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Capitalismo e Esquizofrenia

Introdução à Esquizoanálise

A realidade do desejo é antes de tudo, não a de uma instância psicológica que produz imaginariamente fantasmas, delírios, alucinações, sonhos, quimeras e superstições, mas sobretudo a de uma dimensão ontológica que produz o próprio real e a si mesma como potência de produzir mais realidade, e que pode ou não coincidir com a criação ativa de si. O desejo não produz fantasma, delírio e alucinação exceto secundariamente, por efeito de uma produção desejante determinada como produção social de realidade intensiva que o preenche necessariamente.

O desejo jamais se constitui pela falta de objeto, sem a qual ele não seria desejo. A falta, antes de ser interiorizada e subjetivada, é um arranjo objetivo, um esvaziamento dos meios de objetivação.

A produção de hiatos, vácuos, segregações e seus engendramentos de carência de objetos como reprodução das condições de sociabilidade pela produção social constituem armadilhas para arrancar o desejo de seu plano de imanência. São pressupostos para capturar desejo, operando por separação (desarranjo), rebaixamento (recalcamento/impotência) e cooptação (restauração/estruturação do sujeito/inclusão/ promoção/promessa de retorno do poder).

Ao desejo nada falta, exceto se lhe tiram o essencial, sua superfície objetiva de efetuação que lhe devolve a potência de retorno sobre si como produção de mais desejo. É como na réplica de Diógenes, o cínico, diante do imperador Alexandre, o Grande que, ao abordá-lo, se posicionou entre Diógenes e o sol que o banhava e, ao tentar seduzi-lo com mil promessas de ouro e riqueza em troca de sua sabedoria, foi constrangido a ouvir de Diógenes: “peço-lhe apenas que não me tire aquilo que não pode me dar”, insistindo para que Alexandre não se interpusesse entre ele e o sol.

Seu objeto é sempre um plano de efetuação/objetivação que necessariamente se dá. Seu sujeito só existe como derivado, adjacente ao seu processo de efetuação, efeito residual móvel (nômade) ou fixo (sedentário).

O capitalismo precisa do sujeito como de prepostos sedentários sem os quais sua economia política e seus modos de governamentalidade não proliferam.

Para isso é preciso que o capital-dinheiro e seus estados reguladores distribuam a falta por captura e apropriação do comum. Seus atos: raptar, roubar, usurpar, sabotar as superfícies de efetuação direta do desejo, ao mesmo tempo em que libera os fluxos de desejo de seus engajamentos e territorialidades que o tornavam indisponível (movimento de desterritorialização do socius) e os libera de seus códigos ( processos de descodificação dos fluxos de desejo).

O desejo opera ou produz real através de suas sínteses de acoplamento ou conexão, sempre reinserindo o produzir no produto, isto é, produzindo a própria produção. Mas não sem produzir ao mesmo tempo o próprio registro, com suas distribuições e marcações, e produzir também o próprio consumo, com suas dores, angustias e volúpias.

Estes três aspectos são inseparáveis e constituem a identidade da natureza e da indústria, da natureza e do homem, da natureza e da sociedade. Antes de dividirmos o real em natural e artificial, homem/natureza, natureza/cultura, tudo é e deve ser apreendido como processo de produção, ao mesmo tempo produção de produção, produção de registro/circulação, produção de consumo, desde que não se introduza nenhuma finalidade para o processo de produção desejante, mas se encontre os modos de efetuação que fazem circular as energias desejantes em forma de libido, numen e voluptas.

O Socius capitalista a um só tempo libera todos os fluxos de riqueza e constitui o polo capital-dinheiro sem forma, como um puro-direito-abstrato de apropriação da energia humana e material, e libera todos os fluxos de atividade humana em forma de trabalho livre, energia-humana-sem-forma, disponível, disponibilizável. Mas ao mesmo tempo recalca a produção desejante nômade que insiste em seguir sem forma, se preenchendo pelo próprio acontecimento como autoprodução, reprimindo seus modos de efetuação livre e impondo a condição histórica da formação do socius atualmente existente, para ao mesmo tempo seguir capturando-o, parasitando-o, extorquindo-o, usurpando-o, mas não sem cooptá-lo ao sistema, tornando-o um dos seus.

Por mais que psiquiatria e psicanálise prossigam na sua tarefa de capturar o inconsciente; e tentem controlar essa sua realidade que lhes escapa, e por isso mesmo não a designam senão negativamente (o-não-consciente); por mais que já tenham feito e continuem fazendo do inconsciente uma substância a se domar, uma matéria caótica a estruturar, uma fonte de desejo selvagem e/ou perverso a recalcar e a intencionalizar, o revide do desejo (e suas linhas de fuga) se mostra implacável.

O desejo intensificado não se deixa esmagar nem deixa de se exceder em sua efetuação necessária e incontinente. Por mais que se tente, jamais o controlarão, exceto na ficção dos delírios dos poderes tristes.

Quando a realidade do desejo é abordada em relações causais, compreensivas e expressivas, dissociação, fissura/rachadura/ (compreensão) e ser no mundo (expressão) perdemos o essencial, a categoria de produção, produção desejante
produção de si como potência de existir e criar realidade e a própria realidade do desejo, como desejo intensivo em corpo pleno.

© Escola Nômade de Filosofia