A Esquizoanálise vai pensar essencialmente o inconsciente como fábrica de realidade. Houve, em um certo momento do pensamento ocidental, com Kant principalmente, a ideia de que o desejo também produzia. O desejo também produz alguma coisa. Até Kant, a interpretação da realidade do desejo é que ele operava por aquisição. O desejo é algo que opera por aquisição. Eu desejo algo e eu vou adquirir esse algo que eu desejo. O desejo, no máximo, produzia um movimento de apropriação do seu objeto, mas ele não produzia exatamente o seu objeto. Em Kant, há aparentemente um salto, porque Kant vai dizer que o desejo não é simplesmente uma forma de aquisição, mas uma forma de produção. Mas parece que o desejo ganha muito quando simplesmente se diz que ele produz algo, não importa o quê. Em Kant, fica claro que o desejo não produz mais do que fantasmas. O desejo é um produtor de fantasmas, e não de realidade. A ilusão do sujeito se internaliza em Kant, ela se torna intrínseca. Há uma ilusão na própria posição do conhecimento humano, que tem a ver com a natureza do desejo. E necessariamente é a partir daí, da natureza desse desejo ligado ao conhecimento que a ilusão se produz e o fantasma se torna o produto por excelência desse desejo.
Nós podemos dizer que a psicanálise dominante, ortodoxa, e as suas derivações hegemônicas mantêm a posição kantiana. E aqui nós estamos absolutamente em outra posição. Nós nos contrapomos radicalmente a isso, retomando um modo espinosista de pensar. É Spinoza que vai dizer que a essência do humano é o desejo. No Livro III da sua Ética, Spinoza vai dizer, logo no início, se não me engano, na “Proposição 9”, que a essência do humano, além do que ele denomina ser um conatus, um esforço para perseverar na existência, é o próprio desejo. Esse esforço se torna idêntico ao desejo. Então o desejo, segundo Spinoza, é a essência do humano. Mas, para Spinoza, não existe desejo que não seja uma potência em ato. Portanto, o desejo não é uma potência como uma possibilidade, mas é uma potência que já traz intrinsicamente um ato, o que a torna uma realidade, e não uma mera possibilidade. E essa realidade, que é a nossa potência em ato, a potência de acontecer, necessariamente, ao acontecer, ao se relacionar — e ela acontece e se relaciona necessariamente —, produz uma modificação de si (além das modificações que dela derivam). E essas modificações são produções de realidade.
Transcrição por Gabriel Naldi
Curso de Introdução à Esquizoanálise 2022 (Aula 2 – Pílula 3)