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Foucault – A Ética do Cuidado de Si como Prática da Liberdade

FOUCAULT, Michel. “A ética do cuidado de si como prática da liberdade”.
In: Ditos & Escritos V – Ética, Sexualidade, Política.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

A ÉTICA DO CUIDADO DE SI COMO PRÁTICA DA LIBERDADE
(entrevista com H. Becker, R. Fomet-Betancaurt, A. Gomez-Müller, em 20 de janeiro de 1984)
Concórdia Revista Internacional de Filosofia. n 6. Julho-dezembro de 1984, ps. 99-116.

Gostaríamos inicialmente de saber qual é atualmente o objeto do seu pensamento. Acompanhamos os seus últimos desenvolvimentos, principalmente os seus cursos no Collège de France em 1981/1982 sobre a hermenêutica do sujeito, e queríamos saber se o seu procedimento filosófico atual é sempre determinado pelo pólo subjetividade e verdade.

Esse sempre foi, na realidade, o meu problema, embora eu tenha formulado o plano dessa reflexão de uma maneira um pouco diferente. Procurei saber como o sujeito humano entrava nos Jogos de verdade, tivessem estes a forma de uma ciência ou se referissem a um modelo científica, ou fossem como os encontrados nas instituições ou nas práticas de controle. Este é o tema do meu trabalho As palavras e as coisas, no qual procurei verificar de que modo, nos discursos científicos, o sujeito humano vai se definir como indivíduo falante, vivo, trabalhador. Nos cursos do Collège de France enfatizei essa problemática de maneira geral.

Não há um salto entre a sua problemática anterior e a da subjetividade/verdade, principalmente a partir do conceito de ” cuidado de si “?

O problema das relações entre o sujeito e os jogos de verdade havia sido até então examinado por mim a partir seja de práticas coercitivas como no caso da psiquiatria e do sistema penitenciário-, seja nas formas de jogos teóricos ou científicos como a análise das riquezas, da linguagem e do ser [p.265] vivo. Ora, em meus cursos no Collège de France, procurei considerá-lo através do que se pode chamar de uma prática de si, que é, acredito, um fenômeno bastante importante em nossas sociedades desde a era greco-romana, embora não tenha sido muito estudado. Essas práticas de si tiveram, nas civilizações grega e romana, uma importância e, sobretudo, uma autonomia muito maiores do que tiveram a seguir, quando foram até certo ponto investidas pelas instituições religiosas, pedagógicas ou do tipo médico e psiquiátrico.

Há então agora uma espécie de deslocamento: esses jogos de verdade não se referem mais a uma prática coercitiva, mas a uma prática de auto formação do sujeito.

Isso mesmo. É o que se poderia chamar de uma prática ascética, dando ao ascetismo um sentido multo geral, ou seja, não o sentido de uma moral da renúncia, mas o de um exercício de si sobre si mesmo através do qual se procura se elaborar, se transformar e atingir um certo modo de ser. Considero assim o ascetismo em um sentido mais geral do que aquele que lhe dá, por exemplo, Max Weber; mas está, em todo caso, um pouco na mesma linha.

Um trabalho de si sobre si mesmo que pode ser compreendido como uma certa liberação, como um processo de liberação?

Sobre isso, eu seria um pouco mais prudente. Sempre desconfiei um pouco do tema geral da liberação uma vez que se não o tratarmos com um certo número de precauções e dentro de certos limites, corre-se o risco de remeter à ideia de que existe uma natureza ou uma essência humana que, após um certo número de processos históricos, econômicos e sociais, foi mascarada, alienada ou aprisionada em mecanismos, e por mecanismos de repressão. Segundo essa hipótese, basta romper esses ferrolhos repressivos para que o homem se reconcilie consigo mesmo, reencontre sua natureza ou retome contato com sua origem e restaure uma relação plena e positiva consigo mesmo. Creio que este é um tema que não pode ser aceito dessa forma, sem exame. Não quer o dizer que a liberação ou que essa ou aquela forma de liberação não existam: quando um povo colonizado procura se liberar do seu colonizador, essa é certamente uma prática de liberação, no sentido estrito. Mas é sabido, nesse caso aliás preciso, que essa prática de liberação não basta para definir as práticas de liberdade que serão em seguida necessárias para que esse [p.266] povo, essa sociedade e esses indivíduos possam definir para eles mesmos formas aceitáveis e satisfatórias da sua existência ou da sociedade política. É por isso que insisto sobretudo nas práticas de liberdade, mais do que nos processos de liberação, que mais uma vez têm seu lugar, mas que não me parecem poder, por eles próprios, definir todas as formas práticas de liberdade, Trata-se então do problema com o qual me defrontei multo precisamente a respeito da sexualidade: será que isso corresponde a dizer “liberemos nossa sexualidade”? O problema não seria antes tentar definir as práticas de liberdade através das quais seria possível definir o prazer sexual, as relações eróticas, amorosas e passionais com os outros? O problema ético da definição das práticas de liberdade é, para mim, muito mais importante do que o da afirmação, um pouco repetitiva, de que é preciso liberar a sexualidade ou o desejo.

O exercício das práticas de liberdade não exige um certo grau de liberação?

Sim, certamente. É preciso introduzir nele a noção de dominação. As análises que procuro fazer incidem essencialmente sobre as relações de poder. Considero isso como alguma coisa diferente dos estados de dominação, As relações de poder têm uma extensão consideravelmente grande nas relações humanas. Ora, isso não significa que o poder político esteja em toda parte, mas que, nas relações humanas, há todo um conjunto de relações de poder que podem ser exercidas entre indivíduos, no seio de uma família, em uma relação pedagógica, no corpo político. Essa análise das relações de poder constitui um campo extremamente complexo: ela ás vezes encontra o que se pede chamar de fatos, ou estados de dominação, nos quais as relações de poder, em vez de serem móveis e permitirem aos diferentes parceiros uma estratégia que os modifique, se encontram bloqueadas e cristalizadas. Quando um indivíduo ou um grupo social chega a bloquear um campo de relações de poder, a torná-las imóveis e fixas e a impedir qualquer reversibilidade do movimento por instrumentos que tanto podem ser econômicos quanto políticos ou militares, estamos diante do que se pode chamar de um estado de dominação. É lógico que, em tal estado, as práticas de liberdade não existem, existem apenas unilateralmente ou são extremamente restritas e limitadas. Concordo, portanto, com o senhor que a liberação é às vezes a condição política ou histórica para [p.267] uma prática de liberdade. Se tomarmos o exemplo da sexualidade, é verdade que foi necessário um certo número de liberações em relação ao poder do macho, que foi preciso se liberar de uma moral opressiva relativa tanto à heterossexualidade quanto à homossexualidade; mas essa liberação não faz surgir o ser feliz e pleno de uma sexualidade na qual o sujeito tivesse atingido uma relação completa e satisfatória. A liberação abre um campo para novas relações de poder, que devem ser controladas por práticas de liberdade.

A própria liberação não poderia ser um modo ou uma forma de prática de liberdade?

Sim, em um certo número de casos. Há casos em que a liberação e a luta pela libertação são de fato indispensáveis para a prática da liberdade. Quanto à sexualidade, por exemplo e eu o digo sem polêmica, porque não gosto de polêmicas, pois as considero na maioria das vezes infecundas, houve um esquema reichiano, decorrente de uma certa maneira de ler Freud; ele supunha que o problema era inteiramente da ordem da liberação. Para dizer as coisas um pouco esquematicamente, haveria desejo, pulsão, interdição, repressão, interiorização e o problema seria resolvido rompendo com essas interdições, ou seja, liberando-se delas. E sobre isso acredito que se esquece totalmente e sei que caricaturo aqui posições muito mais interessantes e sutis de numerosos autores o problema ético que é o da prática da liberdade: como se pode praticar a liberdade? Na ordem da sexualidade, é evidente que, liberando seu desejo, se saberá como se conduzir eticamente nas relações de prazer com os outros.

O senhor disse que é preciso praticar a liberdade eticamente…

Sim, pois o que é a ética senão a prática da liberdade, a prática refletida da liberdade?

Isso significa que o senhor compreende a liberdade como uma realidade já ética em si mesma?

A liberdade é a condição ontológica da ética. Mas a ética é a forma refletida assumida pela liberdade.

A ética é o que se realiza na busca ou no cuidado de si?

O cuidado de si constituiu, no mundo greco-romano, o modo pelo qual a liberdade Individual ou a liberdade cívica, até certo ponto foi pensada como ética. Se se considerar toda uma série de textos desde os primeiros diálogos platônicos até [p.268] os grandes textos do estoicismo tardio Epícteto, Marco Aurélio… , ver-se-á que esse tema do cuidado de si atravessou verdadeiramente todo o pensamento moral. É interessante ver que, pelo contrário, em nossas sociedades, a parar de um certo momento e é muito difícil saber quando isso aconteceu o cuidado de si se tornou alguma coisa um tanto suspeita. Ocupar-se de si foi, a partir de um certo momento, denunciado de boa vontade como uma forma de amor a si mesmo, uma forma de egoísmo ou de interesse individual em contradição com o interesse que é necessário ter em relação aos outros ou com o necessário sacrifício de si mesmo. Tudo isso ocorreu durante o cristianismo, mas não diria que foi pura e simplesmente fruto do cristianismo. A questão é multo mais complexa, pois no cristianismo buscar sua salvação é também uma maneira de cuidar de si. Mas a salvação no cristianismo é realizada através da renúncia a si mesmo. Há um paradoxo no cuidado de si no cristianismo, mas este é um outro problema. Para voltar à questão da qual o senhor falava, acredito que, nos gregos e romanos sobretudo nos gregos, para se conduzir bem, para praticar adequadamente a liberdade, era necessário se ocupar de si mesmo, cuidar de si, ao mesmo tempo para se conhecer – eis o aspecto familiar do gnôthi seauton e para se formar, superar-se a si mesmo, para dominar em si os apetites que poderiam arrebatá-lo. Para os gregos a liberdade individual era alguma coisa muito importante contrariamente ao que diz o lugar-comum, mais ou menos derivado de Hegel, segundo o qual a liberdade do indivíduo não teria nenhuma importância diante da bela totalidade da cidade: não ser escravo (de uma outra cidade, daqueles que o cercam, daqueles que o governam, de suas próprias paixões) era um tema absolutamente fundamental; a preocupação com a liberdade foi um problema essencial, permanente, durante os oito grandes séculos da cultura antiga. Nela temos toda uma ética que girou em torno do cuidado de si e que confere à ética antiga sua forma tão particular. Não digo que a ética seja o cuidado de si, mas que, na Antiguidade, a ética como prática racional da liberdade girou em torno desse imperativo fundamentai: “cuida-te de ti mesmo”.

Imperativo que implica a assimilação dos logoi, das verdades. [p.269]

Certamente. Não é possível cuidar de si sem se conhecer. O cuidado de si é certamente o conhecimento de si este é o lado socrático-platônico, mas é também o conhecimento de um certo número de regras de conduta ou de princípios que são simultaneamente verdades e prescrições. Cuidar de si é se munir dessas verdades: nesse caso a ética se liga ao jogo da verdade.

O senhor disse que se trata, de fazer dessa verdade apreendida, memorizada progressivamente aplicada, um quase-sujeito que reina soberanamente em você. Que status tem esse quase-sujeito?

Na corrente platônica, pelo menos de acordo com o final do Alcibíades, o problema para o sujeito ou para a alma individual é voltar os olhos para ela mesma, para se reconhecer naquilo que ela é, e, reconhecendo-se naquilo que ela é, lembrar-se das verdades com as quais tem afinidade e que ela pode contemplar; em contrapartida, na corrente que pode ser chamada, globalmente, de estóica, o problema é aprender através do ensino de um certo número de verdades, de doutrinas, as primeiras constituindo os princípios fundamentais e as outras, regras de conduta. Trata-se de fazer com que esses princípios digam em cada situação e de qualquer forma espontaneamente como vocês devem se conduzir. Encontramos aqui uma metáfora, que não vem dos estoicos, mas de Plutarco, que diz: “é preciso que vocês tenham aprendido os princípios de uma maneira tão constante que, quando os seus desejos, apetites, temores vierem a se revelar como cães que rosnam, o logos falará como a voz do mestre que, com um só grito, faz calar os cães”.2 Esta é a ideia de um logos que funcionaria de qualquer forma sem que você nada tivesse feito; você terá se tornado o logos ou o logos terá se tornado você.

Gostaríamos de voltar à questão das relações entre a liberdade e a ética. Quando o senhor diz que a ética é a parte racional da liberdade, isso significa que a liberdade pode tomar [p.270] consciência de si mesma como prática ética? Será ela de início e sempre liberdade por assim dizer moralizada, ou será preciso um trabalho sobre si mesmo para descobrir essa dimensão ética da liberdade?

Os gregos problematizavam efetivamente sua liberdade e a liberdade do indivíduo, como um problema ético. Mas ético no sentido de que os gregos podiam entendê-lo: o êthos era a maneira de ser e a maneira de se conduzir. Era um modo de ser do sujeito e uma certa maneira de fazer, visível para os outros. O êthos de alguém se traduz pelos seus hábitos, por seu porte, por sua maneira de caminhar, pela calma com que responde a todos os acontecimentos etc. Esta é para eles a forma concreta da liberdade; assim eles problematizavam sua liberdade. O homem que tem um belo êthos, que pode ser admirado e citado como exemplo, é alguém que pratica a liberdade de uma certa maneira. Não acredito que haja necessidade de uma conversão para que a liberdade seja pensada como êthos; ela é imediatamente problematizada como êthos. Mas, para que essa prática da Uberdade tome forma em um êthos que seja bom, belo, honroso, respeitável, memorável e que possa servir de exemplo, é preciso todo um trabalho de si sobre si mesmo.

É nisso que o senhor situa a análise do poder?

Já que, para os gregos; liberdade significa não-escravidão o que é, de qualquer forma, uma definição de liberdade bastante diferente da nossa, considero que o problema já é inteiramente político. Ele é político uma vez que a não-escravidão em relação aos outros é uma condição: um escravo não tem ética. A liberdade é, portanto, em si mesma política. Além disso, ela também tem um modelo político, uma vez que ser livre significa não ser escravo de si mesmo nem dos seus apetites, o que implica estabelecer consigo mesmo uma certa relação de domínio, de controle, chamada de arché poder, comando.

O cuidado de si, como o senhor disse, é de certa maneira o cuidado dos outros. Nesse sentido, o cuidado de si também é sempre ético, ético em si mesmo.

Para os gregos, não é por ser cuidado dos outros que ele é ético. O cuidado de si é ético em si mesmo; porém implica relações complexas com os outros, uma vez que esse êthos da liberdade é também uma maneira de cuidar dos outros; por [p.271] isso é importante, para um homem livre que se conduz adequadamente, saber governar sua mulher, seus filhos, sua casa. Nisso também reside a arte de governar. O êthos também implica uma relação com os outros, Já que o cuidado de si permite ocupar na cidade, na comunidade ou nas relações interindividuais o lugar conveniente seja para exercer uma magistratura ou para manter relações de amizade. Além disso, o cuidado de si implica também a relação com um outro, uma vez que, para cuidar bem de si, é preciso ouvir as lições de um mestre. Precisa-se de um guia, de um conselheiro, de um amigo, de alguém que lhe diga a verdade. Assim, o problema das relações com os outros está presente ao longo desse desenvolvimento do cuidado de si.

O cuidado de si visa sempre ao bem dos outros: visa a administrar bem o espaço de poder presente em qualquer relação, ou seja, administrá-lo no sentido da não-dominação. Qual pode ser, nesse contexto, o papel do filósofo, daquele que cuida do cuidado dos outros?

Tomemos o exemplo de Sócrates: é precisamente ele quem interpela as pessoas na rua, os Jovens no ginásio, perguntando: O deus o encarregou disso, é sua missão, e ele não a abandonará, mesmo no momento em que for ameaçado de morte. Ele é certamente o homem que cuida do cuidado dos outros: esta é a posição particular do filósofo. Mas, digamos simplesmente, no caso do homem livre, acredito que o postulado de toda essa moral era que aquele que cuidasse adequadamente de si mesmo era, por isso mesmo, capaz de se conduzir adequadamente em relação aos outros e para os outros. Uma cidade na qual todo mundo cuidasse de si adequadamente funcionaria bem e encontraria nisso o princípio ético de sua permanência. Mas não creio que se possa dizer que o homem grego que cuida de si deva inicialmente cuidar dos outros. Esse tema só intervirá, me parece, mais tarde. Não se deve fazer passar o cuidado dos outros na frente do cuidado de si; o cuidado de si vem eticamente em primeiro lugar, na medida em que a relação consigo mesmo é ontologicamente primária.

Será que esse cuidado de si que possui um sentido ético positivo, poderia ser compreendido como uma espécie de conversão do poder? [p.272]

Uma conversão, sim, É efetivamente uma maneira de controlá-lo e limitá-lo. Pois se é verdade que a escravidão é o grande risco contra o qual se opõe a liberdade grega, há também um outro perigo que à primeira vista, parece ser o inverso da escravidão; o abuso de poder. No abuso de poder, o exercício legítimo do seu poder é ultrapassado e se impõem aos outros sua fantasia, seus apetites, seus desejos. Encontramos aí a Imagem do tirano ou simplesmente a do homem poderoso e rico, que se aproveita desse poder e de sua riqueza para abusar dos outros, para lhes impor um poder indevido. Percebemos, porém, em todo caso, é o que dizem os filósofos gregos, que esse homem é na realidade escravo dos seus apetites. E o bom soberano é precisamente aquele que exerce seu poder adequadamente, ou seja, exercendo ao mesmo tempo seu poder sobre si mesmo. É o poder sobre si que vai regular o poder sobre os outros.

O cuidado de si, separado do cuidado dos outros, não corre o risco de “se absolutizar”? Essa absolutização do cuidado de si não poderia se tornar uma forma de exercício de poder sobre os outros, no sentido da dominação do outro?

Não, porque o risco de dominar os outros e de exercer sobre eles um poder tirânico decorre precisamente do fato de não ter cuidado de si mesmo e de ter se tornado escravo dos seus desejos. Mas se você se cuida adequadamente, ou seja, se sabe ontologicamente o que você é, se também sabe do que é capaz, se sabe o que é para você ser cidadão em uma cidade, ser o dono da casa em um oikos, se você sabe quais são as coisas das quais deve duvidar e aquelas das quais não deve duvidar, se sabe o que é conveniente esperar e quais são as coisas, pelo contrário, que devem ser para você completamente indiferentes, se sabe, enfim, que não deve ter medo da morte, pois bem, você não pode a partir deste momento abusar do seu poder sobre os outros. Não há, portanto, perigo. Essa ideia aparecerá muito mais tarde, quando o amor por si se tornar suspeito e for percebido como uma das possíveis origens das diferentes faltas morais. Neste novo contexto, o cuidado de si assumirá inicialmente a forma da renúncia a si mesmo. Isso se encontra de uma maneira bastante clara no Traité de la virginité de Gregório de Nisa, no qual se vê a noção de cuidado de si, a epimeleia heautou, basicamente definida como a renúncia a todas as ligações terrestres: renúncia a tudo o que pode ser amor de si, apego ao si mesmo terrestre. Mas acredito que, no pensamento grego e romano, o cuidado de si não pode em si mesmo tender para esse amor exagerado a si mesmo que viria a negligenciar os outros ou pior ainda, a abusar do poder que se pode exercer sobre eles.

Trata-se, então, de um cuidado de si que, pensando em si mesmo, pensa no outro?

Sim, certamente. Aquele que cuida de si, a ponto de saber exatamente quais são os seus deveres como chefe da casa, como esposo ou como pai, descobrirá que mantém com sua mulher e seus filhos a relação necessária.

Mas a condição humana, no sentido da finitude, não desempenha quanto a isso um papel muito Importante? O senhor falou da morte: se você tem medo da morte, não pode abusar do seu poder sobre os outros. Creio que esse problema da finitude é muito importante; o medo da morte, da finitude, de ser vulnerável está no cerne do cuidado de si .

Certamente. É aí que o cristianismo, ao introduzir a salvação como salvação depois da morte, vai desequilibrar ou, em todo caso, perturbar toda essa temática do cuidado de si. Embora, lembro mais uma vez, buscar sua salvação significa certamente cuidar de si. Porém, a condição para realizar sua salvação será precisamente a renúncia. Nos gregos e romanos, pelo contrário, a partir do fato de que se cuida de si em sua própria vida e de que a reputação que se vai deixar é o único além com o qual é possível se preocupar, o cuidado de si poderá então estar inteiramente centrado em si mesmo, naquilo que se faz, no lugar que se ocupa entre os outros; ele poderá estar totalmente centrado na aceitação da morte o que ficará muito evidente no estoicismo tardio e mesmo, até certo ponto, poderá se tornar quase um desejo de morte. Ele poderá ser, ao mesmo tempo, senão um cuidado dos outros, pelo menos um cuidado de si benéfico para os outros. É interessante verificar, em Séneca, por exemplo, a importância do tema: apressamo-nos era envelhecer, precipitamo-nos para o final, que nos permitirá nos reunirmos conosco mesmos. Essa espécie de momento que precede a morte, em que nada mais pode acontecer, é diferente do desejo de morte que será novamente encontrado nos cristãos, que esperam a salvação da morte. É como um movimento para precipitar sua existência até o ponto em que só houver diante dela a possibilidade da morte.

Propomos agora passar para um outro tema. Em seus cursos no Collège de France, o senhor havia falado das relações entre poder e saber; agora o senhor fala das relações entre sujeito e verdade. Há uma complementaridade entre os dois pares de noções, poder/saber e sujeito/verdade?

Meu problema sempre foi, como dizia no início, o das relações entre sujeito e verdade: como o sujeito entra em um certo jogo de verdade. Meu primeiro problema foi: o que ocorreu, por exemplo, para que a loucura tenha sido problematizada a partir de um certo momento e após um certo número de processos, como uma doença decorrente de uma certa medicina? Como o sujeito louco foi situado nesse Jogo de verdade definido por um saber ou por um modelo médico? E fazendo essa análise me dei conta de que, contrariamente ao que era um tanto habitual naquela época por volta do início dos anos 60, não se podia certamente dar conta daquele fenômeno simplesmente falando da ideologia. Havia, de fato, práticas basicamente essa grande prática da internação desenvolvida desde o início do século XVII e que foi a condição para a inserção do sujeito louco nesse tipo de jogo de verdade que me remetiam ao problema das instituições de poder, muito mais do que ao problema da ideologia. Assim, fui levado a colocar o problema saber/poder, que é para mim não o problema fundamental, mas um instrumento que permite analisar, da maneira que me parece mais exata, o problema das relações entre sujeito e Jogos de verdade.

Mas o senhor sempre nos impediu de falar sobre o sujeito em geral.

Não, eu não “impedi”. Talvez tenha feito formulações inadequadas. O que eu recusei foi precisamente que se fizesse previamente uma teoria do sujeito como seria possível fazer, por exemplo, na fenomenologia ou no existencialismo, e que, a partir desta, se colocasse a questão de saber como, por exemplo, tal forma de conhecimento era possível. Procurei mostrar como o próprio sujeito se constituía, nessa ou naquela forma determinada, como sujeito louco ou são, como sujeito delinquente ou não, através de um certo número de práticas, que eram os jogos de verdade, práticas de poder etc. Era certamente necessário que eu recusasse uma certa teoria a priori do sujeito para poder fazer essa análise das relações possivelmente existentes entre a constituição do sujeito ou das diferentes formas de sujeito e os jogos de verdade, as práticas de poder, etc.

Isso significa que o sujeito não è uma substância…

Não é uma substância. É uma forma, e essa forma nem sempre é, sobretudo, idêntica a si mesma. Você não tem consigo próprio o mesmo tipo de relações quando você se constitui como sujeito político que vai votar ou toma a palavra em uma assembleia, ou quando você busca realizar o seu desejo em uma relação sexual. Há, indubitavelmente, relações e interferências entre essas diferentes formas do sujeito; porém, não estamos na presença do mesmo tipo de sujeito. Em cada caso, se exercem, se estabelecem consigo mesmo formas de relação diferentes. E o que me interessa é, precisamente, a constituição histórica dessas diferentes formas do sujeito, em relação aos Jogos de verdade.

Mas um sujeito louco, doente, delinquente talvez mesmo o sujeito sexual era um sujeito que era objeto de um discurso teórico, um sujeito, digamos, “passivo” , enquanto o sujeito de que o senhor falava nos dois últimos anos em seus cursos no Collège de France é um sujeito “ativo”, politicamente ativo, O cuidado de si diz respeito a todos os problemas da prática política, do governo etc. Parece que há no senhor uma mudança não de perspectiva, mas de problemática.

Se é verdade, por exemplo, que a constituição do sujeito louco pode ser efetivamente considerada como a consequência de um sistema de coerção é o sujeito passivo, o senhor sabe muito bem que o sujeito louco não é um sujeito não livre e que, precisamente, o doente mental se constitui como sujeito louco em relação e diante daquele que o declara louco. A histeria, que foi tão importante na história da psiquiatria e no mundo asilar do século XIX parece ser a própria ilustração da maneira pela qual o sujeito se constitui como sujeito louco. E não foi absolutamente por acaso que os grandes fenômenos [p.276] da histeria foram observados precisamente onde havia um máximo de coerção para obrigar os indivíduos a se constituírem como loucos. Por outro lado, e inversamente, eu diria que, se agora me interesso de fato pela maneira com a qual o sujeito se constitui de uma maneira ativa, através das práticas de si, essas práticas não são, entretanto, alguma coisa que o próprio indivíduo invente. São esquemas que ele encontra em sua cultura e que lhe são propostos, sugeridos, impostos por sua cultura, sua sociedade e seu grupo social.

Parece que haveria uma espécie de deficiência em sua problemática, ou seja, a concepção de uma resistência contra o poder, e isso supõe um sujeito muito ativo, muito cuidadoso em relação a si mesmo e aos outros, portanto, política e filosoficamente capaz.

Isso nos leva ao problema do que entendo por poder. Quase não emprego a palavra poder, e se algumas vezes o faço é sempre para resumir a expressão que sempre utilizo: as relações de poder. Mas há esquemas prontos: quando se fala de poder, as pessoas pensam imediatamente em uma estrutura política, em um governo, em uma classe social dominante, no senhor diante do escravo etc. Não é absolutamente o que penso quando falo das relações de poder. Quero dizer que, nas relações humanas, quaisquer que sejam elas quer se trate de comunicar verbalmente, como o fazemos agora, ou se trate de relações amorosas, institucionais ou econômicas, o poder está sempre presente: quero dizer, a relação em que cada um procura dirigir a conduta do outro. São, portanto, relações que se podem encontrar em diferentes níveis, sob diferentes formas; essas relações de poder são móveis, ou seja, podem se modificar, não são dadas de uma vez por todas. O fato, por exemplo, de eu ser mais velho é de que no início os senhores tenham ficado intimidados, pode se inverter durante a conversa, e serei eu quem poderá ficar intimidado diante de alguém, precisamente por ser ele mais jovem. Essas relações de poder são, portanto, móveis, reversíveis e instáveis. Certamente é preciso enfatizar também que só é possível haver relações de poder quando os sujeitos forem livres. Se um dos dois estiver completamente à disposição do outro e se tornar sua coisa, um objeto sobre o qual ele possa exercer uma violência Infinita e ilimitada, não haverá relações de poder. Portanto, para que se exerça uma relação de poder, é preciso que haja sempre, dos dois lados, pelo menos uma certa forma de liberdade. Mesmo quando a relação de poder é completamente desequilibrada, quando verdadeiramente se pode dizer que um tem todo poder sobre o outro, um poder só pode se exercer sobre o outro à medida que ainda reste a esse último a possibilidade de se matar, de pular pela janela ou de matar o outro. Isso significa que, nas relações de poder, há necessariamente possibilidade de resistência, pois se não houvesse possibilidade de resistência de resistência violenta, de fuga, de subterfúgios, de estratégias que Invertam a situação, não haveria de forma alguma relações de poder. Sendo esta a forma geral, recuso-me a responder à questão que às vezes me propõem: “Ora, se o poder está por todo lado, então não há liberdade.” Respondo: se há relações de poder em todo o campo social, é porque há liberdade por todo lado. Mas há efetivamente estados de dominação. Em inúmeros casos, as relações de poder estão de tal forma fixadas que são perpetuamente dessimétricas e que a margem de liberdade é extremamente limitada. Para tomar um exemplo, sem dúvida muito esquemático, na estrutura conjugal tradicional da sociedade dos séculos XVIII e XIX, não se pode dizer que só havia o poder do homem; a mulher podia fazer uma porção de coisas: enganá-lo, surrupiar-lhe o dinheiro, recusar-se sexualmente. Ela se mantinha, entretanto, em um estado de dominação» já que tudo isso não passava finalmente de um certo número de astúcias que jamais chegavam a inverter a situação. Nesse caso de dominação econômica, social, institucional ou sexual, o problema é de fato saber onde vai se formar a resistência. Estará, por exemplo, em uma classe operária que vai resistir à dominação política no sindicato, no partido e de que forma a greve, a greve geral, a revolução, a luta parlamentar? Em tal situação de dominação, é preciso responder a todas essas questões de uma maneira específica, em função do tipo e da forma precisa de dominação. Mas a afirmação: “Vocês veem poder por todo lado: então não há lugar para a liberdade”, me parece totalmente Inadequada. Não é possível me atribuir a ideia de que o poder é um sistema de dominação que controla tudo e que não deixa nenhum espaço para a liberdade.

O senhor falava há pouco do homem livre e do filósofo como duas modalidades diferentes do cuidado de si . O cuidado de si [p.278] do filósofo teria uma certa especificidade e não se confunde com o do homem livre.

Eu diria que se trata de dois lugares diferentes no cuidado de si, mais do que de duas formas de cuidado de si; creio que o cuidado é o mesmo em sua forma mas, em intensidade, em grau de zelo por si mesmo e, consequentemente, de zelo também pelos outros, o lugar do filósofo não é o de qualquer homem livre.

Será que a partir disso seria possível pensar uma ligação fundamental entre filosofia e politica?

Sim, com certeza. Acredito que as relações entre filosofia e política são permanentes e fundamentais. Certamente, se considerarmos a história do cuidado de si no pensamento grego, a relação com a política é evidente. E de uma forma, aliás, muito complexa: por um lado, vê-se, por exemplo, Sócrates tanto em Platão, no Alcibíades, quanto em Xenofonte, nas Mémorables, que interpela os Jovens dizendo-lhes: “Não, mas então me diga, queres te tornar um homem político, governar a cidade, ocupar-te dos outros, mas tu não te ocupaste de ti mesmo, e se não te ocupas de ti mesmo, serás um mau governante”: dentro dessa perspectiva, o cuidado de si aparece como uma condição pedagógica, ética e também ontológica para a constituição do bom governante. Constituir-se como sujeito que governa implica que se tenha se constituído como sujeito que cuida de si. Mas, por outro lado, vemos Sócrates dizer na Apologia:6 “Eu interpelo todo mundo”, pois todo mundo deve se ocupar de si mesmo: mas logo acrescenta:7 “Fazendo isso, presto o maior serviço à cidade e, em vez de me punir, vocês deveriam me recompensar ainda mais do que vocês recompensam um vencedor dos Jogos olímpicos.” Há, portanto, uma articulação muito forte entre filosofia e política, que se desenvolverá a seguir, justamente quando o filósofo tiver não somente que cuidar da alma dos cidadãos, mas também daquela do príncipe. O filósofo se torna o conselheiro, o pedagogo, o diretor de consciência do príncipe.

Essa problemática do cuidado de si poderia ser o cerne de um novo pensamento político, de uma política diferente daquela que se conhece hoje em dia?

Confesso que não avancei muito nesta direção e gostaria muito de voltar justamente a problemas mais contemporâneos, para tentar verificar o que é possível fazer com tudo isso na problemática política atual, Mas tenho a impressão de que, no pensamento político do século XIX e talvez fosse preciso retroceder mais ainda, a Rousseau e a Hobbes o sujeito político foi pensado essencialmente como sujeito de direito, quer em termos naturalistas, quer em termos do direito positivo. Em contrapartida, parece que a questão do sujeito ético é alguma coisa que não tem muito espaço no pensamento político contemporâneo. Enfim, não gosto de responder a questões que não tenha examinado. Gostaria, entretanto, de poder retomar essas questões que abordei através da cultura antiga.

Qual seria a relação entre a via da filosofia, que leva ao conhecimento de si, e a via da espiritualidade?

Entendo a espiritualidade mas não estou certo de que esta seja uma definição que possa se manter por muito tempo como aquilo que se refere precisamente ao acesso do sujeito a um certo modo de ser e às transformações que o sujeito deve operar em si mesmo para atingir esse modo de ser. Acredito que, na espiritualidade antiga, havia identidade ou quase, entre essa espiritualidade e a filosofia. Em todo caso, a preocupação mais importante da filosofia girava em torno de si» o conhecimento do mundo vindo depois e, na maior parte do tempo, como base para esse cuidado de si. Quando se lê Descartes, é surpreendente encontrar nas Meditações exatamente esse mesmo cuidado espiritual, para aceder a um modo de ser no qual a dúvida não será mais permitida e no qual enfim se saberá; mas definindo dessa forma o modo de ser ao qual a filosofia dá acesso, percebe-se que esse modo de ser é inteiramente definido pelo conhecimento, e é certamente como acesso ao sujeito que conhece ou àquele que qualificará o sujeito como tal que se definirá a filosofia. Desse ponto de vista, creio que ela sobrepõe as funções da espiritualidade ao ideal de um fundamento da cientificidade.

Essa noção de cuidado de si no sentido clássico, deveria ser atualizada contra esse pensamento moderno?

Absolutamente. De forma alguma faço isso para dizer: “Infelizmente, esquecemos o cuidado de si; pois bem, o cuidado de si é a chave de tudo.” Nada é mais estranho para mim do que a ideia de que a filosofia se desviou em um dado momento e esqueceu alguma coisa e que existe em algum lugar de sua história um princípio, um fundamento que seria preciso redescobrir. Acredito que todas essas formas de análise, quer assumam uma forma radical, dizendo que, desde o seu ponto de partida, a filosofia foi esquecida, quer assumam uma forma multo mais histórica, dizendo: “Veja, em tal filosofia, alguma coisa foi esquecida”, não são multo interessantes, não se pode deduzir delas muita coisa. O que, entretanto, não significa que o contato com esta ou aquela filosofia não possa produzir alguma coisa, mas seria preciso então enfatizar que essa coisa é nova.

Isso nos faz propor a questão: por que s e deveria atualmente ter acesso à verdade, no sentido político, ou seja, no sentido da estratégia política, contra os diversos pontos de “bloqueio” do poder no sistema relacional?

Este é efetivamente um problema: afinal, por que a verdade? Por que nos preocupamos com a verdade, aliás, mais do que conosco? E por que somente cuidamos de nós mesmos através da preocupação com a verdade? Penso que tocamos aí em uma questão fundamental e que é, eu diria, a questão do Ocidente: o que fez com que toda a cultura ocidental passasse a girar em torno dessa obrigação de verdade, que assumiu várias formas diferentes? Sendo as coisas como são, nada pôde mostrar até o presente que seria possível definir uma estratégia fora dela. È certamente, nesse campo da obrigação de verdade que é possível se deslocar, de uma maneira ou de outra, algumas vezes contra os efeitos de dominação que podem estar ligados às estruturas de verdade ou às instituições encarregadas da verdade. Para dizer as coisas muito esquematicamente, podemos encontrar numerosos exemplos: houve todo um movimento dito “ecológico” aliás, muito antigo, e que não remonta apenas ao século XX que manteve em um certo sentido e frequentemente uma relação de hostilidade com uma ciência, ou em todo caso com uma tecnologia garantida em termos de verdade. Mas, de fato, essa ecologia também falava um discurso de verdade: era possível fazer a crítica em nome de uni conhecimento da natureza, do equilíbrio dos processos do ser vivo. Escapava-se então de uma dominação da verdade, não jogando um jogo totalmente estranho ao jogo da verdade, mas jogando-o de outra forma ou jogando um outro Jogo, uma outra partida, outros trunfos no jogo da verdade. Acredito que o mesmo aconteça na ordem da política, na qual era possível fazer a crítica do político a partir, por exemplo, das consequências do estado de dominação dessa política inconveniente, mas só era possível fazê-lo de outra forma jogando um certo jogo de verdade, mostrando quais são suas consequências, mostrando que há outras possibilidades racionais, ensinando às pessoas o que elas ignoram sobre sua própria situação, sobre suas condições de trabalho, sobre sua exploração.

O senhor não acha que, a respeito da questão dos Jogos de verdade e dos Jogos de poder; se pode constatar na história a presença de uma modalidade particular desses jogos de verdade, que teria um status particular em relação a todas as outras possibilidades de jogos de verdade e de poder e que se caracterizaria por sua essencial abertura, sua oposição a qualquer bloqueio do poder, ao poder portanto, no sentido da dominação/submissão?

Sim, é claro. Mas, quando falo de relações de poder e de Jogos de verdade, não quero de forma alguma dizer que os jogos de verdade não passem, tanto um quanto o outro, das relações de poder que quero mascarar esta seria uma caricatura assustadora. Meu problema é, como já disse, saber como os jogos de verdade podem se situar e estar ligados a relações de poder. Pode-se mostrar, por exemplo, que a medicalização da loucura, ou seja, a organização de um saber médico em torno dos indivíduos designados como loucos, esteve ligada a toda uma série de processos sociais, de ordem econômica em um dado momento, mas também a instituições e a práticas de poder. Esse fato não abala de forma alguma a validade científica ou a eficácia terapêutica da psiquiatria: ele não a garante, mas tampouco a anula. Que a matemática, por exemplo, esteja ligada de uma maneira alias totalmente diferente da psiquiatria às estruturas de poder, é também verdade, não fosse a maneira como ela é ensinada, a maneira como o consenso da matemática se organiza, funciona em circuito fechado, tem seus valores, determina o que é bem (verdade) ou mal (falso) na matemática etc. Isso não significa de forma alguma que a matemática seja apenas um jogo de poder, mas que o jogo de verdade da matemática esteja de uma certa maneira ligado, e sem que Isso abale de forma alguma sua validade, a Jogos e a instituições de poder. É claro que, em um certo número de casos, as ligações são tais que é perfeitamente possível fazer a história da matemática sem levar isso em conta, embora essa problemática seja sempre interessante e os historiadores da matemática tenham começado a estudar a história de suas instituições. Enfim, é claro que essa relação que é possível haver entre as relações de poder e os jogos de verdade na matemática é totalmente diferente daquela que é possível haver na psiquiatria; de qualquer forma, não é possível de forma alguma dizer que os jogos de verdade não passem nada além de jogos de poder.

Esta questão remete ao problema do sujeito, uma vez que, nos Jogos de verdade, trata-se de saber quem diz a verdade, como a diz e por que a diz Pois, no jogo de verdade, pode-se jogar dizendo a verdade: há um jogo. Joga-se à vera ou a verdade é um jogo.

A palavra “jogo” pode induzir em erro: quando digo “jogo”, me refiro a um conjunto de regras de produção da verdade. Não um Jogo no sentido de imitar ou de representar… ; é um conjunto de procedimentos que conduzem a um certo resultado, que pode ser considerado, em função dos seus princípios e das suas regras de procedimento, válido ou não, ganho ou perda.

Há sempre o problema do “quem”: trata-se de um grupo, de um conjunto?

Pode ser um grupo, um indivíduo. Existe aí de fato um problema. Pode-se observar, no que diz respeito a esses múltiplos jogos de verdade, que aquilo que sempre caracterizou nossa sociedade, desde a época grega, é o fato de não haver uma definição fechada e imperativa dos jogos de verdade que seriam permitidos, excluindo-se todos os outros. Sempre há possibilidade, em determinado Jogo de verdade, de descobrir alguma coisa diferente e de mudar mais ou menos tal ou tal regra, e mesmo eventualmente todo o conjunto do jogo de verdade, isso foi som dúvida o que deu ao Ocidente, em relação às outras sociedades, possibilidades de desenvolvimento que não se encontram em outros lugares. Quem diz a verdade? Indivíduos que são livres, que organizam um certo consenso e se encontram inseridos em uma certa rede de práticas de poder e de instituições coercitivas.

A verdade não será então uma construção?

Depende: há jogos de verdade nos quais a verdade é uma construção e outros em que ela não o é. É possível haver, por exemplo, um jogo de verdade que consiste em descrever as coisas dessa ou daquela maneira: aquele que faz uma descrição antropológica de uma sociedade não faz uma construção, mas uma descrição que tem por sua vez um certo número de regras, historicamente mutantes, de forma que é possível dizer, até certo ponto, que se trata de uma construção em relação a uma outra descrição. Isso não significa que não se está diante de nada c que tudo é fruto da cabeça de alguém. A partir do que se pode dizer, por exemplo, a respeito dessa transformação dos jogos de verdade, alguns concluem que se disse que nada existia acharam que eu dizia que a loucura não existia, quando o problema era totalmente inverso: tratava-se de saber como a loucura, nas diferentes definições que lhe foram dadas, em um certo momento, pôde ser integrada em um campo institucional que a constituía como doença mental, ocupando um certo Lugar ao lado das outras doenças.

Na realidade, há também um problema de comunicação no cerne do problema da verdade, o da transparência das palavras do discurso. Aquele que tem a possibilidade de formular verdades também tem um poder, o poder de poder dizer a verdade e de expressá-la como quiser.

Sim. No entanto, isso não significa que o que ele diz não seja verdade, como a maior parte das pessoas acredita: quando as fazemos constatar que pode haver uma relação entre a verdade e o poder, elas dizem: “Ah, bom! Então não é a verdade!”.

Isso faz parte do problema da comunicação, pois, em uma sociedade em que a comunicação possui um grau de transparência muito elevado, os jogos de verdade talvez sejam mais independentes das estruturas de poder.

O senhor tocou em um problema importante; imagino que o senhor tenha me dito isso pensando um pouco em Habermas. Tenho muito interesse no que faz Habermas, sei que ele não está absolutamente de acordo com o que digo concordo um pouco mais com o que ele diz, mas há contudo alguma coisa que sempre foi para mim um problema: quando ele dá às relações de comunicação esse lugar tão importante e, sobretudo, uma função que eu diria “utópica”. A ideia de que poderia haver um tal estado de comunicação no qual os jogos de verdade poderiam circular sem obstáculos, sem restrições e sem efeitos coercitivos me parece da ordem da utopia. Trata-se precisamente de não ver que as relações de poder não são alguma coisa má em si mesmas, das quais seria necessário se libertar; acredito que não pode haver sociedade sem relações de poder, se elas forem entendidas como estratégias através das quais os indivíduos tentam conduzir, determinar a conduta dos outros. O problema não é, portanto, tentar dissolvê-las na utopia de uma comunicação perfeitamente transparente, mas se imporem regras de direito, técnicas de gestão e também a moral, o êthos, a prática de si que permitirão, nesses jogos de poder, jogar com o mínimo possível de dominação.

O senhor está muito distante de Sartre, que nos dizia: “O poder é o mal”

Sim, e frequentemente me atribuíram essa ideia, que está muito distante do que penso. O poder não é o mal. O poder são jogos estratégicos. Sabe-se muito bem que o poder não é o mal! Considerem, por exemplo, as relações sexuais ou amorosas: exercer poder sobre o outro, em uma espécie de jogo estratégico aberto, em que as coisas poderão se inverter, não é o mal; isso faz parte do amor, da paixão, do prazer sexual. Tomemos também alguma coisa que foi objeto de críticas frequentemente justificadas; a instituição pedagógica. Não vejo onde está o mal na prática de alguém que, em um dado jogo de verdade, sabendo mais do que um outro, lhe diz o que é preciso fazer, ensina-lhe, transmite-lhe um saber, comunica-lhe técnicas: o problema é de preferência saber como será possível evitar nessas práticas nas quais o poder não pode deixar de ser exercido e não é ruim em si mesmo os efeitos de dominação que farão com que um garoto seja submetido à autoridade arbitrária e inútil de um professor primário; um estudante, à tutela de um professor autoritário etc. Acredito que é preciso colocar esse problema em termos de regras de direito, de técnicas racionais de governo e de êthos, de prática de si e de liberdade.

Poderíamos entender o que o senhor acaba de dizer como os critérios fundamentais do que o senhor chamou de uma nova ética? Tratar-se-ia de tentar jogar com o mínimo de dominação…

Acredito que este é efetivamente o ponto de articulação entre a preocupação ética e a luta política pelo respeito dos direitos, entre a reflexão critica contra as técnicas abusivas de governo e a investigação ética que permite instituir a liberdade individual.

Quando Sartre fala de poder como mal supremo, parece fazer alusão à realidade do poder como dominação; provavelmente, o senhor concorda com Sartre.

Sim, acredito que todas essas noções tenham sido mal definidas e que não se saiba muito bem do que se fala. Eu mesmo não tenho certeza, quando comecei a me interessar por esse problema do poder, de ter falado dele muito claramente nem de ter empregado as palavras adequadas. Tenho, agora, uma visão muito mais clara de tudo isso; acho que é preciso distinguir as relações de poder como jogos estratégicos entre liberdades jogos estratégicos que fazem com que uns tentem determinar a conduta dos outros, ao que os outros tentam responder não deixando sua conduta ser determinada ou determinando em troca a conduta dos outros e os estados de dominação, que são o que geralmente se chama de poder. E entre os dois, entre os jogos de poder e os estados de dominação, temos as tecnologias governamentais, dando a esse termo um sentido muito amplo trata-se tanto da maneira com que se governa sua mulher, seus filhos, quanto da maneira com que se dirige uma instituição. A análise dessas técnicas é necessária, porque muito frequentemente é através desse tipo de técnicas que se estabelecem e se mantêm os estados de dominação. Em minha análise do poder, há esses três níveis: as relações estratégicas, as técnicas de governo e os estados de dominação.

Em seu curso sobre a hermenêutica do sujeito se encontra um trecho no qual o senhor diz que o único ponto original e útil de resistência ao poder político está na relação de si consigo mesmo.

Não acredito que o único ponto de resistência possível ao poder político entendido justamente como estado de dominação esteja na relação de si consigo mesmo. Digo que a governabilidade implica a relação de si consigo mesmo, o que significa justamente que, nessa noção de governabilidade, viso ao conjunto das práticas pelas quais é possível constituir, definir, organizar, instrumentalizar as estratégias que os indivíduos, em sua liberdade, podem ter uns em relação aos outros. São indivíduos livres que tentam controlar, determinar, delimitar a liberdade dos outros e, para fazê-lo, dispõem de certos instrumentos para governar os outros. Isso se fundamenta então na liberdade, na relação de si consigo mesmo e na relação com o outro. Ao passo que, se você tenta analisar o poder não a partir da liberdade, das estratégias e da governabilidade, mas a partir da instituição política, só poderá encarar o sujeito como sujeito de direito. Temos um sujeito que era dotado de direitos ou que não o era e que, pela instituição da sociedade política, recebeu ou perdeu direitos: através disso, somos remetidos a uma concepção jurídica do sujeito. Em contrapartida, a noção de governabilidade permite, acredito, fazer valer a liberdade do sujeito e a relação com os outros, ou seja, o que constitui a própria matéria da ética.

O senhor pensa que a filosofia tem alguma coisa a dizer sobre o porquê dessa tendência a querer determinar a conduta do outro?

Essa maneira de determinar a conduta dos outros assumirá formas muito diferentes, suscitará apetites e desejos de intensidades muito variadas segundo as sociedades. Não conheço absolutamente antropologia, mas é possível imaginar que há sociedades nas quais a maneira com que se dirige a conduta dos outros é tão bem regulada antecipadamente que todos os jogos são, de qualquer forma, realizados. Em compensação, em uma sociedade como a nossa isso é muito evidente, por exemplo, nas relações familiares, nas sexuais ou afetivas, os jogos podem ser extremamente numerosos e, consequentemente, o desejo de determinar a conduta dos outros é muito maior. Entretanto, quanto mais as pessoas forem livres umas em relação às outras, maior será o desejo tanto de umas como de outras de determinar a conduta das outras. Quanto mais o jogo é aberto, mais ele é atraente e fascinante.

O senhor pensa que a tarefa da filosofia é advertir dos perigos do poder?

Essa tarefa sempre foi uma grande função da filosofia. Em sua vertente critica entendo crítica no sentido amplo a filosofia é justamente o que questiona todos os fenômenos de dominação em qualquer nível e em qualquer forma com que eles se apresentem política, econômica, sexual, institucional. Essa função crítica da filosofia decorre, até certo ponto, do imperativo socrático: “Ocupa-te de ti mesmo”, ou seja: “Constitua-te livremente” pelo domínio de ti mesmo.”

3 Comments

  • NESTOR FRANCA FERREIRA
    3 de julho de 2016

    Subjetividade e o conhecimento de si mesmo são duas coisas que andam juntas, pois nosso interior nossa essência, nossa alma o que somos realmente .Depende prioritariamente deste autoconhecimento. Esta ética só existe se realmente nós dermos prioridade ao que nos importa. Primeiro eu, segundo eu, terceiro eu. Isto não é egoismo isto é dar prioridade às nossas necessidades mais intimas. Quando nos resolvemos psicologicamente, emocionalmente, afetivamente, materialmente e tudo mais que se faz necessário para uma satisfação mais ou menos plena .Podemos então pensar em ajudar e compartilhar o que aprendemos com nossas experiências vividas, experimantadas , das nossas tentativas com ou sem sucessos. Porque teoria e xperiência são duas coisas completamente difererentes. Filosofar sobre algo é interessante, mas viver aquilo, experimentar o que se fala modifica completamente o sentido um é a fala, o pensamento. O outro é a ação a experiência. Que engloba todo o conhecimento alcançavel humano e espiritualmente capaz no contexto humano.

  • NESTOR FRANCA FERREIRA
    3 de julho de 2016

    O cuidado de si mesmo reflete toda uma estrutura psiquica de equilibrio. Quando estamos em sintonia com nosssos problemas exteriores e interiores significa que nossa alma esta interagindo com todas ações externas e impulsos internos de nossa alma fazendo com que liberemos reações coerentes, dignas, humanas, e producentes. Creio que isto é um dos sintomas do cuidado de si mesmo. Sim e cuidar dos outros também é cuidar de nós a vida ´de uma reciprocidade.

  • […] interna, que ele acredita só pode ser conseguida no cuidado de si mesmo.  Nessa bela entrevista “A ética do cuidado de si como prática de liberdade” ele conta, entre outras coisas, como encontrou na filosofia antiga e em mestres como Sócrates e […]

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