(…) O modo que agrega o indivíduo ao corpo da sociedade, através de uma relação dicotômica de boa ou má vontade para com o corpo de leis, o qual devolve ao indivíduo o troco em forma de recompensas ou castigos, remonta já ao nascimento do Estado. Mas não é apenas o Estado arcaico que cultiva este tipo de código. Pertence a própria natureza do Estado este modo de codificar seus membros pela relação de obediência e transgressão. É por isso que o Estado é um grande estimulador e reprodutor das paixões tristes, como diz Espinosa. É por medo dos castigos e esperança das recompensas que o indivíduo submete-se a um poder que o separa da sua própria capacidade de agir e pensar livremente, desejando sua própria servidão. Ainda que aquele modo se alimente, por pura crença, de investimentos subjetivos de um indivíduo habituado ao esforço cotidiano de sobrevivência, dissimulando concórdias e inviabilizando relações reais de solidariedade, ou por pura conveniência utilitária e objetiva de investimentos de desejo (de poder) nem um pouco desinteressados (ao contrário do que invoca o sujeito legislador de Kant), desvela-se assim como seu contraponto um comportamento de um tipo de vida inteiramente subserviente, tragado por um círculo vicioso, como num buraco negro, sempre re-alimentado pela repetição da perda da capacidade de criar as próprias condições existenciais de efetuação de suas potências. É assim que tombamos. Por morder a isca dos “nossos” interesses, interesses de um “Eu”, caímos cativos de uma moral que impõe dever à uma instância Exterior como o Estado ou o Bem, à Lei ou a valores de uma época que, apesar de serem criados por uma determinada sociedade historicamente formada, são publicados e estabelecidos como universais e perenes. Expressos por discursos que pretendem representar e justificar os chamados “bons costumes”, auto-qualificados de científicos, cultuados como verdades em si ou formas puras do saber, esses valores bloqueiam e separam o indivíduo de sua capacidade imanente de pensar e agir por ordem própria, desqualificando seus saberes locais e singulares como meras crenças ou opiniões e destituído-os de suas potências autônomas que criam seus próprios modos de efetuação. É dessa maneira que indivíduos tornados fracos, por paixões de medo e esperança passam a clamar por uma ordem heterônoma que os salvaria do caos, da impotência e da miséria. (Ética como Potência e Moral como Servidão – Luiz Fuganti)