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Curso Educação Para Potência (áudio e transcrição) – Aula 19/32

 

Transcrição por Gabriel Naldi

 

[Luiz Fuganti]: Hoje nós vamos aumentar a complexidade.

Não sei, vou tentar introduzir a questão, a problemática dessa quarta modalidade de experiência de modo panorâmico, de novo. Então a gente vai fazer uma aproximação. Nesse sentido acho que vai facilitar.

O que a gente viu até aqui? A gente viu a experiência do pensamento, viu a filosofia na primeira idade sob o seu duplo aspecto: o aspecto crítico e o aspecto criativo.

O aspecto crítico foi aquele que focou na mediação do pensamento, que opera na separação do pensamento e no que ele pode. O aspecto crítico, o encontro e uma sinalização em relação à conquista do imediato. O encontro com o imediato e uma sinalização em relação a como conquistar o imediato do pensamento operando em nós. O pensamento como um acontecimento, como uma experimentação do modo humano de ser.

Nós vimos também, na segunda modalidade, a experiência do corpo sob seu duplo aspecto e a estética na primeira idade — seja o aspecto crítico como desconstrução da mediação que separa o corpo do que ele pode e que inviabiliza uma relação direta do movimento enquanto um contínuo intensivo. E sob seu aspecto criativo, nós encontramos, ou reencontramos e sinalizamos, o modo como se conquista a capacidade de mover e ser movido a partir de um plano de imanência, de um campo de imanência do próprio movimento. Ou aquilo que a gente chamou de imediato [00:02:32].

Na terceira modalidade, nós vimos a experiência da escolha e um modo de vida que faz a diferença ou te produz uma singularidade sob o seu aspecto criativo, o que nós chamamos de ética. E sob seu aspecto crítico, nós chamamos de moral. Descontruímos a mediação da escolha operada pela opinião fundada em um estado de desejo e que se exprime em um estado de corpo e um estado de pensamento, e construída a partir de uma ilusão de consciência.

Essa crítica desconstruiu então essa suposta ideia de liberdade e a ligou a uma servidão. Esse aspecto crítico. E o aspecto criativo nos fez encontrar, ou reencontrar e ao mesmo tempo sinalizar, o modo como a gente conquista essa escolha imediata. O modo como você opera a fabricação da diferença enquanto produção de eternidade na existência. É uma escolha real, uma escolha que realmente diferencia, que opera, que faz, que fabrica a diferença. Não temos uma falsa escolha que classifica, que ordena, que submete a diferença, que domestica a diferença. É o contrário: um gosto pela diferenciação. Então é a ética desse ponto de vista afirmativo já operando uma aliança com a estética. A ética como uma potência seletiva e, em seu aspecto estético, com um gosto pela diferenciação.

Nessa medida, então, nós temos já, digamos assim, três campos da experiência que acontecem ao homem de duas maneiras: de uma maneira ordinária ou de uma maneira extraordinária. A maneira ordinária do homem experimentar é aquele sentido de experiência que a gente desconstruiu logo no começo do curso. É a experiência como uma espécie de troca, de aquisição, de anexação, de enriquecimento por tentativas, por consumo de imagens, de signos, de sensações, de objetos, que operaria apenas em uma espécie de variação acidental de uma suposta essência humana. A experiência no sentido extraordinário opera em uma produção de realidade naquilo que se chama de acidente. Ela produz uma essência. Naquilo que se chama de acaso, ela produz uma necessidade. Naquilo que se chama de dever, ela produz um ser. Então é uma experiência que não é simplesmente um agregado, não é um modo de anexar a nossa suposta realidade substancial, melhoramentos ou aperfeiçoamentos. Não é um enriquecimento por troca. A experimentação no sentido extraordinário já é a produção do próprio real. É o reencontro com o modo que o próprio real opera a produção dele mesmo através de nós.

Nesse sentido, então, nós mapeamos essa tripla experimentação sob os dois aspectos, o aspecto ordinário, que demanda uma mediação; e o aspecto extraordinário, que encontra e reconquista o imediato. São três zonas de experiência: a do pensamento, a do corpo e a da liberdade. Que liberdade? “O homem pode.” Que sentido o homem [00:07:33]? Foi a nossa terceira modalidade. Que é a natureza da ação. A natureza da atividade. O que é ser ativo? O que é um modo de vida realmente ativo? Que atravessava também, como um pressuposto, os modos de pensar e os modos de sentir e agir no corpo. Ou seja, que atravessava a experiência do pensamento, que atravessava a experiência do corpo. Que atravessava a experiência do tempo e a experiência do movimento. Ou seja, a experiência da escolha já estava presente na experiência do pensamento e já estava presente na experiência do movimento. Há uma coexistência, um atravessamento nos três campos de experiência. Não é uma sucessão, ainda que tenhamos exposto dessa maneira.

Na medida em que nós operamos essa tripla crítica e essa tripla sinalização para reencontrar as capacidades criativas do modo humano de ser, nós agora entramos em um quarto desafio, que é não só operar a crítica a esses três modos da intermediação, não só encontrar e reencontrar as dimensões de uma experiência extraordinária e que fariam da existência humana de fato um modo inédito da natureza operar, mas além dessa desconstrução das nossas capas, dos nossos extratos, do modo estratificado e segmentalizado do homem ser e o encontro ou reencontro com as fontes imediatas da experiência do corpo, da experiência do pensamento e da experiência da escolha. A continuidade disso, esse é o nosso quarto desafio.

Como, ao mesmo tempo em que você desconstrói e acessa (ou reacessa) essas dimensões. Como se manter nisso, ou seja, uma espécie de função nobre da conservação. Nós vimos antes, na terceira modalidade, mais diretamente, a conservação como uma função. E, nos casos críticos, a conservação como uma doença. Aqui nós vamos ver a conservação sob o ponto de vista da saúde. A conservação sob o ponto de vista de uma condição necessária para a continuidade do querer ativo, ou do desejo intensivo e ativo que se mantém, enquanto ativo e enquanto intensivo.

[Fernando]: Onde está a água?

[Luiz Fuganti]: Oi?

[Fernando]: A água.

[Luiz Fuganti]: Lá em cima do balcão. Aliás, a água deve ter fervido já. Usa aquela garrafa de couro. Perdão.

[inaudível – falatório fora do curso]

[Luiz Fuganti]: A natureza nobre da conservação seria expressa a partir de um modo de continuidade. Então, o que precisamos entender é qual é a natureza dessa continuidade. A continuidade do querer. A continuidade do desejo. E que desejo. Porque nós vimos, essencialmente, que os modos mergulhados na experiência ordinária ou os modos de vida separados do que podem, na capacidade de pensar, na capacidade de agir, na capacidade de sentir, na capacidade de escolher. Nós vimos o quê? Que eles operam também uma falsa continuidade. Na mesma medida em que eles operam um falso corte, uma falsa descontinuidade. Então nós precisamos entender a natureza da descontinuidade e da continuidade, do ponto de vista da experiência ordinária, que demanda uma mediação; e do ponto de vista da experiência extraordinária, que demanda um encontro ou um reencontro com o imediato da própria continuidade e da descontinuidade.

Ou seja, nós vamos também ver, nessa quarta modalidade, a experiência da memória sob seu duplo aspecto. O aspecto crítico e o aspecto criativo. Então, nós já vemos que nessa quarta modalidade há uma batalha a se travar também. Há uma desconstrução a se fazer. Há um “não” a ser dito. Ou melhor, a ser experimentado. Porque não se trata de um dizer ou de uma consciência desse não. Trata-se de uma postura seletiva, de um “fechar a porta”, não por negação, mas por presença de uma continuidade intensiva. Esse “não”, então, é preciso antes encontrar a sua matéria. E que matéria é essa?     Essa matéria já vai sendo construída (ou descontruída) desde as três modalidades anteriores da experiência.

Se a experiência do pensamento, no sentido ordinário, nos separa da capacidade de pensar, nos separa do pensamento como acontecimento essencial da vida, que produz uma realidade pelo pensamento, é porque de alguma maneira nós estamos submetidos a um estado de mente, um estado mental que fragmenta tanto a multiplicidade exterior quanto a multiplicidade interior. Ou ainda, de uma outra maneira: uma suposta unidade exterior e uma suposta unidade exterior.

[Homem]: Que fragmenta?

[Luiz Fuganti]: Fragmenta. Que parcializa. Vamos usar esse termo para sermos um pouco mais precisos. Que parcializa a continuidade do “fora” e a continuidade do “dentro”. Vamos usar dessa maneira. Que funda a ideia de que o pensamento começa na consciência ou no sujeito. Ao menos o pensamento humano. E que ao mesmo tempo vai analisar e sintetizar os objetos e sujeitos da natureza, com suas operações.

Então, esse modo parcial e fragmentado de operar apreende a si mesmo, ilusoriamente, como uma unidade. Mas de unidade ele não tem nada, a não ser como uma unidade mista e, para usar os termos do Bergson, “um misto mal analisado”.

Nessa mesma medida, ele opera, em relação a seu objeto, da mesma maneira. Ele parcializa o seu objeto quando, na verdade, ele acredita ser o todo do objeto e ele unifica o seu objeto quando, na realidade, essa unidade é apenas a unidade de um misto ou de um composto.

Eu não vou especificar muito mais isso porque eu disse que agora ia dar mais uma panorâmica. Depois entramos mais singularmente nessas questões. Eu vou fazer isso em relação aos outros campos da experiência também, ao do corpo e ao da escolha, mas o que podemos dizer inicialmente aqui é que nós apreendemos nós mesmos enquanto “eu” como uma espécie de sobreposição dos nossos estados psicológicos — que já são parcializados pela nossa consciência, que já são fragmentados pela nossa consciência.

Então já separamos artificialmente por uma consciência prática, utilitária, fundada em uma conservação inferior da vida, em uma sobrevivência. É necessário para a vida prática, imediata, relacionada a essa sobrevivência mais baixa, que ela fragmente a si mesmo e fragmente as coisas. E a consciência não ultrapassa — nós vimos isso bem nitidamente com o Espinoza, e agora, de um outro ponto de vista, com o Bergson — os seus efeitos. Ela já é efeito e ela não se ultrapassa enquanto efeito. Ela, na melhor das hipóteses, pode simplesmente não querer se tomar como causa, na medida em que tem algo além dela operando a sua gênese. Mas na medida em que estamos reduzidos a um estado de consciência, não tem como nós apreendermos a nossa própria continuidade imanente e intrínseca, ou para falar como o Bergson, a nossa duração, senão de modo descontínuo. Ela só apreende de modo descontínuo. Ou seja, ela já fragmenta o nosso tempo próprio. Do ponto de vista do pensamento, nós já estamos fragmentados e nos apreendemos como uma coleção de estados psicológicos que se sucedem. Se nós formos empiristas, vamos dizer simplesmente que o “eu” é um mero efeito desses estados psicológicos. Se nós formos dogmáticos ou racionalistas, vamos dizer simplesmente que esse “eu” estaria a piori como uma condição de unificação desses estados psicológicos. Mas o que se passa em ambos os casos é que não se ultrapassa a experiência utilitária, a experiência ordinária em direção a uma experiência extraordinária que reencontra o imediato da continuidade intensiva em nós mesmos.

Então, é como se nós fôssemos fragmentados no tempo, nos relacionássemos por fragmentos na matéria e no espaço, mas precisássemos de uma condição de unificação em nós e uma condição de totalização no mundo. E nessa medida, nós buscaríamos então uma continuidade factícia, ou artificial, uma vez que nós não apreendemos a continuidade imanente. E é aqui que entra, além do falso corte, a falsa continuidade, que nós vamos chamar de uma espécie de “longa memória”, uma longa memória formal, ou aquilo que Foucault chama de “memória de longa duração”.

Nós vamos relacionar, depois, a continuidade real a uma memória de curta duração que, no entanto, de curta não tem nada, no sentido de que ela continua necessariamente o desejo na sua imanência. Mas é que ela não opera mais enquanto marca, ou enquanto encadeamento de marca, seja encadeamento de signos na linguagem, seja encadeamento de imagens na sensibilidade. Ela não opera mais por esse tipo de encadeamento, por esse tipo de ligação de falsa duração.

Eu disse que estamos aumentando o nível de complexidade ….

[Homem]: Eu senti.

[Luiz Fuganti]: Sentiu um pouquinho? [risos] Mas vamos com calma. Tem seis aulas só para fazer isso. Vamos fazer essa panorâmica, essa aproximação ….

[falas ininteligíveis]

[Luiz Fuganti]:  Se isso acontece em relação ao pensamento, isso também acontece em relação ao movimento, em relação ao corpo. Da mesma maneira que nós apreendemos essa fragmentação do tempo do pensamento e espacializamos o tempo na objetividade do mundo, nós também apreendemos o movimento a partir do nosso estado de corpo. No estado de corpo não tem como o movimento se transformar em um segmento, então o segmento já é um fragmento. Ele já é uma separação do movimento dele mesmo. Ele já implica em uma apreensão ou em uma imaginação descontínua da extensão. Uma imaginação descontínua do próprio movimento. Então haveria na natureza do movimento uma descontinuidade essencial. É tudo o que vamos combater. Para nós, o movimento é uma continuidade essencial e não uma descontinuidade. Ele só é descontínuo do ponto de vista da impotência ou do corpo separado do que pode. Aí ele é descontínuo.

Essa batalha já vem desde Espinoza, quando na proposição — se não me engano, 16 ou 17 lá da Ética I, o Espinoza vai dizer que “a extensão é um atributo de Deus, ou da natureza naturante”. E ele vai defender essa tese na medida em que os homens, quando falam de extensão, não sabem o que estão falando. Falam de extensão como se fosse uma quantidade, uma quantidade divisível e homogênea como diferencial. Quantidades de movimentos. Mas nós só aprendemos o movimento enquanto quantidade extensiva na medida em que o próprio movimento se congelou em segmentos em nós. Nós já estávamos submetidos a estados de movimentos           e a encadeamentos de estados de movimentos ou de segmentos. Aí sim nós aprendemos os movimentos dessa maneira. E aí sim, nós só aprendemos a realidade do movimento no deslocamento. No melhor dos casos, o movimento intensivo a gente aprende como uma espécie de preparação ou de esboço para o deslocamento, que seria o modo superior do movimento. Nós vamos, aqui, inverter: o deslocamento é o que há de último no movimento, ou de resíduo do movimento. O deslocamento é um resíduo do movimento. Não que não tenha a sua nobreza, o deslocamento. Tem. Mas jamais o deslocamento exprime a natureza do movimento.

Então, Bergson tem uma palavra para isso, que é a alteração. Ele chama de alteração. Em vez de deslocamento como uma transformação do movimento, ele chama de uma alteração. O que quer dizer com “uma alteração”? Uma mudança real. Com aquilo que Nietzsche chama de transmutação, nesse sentido.

Então o que se passa em relação ao movimento? Se passa que nós apreendemos o movimento através do espaço. E aqui está o primeiro erro, e ele está fundado em uma ilusão de consciência.               O espaço já é um esquema abstrato. Abstrato no sentido pejorativo, não abstrato no sentido de um real abstrato. É um abstrato imaginativo. E o espaço, enquanto um esquema abstrato, ele recorta na pele, ele fragmenta na pele em instantes. Ou melhor, em pontos. Em pontos, do ponto de vista do movimento e em instantes do ponto de vista do tempo. Então ele começa a articular uma cadeia de instantes e de pontos. A sucessão seria sempre uma sucessão de instantes e o movimento seria sempre o deslocamento de um ponto a um ponto. Essa fragmentação se dá também no nosso corpo, quando nós quantificamos extensivamente o nosso movimento. Vocês lembram que, na segunda modalidade, eu insisti na ideia de que nós trocamos, na experiência ordinária do corpo, a diferença do nosso movimento por uma quantidade extensiva do movimento que torna o movimento substituível ou trocável? Quando há uma quantidade intensiva, que é insubstituível, que é irredutível. Mas na medida em que nosso corpo está separado do que pode, ele simplesmente troca movimentos. Ele quantifica o movimento. Ele equilibra, ele igualiza, ele equaciona o movimento. Na realidade, o movimento tem sempre, na sua variação, uma quantidade ou quantidades intensivas incomensuráveis. Que eu pego uma passagem de uma a outra, de modo insensível, de modo imperceptível, mudando de natureza. O movimento, não que é ele não se divide. Ele se divide mudando de natureza, é por isso que ele mantém a sua continuidade, a continuidade dele é intensiva, e não um encadeamento de segmentos extensivos. Isso seria uma falsa continuidade. Então nós vamos desconstruir também a memória do corpo, que nós vamos chamar de hábito ou de cadeia de movimentos, como simplesmente esse modo de operar, uma religação no uso da sensibilidade, no consumo, na produção e na distribuição das imagens sensíveis. Aqui vai haver também uma operação crítica de desarticulação, de desligamento ou de inversão dessa falsa ligação do movimento.

[Homem]: É daí que decorrem [00:32:42] os paradoxos de Zenão?

[Luiz Fuganti]: Exatamente. O Zenão estava inteiramente nessa confusão. Aliás, esse paradoxo do Zenão poderia ser o primeiro paradoxo a trabalhar na oficina do paradoxo. Acho que é excelente isso, porque a questão do movimento é uma questão essencial e já dá um nó nessa consciência embotada que está reduzida ou que reduz o tempo à espacialização e o movimento a um percurso de um ponto a outro.

Nesse segundo campo de experiência, que é a experiência do corpo, há também um estado de corpo que impede que nós apreendamos o imediato do movimento em nós e na matéria. E ao mesmo tempo, a partir desse estado de corpo, uma necessidade, uma demanda de imediatização, no sentido de religar o corpo àquilo que ele supostamente se desligou. Só que já se faz uma imagem disso que supostamente ele se desligou, se cria então uma falsa unidade do indivíduo e uma falsa totalidade dos movimentos do universo. Então essa desconstrução é necessária que façamos também para apreender o quê? O imediato e a unidade imanente do próprio movimento. O que é unidade imanente? Unidade imanente é isso que nós estamos chamando de continuidade. Não é uma unidade que se sobrepõe a uma suposta multiplicidade. É uma unidade de dentro, é que há um único plano de movimento, com uma variação infinita. Isso [00:33:29] da extensão do Espinoza, inclusive. O atributo extensão. Uma única unidade ser do movimento que tem uma potência infinita de variáveis.

Essa continuidade é que é necessário nós apreendermos. Porque aí nós colocamos de novo o corpo em contato com o infinito, com a sua fonte infinita. Assim como nós podemos operar isso com o pensamento. Ou seja, os dois campos de experiência, ultrapassando a experiência ordinária de um certo enriquecimento, de um certo melhoramento, de uma certa anexação de valores e conquistando um campo de experiência extraordinária na produção da própria diferença ou eternidade do movimento e do pensamento.

Nessa medida, também, a escolha é a nossa terceira modalidade, esse terceiro campo da experiência vai operar não mais entre fragmentos especializados do corpo ou segmentos quantificados homogeneamente a partir do próprio corpo, nem mais entre objetos ideais do pensamento ou estados subjetivados psicologicamente, mas a escolha vai se dar a partir do acontecimento que se atribui ao corpo e que exprime no pensamento. A escolha vai se dar no imediato, não pressupondo uma fragmentação, uma descontinuidade artificial ou mesmo suposta natural pela ilusão da consciência, mas apreendendo primeiramente a unidade. O que se escolhe inicialmente em uma experiência da vida? Não é mais entre uma coisa ou outra, mas é, antes, aquilo, na multiplicidade, que é comum. É o contrário. O contrário do que a consciência imaginativa imaginaria que precisaria para fazer a diferença. Em vez de escolher o elemento, ou entre elementos, ela escolhe algo na multiplicidade que é comum: aquilo que chamamos de necessidade do acaso. O ser comum da relação. É isso o que ela escolhe. Então você vê que, no modo de escolher, a continuidade já é privilegiada, já é primeira. Ou se escolhe pela própria condição de continuidade. Então a escolha é a escolha pela potência, porque a continuidade é na condição da potência, ou da potencialização. Se o desejo não continua, ele é abortado, ele “morre na praia”, digamos assim, para usar uma expressão vulgar, ele precisa começar o tempo inteiro do zero. Ele não acumula. O que ele não acumula? Ele não acumula tempo e não acumula movimento. Não é acumular coisas. Não é acumular produtos. Não é engordar. Ele não acumula intensidade.

Então, na própria natureza da escolha já é contemplada, digamos assim, essa condição de continuidade. O necessário da relação já é a linha contínua do movimento e do tempo. Já implica esse ser comum. Então a escolha, uma vez que vai direto ao algo do acontecimento que continua o desejo de modo necessário, senão aquela realidade, aquela duração se esgota ali mesmo, se finaliza no processo supostamente esgotado, que no fundo é simplesmente determinado de fora, simplesmente é algo de fora e que decide interromper o processo, assim nós reconquistamos a capacidade de nos diferenciar e não de sermos determinados. Então a capacidade de diferenciar depende dessa escolha que apreende o necessário da relação.

Você vê que no plano da escolha, também, a experiência ordinária da escolha faz com que nós nos fixemos em pontos subjetivos e objetivos, em unidades originais e em totalizações finais. Vá de um ponto a outro e faça do devir, do processo, do movimento, do tempo, apenas um instrumento, um meio para chegar a um acabamento, a uma suposta perfeição, a um suposto lugar de verdade ou de realidade. Essa escolha, na verdade, já é operada a partir de uma redução da vida, então há um estado de desejo e um estado de coisas e, portanto, se torna impossível que essa vida que é determinada dessa maneira opere de fato a criação de uma realidade. Ela é como se fosse simplesmente uma espécie de joguete. Ela é determinada, de fora, a criar isso e aquilo, mas ela mesma não cria nada. Ela é como que mais uma pecinha de uma outra máquina de criação, que opera em outro lugar, mas não através dela. Aquilo que chamamos de supérfluos. Os supérfluos não criam nada, não fazem nenhuma diferença. Não só … tanto faz existirem ou não existirem. Esse tipo de vida simplesmente … Não é exatamente o tipo de vida, porque a gente pode confundir, no sentido de um julgamento, mas é uma maneira … Não é nem uma maneira, é uma espécie de buraco, de armadilha apenas provocativa que se fosse usada como uma excitação ou como uma provocação seria muito interessante e, aliás, é esse o uso que precisamos fazer. Mas no geral, ela é reutilizada a partir da própria visão da impotência. E nessa medida ela vira instrumento de captura, e nesse sentido é que Nietzsche diz que “os supérfluos não são simplesmente indiferentes, são parasitas” e vivem do sangue do futuro. Sacrificam o futuro, sacrificam as vidas, sacrificam o poder. Ou aquilo que o Lawrence, num ato de indignação, exprime em um poema que, a rigor, ele usa um termo, ele diz “a sexualidade”. Ele diz “essas vidas sem sensualidade, sem sexualidade, a rigor, não deveriam nem existir”. E às vezes ele tem uns ataques, ele diz assim, “tenho ganas que a multidão tenha uma só cabeça, para que possa ser abatida de uma vez só”. Mas o que ele está falando não tem nada a ver com massacrar pessoas, é esse modo impotente, esse modo parasita, esse modo mortífero de ser que põe a vida contra a vida. É isso, só isso.

A escolha já sinaliza uma condição de continuidade real se ela opera na dimensão ética. Mas ela nos inviabiliza, nos captura em uma descontinuidade primeira e reporia essa descontinuidade através de uma continuidade factícia, na medida em que vai então escolher o quê, exatamente? O que continuaria o tempo e o movimento a partir de unidades originais e conjuntos totalizáveis finais. Então ela faria uma espécie de costura. Como Platão vê o mundo como múltiplo — até aí, ok —, mas um múltiplo como carecendo de uma unificação. Então você vê que a inversão se dá em tudo. Vocês lembram que eu desenvolvi bem a ideia de imagem invertida do Nietzsche. Todo esse conjunto de afetos reativos que fazem parte do ressentimento ou que fazem parte de uma vida fixada, de uma vida atolada, de uma vida aprisionada em um estado de impotência, projeta invertidamente as condições da existência, fazendo da sobrevivência o valor primeiro em relação à criação. E nessa medida, a própria descontinuidade artificial vai ser ao mesmo tempo que uma condição prática de sobrevivência, vai ser levada a uma unificação sem a qual a própria sobrevivência não se conserva, não se opera. Essa unificação, esse desejo de integração das partes fragmentadas de nós mesmos e das partes fragmentadas do mundo vai fazer com que a ideia artificial de continuidade nos torne reféns de algo que estaria fora do real, que estaria fora da natureza, e faria mais, faria com que esse real tivesse apenas uma aparência de realidade e que essa unidade superior, essa continuidade superior fosse de fato eminente, de comandante, como se a vida se tornasse refém dessa unidade superior.

Então o que queremos fazer aqui nessa quarta modalidade é justamente o contrário. É reconquistar — ou conquistar, se ela nunca foi conquistada — uma unidade imanente que chamamos de continuidade. Do quê? Do desejo ou da potência. Através do quê? Através da qualificação do ato que atualiza a potência. É esse o ponto. Como qualificar então um ato. O que é o ato? O ato é tudo o que você cria ao se diferenciar, ou te determina de fora. O ato acontece nessa região. É tudo o que te preenche nos encontros. O ato começa com o encontro. O ato começa com a própria experiência, seja ordinária ou seja extraordinária. E aí que começa o ato. O ato começa com um modo de vida. O que é um modo de vida? Já é o ato que preenche minha vida.                   O modo já é o ato, a maneira de viver já é o ato que preenche a minha vida, que preenche a minha potência. Então é na maneira mesmo que eu encontro o ser da continuidade. E é aqui que queremos inscrever a memória do futuro. A memória que dispõe o tempo, que se tenciona o desejo. É essa memória que tenciona de modo tal, como naquela experiência do arqueiro zen, onde você tenciona o arco com a flecha em relação ao alvo e a si mesmo, como um lançador, de modo tal que a flecha não precise mais ser lançada. Que o objeto/objetivo último seja atingir o próprio meio extremo da tensão. Essa polarização, esse oriente imanente que é extremo, da nossa experimentação, ele já seria o sentido da flecha, o sentido último da flecha. O sentido último da flecha é o meio extremo. Nessa medida, eu habito o próprio ser da passagem. E o ser da passagem se torna, portanto, a condição de continuidade. Então se produzir enquanto o próprio ser da passagem, enquanto condição de continuidade. É isso que, em um certo sentido, estou chamando de memória do futuro. Isso nós vamos ver de várias maneiras, sob vários pontos de vista, mas aqui você já tem o aspecto criativo dessa quarta modalidade, como não só habitar o ser da passagem, mas criar o ser da passagem.

O ser da passagem não está dado, ele está por ser feito. Ele é dado apesar de nós, mas até aí você simplesmente é parte disso. E outra coisa é a produção disso, a conquista disso, o tomar parte disso. O ser deus junto com Deus. Ser natureza naturante junto a natureza naturante, ou seja, tomar a vida pelas próprias mãos. Aquilo que o Simondon chama de “contemporaneidade do princípio de individuação com o individuado”. Ou seja, a individuação se faz no próprio individuado, opera em conjunto, de modo contemporâneo, com o individuado. A individuação não vem antes e o individuado vem depois, há uma contemporaneidade dos dois. É isso que é tomar parte, ou seja, é fazer com que o virtual seja contemporâneo do atual. E a memória de futuro é uma inscrição virtual, então você atinge diretamente uma prática do virtual, uma produção do virtual. Não existe outra liberdade, ou não existe liberdade maior que essa. A liberdade não é você acessar o possível e ampliar o possível. A liberdade é você produzir as condições do possível. O possível é mero resultado. Então você atua diretamente no virtual e não simplesmente na reforma ou na ampliação das possibilidades. Você se torna uma usina de produção de condições da experiência, então você multiplica as condições da experiência e da existência. Aqui experiência se identifica com existência. Multiplicar as condições de existir. Talvez é isso o que o Bergson chame de “ser capaz de colocar os próprios problemas”, e não ficar respondendo aos problemas dos outros, ou de uma instância exterior a si. Nós só somos livres aí.

Essa quarta modalidade como uma condição não apenas da liberdade, como vimos na terceira modalidade, de uma escolha no imediato, mas de uma liberdade que leva a vida continuamente de modo ascendente ao máximo que ela pode. Então isso que eu chamei …. Isso, se vocês virem lá, se vocês relerem a programação, memória de futuro ou condição de sustentabilidade dos [00:52:22]. Ou a produção de [00:52:27] autossustentáveis. Não basta só termos sinapses, lapsos, insights de atividade, de afirmação e de gozo, mas fazermos disso um modo contínuo. Chegar a produzir esse modo contínuo. É o oposto daquilo que o Nietzsche chama de “decadência”. O que é a decadência? A decadência é quando você não é mais capaz de apreender, e isso vai levar a um aprendizado. Nós vamos falar, nesses seis encontros, sobre essa continuidade, a natureza dessa continuidade, depois nós vamos, aí sim, entender o que é aprender, o que é esse aprendizado.

A natureza decadente é aquela que é incapaz de apreender nesse sentido extraordinário que estamos chamando de aprendizado. O que é o aprendizado? É a conquista de novas potências ou de novas capacidades criativas. Não de novas competências, de novas capacidades criativas, é outra coisa. Então, a cada ato do existir eu conquisto uma capacidade criativa. É isso o que é ascendência, ou o oposto da decadência. Fazer do tempo maleável e não o horizonte de morte. Não aquele que me deixa mais velho, mais impotente, mais decadente. Ao contrário, o tempo é o que me rejuvenesce o tempo inteiro, não importa a idade que eu tenha. É o devir-jovem de cada idade, é isso que é o tempo, e não o horizonte da morte. Então, apreender … Só aí que de fato, realmente, eu não preciso representar o gosto pelo devir. Eu não preciso fingir que eu amo a diferença, que eu amo as modificações e as variações. De fato, eu vou ter gosto por isso. Aí é um gosto real, um gosto honesto. Isso porque raramente nós temos esse gosto honesto. Raramente, porque, de alguma maneira, o nosso cu está preso em algum lugar. Ter um cu capaz de produzir adubo é uma conquista, porque nós não [00:55:19] nada. A questão do recebimento é essa. Nós sempre nos incomodamos com uma certa variação — não que o incômodo em si seja ruim, mas é um incômodo que tende a se identificar como imperfeição e como uma espécie de mal, e, portanto, nos dá um desgosto. Uma variação. Então se conquistar de fato esse gosto implica, além de ter uma experiência em relação ao pensamento, ao imediato do pensamento, além de ter uma experiência em relação ao imediato do movimento, além de ter uma experiência em relação ao imediato da escolha, é ter a experiência de que só há continuidade de si mesmo na medida em que a própria diferenciação se torna o princípio da nossa efetuação. Aí sim. A diferenciação enquanto princípio da nossa efetuação, é impossível que isso não vire um bolso absoluto [?] do nosso existir.

É por isso que a realidade não tem nada a ver com verdade, ela tem a ver com coisa interessante. A vida tem que se tornar saborosa, interessante, mas realmente saborosa. Não fingir que é saboroso. Não achar que se diverte com a diferença simplesmente para enriquecer a sua experiência — aquele sentido ordinário da experiência —, mas de fato porque não há outro modo. Isso é uma fatalidade, não há outro modo de se continuar realmente. E aqui, um paradoxo essencial. Se continuar, a partir de quê? Sabemos que as vidas reativas e os poderes negativos querem uma continuidade, são fundantes de dinastias e impérios, memórias de longa duração. “Continuar a memória dos meus”, dos antepassados, da etnia, da raça. Ou da “minha obra”, existe isso também. O autor que cria e faz seu nome, sua obra.

[Homem]: É como o narcisismo?

[Luiz Fuganti]: É. Isso implica em quê? Na continuidade de uma [00:58:05], uma originalidade, mas é como a originalidade de um trauma, a originalidade de uma impotência. Você simplesmente vai refinar e idealizar essa forma de fixação que te pegou. Então é isso o que você alonga, no fundo, nessas memórias de longa duração. Você, na verdade, pressupõe uma identidade. Você pressupõe uma mesmidade. É o mesmo que se prolonga, e se prolonga, como dizia Guilherme Arantes, “fazendo xixi nas estrelas”. Não o xixi, xixi, ou seja, se produzir um lixo, no passado e no futuro. Ou seja, espalhando o quê? Espalhando a impotência. Esses seriam os impérios dos homens. Esse espalhar a impotência, espalhar uma mesmidade que no fundo inviabiliza a pluralidade, que inviabiliza a variação de fato e a variação de si mesmo, esse que é o mais louco. A variação de si mesmo, é esse o desperdício. Em vez de fixar um ponto original que seria uma identidade primeira, e desenvolver essa identidade primeira, se trata justamente de apreender o acontecimento singular — aí é outra coisa. O acontecimento singular que envolve toda a potência, que é uma dobra de tempo e espaço que te constitui, não só no seu estado de existência no corpo ou no pensamento, mas em toda a tua existência do corpo e do pensamento. E além disso, toda a dimensão virtual que atravessa a existência no corpo e no pensamento. Aí sim, se apreender enquanto acontecimento singular, e essa singularidade como potência de diferenciação. Isso sim.

Então, qual é o desejo íntimo de uma potência? É diferenciar-se. O que querem na diferença? Diferenciar-se. E o que quer a natureza da diferença? Não apenas uma diferença de natureza, mas a natureza da própria natureza. É se tornar diferente de si mesmo. É ser diferente de si. Aqui está o paradoxo. Ser diferente de si. Mas como me torno diferente de mim mesmo? Na repetição dos encontros. Por repetição, pelo eterno retorno. Quanto mais a coisa retorna, quanto mais a coisa se repete, mais ele diferencia. Aqui já estamos no aspecto criativo dessa quarta modalidade. Ou seja, de que modo então, pela própria repetição, afirmando os ciclos, afirmando o mesmo, ou a identidade, e essa identidade em si mesma, na verdade é simular, eu estou potencializando a capacidade de me diferenciar.

[Rosa]: Quando você diz “repetição”, pode ser uma atualização?

[Luiz Fuganti]: Sempre. É a repetição do ato. Uma atualização. A repetição da condição de atualização. O retorno do jogo. Esse retorno do jogo. Em cada retorno do jogo, em cada relação, se você quiser, eu tenho a ocasião de me tornar diferente de mim mesmo. Então imaginem como vou me multiplicando. Mas, ao mesmo tempo, quem eu era? Ou quem eu me torno? É sempre algo diferente. Não existe um ponto central, centralizador de mim mesmo, que me manteria no mesmo. Ao contrário. É uma potência de me distanciar cada vez mais, de me pluralizar. Então é … em vez de eu fixar um ponto no tempo como origem e evoluir em direção ao fim, que é o que o juízo opera, fundado no senso comum e no bom-senso, eu multiplico, a cada vez, a cada ato da minha existência, a cada acontecimento, os horizontes. E o que se põe em variação. Ou seja, eu faço de mim um conjunto de perceptos e de afetos. Eu multiplico os horizontes gerando perceptos e multiplico a variação, quer dizer, ou transmuto o desejo na medida em que esses horizontes me põem necessariamente em variação imanente, produzindo afetos em mim ou produzindo devires em mim. Eu transmuto o próprio elemento do desejo. É nessa medida que o desejo se continua, ele não se continua a partir de uma forma que ele toma, e evolui, e agrega segmentos, e cria essa gangrena universal, essa multiplicidade cancerosa. É o contrário. É uma continuidade esguia, esbelta, sóbria. Só permanece o necessário, sem adereços, sem caspas, sem maquiagem, sem botox no tempo.

A questão, então, da continuidade imanente do querer implica uma desconstrução dupla de nós mesmos, situando a imagem invertida do Nietzsche, que é projetada e introjetada. Ela é projetada como um futuro e introjetada como memória. Ela é projetada como futuro e introjetada como passado, e inviabiliza a capacidade de produzir eternidade no devir ou no presente. O devir é presente. A desconstrução dessa memória e desse projeto que inviabiliza o presente ou que faz com que demos as costas ao devir é então uma condição necessária para reencontrarmos ou encontrarmos esse modo de se continuar ou de se potencializar. O que é uma potência? Uma potência só é potência se não se esgota em um instante. Se ela, a cada acontecimento, a cada encontro, na variação que acontece a ela, conquista uma nova capacidade ou encontra combustível em cada relação. Ela faz de cada abertura um combustível e, portanto, um modo de se continuar, em vez de, a partir de uma fixação, continuar arrastando-se na existência. Uma coisa é se arrastar, outra coisa é só continuar dançando, com velocidade. São dois modos de ser. O modo moral, que carrega; e o modo ético, que flui. São duas posturas. Mas para conquistar, então, o modo ético que flui, é preciso operar essa crítica, essa desconstrução. A desconstrução de uma memória de longa duração, de uma memória como representação do passado, para, aí sim, liberar a ideia da memória como função de futuro.

Como está até aqui? Fernando?

[Fernando]: Está indo.

[Luiz Fuganti]: Está indo? Dá para começar a captar a problemática em geral?

[Fernando]: Em geral, dá. Tem algumas coisas meio complicadas, mas …

[Luiz Fuganti]: E você, Rosa? Está aí digitando?

[Rosa]: Tudo bem, estou aqui … [inaudível]

[Luiz Fuganti]: Mas a essência do problema, está dando para começar a tocar?

[Rosa]: [inaudível]

[Luiz Fuganti]: A gente, realmente, é como se fosse um outro mundo …

[Rosa]: É … “como eu pego esse fio e fico nele?” Você não fica nele, você … recaídas consecutivas.

[Luiz Fuganti]:  Consecutivas. E um pouco de obsessivas.

[Rosa]: É, recaídas.

[Luiz Fuganti]:  E compulsivas.

[Rosa]: É, compulsivas. [inaudível]

[Fernando]: Como se inserir nesse meio, né, Luiz? Como não se inserir nesse meio e não o deixar escapar. Criar uma usina, e aí a disciplina eu vejo como necessária.

[Luiz Fuganti]:  Adestramento.

[Rosa]: Mas aí você vira neurótico depois, é igual. Você fixa. A gente só sabe fazer isso, entendeu? “Então eu vou escrever direitinho, que amanhã eu vou ser assim”. A gente não tem … as ferramentas são do aprisionamento, da captura.

[Luiz Fuganti]:  Como construir então uma outra disciplina? Com outras ferramentas. O que o Nietzsche chama de crueldade. Que adestramento é esse? Como se opera esse adestramento? Mas só se opera esse adestramento saindo da moral. “Ah, eu quero tanto”. “Eu sei muito bem o que eu preciso”. “Mas sempre faço o contrário”. Por quê? Porque não tem gosto. Quer dizer, o gosto até é vislumbrado, mas não dá coragem.

[Rosa]: Não, você tem medo.

[Luiz Fuganti]:  Exatamente. O medo é primeiro.

[Rosa]: Morre de medo.

[Luiz Fuganti]:  E porque, também, esse medo é mantido no mesmo lugar. Ele não é transmutado em prudência. Porque há um gostinho pelo acomodamento ou por não sentir dor. Por não ser perturbado ou incomodado. Ou seja, é um mau gosto pela diferenciação, que quer dizer em relação à diferenciação. Não se tem o gosto pela diferenciação. E por que não se tem o gosto pela diferenciação? Porque a diferenciação segue sendo causa da impotência. Ela realimenta a impotência, mas aí o paradoxo, porque ao realimentar a impotência ela te põe investindo naquilo que te devolve o poder, porque você jamais vai ultrapassar a impotência dessa maneira. Você vai se afundar ainda mais na impotência, é equilíbrio. Você tem medo de ficar mais impotente, mas é assim que você fica mais impotente e é assim que mais você investe na acomodação e no poder e no uso piedoso da dor. É por isso que, então, só com crueldade se cria uma disciplina dessa outra natureza. Esse adestramento, esse aproveitamento de tudo o que incomoda na vida, transmutando esse incômodo em velocidade, em dinâmica, em força aliada.

[Fernando]: Eu sinto que o que ela está colocando … parece que temos uma dificuldade de pensar em fragmentos, em fatias. [01:11:15] como um todo.                  É difícil pegar essas coisas do…

[Luiz Fuganti]:  Você viu como a gente investe tudo…?

[Rosa]: É, é o contrário.

[Luiz Fuganti]:  Que eu estou acabando… aqui eu insisti o tempo inteiro dizendo que pegamos o fragmento e não pegamos o todo. E nós, ao pegarmos o fragmento, achamos que pegamos o todo. E ao pegar o todo, achamos que pegamos o fragmento. Invertemos tudo. Então … onde está o todo? O todo está no fragmento. O que é um acaso? Um acaso parece um fragmento, certo? Mas onde está o todo desse fragmento? No necessário. Ali tem um todo. Ali tem um pleno, ali tem um [01:12:16], ali tem um perfeito. Mas necessário? Não, eu sempre imagino que poderia ser diferente. Poderia ser diferente. E se for bom, eu digo “ah, mas poderia ser melhor”. E se for mau, “poderia ser bom”. Enfim, é aquela tal… não apenas a prática de si mesmo, mas é a conquista de uma prática do próprio abstrato em relação a isso. Assim mesmo. Essa prática do abstrato que investe na limpeza, digamos assim, ou na desconstrução desses extratos que nos separam do que podemos, e ao mesmo tempo criam as condições para essa continuidade. Mas isso ainda não é suficiente. Isso é necessário, mas não é suficiente. Suficiente é quando, ao criar as condições, você já produz a continuidade de si mesmo. Você se torna o próprio construtor da ponte que te leva ao futuro. É essa a questão.

[Rosa]: Vocês assistiram a aquele filme “A liberdade é azul”?

[Luiz Fuganti]:  Sim.

[Rosa]: Pronto, eu estou lembrando desse filme, daquela mulher. Que era isso, era o necessário. Então assim, ela não queria mais nada. Ela queria transar com o cara e o cara queria tirar dela a coisa lá, do marido. Vocês lembram? Que o marido dela era um…

[Luiz Fuganti]:  Sim.

[Rosa]: E ela… “Tá bom. É isso o que você quer? Assim, eu quero transar com você, eu não…” será que ele está interessado em tirar o negócio? “Não é o negócio que você quer? Toma o negócio”. É assim, você sai da moral, essa coisa do apego, da lógica da gente…

[Luiz Fuganti]:  Da intencionalidade.

[Rosa]: É muito difícil, não é?

[Luiz Fuganti]:  É difícil.

[Rosa]: Nesse ponto, é muito difícil. E viver na nossa sociedade fica um troço que parece que você tem que… o esforço é muito maior do que só você ter a disciplina. Porque assim, você é bombardeado diuturnamente, o abandono das pessoas, você vai chegar para as pessoas com quem você convive e falar “ah, isso é supérfluo, não vou…” Assim, tem a coisa do apego mesmo, ao modo…

[Luiz Fuganti]:  Então, Rosa, mas aqui é que opera uma mudança no mesmo lugar. É uma transformação incorporal. Aliás, nós vamos usar um pouco essa noção de transformação incorporal. É uma mudança de foco no mesmo lugar.

[Rosa]: No mesmo lugar. Na mesma coisa.

[Luiz Fuganti]:  Em silêncio, quieto, de modo imperceptível, sutil. Isso tudo que te bombardeia, em vez de te incomodar, você vai começar a aproveitar. Vai virar combustível do teu modo de se continuar. Entendeu? Então isso é fundamental, porque se não, você fica lutando contra.

[Rosa]: Legal isso, hein? Gostei demais desse pensamento.

[Luiz Fuganti]:  Isso é uma operação sutil de… porque não se trata de você acumular forças para exercer uma disciplina dificílima e conquistar a continuidade, e ter essa vigilância, porque isso ainda é o modo moral de carregar um certo ideal, mesmo nesse ideal de liberdade. Aí vira um ideal de liberdade que eu vou carregar, eu vou me esforçar tanto, porque é tão difícil. A velocidade absoluta não tem nada a ver com deslocamento absoluto. A velocidade absoluta acontece, às vezes, com um deslocamento mínimo, ou de modo muito lento, do ponto de vista do deslocamento. Não tem a ver com essa relatividade do veloz ou do lento. O mais lento, desse ponto de vista, pode ser o mais veloz absolutamente. Então essa transformação, na verdade, é uma transmutação do horizonte. Essa transmutação do horizonte que opera uma reconexão imediata com a fonte. Se você se reconecta imediatamente com a fonte, tudo o que te atinge, tudo o que te atravessa vira combustível. É esse o ponto. Em vez de eu ficar muito armado e preocupado em me defender desse bombardeio geral. E aí eu viro um ermitão. É por isso que existem ermitões e solitários e aqueles que fogem e se refugiam ou em uma arte, ou em uma espiritualidade ou no meio do mato, ou seja lá onde for. Ou até na sua profissão, na sua ciência, seja lá. Enfim, as pessoas se refugiam. É a tal da terapia ocupacional em sentido extremo. A ocupação vira a cura essencial, então trate de se ocupar. Uma ocupação qualquer já se torna um refúgio para você. Uma espécie de desculpa ou de licença para se permitir viver sem ser incomodado. Você já faz o suficiente para não ser cobrado e acusado. Seria isso. Para não ser demandado. Você olha para as pessoas, nas suas práticas, onde elas estão investidas. Onde elas investem seu desejo, seu corpo, onde seu corpo está, o que está fazendo, consumindo, produzindo. Onde as suas falas estão. E aí você vê. Inteiramente refugiadas nas suas funções autorizadas. É mais confortável. É mais fácil. E, no entanto, quanto desperdício. Quanto desperdício. Por quê? Porque se imagina que romper com a prisão é uma tarefa hercúlea, heroica, praticamente impossível.

Eu vou sinalizar um pouco mais o aspecto crítico então. Para retomarmos isso em nosso próximo encontro. Eu não sei como está nosso tempo, temos o quê? Uma meia hora?

[Rosa]: Vinte minutos.

[Luiz Fuganti]:  Vinte minutos, ainda tem? Tá. Então vamos fazer isso.

Vocês lembram, nas aulas anteriores, que eu foquei muito na ilusão de consciência, com o Espinoza, e na marca do lugar de excitação, do Nietzsche, falando do aspecto material do ressentimento. Ou, em outras palavras, um estado da potência no lugar da essência da potência ou do acontecimento. É aqui, a partir daqui, a partir dessa fixação, que começa a se construir a identidade enquanto origem. E se investe em uma finalidade como desenvolvimento ou realização de uma vida. Ou de uma sociedade, de uma cultura, de uma etnia. Nós sinalizamos — não apenas sinalizamos, eu acho que foi suficiente para compreendermos a natureza desse conjunto de afetos e reativos, ou tendências que atravessam essa vida fixada nesse ponto. O que se busca essencialmente, desse ponto de vista, é a conservação. É isso que é o horizonte, o valor maior de um modo de vida reativo. Um modo de vida reativo tem como valor supremo a conservação. Mas [01:12:13] é uma conservação, assim, no sentido vulgar, no sentido da sobrevivência. O humilde não quer pouco, o humilde é bem ambicioso, o humilde quer a eternidade. Não quer nada menos que a eternidade. Então ele vai projetar essa conservação que ele já experimenta em vida no além. E esse além vai tomar muitas figuras, ele vai se configurar de várias maneiras. Como uma ideia de bem, como uma ideia de deus. Que tipo de deus? Vão ter vários, a humanidade vai criar vários deuses. Um estado ideal espiritual, o mesmo estado material, uma ideia de pura norma universal de ser. Como se acredita até hoje, os direitos universais do homem. Uma lei kantiana. [01:22:34], enfim. Essa projeção, essa idealização vai se alimentar do quê, simplesmente? Do incômodo do dia a dia. Incômodo de quem? De quem está já preso, de alguma maneira, separado da capacidade de acontecer e faz do acontecimento uma fonte de dor. Uma dor de falta, uma dor por carência.

[falas inaudíveis]

[Luiz Fuganti]:  Essa dor então, por falta ou por carência se torna um motor de uma vontade de melhoramento, de uma vontade de aperfeiçoamento, porque essa dor é signo de imperfeição. Ora, então a tendência geral desse conjunto reativo de afetos é operar um aperfeiçoamento da existência, e esse aperfeiçoamento se dá por uma continuidade. É preciso ter um progresso, é preciso ter uma evolução, é preciso ter um desenvolvimento. Então o moralista, o religioso, o racionalista, o metafísico, o homem que imagina a liberdade vai querer também. Ele vai dizer que a continuidade é um valor.

[Fernando]: O que aconteceu com o Kant quando ele foi ler A nova Heloísa, do Rousseau, e tal. Falou “pô, a sociedade está muito bagunçada, tem muito afeto, vamos moralizar”. Por isso é que … daí que surge A crítica da razão, de Kant.

[Luiz Fuganti]:  É incrível, porque é sempre uma espécie de choque passional.

[Fernando]: É, choque passional mesmo.

[Luiz Fuganti]:  Através de um choque, de repente você tem um arrebatamento, mas é aquela embriaguez do impotente. Aquele arrebatamento de “Algo tem que ser feito! Não tolero mais essa existência”. É como Schopenhauer, quando ele encontra a ideia do ascetismo, do ideal ascético como um modo de se libertar da sensualidade ou da sexualidade, esse tormento do desejo.    O desejo aprisiona e é preciso encontrar uma solução. Tem uma hora que não se aguenta mais, essa vida é levada a um ponto que ela não aguenta mais, e aí explode o máximo de idealização, que no fundo é a expressão do máximo [01:25:15], ou de impotência.

Então é entre esse princípio da impotência e esse fim último da liberação, dessa liberação imaginada, que vai se ter o gosto pela continuidade. Mas como essa continuidade vai operar? Ela vai operar a partir de um trabalho minucioso da moral, que vai … Não existe aquele “Eu construí a minha casinha, eu construí a minha vida, eu construí isso e aquilo, tijolo por tijolo”. É o trabalhador, né? Sério, moral, responsável, que se continua a si mesmo de segmento em segmento. Então quanto mais refinado ele é, mais ele vai infinitizar o segmento. Vai chegar até o infinitamente pequeno do [01:26:23], que vai conquistar aparentemente o infinito, mas ainda é o infinito da representação. É uma conquista fingida do infinito. Uma embriaguez fingida. Então você encadeia segmentos, você se torna extremamente rigoroso. “O cara ali é de fato …”, não opera a passagem ao momento seguinte sem ver exatamente o que liga um elemento ao outro. Sem saltar os elementos. É o cientista reativo. É o passo a passo, não tem nenhuma ousadia, um salto, uma conexão de cume a cume, como diz o Nietzsche. Ou de intuição em intuição, como diz o Espinoza. Mas é aquele passo a passo na racionalidade. Ele vai ter o ideal da racionalidade. É uma razão que cria essa continuidade. Então vai haver uma razão do corpo e vai haver uma razão do pensamento. E vai haver, portanto, uma razão moral, uma razão da escolha. A razão da escolha vai ter a ver com essa necessidade de melhoramento. Então vai ser a paixão pelo melhoramento, pelo aperfeiçoamento de um mundo que é imperfeito, evidentemente, de uma existência que é imperfeita.

Nessa medida eu me aproximo mais do ideal do bem ou de deus, ou seja lá o que for, da felicidade. É como se eu tivesse direito então à recompensa e à finalidade, porque eu também vou dizer assim, “não basta apenas receber a graça divina, eu participo na construção de um mundo melhor”. Temos aí o nosso Fórum Social Mundial, que é a nossa versão mais moderna, de esquerda, dessa visão moral. Uma vontade de carregar imensa. Eu não quero generalizar também, dizer que só tem isso lá, claro que não. Mas segue sendo dominante essa visão.

Nós podemos, aqui, retornar um pouquinho naquilo que eu dizia em relação à cadeia de signos e à cadeia de imagens. Como se dá essa continuidade? Por encadeamento de signos e por encadeamento de imagens. É isso. E esse encadeamento de signos e encadeamento de imagens implica em uma classificação, implica em uma seleção. Então eu tenho a moral que seleciona. Um corpo impotente que seleciona memória e seleciona percepção. Que seleciona memória e seleciona matéria. Uma ponte para a origem e outra ponte para o fim. Eu tenho esse corpo impotente que opera isso e que se torna então… Essa condição moral se torna a condição da legitimação das ligações de signos entre signos, e de imagens entre imagens. Essa cadeia de signos e essa cadeia de imagens vai pressupor uma seleção       , e nessa seleção vai se impor uma classificação. O que é classificar? É ordenar e hierarquizar. Vai se ter uma ordem e uma hierarquia. O que é mais importante, ou seja, toda uma avaliação, “isso é mais importante do que isso, do que isso”, você hierarquiza. E uma interpretação de sentidos, isso se liga com isso que se liga com aquilo que se liga aquilo. Você cria então todo um campo ordenado e hierarquizado, ou seja, uma classificação efetuada. E nessa classificação, eu apreendo toda a condição de melhoramento da existência. E está na condição de melhoramento da existência a legitimação das nossas ações, da nossa sensibilidade e da nossa racionalidade. Ou seja, não há coisa mais importante do que esse modo de selecionar, de classificar, de ordenar, de hierarquizar e de se continuar a si mesmo como uma oportunidade para melhorar. Ou seja, o homem tem futuro. Porque não basta dizermos que essa cadeia simplesmente é uma cadeia morta, porque seria ridículo. Quem iria se interessar por uma espécie de administração dos signos, ou de burocracia dos signos, ou de ordenação e hierarquização, classificação dos signos, das imagens e das nossas escolhas? Se isso não operasse um acontecimento em relação ao nosso desejo? Então algo se passa com nosso desejo. Mas qual é a natureza do desejo que vai gosto por isso? Justamente o desejo separado do que pode. É impossível que seja outro desejo.

Nossa questão, nosso ponto crítico, nosso ponto focal e crítico aqui é: qual o desejo que eu preciso conquistar? Ou que transmutação nós precisamos operar para que, de fato, a continuidade não seja operada desse modo artificial a partir já de uma descontinuidade pela impotência, gerada por uma impotência? Como recuperar ou reconquistar a continuidade imanente do tempo, do movimento e da própria escolha, na escolha do necessário, do essencial e do ser em relação ao acaso, ao acidente e ao devir? Operar então essa continuidade que faz com que a vida, em vez de carregar, se torne dançarino? Em vez de avançar de passo a passo, subindo escadas, o degrau do progresso, a nossa Torre de Babel do conhecimento e da moral, operar-se sempre uma perfeição a partir de cada acontecimento. Sem degraus. Você vai diretamente ao imediato perfeito. Aquilo que o Espinoza diz, “Por perfeição e realidade eu entendo a mesma coisa”. Sem precisar passar uma vida evoluindo para afinal se aproximar              cada vez mais do ser perfeito. Esse acontecimento nunca vai se operar. É impossível, porque é ficção mesmo. Então … desconstruir essa necessidade de encadeamento é descontruir também a nossa vontade de poder. Ou seja, nós também somos cúmplices na produção e no investimento dessa memória negativa e desse modo reativo de se arrastar na existência. Quanto menos capaz de produzir a eternidade você é na existência, quanto mais impotente você é para existir, mais você se agarra à existência, mais você quer viver, mais você quer se prolongar. É o desejo de eternidade na forma. Então, “poxa, eu tive, sei lá, cinquenta anos de oportunidade. Até agora vislumbrei quase nada do que é a existência. Poxa, eu não precisaria de mais uns cento e cinquenta anos para chegar” … entendeu? Eu preciso viver, prolongar a minha vida a todo custo. E aí, “se comporte direitinho, economize, segure”.

[Rosa]: “Viva no limiar do nada”.

[Luiz Fuganti]: No mínimo, para você prolongar ao máximo. Você vai aproveitar ao máximo. Vou aproveitar meu aluguel, vou aproveitar … no mínimo, vou estendendo minha vida.

[Rosa]: O Sêneca falava isso, né? Da morte. Que os caras tiveram uma vida inteira, depois queriam prolongar. Não fez nada, vai prolongar o nada?

[Luiz Fuganti]: Eu não me lembro do Sêneca falar isso, mas é … deve ser isso mesmo. Não viveu nada, quer prolongar o quê? É isso.

Então, é preciso, de novo, encontrar o quê? Vocês, acho que já observaram que sempre, ao enfatizar a questão crítica, eu enfatizo a questão da cumplicidade. Nós somos cúmplices. Não basta criticar. “Ah, os outros fazem isso, a sociedade faz isso, o mundo faz isso, e nós, os bambambans, vamos então fazer diferente”. Não. É onde nós estamos em conexão com esse modo de existir? Como é         que alimentamos isso? Por que alimentamos isso? Que vantagem temos nisso? Ou seja, nós ganhamos poder, nós ganhamos reconhecimento. Nós estamos ajudando a fabricar um quarto espelho. A mediação é sempre um espelho. Tem o espelho do corpo, tem o espelho do pensamento, tem o espelho da escolha, agora tem esse espelho da continuidade, que é o da identidade.

[Fernando]: Luiz? Por exemplo, esse instante … operar a perfeição no instante, no acontecimento. O Deleuze tem um … ele diz “Não é fácil ser livre. Fazer os nossos encontros a obter o máximo de afirmação”. Parece que é uma seleção, também, à la Bob Dylan, que se encontra com quatro pessoas. Há um tipo de seleção que é um deslocamento talvez. Tentando pensar. Assim, porque se você … dependendo da qualidade do seu encontro, você tem uma perfeição também pequena. É perfeição, mas é uma perfeição menor. Então como podemos pensar essa questão da seleção com um …. Evidentemente eu quero me encontrar com Nietzsche, com Deleuze, quero me encontrar com algumas outras pessoas em que a perfeição vai em um alto grau. Mas nesse encontro você tem que se satisfazer com essa perfeição naquele grau mesmo. Eu tiro perfeição, né?

[Luiz Fuganti]: Você só consegue selecionar dessa maneira na mesma medida em que você é capaz de abertura. Quer dizer, é pela capacidade de abertura que você vai ter a medida da sua capacidade receptiva. E na sua capacidade receptiva você é capaz de apreender a profundidade daquilo que você encontra. O grau de perfeição daquilo que você encontra. Então, às vezes você encontra uma natureza fantástica, mas não tem corpo e pensamento para encontrar. Ou o que você vê ali, o que você apreende é uma coisa mínima. Não adianta nada se encontrar com os melhores e não ter essa capacidade receptiva, não desenvolver esse gosto pela abertura. Não que você tenha que estar pronto para o máximo da abertura, não é isso? Mas precisa estar habitando aquela região onde a sua abertura se torna crescente. Essa capacidade receptiva se amplia mais e mais, não de modo bobo, mas de modo a fazer a potência crescer com consistência. Então, é habitar essa região. É essa região que já é perfeita. Não depende de evolução, isso. Isso depende de foco. De criação de um foco. Estar focado naquilo … como inicia o foco? Quando se encontra o necessário. O foco começa pelo necessário, então a necessidade, sob esse ponto de vista, não tem mais nada a ver com a carência. Não é que eu preciso como uma carência. O necessário é o necessário do próprio crescimento da potência. É nesse sentido que se fala necessidade. Necessidade como uma primeira conquista da liberdade ou da abertura. Na medida em que eu habito esse foco, com um mínimo de perfeições que encontro eu já estou em um ponto onde eu aproveito tudo, inclusive nos piores encontros, ou nos mais pobres. Eu consigo inclusive saber que ali eu não posso ficar mais tempo, porque ali não tem mais nada para ver. Sem me queixar, no sentido “ah, estou perdendo meu tempo”. Não, você já está no tempo de cada coisa. E se passa como … sem atacar ou agredir de modo mal-humorado. Sem se intoxicar. É uma arte. Mas então …

É preciso conquistarmos aquilo que o Simondon diz, “crescer pelas bordas”. Você cresce pela borda, você cresce no encontro, não por saltos imaginários, como o macaco do Nietzsche, que quer saltar por cima do homem, simplesmente. Para ultrapassar o homem você tem que habitar a passagem do homem. Todas as passagens do homem. O que é necessário passar. Não adianta… existem atalhos e atalhos. O atalho que simplesmente salta etapas é um atalho estúpido, porque você pode fazer com que as etapas coexistam, e você as viva de modo simultâneo. Isso é uma coisa. Se faça a coexistência das etapas em você e, nessa mesma medida, você acelere as etapas todas, mas você acelerou, você não saltou. É diferente. Acelerar etapa é ótimo. Mas você acelera e você a vive como um devir. Saltar é como se ela fosse uma coisa … “ah, não quero ver isso, vou saltar logo para aquilo”. “Mas você não quer ver isso? Você nem cuidou disso”. Se isso se apresentou ali, como se apresentou? Como chegou até mim? Não tinha uma parte de mim ali que fez com que isso chegasse, com que isso acontecesse? Quer dizer, é isso que é cuidar das suas dores e dos seus sofrimentos, assim como dos seus prazeres. O que se passa com a gente? O que é um prazer? É uma vontade de continuar. O que é uma dor? Uma vontade de interromper. Como a gente opera esses cortes reativos e essas ligações reativas? O que é o prazer? É uma ligação reativa. É uma vontade reativa de continuar. O que é a dor? É uma vontade reativa de romper ou de descontinuar. Mas é preciso encontrar o elemento ativo do reativo. É preciso encontrar o sentido alegre da dor. É preciso o sentido realmente alegre do prazer. Porque às vezes o prazer é um mero meio de aliviar a tristeza. Isso é ridículo. Ou ele opera de fato a ponte para uma alegria ativa? Aí sim. Então que uso eu faço daquilo que me acontece? Das minhas dores e dos meus prazeres, que é o que se apresenta à minha consciência imediata?

Temos ocasiões o tempo inteiro de fazer isso. O tempo inteiro. Vale a pena encontrar algo para o que me dá prazer? Vale a pena encontrar que me gera dor e incômodo? É uma escolha muito banal, muito vulgar. O próprio Epicuro, que as interpretações… aliás, o que mais existe de Epicuro e Lucrécio são interpretações vulgares, que eles são hedonistas, ou a filosofia do prazer. O próprio Epicuro ia dizer com todas as letras, insistentemente, que é muito melhor, muitas vezes, mais dores do que prazeres, porque os prazeres geralmente podem operar simplesmente uma multiplicação da dor. Ou então vice-versa. Às vezes, as dores não são simplesmente uma expressão da impotência da vida, mas elas são um presente, uma ocasião para você conquistar alegrias muito mais potentes. É esse cuidado, é o cuidado do que fez chegar uma dor e do que faz sair de uma dor. O que fez chegar um prazer e o que faz sair ou ultrapassar o prazer? É uma atenção microfísica, microfisiológica, micrológica, microssociológica, micropsicológica, quer dizer, é uma atenção com as passagens que não estão mais na forma, na figura ou no estado de coisas, que se passa de um estágio a outro. Não. É de intensidade em intensidade. De acontecimento em acontecimento.

[Fernando]: Um corpo sem órgãos, mais ou menos.

[Luiz Fuganti]: É corpo sem órgãos, mas do que é feito um corpo sem órgãos? O que se passa nele? Como ele é povoado? Ele é povoado justamente com as quantidades intensivas e com as qualidades expressivas. Na medida em que precisamos desconstruir essa falsa continuidade que nos dá poder e dinastia, nós precisamos também construir uma continuidade imanente que é justamente a continuidade que cresce pelas bordas, que eu acabei de citar, do Simondon. Ou, em outras palavras, a expressão que faz com que uma qualidade desemboque em outra necessariamente. Um encadeamento de qualidades expressivas e um encadeamento de quantidades intensivas. Ao mesmo tempo, uma continuidade intensiva e expressiva. Essa dupla continuidade que é o que nós estamos chamando de “plano de continuidade”. Esse plano tem sempre esse duplo aspecto, ele faz a intensidade continuar e a qualidade também. O que é a intensidade? É a nossa potência. O que é a qualidade? É o nosso ato. É a continuação da nossa potência e a continuação do nosso ato.

[Rosa]: Continuação do nosso…?

[Luiz Fuganti]:  Da nossa potência e continuação do nosso ato. O que é o nosso ato? O ato que nos faz existir, é abertura, o horizonte absoluto da nossa diferença. É esse ato, essa singularização que diferencia a nossa diferença. A continuidade dessa singularização, isso que é se manter na superfície, sem cair em buracos e reivindicar céus. Você se mantém na superfície. A única zona de salvação é a superfície. E isso faz com que a potência retorne. Então você continua a potência e você continua o ato. Ou seja, você faz da coexistência uma potência em ato elevada ao máximo. É essa memória de futuro ou condição de continuidade que nós queremos encontrar, reencontrar e conquistar. E, ao mesmo tempo, isso não é possível sem também desconstruir essa falsa continuidade que nós já investimos no nosso dia a dia. O nosso passo a passo de cada dia. Então é fazer do nosso passo a passo uma coisa mais sutil. Onde está o passo de fato? O passo está no deslocamento ou o passo está na intensidade? Qual o passo? O que o Nietzsche chama de “passos com pés de pomba”? Passos silenciosos? A pomba não faz, em relação ao ouvido humano, nenhum barulho ao dar o passo. É um passo sutil, imperceptível, silencioso. E, no entanto, é o que o mesmo Nietzsche diz, “os acontecimentos que movem o mundo não são os grandes acontecimentos que causam grandes estardalhaços, mas são os acontecimentos que se movem em passos de pomba”. Ou seja, é aí que você encontra essa continuidade intensiva e essa qualidade expressiva. Essas sutilezas, essas nuances, essas coordenações, e não as ligações grosseiras, dialéticas, de oposição em imposição, de conciliação em conciliação, que religam, e de contradição em contradição, que desligam. As falsas continuidades e as falsas continuidades. A dialética jamais é um pensamento que contempla um movimento, ela falsifica ainda mais o movimento. A dialética levou o pensamento à categoria de ser capaz de pensar o devir. Pode-se dizer que o pensamento pensa o ser, e não o devir. Que devir a dialética pensa? Ela falsifica ainda mais o devir. Ela conseguiu representar o devir de modo mais eficaz do que os velhos modos de pensar, que a lógica aristotélica, por exemplo, e a lógica platônica.

A título de introdução panorâmica, eu imagino que tenha sido já o suficiente, mas agora vamos começar a fazer como fizemos com as outras modalidades da experimentação. Vamos começar a aprofundar linha por linha, até chegar naquele nosso … na sexta aula, ou na quinta … para falar mais dessa continuidade intensiva e qualitativa que implica na memória do futuro. A memória é o fio de continuidade da duração, não como representação do passado, mas como                   disposição do tempo. A memória é o que liga. Mas essa memória, na verdade, é um ser e não um não-ser-que-foi. Ela é um ser, ela é contemporânea do presente. Ela é ponte, ela é pura ponte. Essa memória se dá como pura linha de tempo. Ela é tempo. É porque há essa memória que, na verdade, o tempo se varia nele mesmo. Ele é capaz de gerar síntese dele mesmo e a partir de cada síntese que ele gera, gera também uma nova flecha de si mesmo. Ele se diferencia de si mesmo. Sem memória isso seria impossível. Mas a memória não está no cérebro, a memória não está na cabeça de alguém, nem nos computadores de uma sociedade. A memória é a potência do próprio tempo se acumular em si mesmo. A potência absoluta de acumulação e de infinita variação do tempo. Então é essa a memória que a gente quer ao menos começar a tocar nela. Neste tipo de memória. O que o Bergson chama de “memória ontológica”, e não uma memória psicológica. É esse o ponto. E aí, inclusive, vamos focar um pouco na relação da memória com o cérebro também. Porque o cérebro é o meio comum que banha a memória e matéria, ou a percepção e lembrança. Ou, ainda, espírito e corpo. O cérebro é esse meio comum que articula os dois. O cérebro tem uma dupla porta, a porta mental e a porta do movimento físico. A porta do corpo e do incorporal. Ele opera a articulação entre essas duas definições. Então o cérebro vai ser importante nesses nossos próximos encontros. Não vou … claro, não vou focar em todos os detalhes do cérebro, mas simplesmente as linhas essenciais que operam, digamos assim, uma seleção. Uma seleção. E como o cérebro é usado de um ponto de vista orgânico, utilitário, inferior, e aí ele mesmo fragmenta e religa artificialmente, como uma função de prática utilitária ou de prática de sobrevivência, ou de prática até de desenvolvimento e conservação dessa vida reativa. Ou como o cérebro se produz no modo de viver. A ética é mais do que uma postura, ela é o encontro com a instauração de uma fábrica. A ética fabrica cérebro. Nós temos o cérebro que nós merecemos, porque o cérebro se fabrica também na nossa experiência, no nosso modo de viver. Então, como produzir cérebro? O poder não está preocupado em fazer lavagens cerebrais. Esses filmes, essas obras,            esses críticos que dizem que instância tal faz lavagem cerebral, isso é pura mistificação. Ele não faz lavagem cerebral. Ele não perde tempo. Ele fabrica cérebro. Ele já produz os cérebros que ele precisa. Então nossa questão é essa. Nós temos o cérebro que nós produzimos ou o que é produzido em nós? E aí o cérebro também como uma condição material da continuidade dessa memória de futuro.

 

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