fbpx
Ler outros textos

(Re)encontrar o desejo do depressivo

[Trecho transcrito da quarta aula do Curso de Introdução à Esquizoanálise, realizada em 10/07/2021]

O que é o desejo de um depressivo? Tem-se uma visão dominante de que o depressivo é aquele que não tem desejo. Os sintomas levam a gente a imaginar isso, a pensar isso. Por exemplo, o depressivo não quer sair da cama. Ele vai dormir, mas ele não quer acordar. Ele vai deitar, mas ele não quer levantar. Às vezes ele nem vai mais deitar, porque ele já nem sai mais da cama.

A ideia de que isso passa é a ideia de que o depressivo está sem desejo nenhum. O depressivo sem desejo nenhum. O depressivo então não tem desejo. Ele está naquela posição que Nietzsche chama de “nada de vontade”. Nietzsche diz que quando o espírito se torna camelo, esse espírito começa a carregar, o modo humano de existir começa a carregar valores estabelecidos. Esses valores são valores superiores à vida, ditos superiores à vida, os valores ideais que têm uma carga muito grande, que geram uma carga muito grande para a vida. Você seguir o ideal, a vida fica muito pesada sob o ideal ou sob o modelo. Mas depois esse ideal vai ser visto, pelo humano mesmo, como uma coisa ilusória. Como por exemplo em Hegel. Hegel diz que nós devemos encontrar o universal concreto e ultrapassar a ilusão do universal abstrato. O universal em si é uma ilusão, na verdade o que importa é o universal concreto, ou seja, você tem que fazer dos valores supostamente divinos valores para o humano, valores concretos. Você se desaliena nessa medida. E você teria os valores humanos no lugar dos valores divinos. Isso segue sendo uma posição do camelo. Isso segue sendo uma posição do espírito de suportação. Você carrega. Mas isso vai dar, assim como deu no nada de deus, e aí a nossa posição desejante vai perceber que esse deus era uma ficção e vai investir nos valores humanos, os mesmos valores humanos vão ser percebidos como ilusórios também. E aí a posição de Schopenhauer. Então, de Platão a Kant, de Kant a Schopenhauer, por exemplo, na filosofia. Só para dar um exemplo.

E Schopenhauer vai dizer assim, “Isso tudo é ilusão”. O desejo dos valores divinos, o desejo dos valores humanos. Então é melhor nada desejar, porque o humano deseja sempre de modo a se aprisionar. E esse desejo do humano é sempre cobiçoso, ele sempre quer se apoderar de alguma coisa, ele sempre quer se apropriar de alguma coisa. Ele é cobiçoso e ele acaba se aprisionando desse modo. Então, melhor nada desejar.

Mas o que é isso no depressivo? Tem muito desejo no depressivo, ao contrário do que se diz, o desejo está ali no depressivo. Está todo ali. Está todo ali capturado. Está todo ali desintensificado. Está todo ali como um fogo que virou cinzas, sem brasa. Aparentemente sem brasa. Mas, na verdade, o depressivo está cheio de brasas. Como é que a gente vai reacender esse fogo a partir dessas brasas? Como a gente vai encontrar as brasas no depressivo? Dando antidepressivo para ele? É o que os psiquiatras fazem imediatamente: dar antidepressivo. Mas o melhor, não existe outro antidepressivo, pleno, real, do que o acontecimento. O que se passou? O que se passou para o desejo cair na depressão? Para que alguém caia na depressão?

Nós vimos a primeira e a segunda captura. A primeira captura é aquela que nos separa do que podemos pelo nosso próprio modo de existir. A segunda captura é aquela que nos empodera. O que é a segunda captura? A segunda captura depende da projeção da primeira captura. E ao mesmo tempo da introjeção do ideal fomentado por um centro de soberania. Por um deus, por um Estado, por um capital, seja lá o que for. Por esse princípio transcendente de organização.

Então o movimento é duplo. À medida em que eu estou separado do que eu posso e desejo de mau jeito, eu vou desejar me empoderar. E o que é isso, na verdade? Qual é o horizonte que se apresenta na mente de quem assim deseja? São as possibilidades. É o campo do possível. Então você busca o possível.

Então você diz, “Você está separado do que pode? Você vai fazer uma tentativa”. “Olha, se eu fizer isso da minha vida, se eu investir naquilo, se eu investir naquele outro, acho que eu vou me dar bem, acho que eu vou conseguir fazer parte, pertencer a essa sociedade, ter uma boa posição, ser reconhecido, me sustentar materialmente, ter, enfim, a minha família, os meus amigos, poder viajar, poder circular, poder existir de modo digno”. Ou até querer muito poder, vamos supor que eu queira muito dinheiro, vamos supor que eu queira muito ser uma autoridade tal, de destaque, ou que eu tenha não só vontade de riqueza, como eu tenha vontade de honra, de reconhecimento. E até vontade de me chafurdar na concupiscência e ter muito prazer, e ter uma vida devassa, de prazeres, enfim.

Eu vou investir em um campo de possível. O que é o desejo do depressivo? É aquele que já investiu aqui e ali, que investe muito, mas que é bastante exigente também, que investe em ideais. Mas não existe ideal que, honestamente, integralmente preencha esse buraco do modo de desejar intencional. Então o depressivo já está… ele antes investia muito no modo intencional de desejar. E quem está prisioneiro do modo intencional de desejar é quem já está preso da primeira captura. E quem está preso na primeira captura vai buscar uma possibilidade. Ele vai dizer “Aqui é possível que dê certo”. E o que acontece com o possível? A frustração vem. A frustração é inevitável.

Então, o momento de frustração se empilha. Se empilha em mim, se empilha no outro. Aí ele faz outra tentativa. E lá vem frustração de novo. E faz outra. E lá vem frustração de novo. E é uma sucessão de frustrações. Até o ponto de ter uma overdose de frustrações. O depressivo é aquele que sofreu uma overdose de frustrações. E que não quer mais levantar. Que não quer mais empreender. Que não quer mais acontecer. É aquele a quem a vida perdeu o sentido.

Existe um curta-metragem disponível aí no YouTube, muito interessante, de uma cineasta chamada Débora Diniz, e o documentário chamado Solitário Anônimo. Vejam esse documentário, tem 16, 17 minutos. É muito interessante porque é alguém que simplesmente perde a vontade de viver. É alguém que quer morrer, mas não tem vontade nem para se matar. E por quê? Porque todo o seu passado virou uma montanha de lixo. Como ele mesmo diz, “um monturo de lixo”.  E o que é isso senão um empilhamento de frustrações?

Então ele está nessa posição depressiva, ele não quer mais viver, mas ao mesmo tempo não consegue nem morrer.  O depressivo é isso, ele está nesse… às vezes ele consegue se matar. E aí o que faz a clínica tradicional? Vai medicar? Ok, nós não somos contra a medicação, depende, mas a medicação tem que ser algo muito necessário e deve permanecer o mínimo de tempo. Por quê? Porque tem que ter junto, às vezes o caso necessita, mas… porque depende da gravidade, talvez um elemento químico, assim como um alimento, pode ajudar, mas sem o trabalho de um clínico que faz a cartografia do desejo e encontra o desejo lá onde aparentemente não tem mais desejo nenhum, e percebe por que ele foi caindo, foi caindo, se empilhando, se empilhando, se atolando, se atolando até entrar no seu buraco negro. E aí, de novo, você, por velocidade, você vai reencontrar o modo intensivo do desejo que estava encoberto sob o modo intencional.

Claro que a gente precisa desenvolver técnicas e pensamentos para fazer esse… não é o diagnóstico, é de fato a carta, a cartografia. O esquizoanalista não faz diagnóstico, ele faz a cartografia, porque não tem diagnóstico. Por que não tem diagnóstico? Porque toda a vida está em processo. No fundo, toda a vida está em processo. Então como se vai diagnosticar e dizer “Fulano, Ciclano é borderline”. “Fulano, Ciclano é esquizofrênico.” “Fulano, Ciclano é depressivo”. Você vai lá e enquadra, cria uma caixinha, cria uma classificação.

As classificações são para fazer rir. A gente vê o tempo inteiro, estão sempre emitindo novas classificações. Os manuais de psicopatologia são realmente de fazer rir. Eles são para rir, na verdade. Porque eles se baseiam na crença, como se nós fôssemos feitos de traços de caráter. Nós somos feitos de linhas, nós somos feitos de processo, nós estamos em movimento. Então você tem que apreender o desejo no seu movimento. Ele está em “vias de”. Ele pode até cair em um estado, mas não significa que ele se confunda com aquele estado. Ou o clínico vai reforçar aquilo? E dizer “Não, você de fato é isso e você precisa conviver com a sua doença até o final da sua vida, porque isso não tem cura”. Para a esquizoanálise, não existe essa posição.

Então o que ocorre? Há uma maneira de encontrar o desejo do depressivo. Vasculhando a sua história. É lógico que a esquizoanálise se ocupa do passado também, mas a maneira como a esquizoanálise usa o passado e a memória é completamente diferente. Não é simplesmente para dizer que o que foi revela, é sintoma de uma estrutura do modo humano de desejar. Não existe estrutura primeira. Estrutura é sempre um sintoma, é sempre o efeito de uma repetição de um campo de forças.

Luiz Fuganti

[Trecho transcrito da quarta aula do Curso de Introdução à Esquizoanálise, realizada em 10/07/2021]

CURSO DE FORMAÇÃO EM ESQUIZOANÁLISE – INSCRIÇÕES PRORROGADAS – INSCREVA-SE

1 Comment

  • Pascoal Riguete
    15 de setembro de 2022

    Cada vez mais que eu faço uma leitura de Luiz, mais me elucida os meus questionamentos.
    Obrigado!!!

Adicione seu comentário

© Escola Nômade de Filosofia