma ameaça.

O ideal é o grande escudo do impotente. Então a invenção do sacerdote é essa, o sacerdote é o artista que cria essa ficção do ideal. E com essa ficção do ideal, ele vai dar um instrumento para aquele que se separou do que pode, para aquele que está intoxicado, para aquele que se tornou um ressentido. Ele vai dar um instrumento, vai dar um meio para esse se cuidar, sobreviver, se desenvolver e inclusive combater seus inimigos. Ele vai criar um meio de empoderar o rebanho, digamos assim, se compararmos os seres ressentidos a ovelhas. E esse sacerdote é um pastor. Então esse pastor dos homens, esse sacerdote, vai ensinar esses seres a se defenderem, a sobreviverem, a se desenvolverem e a se empoderarem. De que maneira? Lançando mão do ideal. O que é o ideal? O ideal é algo que não tem realidade na existência. É um modelo. É um modelo daquilo que permanece idêntico a si mesmo, daquilo que jamais deixa de ser, daquilo que traz uma forma conforme há o limite do impotente, conforme há o limite daquele que se intoxicou e introjetou o seu estado reativo como um fundamento dentro de si.

Esse estado reativo que se torna um fundamento é o começo da alma, por exemplo. Vai buscar sempre o quê? Um objeto exterior que satisfaça esse estado ou esse modo de viver reduzido a esse estado de impotência, que preenche esse buraco. Então esses preenchimentos podem ser feitos por objetos materiais, mas, à medida em que os objetos materiais não satisfazem, eles estão sempre buscando, através do ideal, um novo conteúdo — que jamais chegará a preencher esse desejo, jamais. É impossível, pela própria natureza dessa operação.

A falta jamais vai ser suprida. A insuficiência de ser está inoculada no coração do desejo dessa maneira. Mas a grande sacada do sacerdote e dos sistemas de poder que eles trazem junto, é que você cria um instrumento para enquadrar o fora, para enquadrar a multiplicidade que está fora de nós. Ao mesmo tempo, vai enquadrar a multiplicidade que está dentro de nós. Mas o que o ideal faz? O ideal, que é uma forma de permanência, é algo que permanece idêntico a si mesmo, que jamais muda, é uma imagem do ser —é uma imagem fictícia, obviamente, dos ser —, ele vai criar uma distância com aquilo que existe concretamente. E essa distância vai dar a medida do afastamento ou da proximidade com esse ideal. E quanto mais próximo do ideal, mais valor vai ter ou, quando mais afastado desse ideal, mais desprezível ou sob a condição do julgamento vai estar.

Então aqueles que estão fora, no campo exterior, que são potências de acontecer, potências em ato que afirmam a diferença que da potência deriva, necessariamente se preenchem de intensidade e de afetos ativos, mas não têm uma natureza ativa e afirmativa que vá atender à finalidade do reativo que espera um preenchimento. Não há como, nunca vai coincidir. Então o primeiro a ser enquadrado nesse modo de julgar é aquele que afirma a própria diferença. Ou seja, quem afirma a própria diferença? É o tipo ativo, é o modo ativo de existir. Não há… claro, aqui eu precisaria explicar melhor essas passagens, porque infelizmente o nosso tempo não vai permitir que a gente se detenha muito, mas eu vou apenas sinalizar para aqueles que querem pesquisar e estudar.

O tipo ativo implica uma maneira afirmativa de existir. Porque o que é a afirmação senão esse horizonte, senão essa zona de passagem que invoca a potência ou a zona potencial de nós mesmos para que se diferencie na existência? Então, essa diferenciação na existência necessariamente é a diferenciação da potência e não a subserviência a um ideal. Então, se não é a subserviência ao ideal, e se o ideal, segundo o sacerdote, segundo o Estado, segundo essa liderança suposta que salvaria o rebanho, ele é representante do bem. Aquele que não observa o ideal vai estar sempre indo em direção ao mal e não em direção ao bem. Ou seja, é o próprio sacerdote que inventa a dicotomia entre bem e mal, a partir da criação do ideal, supondo que o ideal é o bem.

Ora, aqui vai haver o quê? Vai haver um julgamento sobre toda a diferença. A diferença, em vez de ser afirmada imediatamente, ela vai sofrer uma mediação, uma projeção. Todo modo de desejar que idealiza vai projetar o ideal sobre todo modo existente que diferencia. E essa projeção do ideal vai ser uma sombra lançada sobre a existência, que vai tornar toda diferença uma oposição. É bem dialético esse processo. Nietzsche vai dizer que a dialética é a lógica própria do ressentimento. E a dialética hegeliana? Totalmente dentro dessa lógica. Nietzsche está falando contra Hegel, na verdade. Porque Hegel vai dizer que o modo dialético de pensar é o modo a favor do movimento e da mudança. Que movimento e que mudança? É o movimento do negativo e a mudança do reativo. Não é a mudança ativa e o movimento intensivo.

Então a dialética, o que faz a dialética? Ela olha primeiramente a diferença como uma oposição. E por que é importante ver a diferença como uma oposição? Porque você tem que olhar para a diferença e ver se ela pode se compor com você ou ela te ameaça. Então, uma vez que eu suspendo, sob essa lente da oposição, e aí eu vou averiguar se ela me serve ou se ela me contradiz, ou seja, se vai operar uma síntese ou vai investir na antítese, vai excluir o movimento do meu desejo, essa lente vai ser, na verdade, o instrumento que eu vou ter para enquadrar a diferença, identificá-la, responsabilizá-la e processá-la. Ou seja, a diferença que não observa suficientemente o ideal, que não observa suficientemente a lei, que não observa suficientemente o bem, que não observa suficientemente a razão universal, que não observa suficientemente o dever-ser… você vê que o ideal vai mudando, né? Vai do ideal, que não existe, para a lei, que já é uma razão social, ou para o Estado, que traz uma universalidade, até para a espiritualidade interior da norma, do normativo, do moral. Mas é o mesmo ideal que vai migrando, vai mudando de nível.

Então a diferença que não observa o ideal, que não observa a lei, que não observa o universal, que não observa a moral, é uma diferença má intencionada. Então a má intenção, na verdade, vai se culpabilizar o desejo por afirmar a diferença da sua potência, porque se você afirma a diferença da sua potência, você afirma imediatamente, sem pensar nas consequências. Por que você não pode pensar nas consequências? Porque você não estaria afirmando. E por que é desnecessário pensar nas consequências? Porque se você afirma necessariamente a diferença, necessariamente a diferença vai produzir valor. Ela vai produzir uma realidade. Ela vai ser… esse desejo vai ser dadivoso, essa vontade vai ser dadivosa, vai ser geradora, e não um desejo que cobiça, que quer tomar, que quer se apropriar do outro. Ao contrário.

Então, a ação necessariamente é boa. É como diz Espinosa, não existe ação ruim. Não existe ação negativa. Não existe má ação. Se tem uma má ação, é porque é um movimento acoplado a uma negação, é outra coisa. A ação em si mesma, é impossível que ela seja ruim. A ação é geradora.

Então se eu estou em um modo de viver que necessariamente afirma a minha diferença e produz uma ação, não vai atender ao impotente que espera um preenchimento. Jamais. Mas o impotente estará buscando um sistema que o proteja e que possa extrair lucro da ação de um outro. E ai desse outro se não gerar esse lucro, esse valor, essa compensação. Então aí ele vai sofrer o quê? Um enquadramento. E o enquadramento vai dizer quão distante estava o outro ou essa diferença exterior desse ideal. Dependendo dessa distância, vai gerar um nível de prejuízo tal que vai precisar se elaborar, fazer o cálculo das dores, dos sofrimentos ou dos prejuízos, digamos assim, para exatamente sancionar o castigo ou a devida correção.

Então é assim que se instaura um processo de julgamento. A instância do julgamento implica essas várias dimensões. Ela implica a vida tornada reativa, portanto as forças reativas sendo dominantes em mim em relação às forças ativas, às forças de criar. São forças de conservação sendo dominantes. Ela implica uma vontade de negar, do sacerdote, do artista, do líder político, do Estado, de deus, seja lá do que for, dessa instância exterior que vai investir no ideal. É uma vontade de negar por quê? Porque o ideal é uma negação. Negação do quê? Negação da suficiência da existência. Negação da suficiência da realidade. É como se à realidade faltasse a finalidade. Olha a ilusão de finalidade aí. É como se à realidade faltasse uma origem do bem. Porque o desejo já está imerso em uma diferenciação que pode se desviar do bem. Ele já é desviante. O desejo, em essência, tem essa virtualidade perversa, essa virtualidade desviante.

Ora, claro, não há dúvida que a nossa essência, a nossa potência é necessariamente desviante de tudo o que está pronto. Porque existir, essencialmente, no seu mais alto valor, é criar. E você não cria se adequando ao que está pronto. Existir é criar, essencialmente. Essa é a mais alta liberdade. Ora, se essa é a essência do desejo mais pleno, e se você existe dessa maneira, você vai estar sujeito a esse enquadramento. Ou seja, uma sociedade que implica um centro de soberania não suporta um modo de vida realmente livre. Mas aí o que nós podemos fazer para não abrir mão, nos manter ligados ao que podemos e enrabar esses sistemas de poder? Não deixar que eles nos dominem e capturem, mesmo que a sociedade siga atolada onde ela está. Nós podemos ser livres, não importa que estado, em que nível de desenvolvimento as sociedades humanas estejam. Aqui e agora nós podemos fazer isso.

Bom, mas então… eu não sei se vocês perceberam. Há primeiro a produção de um tipo de desejo, a produção de um tipo de vontade nesse modo reativo de existir, nesse modo ressentido de existir. Ao mesmo tempo que um sacerdote, um líder, um artista do ideal, ele é um misto de reativo com uma vontade de negar. Ele é um misto de doente com uma vontade de poder. Por quê? Porque ele precisa entender o que o reativo precisa. Ele também é um doente. Ele também é um tipo separado do que pode e está intoxicado e preenchido por marcas. Ele também é um ressentido. Ele também perdeu a superfície. A superfície está toda craquelada, toda endurecida, não tem mais a potência plástica, não tem mais a potência estética. A potência estética, a potência plástica está interditada. Os fluxos não chegam mais em estado puro. Ele não se relaciona com movimentos intensivos, com tempos e durações, com afetos ativos. Ele é incapaz de se relacionar imediatamente com isso. Então ele já está separado da fonte, porque o que é a fonte? A fonte está em relação direta com essa superfície, com essa zona de passagem onde os fluxos chegam em estado puro e você pode extrair, de cada acontecimento ou encontro com esses fluxos, aquilo que eles têm de inesgotável.

Então você está separado disso, exatamente porque as marcas tomaram a sua superfície e você caiu em um buraco. Então você acabou com a superfície, porque superfície ficou toda estriada, não é mais lisa. O seu desejo está capturado por aquilo que foi, ou seja, você está em um buraco. E você busca o ideal ou aquilo que vai ser e, ao mesmo tempo, aquilo que vai ser deve ser regulado por uma forma de provisão, pelo bem. Todo esse modus operandi, então, envolve o tipo reativo e a vontade de negar. A vontade de negar é o modo como o nosso desejo vai se relacionar com o tempo, com o movimento e com as diferenças. O modo como nós vamos nos relacionar com o devir. Nós vamos ter um mau-olhado para o devir, um mau-olhado para o tempo. Nós vamos sempre ver no tempo e no acontecimento o horizonte da morte, aquilo que nos ameaça e aquilo que nos desvia. Aquilo que necessita de um controle. Aquilo para o qual nós precisamos nos armar, criar escudos, nós precisamos nos defender disso.

Então nós vamos investir em leis, em discursos, em narrativas, em instituições, em formas de nos relacionar através de contratos. Nós vamos investir em todo um campo de mediação sem o qual a vida estaria nua e ameaçada. Nós vamos ter vontade de investir em um centro de soberania que nos proteja. Então esse desejo é fabricado socialmente. E quando você encontra essa sociedade, essa máquina social que tem o maior interesse em que você caia pela primeira vez, que você se confunda e se reduza àquilo que te aconteceu, ela vai se apresentar como boa, benéfica, como a que vai gerar a providência e os provimentos para que sua vida sobreviva, para que você se desenvolva, para que você cresça e apareça. Ela vai te dar a mão, vai ser a mão do bem.

Então a mão do Estado, a mão de deus, a mão do ideal, a mão da verdade, a mão da autoridade vão se confundir com a mão do bem. Há toda uma sedução nessa instância. Há um investimento em uma instância salvadora. Por que o desejo chega a desejar a própria repressão? É uma pergunta que Espinosa já respondia. E Nietzsche, com certeza. Mas La Boétie, um jovem pensador do século XVI, se questiona por que havia uma servidão voluntária, por que as pessoas servem ou se submetem voluntariamente. E depois Reich vai dizer em relação aos alemães. Ora, os alemães não foram enganados, eles desejaram o nazismo. Por que nós desejamos Bolsonaro, Dória, Crivella e tantos outros que estão aí o tempo inteiro? A troco de quê, exatamente? É uma trapaça essencial. É uma compensação. É um empoderamento que buscamos. Por quê? Porque nos tornamos miseráveis afetivamente. Estamos separados do que podemos. As marcas e as intoxicações tomaram o lugar do nosso ser inteiro enquanto potência de acontecer.

Então há um interesse em produzir a falta e o buraco. Ou seja, há um interesse na produção e na multiplicação das paixões tristes. E quando nos entristecemos, o Estado vem e nos oferece a mão. Como diz Estamira, para quem aqui assistiu ao filme do Marco Prado, Estamira, ela diz assim, “Dá o tapa e esconde a mão”. É dando o tapa que nos rebaixa, e esconde a mão que nos rebaixa, mas estende a outra mão, como sua instância sedutora, e nós mordemos a isca.

Nós chegamos a um ponto tal de separação das nossas potências ou das nossas forças de existir, agindo, sentindo e criando realidade, nós nos separamos a um ponto tal que nós sequer sonhamos que temos essas forças em nós. E à medida em que sentimos que         há uma ausência, uma insuficiência de ser, que sentimos a falta como constitutiva da nossa essência, nós nos tornamos conformados. E nós pensamos “Bom, deve haver um jeito”. Deve haver um jeito de burlar essa tristeza, essa miséria na existência. Deve ter um jeito esperto, o que Estamira chamava de “esperto ao contrário”. Deve ter um jeito de compensar. E nós buscamos a qualquer custo a compensação, e por isso aqui se torna uma coisa complicada achar que de fato só existe esse modo de pensar, sentir e agir, esse modo que busca sempre, a partir de uma finalidade, aquilo que restitui a plenitude da existência — o que já se sabe de antemão que não vai se restituir. A existência vai ser sempre faltosa. Mas pelo menos vai ser melhorar. É o modo moralista de existir, achar que a existência, que é imperfeita, pode ser melhorada, e jamais vai deixar de ser imperfeita.

Ora, nós estamos aqui na contramão disso. É muito ao contrário. A existência é perfeita, inclusive o mal, as dores e a doença. São interventores de modo a fazer da vida uma perfeição. Não há imperfeição na existência. Não tem dor na existência que seja capaz de tornar a existência imperfeita para quem de fato sabe apreender a plenitude do real.  Existe um modo de ver, se sentir, de pensar que é pleno, que é afirmativo. E nós precisamos retomar isso.

O que nos impede de ver? Aquilo que nos tornamos. O acontecido em nós é a nossa primeira barreira. E aí, cegos que nos tornamos a partir de uma covardia inicial, porque atrás da cegueira tem uma covardia, nos conformamos e buscamos piedosamente aquilo que vai nos salvar. O que vai nos salvar é uma instância de empoderamento. Ora, a instância de empoderamento vai, por mais que queiramos nos enganar, nos embriagar, nos entorpecer, ela vai nos levar para um buraco ainda maior. Nada vai curar essa ferida da insuficiência de ser, como diria Lacan, se de fato não fizermos a lição de casa. Se não dermos um passo atrás. Se não começarmos a descontruir essa construção corrompida das formas humanas dominantes de existir. É fundamental fazermos essa desconstrução. É fundamental largarmos o osso. É fundamental deixarmos de aderir a um sistema que nos seduz.

Vai aumentar a tristeza? Vai aumentar a dor? Vai aumentar a insegurança? Talvez, em um certo sentido.  Mas também vão aumentar ou multiplicar as oportunidades de retomarmos a vida nas próprias mãos, e de não dependermos de nenhuma instância exterior de empoderamento. E de perceber que, para haver essa instância de empoderamento, é preciso que a minha vida siga impotente e separada do que pode. Porque não tem poder nesse mundo que vá extinguir a impotência. É muito ao contrário: onde há poder, há multiplicação da impotência e da miséria. Na verdade, quando você quer atacar o poder, você não ataca nada se você não ataca as condições de enfraquecimento da vida e de produção e reprodução da miséria afetiva.

Não há capitalismo que não se alimenta da multiplicação da miséria afetiva. A miséria afetiva é a matéria subjetiva por excelência que faz com que todos nós nos tornemos sujeito universal do capital. Há um único sujeito, como diria Marx. É o sujeito universal do capital, que coincide com o nosso modo miserável de existir. E é esse modo miserável de existir que vai buscar a compensação na reprodução do capital.

Aqui é um foco direto nas nossas cumplicidades. Focar nas cumplicidades. O que haveria como antídoto para isso? Se passa tudo em dois níveis, nos níveis das duas capturas. Primeiro, fazer um uso interessante do que nos acontece — de bom ou de mau. Um uso interessante, não é um uso verdadeiro, porque a verdade é uma ficção. É um uso interessante. E não um uso, primeiro, vitimizado, piedoso e justiceiro do mal que aconteceu, de um lado; ou então um uso complacente e empoderador do bem que aconteceu.

Primeiro é desinvestir esse mau uso tanto do bem quanto do mal que me acontece. E extrair, tanto do bem quanto do mal, não compensações, mas intensidades que retomam as forças que nos constituem e nos potencializam. Mas, para isso, é necessário investir em uma suspensão. É necessário investir na espreita. É necessário indeterminar os movimentos que nos determinam. Indiscernir os movimentos que nos distinguem ou identificam. Tornar ambíguos os movimentos que nos binarizam ou que investem nos sistemas duais, binários e biunívocos. Esses sistemas dicotômicos. É necessário que nós invistamos nessa força de suspensão que indetermina os movimentos, os tempos e os afetos e disponibiliza o nosso tempo próprio, os nossos movimentos e o nosso campo afetivo. E, a partir daí, gerando intervalo ou distância entre aquilo que nos acontece e a nossa potência de acontecer, gerando entretempos, nós intensificamos o nosso desejo. Aumentamos, dilatamos, ampliamos a duração. Investimos na nossa fábrica de diferenciar. Nós nos tornamos fonte de diferenciação e, por isso mesmo, fontes de produção de valor.

Claro que esses elementos eu vou desenvolver no nosso próximo encontros. A questão do que fazer para reconquistar a superfície, que é o primeiro aspecto criativo ou a primeira tarefa positiva, para usar um termo de Deleuze e Guattari, da esquizoanálise. A primeira tarefa positiva da esquizoanálise é reencontrar e ao mesmo tempo criar uma superfície lisa, uma zona de passagem que é aquilo que nos dispensa das mediações e dos sistemas de representação. E, a partir daí, empreender a segunda tarefa positiva, que é entrar no processo de diferenciação ou de criação de valor — que é, ao mesmo tempo, a criação das condições de existência ou de tudo que de nós deriva, e fundamentalmente criação de nós mesmos. Onde nos tornamos diferentes de nós mesmos, superando a nós mesmos a cada movimento ou ato de existência, ampliando a nossa zona de multiplicidade, as nossas nuances, e reconquistando o direito ao futuro. Ou seja, dispondo do futuro. O futuro se torna aberto.

O futuro se abre e o passado deixa de ser um demônio que nos arrasta para baixo, um espírito de gravidade que nos lança em um buraco e se torna o quê? Uma potência que sobe à superfície ou uma força turbilhonar que nos torna leves, fluidos e nos faz dançar. Que afirma uma linha de fuga onde o movimento do desejo e o caminho que ele percorre se tornem uma coisa só. O próprio desejo traça o caminho que ele percorre, ao mesmo tempo em que ele percorre. Ou seja, uma linha de fuga que cria um circuito ativo, afirmativo e autossustentável do devir. Isso é totalmente factível.

A esquizoanálise não pode deixar por menos. A esquizoanálise não é um modo de ver a vida um pouco melhor. A esquizoanálise implica em uma visão de perfeição da existência, absolutamente afirmativa da existência. Não faz concessão, não precisa fazer o sacrifício da concessão.  Há, sim, uma ótica. Há, sim, um horizonte. Há, sim, uma maneira que é plenamente afirmativa daquilo que se diferencia em nós e que cria valor.

Eu… bom, nós estamos aqui já há duas horas do nosso encontro, e eu vou fazer o seguinte: eu vou dar uma olhada rápida nas questões que eventualmente surgiram aqui. Ver o que dá para ir respondendo. E aquelas questões que não forem respondidas, eu, ou no último encontro, ou em um encontro extra, a gente vai dar um jeito de respondê-las.

Eu tinha dito, no nosso primeiro encontro, o quê? Que as questões que porventura vão surgindo podem ir sofrendo modificações à medida em que vamos avançando no desenvolvimento das ideias. E você pode até recolocar a questão de uma outra maneira, à medida em que vai avançando. E às vezes acontece da questão simplesmente desaparecer. Mas se ela permanece e ela é recolocada de outra maneira, ela tem uma espécie de evolução, o que é muito bom também.

Então às vezes é bom aguardar certos desdobramentos, ou para perceber que aquelas questões acabam sendo respondidas, ou elas mudam de natureza e são recolocadas de outra maneira. Então isso é importante atentar, mas eu vou, então, dar uma olhada rápida aqui no chat e ver o que a gente pode fazer. Bom.

Vamos ver aqui. Mariana Siqueira Nascimento diz. Ah, não. É, olha, é um comentário interessante. Ela “arrisca dizer que o empoderamento implica algo externo, concedendo ao indivíduo o poder, e isso é diretamente contrário ao centralizar-se em sua própria força”.

Muito bem, Mariana, é exatamente isso. Bom, vamos seguir aqui.

Diego de Matos Gondim diz: “Fuganti, considerando as formações históricas que constituem o Brasil (enquanto subjetividade), você acredita que uma esquizoterapia possibilitaria a desconstrução do racismo, patriarcalismo etc.?”

Não tenho a menor dúvida, Diego. Isso é urgente, é necessário, sem dúvida. Sem dúvida que… Por quê? Por que a esquizoanálise é capaz de operar isso? Porque ela é imediatamente política, ela parte de uma micropolítica do desejo. Ela não fica se chafurdando nas figuras parentais, pai e mãe. Pai, mãe, incesto, parricídio, e a lei e a castração. Ela sabe que toda figura parental implica imediatamente em um investimento social do desejo. E o patriarcalismo nada mais é do que um investimento social do desejo, e não… ele não tem a origem no pai. O pai é um efeito, o pai é uma produção de uma máquina social.

E o racismo, a mesma coisa. Todos os preconceitos e os modos de existir que querem submeter as diferenças, fazendo saltar os movimentos minoritários, são contemplados pela esquizoanálise, no sentido de que é preciso reencontrar as forças desses movimentos, e não investir em uma tutela de um Estado de Direito. Isso é fundamental. O Estado de Direito pode até acontecer por efeito, desde que se invista diretamente o campo de força. Isso é fundamental. Então eu acho que a esquizoanálise tem toda a potência para exercer esse resgate, essa desconstrução.

Aqui uma dúvida. Nadia Schurkim. “Vou desconstituir o estabelecido e como compactuar a minha subjetividade com a externa, se ela continua a mesma?”

Aqui é necessário prudência. Na verdade, você vai desconstituir o estabelecido dentro de você. À medida em que você se desconstrói, você desconstrói as mediações que te separam das suas potências de criar. Se você faz essa desconstrução, você reencontra as suas forças. É a condição para você reencontrar as suas forças e sair falta ou da carência. À medida em que você sai da falta e da carência, você deixa de depender de um poder exterior ou de um reconhecimento exterior. Você pode inclusive lidar com as subjetividades do lado de fora de uma maneira mais livre e se aliar àquilo que tem de essencial aprisionado nessas subjetividades. Você pode ajudar aquele que está assujeitado a se libertar.

Certamente é possível fazer alianças com essas forças subterrâneas de cada subjetividade assujeitada. É preciso aprender a provocar, a instigar, a se relacionar com isso que virtualmente está já lá, mas está inacessível ao outro, porque o outro está separado do que pode por suas mediações, sem as quais ele não sobrevive. E você, provocando essas mediações e chamando essas forças que estão por baixo, você pode criar um devir interessantíssimo nesse encontro com essas outras subjetividades.

Rogerio diz: “Desconstruir para construir pensamento novo ou modo de ver e agir? Isso não é uma resiliência cerebral?”

Não, Rogério, não tem nada a ver com cérebro. O pensamento não é cerebral. Há um pensamento que atravessa o cérebro? Sem dúvida. Mas o pensamento não é orgânico, ele não depende do cérebro. O pensamento, na verdade, é um modo do tempo, é um uso do tempo. E é um tempo que não existe, mas que é real, que é o tempo do virtual. O pensamento começa aí, ele é uma potência virtual, mas não menos real, de criar maneiras de existir. E não de se adequar ou de conformar um suposto modo de existir verdadeiro. Não existe essa verdade prévia. Não sei se deu para entender. A questão está um pouco confusa também. Eu imagino que você vá, à medida em que as ideias vão sendo desenvolvidas, reformulando essa sua questão. Se ela não ficou suficientemente respondida, por gentileza, nos próximos encontros você pode recolocá-la. Tá bom?

Olha, Alber Almeida diz: “Psicanálise aborda os complexos inconscientes, a esquizoanálise é sempre analítica e consciente”.

Não é exatamente isso, Alber. É até o contrário. A psicanálise…  O inconsciente dominante, na psicanálise, é o inconsciente das introjeções. E as introjeções acontecem a partir dos encontros e do mau uso dos encontros. São empilhamentos que vão acontecendo e se empilhando de acordo com o passar do tempo. Esses empilhamentos são segmentos de acontecimentos. Nós somos, como dizem Deleuze e Guattari, seres segmentados, animais segmentados. Nós somos feitos de segmentos duros, segmentos flexíveis e também linhas de fuga. E esses segmentos acabam sendo valorizados pelos empilhamentos dos estados de corpo, de pensamento e de desejo que vamos sofrendo ao longo da nossa existência. Esses empilhamentos que vão sendo introjetados é que, na verdade, são objetos do inconsciente psicanalítico. Mas nós abandonamos isso, deixamos isso de lado? De modo algum. Apenas percebemos o modo como isso de fato é produzido, mas ao inconsciente, que na verdade é muitos, o inconsciente é múltiplo — a esquizoanálise não vê um inconsciente, ela vê muitos, vários inconscientes. Há uma multiplicidade de inconscientes heterogêneos que não são resultados dessas introjeções. Que não são simplesmente reações das forças reativas em nós, mas que são feitos de forças ativas, de linhas de tempo, de linhas de duração, de intensidades afetivas e de potencialidades que se mantêm como realidade virtual, que, ao se diferenciar, veem a existência e aí, sim, podem produzir uma consciência.

A esquizoanálise, mais do que nunca… em primeiro lugar, não é uma análise da psiquê ou da psiquê que tem, além da consciência, um inconsciente. A esquizoanálise é uma análise do desejo. E uma análise do desejo implica em encontrar um modo do desejo se efetuar que produz a consciência e que produz até um inconsciente na consciência. E que também produz corpo, e não só o corpo extensivo, como o corpo intensivo e o corpo sem órgãos.

Então, a análise do desejo no modo de desejar que pode produzir o próprio desejo, esse é o objeto da esquizoanálise. Então é bem diferente, inclusive, em um certo sentido, é até o contrário do modo como você coloca.

Aqui existem alguns comentários sobre utopia, esquizoanálise…

Aqui existe uma questão, talvez. Marcela diz assim: “A minha dúvida é: se para o desejo nada falta, do ponto de vista de um ser pleno na sua existência não parece meio falacioso que ele não vá adquirir novos anseios e desejos?”

Marcela, eu não sei, parece um pouco confusa a sua colocação, mas existe uma maneira de pensar interessante aqui. Aquilo que é dado ao existente, de um certo ponto de vista, de um certo, exato, singular ponto de vista, é suficiente para que ele se ponha em processo de criação. Espinosa diz “Nós necessariamente somos parte da natureza”. Nós não somos um ser absoluto e nem um ser isolado, nós somos parte. Mas, diz ele, não basta ser parte. Enquanto parte, nós temos o sentimento de que falta algo ao desejo, que falta algo à existência. Mas quando tomamos parte de modo ativo, percebemos que não nos falta nada. Por quê? Porque ao tomar parte, nós tomamos parte na potência de criar.

Ora, mas a potência de criar não é se conformar ao que está dado, ao que está pronto. A única coisa está pronta, em um certo sentido, desde que haja uma condição, de que se crie essa condição, é a da potência de criar. Então, a potência de criar segue produzindo o novo e diferenciando. Então não é falacioso não faltar nada ao desejo e o desejo não parar de criar realidade. Entende? Não tem nenhuma contradição aí. Ao contrário. Não sei se esclareci.

Aqui alguém diz: “O simbólico é real?”. O simbólico tem a realidade que ele tem. O simbólico é expresso no campo semiótico, no campo da linguagem. Acreditar que o simbólico é necessário para dar conta do real, isso sim é uma falácia, é uma grande ilusão. O real ultrapassa de longe o simbólico. O simbólico é apenas um modo de efetuação do real. É um modo, na verdade, de reduzir o real. O simbólico implica o imaginário. Não é o simbólico mais importante que o imaginário. Não há simbólico sem inicialmente o imaginário. E não há esse tipo imaginário sem inicialmente a produção de um fantasma. Então aqui…

Agora, o símbolo é diferente do simbólico. Outra coisa: a narrativa, o discurso, a linguagem é fundamentalmente potência de criar sentido. É uma matéria de expressão que pode ser formatada, receber uma forma de expressão, mas antes da forma de expressão tem o sentido. O sentido é que vai esculpindo, nessa matéria de expressão, suas vozes. E o sentido nunca é intencional. O sentido é intensivo, à medida em que vai em direção a um futuro, ele também retorna sobre a própria potência que está produzindo aquele caminho, aquela diferenciação. Ou seja, ele retorna sobre esse passado, sobre esse ser que é e que jamais deixa de ser. O sentido é intensivo em virtude disso. À medida em que ele vai, ele vem também. Ele não vai para um sentido só, ele não é um bom sentido, um sentido intencional. É um sentido intensivo. Entende?

Então, no sentido intensivo você já ultrapassa o simbólico. E o sentido intensivo, sim, é um modo de produzir real. Já o simbólico é um modo de substituir a singularidade necessária do real por uma generalidade ou por uma universalidade que só é real enquanto efeito de repetição no singular. Aí sim.

Jeanine diz: “Desejo nunca é falta, é potência. Sendo assim, ele sempre atualiza, abrindo passagem para o novo”.

Olha, Jeanine, é isso mesmo, mas é bom esclarecer alguma coisa aqui. Existe um desejo que é justamente esse que é capturado a partir do que aconteceu em nós. Quer dizer, a nossa potência de acontecer, o acontecer da potência já é o caminho do desejo. O desejo começa no acontecimento da própria potência. E, ao mesmo tempo em que ele começa no acontecimento da própria potência, ele produz a diferenciação dessa potência. É como se o acontecimento estivesse fazendo um chamamento para a potência se diferenciar. É esse caminho, esse circuito que se chama desejo. Quando esse desejo é o desejo já de uma potência em curso, a esse desejo não falta nada. É isso o que Nietzsche chamava de “vontade de potência”. Mas quando esse desejo é um desejo que caiu no buraco da impotência, ou seja, quando a potência está separada da sua potência de acontecer e reduzida ao que lhe aconteceu, o desejo que dela deriva é um desejo da falta. Da falta de potência. Então aí o desejo não é mais o desejo que emerge de uma potência que está se efetuando, que está em curso, mas é o desejo de uma potência separada do que pode. Então é o desejo que busca uma potência que não tem. Isso seria um desejo de poder ou, em Nietzsche, uma vontade de poder, diferente da vontade de potência. Não sei se ajudou a esclarecer.

Bom, gente, deixe ver. Eu vou ver mais uma ou outra questão e aí a gente vai para o encerramento, tá bom?

Aqui existe essa questão que eu acho que eu já respondi muitas vezes, mas ela vai ficar cada vez mais clara, tá? Eu vou deixar ela… mas enfim, de modo muito simples. “Pode fazer a diferença entre empoderamento e potencialização?”.

O empoderamento é justamente quando você parte de uma vida separada do que pode e busca uma compensação que implica, na verdade, uma condição exterior, a manutenção de uma certa condição exterior. Sem a condição exterior, sem as condições ideais de um campo social, eu não me empodero. Então o poder não te dá autonomia de verdade, ele te mantém na dependência, e você vai ficar dependendo de um sistema democrático de direitos, um Estado democrático de direitos, você vai ficar dependendo de instâncias exteriores e dependendo, ao mudar, você fica sem e você se torna de novo impotente. Mas você deixou de ser impotente alguma vez, quando você se empoderou? No fundo, não, porque você depende sempre de algo exterior.

A potencialização é uma autonomia real. Ela não esconde nunca uma dependência. A potencialização, você cria um modo de existir, de viver, que você extrai a força do próprio acontecimento, da própria maneira de existir que depende da sua potência também. Então, em vez de você ser dependente de algo exterior, você depende de um modo de efetuar a sua potência. Espinosa chamaria de “um modo adequado de se efetuar”. Um modo inteiro, um modo ativo.

Então, a potencialização realmente te liberta. O empoderamento, não.

Rafael diz: “Qual o significado atribuído ao sufixo ‘esquizo’ pela esquizoanálise? Tendo em vista que o mesmo exprime segregação, fragmentação, divisão, separação, conforme apontam alguns dicionários.”

Olha, Rafael, não. É o oposto disso. Deleuze, ao longo da obra dele, vai fazer uma distinção entre dois tipos de sínteses disjuntivas. A síntese disjuntiva exclusiva e a síntese disjuntiva inclusiva. A síntese disjuntiva exclusiva é aquela que, ao optar por uma coisa, exclui a outra. É isso ou aquilo. Então, ao se estabelecer um processo esquizo de diferenciação, nesse caso, mas aqui não seria esquizo, se quiser usar a palavra esquizo, você estaria excluindo ou segregando aquilo que você não escolhe. No caso da disjunção exclusiva é o contrário. Quando você escolhe uma via, você necessariamente inclui e traz as outras que supostamente estariam preteridas ou seriam segregadas. É o contrário. É um “isso e aquilo e aquele outro e aquele outro”. A conjunção aqui é “e”, não é mais “ou”.

Então é uma inclusão dos elementos heterogêneos a partir de uma escolha de um elemento que envolve, abarca ou implica a todos os que supostamente estariam sendo excluídos. Agora, esquizo é como o Clinâmen de Epicuro e Lucrécio. O esquizo é um elemento desviante, mas desviante do quê? De tudo o que está pronto. Se você afirmar a diferença, necessariamente a diferença se diferencia. E quando ela se diferencia, ela fundamentalmente, mais do que se diferenciar dos outros ou desviar do que está pronto, ela se diferencia de si mesma. É a diferença entre a própria potência e o ato, porque a potência é virtual e o ato é atual. Então há uma distância, há uma diferença aí. Há um modo diferencial de realidade quando a potência vem à existência. Então essa efetuação, na verdade, inclui toda a zona potencial da potência, em vez de escolher apenas um possível.

A nossa potência é uma multiplicidade potencial. E a multiplicidade potencial é diferente do campo do possível. O campo do possível é, na verdade, uma ilusão. Uma projeção dos limites que eu introjetei. Uma projeção melhorada. Ou piorada, você investe em um ideal de melhoramento daquilo que te aconteceu, ou você teme uma piora, uma destruição daquilo que você se tornou. E você fica escolhendo entre o bom e o mau possível. O possível bem e o possível mal.

Não é o possível aqui, é o campo de uma multiplicidade potencial que implica, na verdade, já uma tendência ou uma linha de atualização. Então essa tendência ou linha de atualização necessariamente retorna sobre a potência gerando mais potência de acontecer. Ou seja, incluindo e aumentando a potência das diferenças que supostamente teriam sido excluídas ou dos potenciais que supostamente teriam sido segregados. Então é ao contrário, entendeu? Precisa fazer essa distinção.

Bom, gente, eu vou ficar por aqui. Deixa eu só fazer uma finalização. Nós vamos, a partir do terceiro e do quarto encontro, introduzir, junto com as nossas aulas aqui, alguns casos clínicos, ou ao menos tipos de casos, como depressão, esquizofrenia, algum tipo de psicose, enfim, para exemplificar o modo como a esquizoanálise opera na prática, como esse pensamento opera na prática.

A gente vai fazer isso também, e eventualmente, se precisar fazer mais um encontro para desenvolver as questões e os casos, a gente fará. Tá bom?

Então, bom, eu espero que tenha sido proveitoso para vocês. Nós estamos aqui fazendo então a incursão nas duas maneiras de rebaixar o desejo, sendo que essa segunda maneira dá a ilusão de elevação, mas na verdade ela aumenta a falta e o buraco do desejo. Por quê? Porque na medida mesma em que o desejo se empodera, ele abre mão da sua potência criativa, ele precisa investir em instâncias exteriores, ele deixa de investir nos intervalos de tempo, ele deixa de investir nos intervalos de movimento, ele deixa de investir na solidão como algo necessário à criação de uma distância e condição de composição e de potencialização.  Enfim, é preciso que o desejo retome o seu potencial criador das condições da sua própria existência, da sua própria efetuação. E isso a gente vai fazendo então agora nos próximos encontros. No nosso terceiro encontro, falaremos diretamente sobre a questão da superfície, o que é uma superfície lisa, o que é um modo de viver que não se deixa comandar por mediações ou por representações. E, a partir disso, desembocaremos nesse quarto modo, nessa quarta passagem que é a conquista da potência de diferenciar ou de fazer a diferença. Espero que tenha sido bom, proveitoso, como sempre é para mim. E nos vemos então no próximo domingo, dia 4 de julho, nesse mesmo horário, às 19 horas.

O último encontro, o encontro do dia 10 de julho, que não será domingo que vem, será na outra semana, não será no domingo, será no sábado. O do dia 10 então, portanto, é em um sábado à noite. Domingo que vem ainda é domingo, quer dizer, dia 4 de julho ainda é no domingo que acontece, às 19 horas, e o encontro do dia 10 cai em um sábado. Tá bom? Só para esclarecer, para lembrar vocês.

E se vocês quiserem enviar questões por e-mail, eu vou lê-las e contemplá-las ou ao longo dos encontros ou em um encontro especial para respostas a questões. Tá bom? Espero que vocês tenham uma ótima semana, e nos vemos no domingo que vem. Aproveitem e revejam essas aulas, essas duas aulas, para que as coisas fiquem um pouco mais claras e aprofundadas, e o aproveitamento da terceira aula seja ainda melhor. Tá bom?

Beijos e abraços a todos e a todas, e até a próxima.

 

Transcrição por Gabriel Naldi

© Escola Nômade de Filosofia