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Conferências em Moçambique (trecho 2)

Filosofia não é algo abstrato, genérico, teórico. Filosofia ou serve para a vida ou não serve para nada. Nós vamos passar um pensamento filosófico desse ponto de vista, do ponto de vista da vida. Eu dizia então que nós colhemos o que plantamos e nós morremos pela boca. Mas também nós podemos viver pela boca. Ou seja, o que há aqui é a idéia de uma necessidade de uma seleção, de uma capacidade seletiva nos encontros. Essa capacidade seletiva é, na verdade, a tônica da grande saúde: a saúde do corpo, a saúde da mente, a saúde das relações sociais, a saúde das relações com a natureza, a saúde das relações com o planeta, a saúde de todos os corpos vivos que se inter-relacionam. Porque a vida nesse planeta e em todo o universo é uma só. A vida quer. Ela quer crescer e se multiplicar; ela quer se expandir e se fortalecer; ela quer se afirmar nas suas diferenças, nas suas singularidades, ela quer afirmar aquilo que ela é, sem pedir licença e sem reservas em relação ao que os homens muitas vezes inventam como ficção de ordem, de lei ou de confusão mental que pode fazê-los separar-se daquilo que eles mesmos podem na sua vida.

Então, nas sociedades ocidentais principalmente, há uma maneira de viver que adoece corpos e mentes. Mas essa maneira de viver que adoece corpos e mentes é tida como uma maneira saudável pelo ocidente. O ocidente criou um mito, uma ficção, melhor dizendo, de que a mente está separada do corpo e, mais do que isso, de que o homem está separado da natureza ou, ainda mais, que o homem é superior à própria natureza. Essa visão que o ocidente criou é uma visão extremamente nociva, porque põe no lugar do corpo, no lugar da vida, no lugar da natureza uma instância de julgamento exterior à própria vida que quer controlar e regular a vida. A vida, na verdade, tem uma capacidade de auto-regulação, de autocontrole, de auto-afirmação, de autodeterminação, de autonomia, numa palavra. A soberania, a liberdade, a autonomia, só se efetuam na medida em que somos capazes de respeitar as nossas próprias diferenças, de afirmar nossas próprias diferenças. E as nossas diferenças são necessariamente saudáveis, são necessariamente positivas, desde que bem relacionadas, desde que bem focadas, desde que elas encontrem uma maneira de se expressar, uma maneira de agir, uma maneira de sentir, uma maneira de pensar, não há mal nenhum no desejo, na vontade de um corpo, na vontade de um pensamento de se efetuar. Mas o ocidente criou uma ficção dizendo que no fundo do homem tem uma natureza animal e a natureza animal é inferior, segundo essa visão do ocidente, é inferior e fonte dos males, fonte das doenças, fonte das misérias, fonte das intrigas, e das guerras. E haveria uma instância em nós, uma instância racional capaz de governar e de submeter essa instância animal. Então essa filosofia ocidental, esse pensamento ocidental, que é veiculado pelas sociedades, pelos estados ocidentais, e pelas religiões ocidentais também, pressupõem que o corpo e a natureza têm uma espécie de dívida, tem uma espécie de falta, tem uma espécie de carência que, quando se efetua, se efetua por interesse próprio e, no interesse próprio, gera discórdia, gera guerra, gera as fontes de desintegração social e de adoecimento que levam os povos à extinção.

Essa ficção ocidental visa, na verdade, um domínio ou um controle dos corpos. Uma vez que eu retiro o controle ou a capacidade de autogestão da vida, porque eu digo que a vida é incapaz disso, que a vida é inferior, que ela não pode se autogerir, eu estou pondo a vida num lugar inferior e criando uma instância superior de julgamento da vida e de controle da vida. Então, essa posição é dominante no ocidente. E essa posição desqualifica a vida, a natureza, os saberes locais, os saberes tradicionais, as culturas que sempre trazem algo de essencial e de necessário e que são desqualificadas uma vez que encontram esse tipo de visão e de atitudes. A gente pensa: o que falta à cultura; o que falta à natureza; o que falta à vida; o que falta aos corpos, para que eles se autodeterminem? O poder geralmente (o poder que explora, expropria, que domina), esse tipo de poder geralmente não gosta de vida forte. Não gosta da vida livre; não gosta da vida que tenha uma capacidade própria de efetuação. Por isso, o poder introjeta medo; introjeta tristeza, daí minha alegria ao ver esse tipo de manifestação tão dinâmica e alegre e afirmativa das próprias maneiras locais de viver. Mas o poder geralmente faz o contrário: desqualifica ou transforma a própria cultura em folclore. A felicidade que eu tive ao encontrar os povos de Moçambique foi ver que aqui cultura não é folclore, aqui cultura não é um departamento, não é um ministério, cultura é algo vivo. As pessoas vivem isso, elas se organizam através disso. Elas pensam através disso, elas sentem através da cultura. Então, a cultura é uma espécie de filtro seletivo, aquilo que eu falava já de início em relação ao fígado, ao rim, a essa capacidade de seleção nos encontros que fundam a grande saúde. A cultura traz uma grande saúde e não pode ser menosprezada, desqualificada, simplesmente posta de lado, por um suposto saber científico, “mais evoluído” ou que atingiu certas capacidades de cura que, na verdade, traz junto com essa capacidade de cura um controle embutido que nós chamamos de biopoder.
O poder sobre a vida, o controle sobre a vida. Eu não sei se vocês perceberam um pouco do que eu estou falando, até onde eu quero chegar enfim. Vou tentar desdobrar um pouco mais. Eu espero que não esteja abstrato demais. Se vocês acham que está dando para acompanhar o que eu estou falando? Vocês acham que está indo assim? Se quiserem fazer alguma questão, se estiver difícil, vocês me falem. Não tem problema. Podem interromper à vontade.

Transcrição completa: https://escolanomade.org/2016/02/25/saude/

© Escola Nômade de Filosofia