Luiz Fuganti
Hoje vamos falar um pouquinho do nascimento do juízo; é um tema supercomplexo, superdifícil, é tudo o que sintetiza a nossa inimizade. Toda a nossa indisposição, a nossa violência, a nossa crueldade, a nossa agressividade vai contra essa instância chamada juízo e é isso que vamos tentar esboçar hoje aqui de alguma maneira: como é que o juízo emerge nos moldes como o conhecemos. Porque os gregos não eram suficientemente niilistas, suficientemente negativos para terem instaurado a instância do juízo como um plano privilegiado de estabelecimento da verdade; os gregos eram suficientemente afirmativos para não deixarem essa planta venenosa nascer na sociedade deles. Por mais que você tenha o idealismo platônico, um niilismo muito forte ainda em Sócrates, em Platão, em Aristóteles, os gregos não têm um São Paulo. São Paulo é privilégio do ocidente cristão, é o inventor do cristianismo e um dos que gerou as condições mais elementares para que o juízo tivesse o sucesso que tem até hoje. São Paulo é, digamos, o grande intérprete, o grande formador do conceito cristão daquilo que o Nietzsche chama de má consciência. São Paulo é que interpreta a cruz – ou a morte de Jesus na cruz, O Crucificado – como um acontecimento que diz respeito ao mais íntimo da nossa existência a ponto de, através desse acontecimento, introduzir em nós a dívida infinita. A dívida infinita tem a forma moderna através desse tipo de sacerdote cristão, encarnado na figura de São Paulo, que vai dar uma orientação absolutamente baixa da dor e do sofrimento. São Paulo vai interpretar a morte de Cristo na cruz do modo mais vil possível, não haveria modo mais vil do que esse, eu não consigo imaginar. Realmente é uma situação extrema. E ele vai dar uma ideia antropológica, um modelo antropológico do homem ocidental; a psiquê do homem ocidental, a visão do mundo e da matéria do homem ocidental, a visão do tempo do homem ocidental, vão ter muito a ver com essa interpretação paulina da morte de Cristo.
É uma viagem um pouco sutil, nós vamos traçar caminhos que nem eu mesmo sei por onde vamos passar – eu tenho ideia do que interessa mas eu não sei como eu vou articular, então eu vou fazendo a coisa acontecer e nessa mesma medida nós vamos desenvolvendo o que interessa. Eu vou situar a coisa de modo mais genérico do ponto de vista mais essencial, que é o ponto de vista da orientação do pensamento e da vida, do ponto de vista do modo de vida. Ou seja, não vamos ainda ver do ponto de vista de uma verdade, sob o ponto de vista do juízo mesmo, sob o ponto de vista do sistema em si que vai emergir; vamos ver a partir das linhas, das dimensões que vão gerar esse tipo de visão, esse tipo de horizonte que vai levar o homem ocidental a ter uma orientação absolutamente triste – ainda que venham nos anunciar a “boa nova”. A “boa nova” é uma nova triste, uma nova que leva para um aniquilamento existencial.
Mas o que interessa então situar inicialmente é exatamente o topos desse pensamento, o topos do desejo que articula esse pensamento; o que quer São Paulo, ao interpretar a morte de Cristo dessa forma? Uma pergunta bem nietzscheana que vamos fazer aqui. O que podemos vislumbrar de modo bem amplo seria o seguinte: vimos as orientações do pensamento e do desejo na sociedade grega sob o ponto de vista da profundidade, das alturas e da superfície.
Os pré-socráticos vão inventar uma forma completamente positiva de ser, de existir e de pensar, que é através da unidade entre pensamento e corpo. O pensamento, no pré-socrático, se dá sempre a partir de um espírito de corpo – não tem espírito separado do corpo, o espírito é espírito de corpo. E eles têm como objeto do pensamento e do corpo o elemento profundo da natureza , que eles chamam de phýsis. Então a phýsis seria o princípio e o fim de tudo; é pela phýsis que você se orienta e se regula, é da phýsis que você vem e é para a phýsis que você retorna. Então sinalizamos isso como uma orientação em relação à profundidade, porque essa phýsis é corpo; então o corpo sinalizaria uma orientação em direção às profundidades. É o que fala Nietzsche: atrás de uma caverna, outra caverna; atrás dessa outra mais outra, e isso indefinidamente. Até exemplificamos com vários pensadores, entre eles Empédocles, com aquela lenda de que ele se atira ao Etna para melhor se unir ao elemento primordial.
Haveria uma outra orientação, que é quando o mundo grego perde a imanência, se descola da vida, se descola do corpo, através de um mau encontro com o xamanismo siberiano – que se liga a seitas religiosas que já incorporam práticas ascéticas, a reformadores sociais, a puritanos, a moralistas que querem atingir uma salvação individual. Nesse sentido vimos que Sócrates seria o último xamã e o primeiro filósofo – o primeiro filósofo decadente, o filósofo onde a máscara do sacerdote se cola e ali fica. Sócrates, na realidade, é um sacerdote que faz a filosofia servir a uma religião; então Sócrates vai dar forma a uma alma que teria origem divina, que se separa do corpo e que é tanto mais eterna quanto mais desligada do corpo ela estiver – a ponto de interpretar o corpo como não só uma simples prisão da alma, mas o próprio túmulo da alma: Sócrates interpreta o corpo como túmulo da alma.
E Platão vai na mesma via, só que Platão elabora a teoria das Ideias, ele elabora o sistema. E Platão, então, vai fundar o critério para julgar este mundo da profundidade, dos corpos e da superfície também. Através da narrativa mítica ele vai inventar a identidade, ou o Modelo, do qual vai se destacar a semelhança, a similitude, que vai formatar as imagens ou os corpos desse mundo; aí ele vai querer um mundo de imagens ícones: Platão vai selecionar um mundo de imagens ícones para que esse mundo triunfe e as imagens simulacros, que são imagens sem semelhança, são puras imagens estéticas, sejam recalcadas. Imagens aqui, para Platão, é sinônimo de corpo, de alma, de tudo que há no mundo – ele chama de imagens. Então o que ele quer é selecionar, fazer com que triunfem apenas as cópias e recalcar os simulacros, varrer do mundo os simulacros. É isso que ele quer. Então, através da identidade e da semelhança, ele funda os pilares da representação ocidental.
Através desses pilares, Aristóteles vai poder elaborar a sua filosofia analítica e dar uma forma de verdade ao silogismo, inventando mais duas cabeças para a representação; já tinha a identidade, que em Aristóteles vira a identidade no conceito ou no gênero; já tinha a semelhança, que em Aristóteles vira a semelhança na percepção – através da alma sensitiva ele vai obter os fantasmas sensíveis do mundo e abstrair a Forma universal; e ele introduz duas coisas das quais ele acusa Platão de insuficiência em relação a seu método de divisão, que é exatamente a oposição dos predicados e a analogia do juízo – a oposição dos predicados é através da diferença específica e a analogia do juízo é a postura da nossa consciência ou do chamado sexto sentido, que tem o bom senso e o senso comum. Enfim, Aristóteles então, a partir dos dois pilares inventados por Platão, vai fundar mais dois e formar as quatro cabeças da representação chamada finita. Então o pensamento vai ter uma relação com a representação e ele vai atingir, no máximo, universais – ele vai ser incapaz de atingir as diferenças, os acidentes, as singularidades, enfim.
O que Aristóteles quer, no fundo, é classificar e ordenar – essa é a vontade de Aristóteles, ele quer classificar. A vontade de Platão era selecionar o puro do impuro; a vontade de Aristóteles é classificar. Porque o mundo de Aristóteles já é um mundo pacificado onde praticamente já não há sofistas, já não há quase simulacro, já está tudo manso e domesticado: Platão domina a matéria indócil, entrega para Aristóteles e Aristóteles constrói o sistema da representação finita – um sistema genérico e universal.
Mas nesse niilismo, nessa separação da alma ou do pensamento em relação ao corpo, e nesse sobrevoo do pensamento e da consciência que passam a julgar o corpo e a natureza, ainda não tem a forma extrema do niilismo porque, de alguma maneira, os gregos vê em a realidade como existindo em si mesma, mesmo que num outro mundo, e atingível através de uma viagem anímica.
Antes de situar um pouco mais genericamente a postura cristã, teríamos ainda uma outra orientação inventada pelos cínicos, megáricos, cirenaicos, estoicos e – por que não? – os epicuristas, ainda que os epicuristas estejam um pouco mais ligados à profundidade. É a dimensão da superfície. Ou seja, o objeto do pensamento e do desejo agora se encontra na superfície e não mais na profundidade. É a chamada filosofia do acontecimento, a emergência do acontecimento. Então há agora uma geografia do pensamento, uma geografia do desejo; e tudo o que há de real acontece na superfície, todo o real sobe a superfície. Toda a profundidade pré-socrática agora sobe à superfície e muda de sentido na superfície, ganha como que um duplo incorporal que é o próprio sentido imanente à natureza; ou seja, não haveria uma significação, uma designação, uma manifestação – os signos estariam submetidos à imanência do sentido. Então o sentido é aquilo que é em devir; não é nem verdadeiro, nem falso, nem bom, nem mau – ele é no acontecimento. Então a filosofia estoica é uma filosofia da imanência, já trazendo a profundidade na expressão de superfície; eles inventam uma nova fronteira para o ser, para o pensamento e para o desejo: o desejo e o pensamento agora se expressam na superfície do ser. Tudo o que se dá, se dá no meio, se dá nos encontros, se dá na superfície. É uma orientação puramente estética – e ética, na medida em que a superfície é selecionada sob o ponto de vista da vontade que quer o acontecimento e da vontade que vive conforme a natureza; viver conforme a natureza é viver segundo a efetuação das forças que se apoderam do encontro.
Enfim, seria mais ou menos esse o panorama do mundo grego até a época helenística do início da era cristã. Em relação a Epicuro e Lucrécio, eu acho que até dispensa comentários, uma vez que falamos disso nas últimas duas aulas, mas é um pensamento que radicaliza a pluralidade, a multiplicidade, e faz com que a imanência gere, inclusive, o modelo da sua negação. O modelo da negação da imanência é gerado a partir de incapacidades ou de misturas de velocidades ou de tempos – os tempos sensíveis de pensamento, os seus mínimos, e os tempos menores que os mínimos sensíveis, menores que os mínimos pensáveis. Enfim, eles vão dizer que a ilusão inicia num tempo menor que o mínimo de tempo sensível e é aí que está a fonte de todo terror, de toda multiplicação da dor, de toda impossibilidade de se ultrapassar a miséria e o terror humanos. Então eles vão fazer a gênese a partir da própria imanência e denunciar os modelos que servem ao escravo, ao tirano e ao sacerdote.
Ora, esse modelo que eles denunciam está em plena expansão já uns dois ou três séculos antes de Cristo. A coisa já rola neste sentido e até falamos na aula passada que se não fosse assim Epicuro nem mencionaria a questão. Epicuro nasce em 341 e morre em 270 a. C; para ele ter essa preocupação como uma questão central… O problema central que impede o exercício do prazer ou a felicidade, a alegria, o contentamento íntimo da alma, é o problema da dupla ilusão: a ilusão da capacidade infinita de obter prazeres ou de desejar; e de uma suspeita ou de um medo de uma duração infinita da alma, com a consequente punição eterna, as penas eternas. Então desejos infinitos e penas eternas – é o duplo aguilhão que aterroriza a alma do escravo ou de um assujeitado qualquer, seja um tirano, seja um sacerdote. Vamos ver como isso faz sentido com o nascimento do cristianismo.
Você tem, basicamente, duas vias no mundo grego. Uma via claramente da imanência – seja do ponto de vista da profundidade pré-socrática, seja do ponto de vista da superfície cínica e estoica. E você tem a via das alturas; o pensamento que se orienta para as alturas se acredita superior e nega ou desqualifica o corpo, a vida e a natureza. São basicamente as duas vias: uma via da imanência e outra via da transcendência, a realidade superior transcenderia a natureza no caso de Sócrates, Platão e Aristóteles. Ainda que Aristóteles devolva as Ideias para a estatura do homem, mas ele mantém a separação entre Forma e Matéria e atribui à Forma toda a realidade, na medida em que a Forma tem o ato nela mesma e a potência fica só do lado da Matéria.
Mas o que os gregos não têm é a necessidade de um deus criador, deus que cria ex-nihilo, do nada. Isso não existe para os gregos. Mesmo a matéria – que os idealistas vão desqualificar – é uma matéria eterna, ela não é criada, é matéria incriada. Mesmo em Platão, no Timeu, que narra a operação do demiurgo: o demiurgo, por piedade ou por bondade, vai se voltar em relação à matéria e dar forma a essa matéria. Por pura bondade. Então é um deus bondoso, piedoso, que acredita que a matéria não tem realidade por não ter essa ordem formal. Mas sabe que a matéria é incriada, que a matéria está lá, ela tem a sua eternidade, mesmo com uma realidade infinitamente desqualificada; mas ela não é criada do nada. Então, o primeiro elemento que os cristãos inventam é um deus que cria a natureza, os corpos e as almas do nada; tudo vem do nada, ex-nihilo mesmo. A matéria é criada, o corpo é criado, a alma é criada, o espírito, tudo. Inclusive o espírito não tem a origem divina como tem em Sócrates e em Platão; ele precisa encontrar deus. É um outro problema: ele precisa encontrar o divino, mesmo que seja através de uma loucura extrema, de um delírio extremo de um deus que se prega na cruz. Enfim, eles vão forjar de tal modo esse sentido de religação do homem com deus, que vai gerar um universo completamente inédito.
Então a ideia de um mundo criado não existe nos gregos, os gregos têm o mundo como eterno – mesmo que seja o eterno retorno do Mesmo. Mesmo que haja uma aniquilação do mundo, o mundo renasce o tempo inteiro, ele tem um ciclo. Os gregos afirmam o eterno retorno, mesmo que seja o eterno retorno do Mesmo. É a imagem que se tem do ciclo dos astros, por exemplo; e há os grandes ciclos. Os próprios estoicos têm a ideia de uma conflagração universal – então, a cada grande ciclo, o mundo volta para o seu fogo primordial e daí renasce tudo novamente. Mas o que não acontece nunca é o mundo ir para o nada e do nada a coisa nascer. No caso do deus cristão, não: é um deus onipotente, onisciente, onipresente que recolhe tudo em si mesmo e tudo cria a partir de si. Esse deus é um deus que não tem limites, que não tem regras; ele tem uma vontade onipotente mesmo.
E a onisciência dele é até um problema que, na Idade Média, vai ter muita discussão em função de um certo espelhamento com os modelos monárquicos onde você vai ter um tirano despótico que não vai dar mínima atenção à sabedoria, mas tudo vai emergir da sua vontade. E a sua vontade flutua segundo as suas paixões. É o deus tirano. E o deus legislador que vai ter mais a ver com um bom déspota, um déspota esclarecido, que é o deus que tem as ideias previamente e cria a partir das ideias; e a vontade ou a potência de deus está em dar ou não existência a essas ideias. Que no fundo é o campo de possibilidade do aristotelismo.
Na Idade Média você vai ter, basicamente, uma disputa entre esses dois modelos, entre os próprios cristãos. Um deus tirano, que não dá a mínima para as formas, ou para o saber ou para uma lógica interna necessária a ele mesmo; e um deus que já se relaciona de um modo lógico – seria um deus mais aristotélico, mais tomista, digamos assim: São Tomás de Aquino vai estar mais ligado a isso. Mas o que é comum no ideal cristão é que deus é um ser absolutamente livre, absolutamente poderoso e absolutamente imprevisível. Outro traço de deus: ele é necessariamente um juiz, ele é o juiz supremo. Deus ama, julga porque ama e pune porque ama – é o nosso bondoso deus do amor. É a contrafaze do deus judaico, que é o deus do ódio, é o deus agressivo, digamos assim.
Então esses elementos divinos, esses traços de deus, são inconcebíveis para os gregos. Platão, com seu mundo das Ideias, e mesmo com a ideia de Bem e de Uno, acaba respeitando, em relação à natureza, uma certa ordem, mesmo que ele acredite que essa ordem seja ideal, seja fora da natureza, mesmo. Haveria uma lógica mínima, uma inteligibilidade da natureza. Para os cristãos a inteligibilidade é sinônimo de sabedoria secular, de sabedoria mundana, que deve ser desqualificada, desprezada; quanto mais absurdo, mais digno de fé. Inclusive Santo Agostinho tem um enunciado: creio porque absurdo.
Aliás, o discurso de São Paulo para os atenienses – e depois o discurso de São Paulo para os coríntios – tem duas atitudes que vão atravessar o cristianismo inteiro, tanto em relação aos padres, em relação aos teólogos, que vão oscilar entre essas duas atitudes: inicialmente, o que faz São Paulo? Ele vai ter com os atenienses e discursa do ponto de vista de uma cooptação e de uma conciliação; São Paulo acredita que, através de um discurso conciliatório, vai cooptar, vai converter os gregos ao cristianismo. Então ele usa até de uma imagem: de que ao passear pelo Panteão grego, ele viu lá um deus desconhecido: “aqui uma divindade desconhecida”; e ele diz: “eu vim lhes anunciar esse deus desconhecido”. E aí, quando ele anuncia o deus desconhecido dele, ele diz primeiramente que a religiosidade dos gregos é uma religiosidade extremamente evoluída; e que esse deus desconhecido na realidade completa a religiosidade grega. Então ele traz o deus cristão para substituir esse deus desconhecido, para ocupar o lugar do deus desconhecido, como a completude. Mas de que modo? Como a completude suprema, como o deus eminentemente superior, como único deus. Um dos sentidos da morte dos deuses, em Nietzsche, é que os deuses morreram de tanto rir ao ver um deus dizer que era único.
E foi assim que São Paulo anunciou a boa nova: “esse deus é Cristo, que morreu na cruz e ressuscitou”. Aí, quando ele fala em ressurreição, os gregos falam: “até aqui estava bom, isso deixa para a próxima ocasião” e deram as costas. Evidentemente os atenienses não tinham a mínima vocação para esse tipo de delírio. Aí o que ocorre? Ele se recolhe e retorna a ter com os gregos, mas aí numa outra cidade, uma cidade mais aberta, uma cidade portuária tipo Coríntio, onde rola de tudo, chega de tudo, as novidades fazem e se desfazem a cada instante. Um meio mais propício às novidades. Então era mais fácil de aceitar. Só que São Paulo muda a estratégia, ele vai dizer o seguinte: “chega de conciliação”. Quer dizer, ele não diz isso, mas é a atitude que ele toma – não é mais uma atitude conciliatória. Ele ataca o discurso, ou a lógica, ou a sabedoria pagã, dizendo que é uma sabedoria que não reconhece a deus. E que a verdade está muito mais na loucura do que na sabedoria; e que deus, por um ato de loucura, iluminou ou trouxe uma verdade infinitamente superior a essa verdade secular dos homens. Então ele segue a via, agora, de uma pregação direta da verdade da cruz. É o discurso que ele faz aos coríntios e, a partir daí, ele vai desenvolver esse pensamento nas chamadas Quatorze epístolas de São Paulo, que são os 14 discursos registrados que ele deixou.
Agora, essa boa nova fundamental é o seguinte: só os fracos, os oprimidos, os miseráveis, os desvalidos, é que podem ter acesso à boa nova. Por que? Porque são os que sofrem. E é através da dor ou do sofrimento que deus anuncia a boa nova; é o modo que deus tem, na sua loucura, de fazer com que o homem se volte novamente para deus. Olha que deus ele está construindo! Que necessidade de um deus! E um tipo de deus – olha a tipologia!
Participante: carente.
Que carência, não é? Ele monta uma máquina imunda mesmo, como diz Nietzsche; máquina obscena – isso é a obscenidade. Não há outra obscenidade. É tornar, como diz Nietzsche, a dor respeitável. É isso que ele faz. Vejam como nós – os desvalidos, os miseráveis – sofremos.
Participante: totalmente oposto aos epicuristas, não é?
Não tem nem o que falar, é completamente oposto.
Participante: é o inverso mesmo. Máquina de morte.
Máquina de morte, literalmente.
Participante: e o crescimento disso? Por que isso colou?
O contágio. Como é que a coisa rola. Espinosa vai nos ajudar muito nisso, e Nietzsche também vai dizer muito bem como funciona o contágio. A ideia da salvação é o prêmio oferecido aos desvalidos. É exatamente isso. O que ocorre? Ele anuncia um deus que se entrega, que morre pelos nossos pecados. Ele morre para nos salvar.
Participante: São Paulo era judeu, se não me engano.
São Paulo era um fariseu que perseguia os cristão, enquanto jovem. Ele perseguiu muito os cristãos. E numa dessas caçadas e perseguições – se não me engano ele estava indo em direção à Jônia…
Participante: Damasco.
Isso. Em direção a Damasco. Ele leva um tombo, é derrubado, e a partir daí ele se converte, troca de nome e passa a ser discípulo dos apóstolos de Cristo.
Participante: ele era Saulo.
Então Paulo já é o primeiro sacerdote apostólico; depois vão ter os padres apologetas, os padres gnósticos, os herméticos.
Participante: antes dessa invenção de São Paulo, essa ideia de deus único já existia?
Sim. Você tem os judeus…
Participante: quer dizer, isso é muito anterior.
Sim, você tem alguns monoteísmos. Você tem o islamismo também.
Participante: mas antes tinha no Egito.
Os faraós, exatamente. Mas acontece que no mundo egípcio, ou em outros mundos despóticos, o que ocorre geralmente é o seguinte: é uma dinastia que toma o poder e impõe um sentido único, ela hierarquiza o mundo mítico. Então é um deus que se apossa no mundo. Você não tem uma criação do mundo ex-nihilo, você tem um deus que se apossa do mundo. Ele luta contra titãs, contra monstros, etc., vence e, inclusive, isso é ritualizado anualmente: a cada novo ciclo eles ritualizam o nascimento do mundo e se repete a luta desse deus contra os dragões, contra os titãs, contra os monstros. Então não é uma origem, exatamente; é um começo a partir de uma luta. É diferente. É isso que é o sistema mítico mágico-religioso do mundo despótico, o mundo despótico sempre funciona assim.
Participante: se pensar nos gregos, tem aquela concepção de primeiro o caos, depois vem o cosmos. Esse caos estava abandonado a nada, assim? Ele estava sozinho, era matéria solta?
Os gregos não têm essa visão. Há uma pluralidade de ideias entre os gregos. Os micênicos, que são os antecessores dos gregos, através do Ánax micênico, têm uma visão do caos. Mas isso é da mitologia mágico-religiosa de um sistema que funcionava a partir da economia palaciana: era um déspota no interior de um palácio que unifica a sociedade sob o ponto de vista econômico, político, religioso e natural. Em todos os sentidos. Ele unifica, ele dá essa unidade. E essa unidade é uma unidade de fundação: ele funda um poder e funda uma lei a partir de si mesmo. Ele é um déspota divino.
Nos gregos essas ideias, na medida em que se dissolvem, com a queda do império micênico, na chamada Idade Média grega, vão ter as mais variadas interpretações; e os discursos míticos se dispersam. Então vai ter o ponto de vista dos Basileus, vai ter o ponto de vista do laos – que são guerreiros -, vai ter o ponto de vista do demos – que são os autóctones, os aldeões, os agricultores, os pastores -, vai ter o ponto de vista de Hesíodo, de Homero mesmo. Mas é sempre uma visão pluralista. E o próprio caos convive com os deuses, é uma coexistência, não há uma anterioridade do caos em relação ao deus. Então é diferente.
No caso cristão não: tudo vai ter uma origem absoluta em Deus, inclusive a matéria – vai se criar ex-nihilo mesmo. Mas a questão essencial da boa nova, que é inventada por São Paulo, Cristo nunca disse isso [tooltip tip=”Bom, nem poderia dizer, mesmo que ele fosse prever isso.”]1[/tooltip] – é que ele morreu pelos nossos pecados, morreu para nos salvar. E a cruz, o que simboliza, em última instância? Tudo que o mundo é, o que a matéria faz o corpo faz; onde a coisa dá – ela dá nisso, ela dá na negação da vida pelo próprio mundo; então o mundo é isso. Agora, nós somos coautores da morte de Cristo, nós o matamos; ele que morreu para nos salvar e nós que o matamos. São Paulo, através dos seus métodos alegóricos [tooltip tip=”Que já estavam disseminados nessa época, até no judaísmo de Alexandria o helenismo tinha influenciado suficientemente porque havia, já, várias interpretações alegóricas no mundo grego. São Paulo se apodera do método alegórico também.”]2[/tooltip], das interpretações alegóricas do Antigo Testamento, articula o pecado original com o assassinato de Cristo. Então nós vamos ser os assassinos de Cristo, eternamente culpados – e culpáveis – e, ao mesmo tempo em que nós somos culpados, a prova disso é que sofre; e quanto mais sofremos, mais somos culpados. Pois bem, é o sintoma imediato da nossa culpa, da nossa dívida. É uma dívida infinita, evidentemente; mais tarde veremos as nuances que levam a se entender isso como uma dívida infinita.
Mas a sabedoria, na loucura divina, está exatamente em, através de um ato de loucura, o credor se paga ou se oferece em pagamento ao devedor. Como diria Nietzsche, quem acreditaria nisso? Os homens acreditaram. É como você imaginar um banqueiro ao qual você é devedor; aí chega o banqueiro e diz “eu me sacrifico por você”. O FMI vem e perdoa a dívida do mundo inteirinho. É muito mais fácil você imaginar isso do que você imaginar um deus que se prega na cruz para pagar os pecados dos homens, quitar as dívidas dos homens. Ou seja, eles desenvolveram uma dívida de tal modo impagável que o próprio credor tem que se imolar, tem que se oferecer em pagamento. É um negócio maluco, mesmo.
Participante: até os apóstolos, até essa primeira transmissão de conhecimento de Cristo pelos apóstolos, não havia essa noção de culpabilidade?
Havia. A má consciência já está rolando de modo latente. É como o ressentimento. Vou te dar um exemplo de Nietzsche: os judeus já estão submissos ao faraó no Egito e eles acusam o faraó de ser o culpado da infelicidade e da miséria deles. Claro, eles estão escravos. Mas eles ainda não acusam formalmente; desenvolve-se um tipo entre os judeus, que é o chamado sacerdote judeu, que vai orientar o ressentimento, vai orientar e dar forma ao ressentimento. Vai designar o objeto, clarificar o objeto e orientar o ressentimento. Então uma coisa é o ressentimento latente, você não sabe muito bem porque você é incapaz de reagir, aquela coisa latente e você não sabe muito bem a quem acusar. E outra coisa é alguém que chega e diz: “eis o responsável pela sua miséria”. Ele orienta aquilo e formaliza. O sacerdote judaico é um personagem que Nietzsche inventa – um personagem conceitual, evidentemente, mas que se encarna no sacerdote judaico, existe isso na prática, mesmo – que formaliza o ressentimento, que dá direção ao ressentimento. O sacerdote cristão não tem mais a quem acusar, a coisa já está tão disseminada que não tem mais a quem acusar. O que ele faz? Ele diz: “meu filho, o culpado é você mesmo, não ache fora de você o culpado”. Isso que é o nascimento da interioridade, está começando a se esculpir a interioridade, a nossa profundidade, o nosso eu profundo. Na verdade, é a velha altura do ideal fora do mundo que passa para o lado de dentro. É a altura antes projetada e a agora introjetada no sujeito. O sentimento de culpabilidade é a condição para o nascimento do sujeito. Sujeito assujeitado a dor e ao castigo. Sujeito culpado. O ideal das alturas, que era um ideal objetivo fora do mundo, o cristianismo introjeta como profundidade dolorosa do sujeito, ele funda o sujeito nesse processo que interioriza o significado da dor. Então o nascimento do sujeito ocidental é exatamente a introjeção de uma falsa profundidade. Falsa profundidade por que? Porque é a dor da má consciência, é o sentido interior da dor, é a espiritualização da dor que faz com que essa profundidade cresça, que o pântano cresça.
Participante: isso se dá sempre em posição de submissão.
Sempre. Isso já é posição do escravo, você já está capturado.
Participante: isso se dá na Índia contra os ingleses… se dá na mulher com o homem…
Sem dúvida. Mas nem todos têm um São Paulo. Esse sentido, desse modo… O que Buda diz? “Sim, eu sofro”. E ponto final. São Paulo diz: “Eu sofro, você sofre. Por que? Porque você é culpado, eu sou culpado; nós somos os assassinos de Cristo, nós não vimos o salvador diante de nós, ele morreu para nos salvar e nós somos eternamente responsáveis por isso. E qual a solução, o sentido? A solução, o sentido é dado na própria dor: multiplique a dor; quanto mais você fabrica e multiplica a dor, mais você expia a sua culpa, mais você paga a sua dívida”. Será que você paga a sua dívida? Você paga juros, juros, juros e juros. E a moratória infinita não há como você pagar. Kafka, depois, vai desmontar o sistema jurídico moderno exatamente com essas noções de dívida impagável e de adiamento infinito ou de moratória ilusória. O homem moderno é isso, ele é endividado, culpado e acusado o tempo inteiro. Ele é culpado a priori, ele precisa provar a inocência dele o tempo inteiro.
Participante: não tem mais réu primário, não é? Se já matamos Cristo…
A estrutura já te acusa a priori, mesmo que cinicamente eles digam “você é inocente até que se prove o contrário”. Cinicamente o que se diz o tempo inteiro é isso – aliás isso é um princípio básico do direito moderno.
Participante: eu diria que o seu raciocínio está muito claro, mas não me convence, no sentido de me tocar, qual é essa máquina que São Paulo montou. Está muito claro.
Eu estou só começando a pincelar e a situar. Nós montaremos isso. Hoje é apenas lançamento de elementos para pensarmos o gosto e o mau gosto, aqui.
Participante: eu vejo Aristóteles e eu vejo o acontecimento; eu vejo Platão e eu vejo o acontecimento, eu sinto na hora. Quando você já está falando hoje, a intensidade desse acontecimento eu ainda não estou… eu entendi tudo mas não me tocou.
Já temos matéria, já temos elemento para entender isso – através de Epicuro e Lucrécio. Precisamos fazer a passagem mas eu não vou fazer já, daqui a pouco nós fazemos. Então vamos voltar. Claro, é muito difícil. Isso só convence quem? Quem está muito desesperado, aquele que precisa se agarrar a alguma verdade que o salve de uma coisa terrível. Essa ideia de salvação é fundamental. A situação é tão extrema e tão inviável para a vida que, na medida em que a dor e o sofrimento não fazem sentido em relação ao mundo, você precisaria encontrar um sentido interno para a dor; então a dor é a grande ponte entre o homem e Deus.
São Paulo diz o seguinte aos coríntios: “eu estou crucificado junto com Cristo, eu me crucifiquei junto, eu morri junto com ele; e renasci com Cristo, Cristo vive em mim – eu renasci porque Cristo ressuscitou em mim”.
Participante: então a questão é a transcendência. Agora eu entendi: não é só a dor. Além da dor, tem um barato legal da ressurreição, da transcendência.
Com certeza. Mas o que é curioso é que essa felicidade, esse barato legal, é uma promessa futura que nunca chega, mesmo que você acredite que você já tenha Cristo no coração. Não chega nunca. Ao contrário das religiões gregas – mesmo as seitas esotéricas mais fechadas te prometiam a felicidade aqui e agora; e te davam a felicidade aqui e agora. Mil práticas xamânicas e ascéticas levavam o corpo a entrar em outros estágios, em outros planos, em outros níveis; era uma religiosidade positiva, ainda, politeísta. E você encontrava o deus que te servia; era um sentimento de aliança mesmo: o deus que você encontrasse era teu aliado e ele funcionava com você, a tua vida mudava de fato. No caso cristão muda a tolerância, você suporta melhor; mas você espera na outra vida, no outro plano a satisfação.
Participante: é coisa mais filial do que de aliança com Deus.
É filial, exatamente – Deus é pai. E através de seu único filho que é Cristo, que ele pôs na cruz através desse ato de loucura para mostrar a iluminação, a gnose, o sentido fundamental da ne-cessidade do reencontro com Deus, ele unifica os homens no filho. Então no momento em que introjetarmos o filho em nós, “Cristo vive em mim”… mas eu preciso morrer para o mundo, então eu preciso fazer o sepulcro, fazer o ritual de morte, eu preciso entender e encarnar a crucificação. Eu mesmo tenho que me crucificar. Aí sim Cristo vive em mim.
Participante: mas essa é uma visão de Jesus muito peculiar à própria história do Paulo, mesmo. O cara matava cristãos, participava de julgamentos; untava o cara de azeite e tocava fogo. Como é que esse cara vai olhar um deus de uma outra forma que não seja na extrema culpa, no extremo ressentimento? A dor é essa. Agora, ele se tornou um marqueteiro fantástico, ele transformou a dor dele na dor da humanidade.
É a má consciência, o remorso.
Agora, foi ele que fez isso, ele que inventou o cristianismo.
Participante: vocês estão dizendo que é o remorso.
É a má consciência. A mesma coisa, é sinônimo.
Participante: não existe arrependimento do deus judaico. Quem dá essa possibilidade de se arrepender é o deus cristão, não é?
Exatamente. Ele perdoa; é um Deus do amor que perdoa.
Participante: mas por que Paulo teria remorso?
Aí que temos que atingir os elementos da imanência que levam alguém a se acusar a si próprio. Em que estágio as forças ativas são encurraladas de modo tal para que elas se voltem contra si próprias? O remorso é isso: você volta a força contra si própria. O ressentimento não suporta nada que é ativo, não tem como. Isso é da essência do ressentimento. Vamos entender isso bem claramente com Nietzsche. Você não tem como reagir; e tudo que é ativo incomoda, é fonte de ameaça, ameaça a tua sobrevivência. Então para você se defender, você tem que se omitir. Porque não tem como você reagir, você não tem força para isso, então você se omite e você se une com outro que também se omite. Você vai puxando o tapete – puxa daqui, puxa de lá. A força ativa fica no vazio.
Participante: mas estávamos num raciocínio, se eu entendi, assim: era um cara superforte, que atacava e destruía um monte. E de repente ele ficaria culpado?
Mas espera aí, não dá para dizer que ele é um cara superforte porque ele faz. Ele está no ressentimento, ele está numa posição judaica; porque o ressentimento reage de uma outra forma. É ele que mata, no fundo – é o ressentimento que mata. Quando dizemos que ele é incapaz de reagir, ele é incapaz de reagir e entrar em devir – agindo entrando em devir. Ele ressente e ele pode matar, destruir; é ele que gera a guerra, que gera a violência, que gera essa coisa negativa. É o ressentimento que faz isso. Então se Paulo mata e persegue, ele está na posição do ressentimento.
Participante: de tudo o que você falou, o que me deixou mais aflita foi que “ele renasce em mim”.
Tem que chamar o exorcista (risos).
Participante: é o maior abuso isso!
Abusado. Olha a arrogância desse cara. É a vontade de julgar. Ele está instaurando no mundo essa vontade de julgar. Eles são tão doces, tão amorosos, tão bondosos, eles perdoam tanto… mas eles estão instaurando a mais terrível máquina de julgamento.
Participante: ele era um grande julgador.
Exatamente. Ele só introjetou, através do remorso – ou seja, a força que agora se volta contra si, não tem mais quem acusar -, ele instaura Cristo; e é esse sentido que ele dá: aquele que redime os nossos pecados. Mas que nós não fomos suficientemente iluminados para ver, porque estamos demasiado mergulhados na sabedoria mundana, no discurso, na lógica, no sensível, etc., e não entendemos uma coisa que vem via iluminação, que é de outra natureza. São Paulo usa até um termo chamado pneuma – que não tem nada a ver com o pneuma estoico, é um pneuma que vem do alto, ele é introjetado em você.
Agora, o que é interessante entendermos é o seguinte: precisamos trazer o máximo de elementos possíveis para compor o modo como isso se forma. É uma máquina que está sendo montada e que funciona até hoje. Existe um cara na história da filosofia do Châtelet – que é uma obra muito boa, muito bem cuidada – que fala claramente que é inadmissível que o cristianismo seja uma mitologia. Olha o nível! Porque você atinge um plano, um ponto, um horizonte, um mundo onde isso é extremamente natural e verdadeiro; você está numa subjetividade cristã totalmente verídica. Quer dizer, a trindade, esse mistério, não tem nada de absurdo – ou então, quanto mais absurdo… é através da loucura divina que a revelação se mostra. Por que? Porque a lógica, a sabedoria humana, vai pelo lado da imanência. Nós não precisamos de nenhuma entidade fora de nós, de nenhuma entidade transcendente. É evidente que o pensamento não vai atingir isso aí. Por isso eles destituem a natureza como irracional, ou essa razão humana como uma razão baixa, pecadora, etc.
Participante: uma obra de Satanás.
Obra de Satanás. A árvore do conhecimento, a famosa fruta da árvore do conhecimento.
Participante: é o pecado original.
E aí ele já articula com a morte de Cristo que, pela mordida do fruto – ou porque nós bebemos na árvore do conhecimento -, ficamos cegos em relação à iluminação primeira. E pelo livre-arbítrio nós tínhamos a possibilidade de seguir o outro caminho que não o de Deus. Ou seja, somos livres para nos fodermos, é isso que ele está dizendo. Olha de Deus legal! Ele te põe numa situação onde você está super-livre para se foder ou para se dar bem. Muito curioso esse Deus. Muito interessante.
Então o que ocorre? Você funda um sujeito extremamente sensível , uma sensibilidade ex-trema. Tudo dói. Quanta dor! É uma sensibilidade fantástica à dor. Nietzsche diz, no Genealogia da Moral: viramos todos umas maricas afeminadas. Porque não suportamos mais nenhum tipo de dor, para tudo é necessário anestesia, para tudo é necessário algum paliativo para apaziguar a dor, acalmar a dor.
Participante: Prozac.
Essa que é a embriaguez cristã: é uma falsa embriaguez. Esse que é o falso infinito que nos embriaga, uma falsa embriaguez.
Participante: lembrei do livro que chama “Mais Platão e menos Prozac”.
Participante: putz, que escolha!
Cada um tem o que merece.
Participante: menos Platão e menos Prozac!
Participante: no budismo tem um aforismo que fala que é através da dor que você alcança a iluminação, que através do sofrimento o homem evolui.
Mas ele não está orientando, ele não está acusando. Aliás, Cristo é budista; Cristo não acusa, ele não tem ressentimento e nem má consciência. Ele sofre.
Participante: além disso, nesse aforismo há um uso da dor até interessante.
É, esse uso é interessante. É o que Nietzsche chama de niilismo passivo.
Participante: faz crescer, faz alguma coisa.
Participante: para crescer, não para ressentir.
Isso. Agora, aí existe um problema: se essa dor se mantém na espiritualidade, aí é o chamado nirvana, é a coisa do não agir. O niilismo passivo.
Participante: “se mantém na espiritualidade”? Você leva essa dor a ser uma dor espiritual? É isso que você está falando?
E você atinge a chamada compaixão absoluta, que é o ideal de Buda. O que o zen-budismo faz? O zen volta para a superfície. É a sacada genial do zen: “ah, tá, entendi, mas a salvação está no meio, não está na altura, não está no alto, ela está no meio. É o caminho do meio. O zen saca isso. Que é o estoico, é a mesma coisa.
Participante: mas a proposta não é estar nela, é reconhecer a dor. Como os epicuristas: reconheço que ela existe.
Participante: mas a única maneira de você sair da dor é você ter o conhecimento, é você não ser ignorante da dor. Então o que te leva à dor é a ignorância, pelo budismo.
Participante: nesse sentido, Espinosa pensa o mesmo.
Sim.
Entre os gregos, a mesma coisa: para Sócrates, Platão, a ignorância é o mal, é o inimigo. Ou seja, há um ascetismo lá, mas não há essa maldade cretina do São Paulo. Ele te culpabiliza. E não é uma dívida que você paga em alguma hora; é a divida infinita, é a dívida existencial. Aí vem uma outra novidade cristã: é o sentido do tempo. Ele sai daquele tempo circular grego e entra num tempo trágico, o tempo linear. Há uma história e essa história é irreversível. E na sua história vai ter uma finalidade – é a escatologia cristã. Esse sentido escatológico é o dos milenaristas também, é o do fim do mundo, é o do juízo. Então você instaura um tempo que é, na realidade, o revelador do seu qui-nhão: veja o quinhão que Deus te deu – o nascimento e a morte; e na morte você vai estar diante de Deus e lá você vai ser julgado.
Participante: a Igreja está sempre julgando.
Participante: você chamou isso de “tempo trágico”?
Isso é o Kierkegaard que fala. Aliás, é interessante Kierkegaard; ele tem uma interpretação ambígua que vamos ver no seu tempo devido. Os gregos têm a ideia do tempo circular e não de um tempo linear em evolução; eles não têm a ideia de progresso, no sentido que os cristãos instauram, e da finalidade. Agora, o tempo cristão é revelação também: ele vai revelar o sentido finalista e o juízo lá no fim, e é lá que ele te cola novamente com Deus ou te separa definitivamente dele. Então isso é uma outra ideia que nós incorporamos – esse tempo nós incorporamos. O nosso medo da morte ocidental é inteiramente cristão; é por isso a nossa dificuldade em pensar o aion estoico, que é passado e futuro ao mesmo tempo; não pensamos assim, pensamos o passado, o presente em direção ao futuro – que é a morte, o ser-para-a-morte heideggeriano, por exemplo.
Participante: você afirmaria que é o medo da morte que funda o sujeito?
Ele é um traço essencial que fundamenta o sujeito, com certeza. É o medo e a ilusão da morte, porque é o que diz Epicuro: a morte não nos diz respeito, no fundo. Assim como o nascimento. São acontecimentos que não alteram em nada a natureza das coisas.
Participante: mas de onde vem esse medo? O medo da morte funda o sujeito. Mas de onde vem esse medo da morte?
Vamos ligar logo Epicuro e Lucrécio, ou então Nietzsche e Espinosa. Se você está numa posição em que você investe imagens ou simulacros de terceira espécie – quer dizer, fantasmas de terceira espécie, segundo o modelo de Epicuro e Lucrécio -, são imagens que mudam, que emergem e desaparecem com a mesma velocidade do simulacro, digamos assim, e que são tão livres, independentes e autônomas como duendes porque não identificamos os emissores, não identificamos a sua causa, e tomamos a ela como causa, como entidade. Então essas imagens são entidades.
O meu desejo investe essas imagens; na mesma medida em que ele investe essa imagem, ele se separa do que pode, ele investe uma ficção. E o efeito da ficção é uma falta, é uma insuficiência de ser. E é uma dor, uma multiplicação de dor. Esse é o efeito. Então eu sou frustrado a cada instante, na medida em que o meu desejo investe isso. Se eu sou frustrado a cada instante, eu estou separado do que eu posso a cada instante, o que acontece? Eu sou punido a cada instante e eu tenho a ideia de que? Eu já entro em desespero porque eu estou sempre sendo frustrado. Então há um desespero existencial, um terror, uma angústia existencial.
Aí, o que é o reforço? Pior do que isso, então, é o medo da morte. Por que? Porque eu tenho um desejo que investe essas imagens que não têm causa, que são entidades, que somem e desaparecem; isso se subdivide infinitamente e a coisa gera a ilusão de que o meu desejo é infinito e a minha frustração também é infinita. Gera-se essa ideia de que o meu desejo é infinito, ele tem que durar infinitamente também; se ele dura infinitamente, a minha alma é eterna. É essa a transposição imediata da coisa. Então esse sentimento eu tenho, mesmo que seja inconsciente. Aí, se eu tenho essa ideia de que a alma é imortal, ela está entregue à punição eterna, aos castigos infinitos. Por que? Porque é o que eu tenho o tempo inteiro já na minha vida, eu já tenho isso. É por isso que Nietzsche diz: você já tem a vida que você merece. Você já está sendo punido, o inferno é aqui. Só que eu me aterrorizo ainda mais, porque eu acho que isso não vai acabar nunca.
Esse é o medo da morte, é o que funda o sujeito. Aí o desejo, que Platão já tinha lá feito a questão não sobre o seu uso, mas sobre o seu ser, a sua essência – mas ainda é uma essência ideal -, esse desejo agora vem para o sujeito humano, agora é o desejo da carne. É a alma misturada ao corpo, é o desejo da carne, desejo carnal. Esse desejo vai ter que se confessar, porque ele deseja as coisas mais obscenas, mais terríveis, mais imundas, mais malévolas. Mesmo que ele nunca efetue o ato – e ele acaba nunca efetuando, mesmo, porque ele é impotente – mas ele é extremamente culpado, ele tem que se confessar o tempo inteiro, ele tem mil pecados, infinitos pecados. Daí a arte do confessionário inventada pelos padres cristãos. O confessionário é isso.
Participante: mas isso não deve ser produto do cristianismo, isso tende mais para a Idade Média.
Claro, depois eles vão institucionalizar, não tem no início. É com a Igreja institucionalizada que isso emerge, eu não sei exatamente a data que emerge. É quando a Igreja já está avançada. Se não me engano, já é século XII ou XIII.
O tempo inteiro nós temos os elementos para viver assim. O que faz o capitalismo? Ele descobriu essa matéria sutil extremamente interessante para fisgar os homens. Porque o capitalismo precisa de um ser exatamente assim. É por isso que o cristianismo se efetuou plenamente no capitalismo; a psicanálise veio dizer o modelo exato da nossa psiquê; o Kant deu o modelo moral e racional na chamada crítica do juízo – que não é crítica coisa nenhuma, na realidade é uma reforma muito bem feita. Aquele que fez realmente a crítica foi Espinosa, porque ele levou a crítica ao juízo de Deus, ele foi até Deus; Espinosa desmonta inteirinha essa máquina, ele diz: olha o deus que vocês têm! É à imagem e semelhança de vocês mesmos: é um deus antropológico, é um deus antropomórfico, é um deus egocêntrico, é um deus que tem livre arbítrio – é um deus fictício, absolutamente fictício; é à imagem e semelhança do monstro que é o vosso desejo.
Participante: do ressentimento.
Do ressentimento, da má consciência.
Participante: o que é o ressentimento? A todo instante você está falando no ressentimento; o que significa?
Eu vou dar de novo esses elementos. Eu já falei algumas vezes sempre rapidamente porque vamos falar isso em Nietzsche, isso é objeto do Nietzsche. Vamos de novo então. Imagine a superfície estoica: você tem a superfície física e metafísica, não importa. E o movimento, os fluxos que nos atravessam. Então você é um corpo que se encontra com outros corpos, necessariamente; é um corpo em relação – para os estoicos é isso. Em Nietzsche são forças em relação, é a mesma coisa. Você está sempre em relação. O que é a superfície? Nada mais do que a relação, a superfície é a relação, é isso que é a superfície. Só que para que a relação se dê de modo inédito mesmo, para que realmente aquilo seja um acontecimento, seja um devir, seja uma experimentação, seja uma produção de realidade, essa relação tem que se abrir para aquilo que está acontecendo ali que é novo, que é inédito. Mas só é novo e só é inédito se na superfície não tiver nenhum código, nenhuma marca, nenhuma forma ou nenhuma figura que submeta a relação. A relação é anterior. É por isso que eu digo: o sentido vem antes da significação; o sentido é a relação pura, não tem julgamento aí – não tem verdade, não tem falsidade, não tem mentira, não tem erro, não tem bom, não tem mau, não tem nada. É o sentido, ele é puro. Isso é a relação lisa – sem uma figuração, sem uma forma, sem um código.
É isso que Nietzsche chama faculdade do esquecimento – ser capaz de esquecer, ou ter a faculdade do esquecimento ativa em si. É manter as relações sempre lisas, sempre essa superfície pura e aberta. Se você está em relação assim, você está em devir ativo, necessariamente é um devir ativo. É um devir que modifica, que experimenta, que altera, que cria, que inventa. Ou seja, é aquilo que realmente produz realidade, é como a natureza funciona de modo livre.
Então ele diz: isso é a postura nobre da nossa consciência, é uma consciência de superfície.
Participante: eu tenho uma imagem de criança brincando.
Isso. Sem culpa, sem marca, sem ressentimento. Tudo desliza, flui.
Participante: ela está se divertindo, está no diverso.
Isso. Há um fluxo, há uma flexibilidade, as coisas são plásticas. A natureza é plástica, inteiramente plástica, ela não se fixa, ela não se cristaliza.
Onde nasce a cristalização, a fixação, o código, a forma, a marca? Onde nasce isso? Nietzsche diz: nós temos vários inconscientes; um deles registra uma informação que vem dos encontros. E que informação é essa? É o último efeito de realidade (ele não usa essas palavras, isso é uma invenção minha) que é uma imagem. Essa imagem – que é o efeito último do objeto – tem um traço, tem uma figura, tem uma cor, tem uma forma; e isso – diz Nietzsche – é o sistema inconsciente de registro, é um inconsciente de registro. Esse é um dos nossos inconscientes que registra a realidade. Registra o que? Registra essas imagens que são marcas ou índices. E ele diz: esse inconsciente tem que ser inconsciente; e se ele é inconsciente, ele não é sensível. Porque essa consciência que eu disse há pouco é uma consciência sensível, de sensibilidade, e essas relações estão na sensibilidade. É estético, inteiramente estético.
Se esse inconsciente se mantém inconsciente – ou seja, se eu recalco a marca -, eu recalco por que? Porque eu esqueço imediatamente; aquela imagem, aquela figura – que poderia se fixar ou fixar a minha atenção – imediatamente vai para o inconsciente; eu mantenho a superfície aberta para o novo, eu a mantenho lisa. Então isso é fazendo com que a marca venha para o inconsciente. Essa marca, evidentemente, tem alguma função – é uma memória de marcas – , ela serve como índice. É um estoque de índices, digamos assim: são indicadores. Ela não revela a causa do objeto, ela não revela a essência de nada, ela apenas indica alguma coisa, é um sinalizador; e eu posso usar isso de uma maneira ativa, eu posso dispor disso.
Participante: você pode dar um exemplo do uso do índice?
Exemplo: a obra de Proust. O que é o tempo redescoberto, em Proust? Ele escreve uma obra de 7 volumes, Em busca do tempo perdido; o último tomo chama O tempo redescoberto. Como ele redescobre o tempo? O tempo redescoberto não é o tempo que foi, não é a memória, não é a reminiscência, não é uma lembrança que eu revivo, não é um flashback. O que volta, essa minha reconquista do tempo, é o próprio passado inteiro que volta ali. É o que diz Bergson: o passado é um bloco de intensidade inteira que volta. Mas como é que o bloco de intensidade volta? Aqueles índices, aqueles cheiros, aquelas luzes, aquelas cores, aquelas figuras, aquelas nuances dos corpos de mulheres, de homens, daquela sociedade, daqueles prédios, aqueles campanários, o cheiro da terra, da chuva… o que lembra isso? Não é uma lembrança, não é algo que eu me recordo (“ah, como era bom…”), nada disso. Aquilo vem inteiro de novo, é um índice que traz o bloco inteiro de realidade, ele se repete. Ele não se representa, ele se repete, ele vem inteiro de novo. Ou seja, ele modifica o futuro e se modifica enquanto passado. Então isso que é o tempo redescoberto. Isso que é a salvação, não tem outra salvação.
Então o índice é um elemento que é utilizado de modo ativo, ele tem a sua nobreza – tudo tem a sua nobreza, desde que esteja na sua posição, que não venha usurpar. O que é a usurpação? A usurpação é quando essas marcas se tornam sensíveis, ou seja, emergem na superfície: ao invés de elas irem para o inconsciente, elas insistem ali, elas ficam ali. E o que ocorre? Os meus novos devires vão acontecer – porque não tem como você deixar de estar em devir – só que agora submetidos a essas marcas, a uma ideia fixa, a uma forma ou figura. Alguma fixação. E tudo você julga a partir dali. “Julga”: você já tem a matéria do juízo aí, a matéria do juízo inicia aí.
Participante: você recorta a realidade nos moldes do ressentimento.
Porque você é incapaz de se subtrair a aquela marca, aquela marca não foi para o inconsciente, o seu esquecimento não funcionou; é por isso que Nietzsche diz que os homens que têm um excesso de memória, uma prodigiosa memória, são homens de cu de chumbo, ou que não acabam nada, não digerem nada, estão sempre remoendo aquela coisa. Por que? Porque a marca está ali. Remói aquilo o tempo inteiro.
Participante: isso é a obsessão?
Claro, é uma obsessão; é a mania propriamente do ressentimento. E é isso que gera, inclusive, a posição maníaco-depressiva porque isso funda a altura e a depressão, porque você cai também. É a mania do alto e do baixo.
Participante: esses fantasmas que eles falavam… esses índices se tornam fantasmas?
Ou imagens. Já é um fantasma, no sentido de Epicuro e Lucrécio. Porque a imagem ganha realidade própria. O que a marca faz? Ela te rouba o ato, você fica só com a potência – ou seja, você fica impotente. Porque você é uma potência em ato; se a marca se instaura ali, ela te rouba o ato. O ato está nela e ela passa a ganhar uma realidade de entidade, porque eu acredito que o ato está nela.
Participante: o que eu estou relacionando é o seguinte: o território para essa imagem, para essa entidade, é fundado a partir desse inconsciente de registros? Ou ele está aleatório?
Não. Através desse deslocamento topológico do inconsciente de registro de marcas – porque há vários registros, há registro de sentido, a memória ontológica (o registro de sentido é uma memória ontológica, aí é memória de futuro, é a função ontológica mesmo da memória). E é um deslocamento topológico, há uma inversão – é o que Nietzsche chama de imagem invertida. A imagem toma o lugar da realidade; ainda que ela seja um efeito de realidade, mas ela quer ser toda a realidade. O problema é esse. Ela quer falsificar; é uma falsificação na origem, na emergência da marca, mesmo; é uma ilusão de consciência.
Espinosa vai dar três sentidos a essa ilusão. Ele vai dizer que isso gera a ilusão das causas finais: eu acredito que o outro age sempre para me atingir; ou seja, aquilo que acontece comigo na medida em que o outro age, é porque o outro tinha a intenção de fazer comigo. A ilusão de um livre arbítrio – o livre decreto, como diz Espinosa; ou seja, na medida em que eu não identifico a causa, eu penso que essa imagem é livre e eu penso que eu posso reagir livremente diante dela, também; então eu penso que os meus atos não têm causa, que a minha vontade é livre. (Olha o deus de São Paulo aí. É a mesma origem. Então nós estamos na imanência fazendo a genealogia disso, a gênese, a coisa genética mesmo).
E a ilusão teológica: eu reajo, isso gera uma ordem – a ordem mundana, social, humana, etc. Onde eu não explico por essa ordem, na minha ignorância eu jogo a iluminação divina, a providência divina. É como diz Nietzsche: a providência divina nada mais do que o meio de preencher a minha ignorância. Então aí eu gero essa terceira ilusão. Isso é a consciência já nessa posição de ressentimento, é a mesma questão.
Espinosa diz: é a minha potência que é preenchida necessariamente, porque ao desejo não falta nada, mas é preenchida por paixões tristes; e o Estado alimenta duas fundamentais, que é o medo e a esperança, o tempo inteiro: medo dos castigos e esperança das recompensas. Sempre de uma entidade fora de mim. É a postura passional reivindicativa de um escravo.
Então, acabando de responder sobre o ressentimento: você tem algo que não funciona em você, que é a faculdade do esquecimento; nesse instante é a ocasião para a marca se tornar sensível e quando ela se torna sensível ela começa a estriar a superfície – tudo vira uma estria, um esquadrinhamento, uma fixação. Então eu fixo valor, eu fixo sentido, e aí eu digo que aí está o significado, aí está o sentido do sujeito, aí está tudo. Quer dizer, a partir daí eu acredito que isso seria gerador de sentido, quando na realidade isso é a coisa mais pobre de sentido, porque o sentido é a relação pura antes da marca.
Participante: é como um filtro, você vê todo o mundo através dele, não vê as nuances.
É a bílis, é o fígado, a bílis do homem do ressentimento mesmo; é tudo por cólera, por ódio, ele não consegue se subtrair a nada. Mesmo na alegria. Nietzsche diz: ele é incapaz até de amar o objeto que lhe traz aumento de energia. Ele nem ama nem admira, mas ele exige que cuidem dele, que tratem dele, que o amem. É o passional reivindicativo, sempre que o mundo venha até ele. É a posição de uma instância que salta da natureza e que acredita que tudo no mundo tem uma finalidade, que é suprir essa instância, alimentar essa instância. Essa é a providência do mundo, o mundo tem que ser uma providência, ele tem que ser providencial para suprir esse ser, esse centro, esse ego.
Participante: ele é incapaz de se ajudar.
Então ele precisa ser amado, ser admirado, ser elogiado, ser paparicado. É muito obsceno. E quer que respeite a dor dele, você não pode nem zombar da dor dele.
Participante: aquilo que você falou, como você chama? A última marca da realidade?
O último efeito de realidade?
Participante: como o carbono 14.
É um signo. E aí vira um significante – o significante vai ter o sentido que a força der; mas como essa força é uma força reativa, uma vontade negativa, vai fazer com aquele sentido seja único, a partir da verdade dele. E o que São Paulo vai fazer? O que esses cristãos fazem sempre, quando ficam p* da vida na medida em que você compara os métodos alegóricos que eles inventaram para interpretar as bobagens que tem nas Sagradas Escrituras – aí tem o sentido subentendido, implícito ou alegórico, que diz uma coisa e quer dizer outra? Ele vai dizer que o método alegórico dele é o verdadeiro, agora o método alegórico dos pagãos é pura estratégia do demônio. E ele é mais f. da puta porque ele está sempre inventando um modo de enganar, ele produz efeito de semelhança e de identidade na superfície; é por isso que Platão achava terrível o simulacro e os cristãos vão ter um modelo de catecismo fundado no simulacro. Somos feitos à imagem e semelhança de Deus; perdemos a semelhança e ficamos só com a imagem – caímos na existência demoníaca. Só reconquistando a semelhança que reencontramos Deus; e a semelhança é incorporando uma forma moral. Só que a forma moral é através da dor, é sensível à dor; e o sentido interno que a dor tem.
Nietzsche diz: qualquer dor tem um sentido exterior; e a dor é sempre o prazer de alguém. É isso que os cristãos não sabem, a dor é sempre o gozo de alguém. É por isso que o ritual de crueldade é bom. Os índios, os selvagens, sabem muito bem disso; todo ritual de crueldade é festa na tribo, há realmente uma festa com o cara sofrendo as piores torturas ali na carne. Por que? Porque sabem que aquela dor que ele está sofrendo tem um sentido nobre; aquele que está sendo submetido a essas crueldades todas vai ficar mais forte, mais poderoso, mais livre. É por isso que é festa, é prazer de uma instância, de um socius que vê os seus membros, as suas máquinas vivas, serem mais poderosas, mais fortes. Assim um guerreiro: para ele ser um guerreiro, ele tem que ser capaz de suportar as piores torturas porque senão, na primeira tortura que o inimigo impõe a ele, ele entrega os segredos da sua tribo. Então, fazer um corpo forte, um guerreiro, é fazer com que ele suporte as piores crueldades; e aquilo tem um sentido extremamente positivo. Não é essa humilhação que os nossos exércitos fazem com os nossos soldados; isso é puro ressentimento.
Participante: nas Filipinas, acho que na comemoração da Páscoa ou Sexta-feira da Paixão, alguma coisa assim, há uma autopunição violentíssima. Ela não tem esse caráter de se elevar, mas se equiparar à dor, tentar pagar a culpa…
Você tocou o ponto agora: como é que se paga? Nietzsche diz, na Genealogia da moral, segunda dissertação: o homem inventou para si um meio, um instrumento, para ter direito ao futuro, para trazer o futuro até ele. Ou seja, o problema da humanidade – se é que há um problema geral da humanidade, ele usa o termo atividade genérica da cultura – é fazer um homem capaz de prometer. O que é fazer um homem que seja capaz de prometer? É fazer um homem que seja capaz de antecipar uma qualidade que vai, necessariamente, expandir aquela sociedade, e efetuar essa qualidade. No momento em que ele efetua, ele paga a dívida – a dívida é finita e é material. Então a dívida, no fundo, é com você mesmo, aí que está o segredo todo. Esse livro do Nietzsche é o maior livro, de longe, de etnologia jamais escrito porque Nietzsche foi o primeiro a ver que na origem das sociedades a relação originária não é de troca, é uma relação sempre de dívida; então você gera blocos móveis de dívida. Por exemplo, uma família dá uma mulher para outra família, que se casa com um elemento daquela outra linhagem. Essa mulher é um crédito, essa linhagem fica com um vácuo em relação a aquela outra; e ela vai produzir um elemento tal que gera uma nova aliança. Então é produção de alianças através de blocos móveis de dívida. Mas em cada pagamento a dívida acaba. E você gera uma memória para a tribo, você gera uma memória ontológica. Isso que é uma superfície de registro inconsciente da tribo – a tribo tem aquela memória. É por isso que os deuses são vivos, os mitos são vivos, eles são essas memórias geradas nesses atos, nesses blocos móveis de dívida.
Mas os deuses não são credores, eles são meros efeitos de relações diretas entre os elementos dessa sociedade. Então a relação é direta, o crédito e o débito são numa relação sem intermediário, não tem atravessador – não tem Estado, não tem contrato, não tem nada.
Participante: não tem equivalência.
Não tem equivalente. O equivalente é exatamente aquilo que você prometeu. Então é o que você pode. Ser capaz de prometer é poder prometer, então você tem que se efetuar assim. O que ocorre então? O devedor é devedor de si mesmo e é credor de si mesmo. E a dívida para. Muito bem. Há um momento nas sociedades humanas em que os créditos começam a ser atribuídos a deuses; e alguns homens começam a achar também que têm mais créditos que outros, e que têm o crédito do outro. E começam a se destacar. É o momento em que a dívida se destaca do próprio devedor e passa a ser propriedade de um outro credor que não mais ele. Nesse instante você funda o Estado; o Estado é isso, não há outro Estado. O Estado é sempre isso.
E você funda já as condições da dívida infinita. Porque essa outra instância que se destaca vai ter o poder também de dizer se você paga ou não a dívida; e, evidentemente, para todo poder o que interessa é que você fique sempre devendo. É por isso, por exemplo, que as instituições sociais – aqui e agora, mesmo – sempre te oferecem crédito; e a vontade que elas têm não é que você pague em dia. A regra é que você seja inadimplente. Há uma fábrica essencial de inadimplência que é exatamente o que move a sociedade. Então a regra é a inadimplência e não o pagamento em dia. Porque na inadimplência você fica nesse inacabamento infinito.
Participante: qual a diferença dos blocos de dívida e a troca? Eu não entendo direito.
A troca tem o equivalente. A troca implica “eu te dou um copo, você me dá essa pedra” e achamos que uma coisa é equivalente a outra coisa.
Participante: naquele caso: a tribo dava a mulher… e não tem equivalência?
Não, porque desequilibra sempre, gera sempre um desequilíbrio. O que é o desequilíbrio?
O desequilíbrio é a própria condição de um novo movimento, de uma nova aliança. É isso que é o potlatch dos índios do Havaí. O potlatch é uma instituição que é exatamente o seguinte: uma tribo convida outra tribo para uma festa – ela dá uma festa abusada, generosa; só que no convite já está implícito, já há uma palavra de ordem, digamos assim, ou um ato incorporal , uma transformação incorporal, que obriga a essa tribo que aceita o convite a dar uma festa ainda maior. E nunca tem equivalente, nunca fecha o sistema; é uma sociedade aberta. Então você desequilibra as séries o tempo inteiro, é uma série em devir. E sempre no sentido de aumento de potência, de aumento de aliança.
Os Nuer fazem isso em relação às linhagens: quando eles vê em que uma linhagem está ex-tensa demais, eles cortam, rompem, mudam de espaço e tempo, e geram um novo segmento; e nunca se fecham num chefe. É assim que eles esconjuram o Estado, é um modo de esconjurar o Estado. Os Nuer, que são tribos africanas, do nordeste da África.
Participante: eles quebram uma linhagem?
Se a linhagem fica extensa demais – já tem o patriarca, um ancestral, aquela coisa começa a crescer, aí tem o primogênito… aí corta e vira outra. É o clinâmen na linhagem, o desvio: você quebra, você corta, você interrompe, você secciona as séries.
Participante: isso é crueldade.
Com certeza, é crueldade também, é uma postura cruel; não violenta, mas cruel. É por isso que Nietzsche diz: o pior sentimento inventado por essa máquina cristã foi a piedade. E aí que ele gera essa nova ideia: contra a piedade, a crueldade. O que faz a crueldade? É exatamente o sentido dos rituais indígenas, um sentido de fortalecer; é por isso que a educação tem que ser uma educação cruel e não uma educação piedosa. Está cheio de educação piedosa. Por que? Porque educação piedosa forma homens fracos. E por que? São Paulo já dizia: só os desvalidos, os fracos, os miseráveis, os que sentem dor são capazes de entender a iluminação divina; só esses vão ter o reino dos céus. É assim que ele diz, não é? O reino dos céus será dos desvalidos, dos miseráveis, dos fracos, dos oprimidos, etc. E há até um problema: será que o rico pode atingir o reino dos céus? Aí, se o rico for um filantropo, ele pode. É o bom burguês dos cristãos.
Então você vê que a máquina é a mesma, é sempre a mesma coisa, nós falamos sempre da mesma coisa. O que eles estão inventando, então, é a nossa famosa subjetividade ocidental; o sujeito ocidental nasce aí, emerge aí. E o sujeito vai ter basicamente dois regimes de signos aliados dele, que ainda não falamos e que espero poder falar até o final do curso: o paranóico-interpretativo e o passional reivindicativo; um é da imagem, outro é do símbolo; um é do Freud, outro do Lacan.
Participante: Melanie Klein e Lacan.
O que é importante marcar é que, neste sentido em que nasce um sujeito capaz, agora, de se unir a Deus, nasce também o sujeito infinitamente profundo; quanto mais ele se aprofunda, mais ele é capaz de trazer as verdades recônditas ao confessionário, e essas verdades sempre acabam revelando um pecado. É a sua dívida infinita. Isso que é a hermenêutica infinita do desejo – o desejo vira objeto de interpretação infinita. A matéria pura da psicanálise – a interpretação infinita do desejo.
Participante: isso é um falso infinito?
Um falso infinito. E a punição infinita é você encarnar o Édipo. É como dizer assim: “Cristo vive em mim”; “o Édipo também”. É a trindade – é o pai, o filho e o espírito santo. É a mesma coisa.
Participante: mas por que o desejo começa a ficar importante assim?
Existem vários problemas aqui. Foucault, já na sua última obra, vai trazer à tona uma matéria que é a das massas; ele vai dizer que a função do sacerdote cristão vai ser pastorear ovelhas, mas conhecer ovelha por ovelha – ou seja, conhecer o indivíduo. Já é uma invenção cristã, que depois as máquinas disciplinares vão realizar. O saber vai se dirigir ao indivíduo. Em Aristóteles não, em Aristóteles o saber é só da espécie, é universal; no mundo nosso, capitalista, que inicia no século XIX, já o saber é individual. Mas a invenção é cristã, a invenção já está lá: cada ovelha vai se confessar. O saber é individual, o controle é individual; então é fundamental, para que esse poder e essa máquina se expandam. Porque a vontade de São Paulo nada mais é do que uma vontade de poder; a vontade do sacerdote é essa, no fundo ele quer isso. E às custas de espalhar mais miséria, mais culpa, porque assim ele consegue triunfar. Desse modo ele vai expandir um desejo culpado e ele pode reinar melhor. Tudo explicado com a vontade do aumento de seu poder.
No caso eu chamei de vontade de poder e não de vontade de potência porque aqui já começa a ter a transcendência; mas eu posso até dizer que é uma vontade de potência.
Participante: sim, que se exprime assim, como vontade de poder.
Exatamente. Em qualquer ponto, tem uma vontade de potência. Mesmo na obediência: você obedece por vontade de potência.
Nietzsche tem uma obra que se chama Anticristo, mas que na realidade é anti-São Paulo. Porque ele diz que foi São Paulo que inventou o cristianismo.
Participante: Cristo devia ter se suicidado, não devia ter ido à cruz. Como Einstein, que inventou a bomba atômica.
Aí o que ocorre também é o seguinte: existe uma outra interpretação que eu acho até mais interessante, que é a do Lawrence, naquele texto O homem que morreu. O homem que morreu ressuscita, mas ele ressuscita de modo imperceptível; ele se esconde, se liberta dos seus discípulos, dos apóstolos, se liberta do seu povo e vai criar uma vida. Ele ressuscita como forma de agir. Aí ele reencontra a estética. Nietzsche diz: esse nazareno morreu cedo demais, só tinha 33 anos; se ele vivesse um pouco mais, aí ia dar nisso que o Lawrence fez com ele, ia ressuscitar como forma de agir. Ele ia matar essa forma, esse niilismo passivo, esse budismo dele, e talvez reencontrasse o zen, seria um zen budista, por exemplo. Seria mais interessante.
Então eu acho que os elementos essenciais nós trouxemos: fundação do sujeito; um mundo agora escatológico – que não é mais eterno como o mundo dos gregos, é um mundo criado ex-nihilo; o tempo trágico linear, não mais o tempo circular; o sentido final da morte como reencontro com o juízo de Deus; o nascimento do juízo; a instância da dívida infinita. Ou seja, são elementos que vamos estar trabalhando até o final do curso. Essa é diferença entre o mundo cristão e o mundo helênico; você vê que o mundo grego – mesmo os niilistas gregos – não têm essa malvadeza toda que tem em São Paulo, essa perversidade toda – essa depravação, Nietzsche diz.
Participante: você fala “São Paulo”, fica personalista. Tem um acontecimento aí que está emergindo, tem um devir aí, tem uma força aí. Senão fica “São Paulo”, “São Paulo”.
Participante: mas esse não é um personagem conceitual?
É. O sacerdote cristão. É que São Paulo é o modelo de sacerdote cristão; ele está gerando o modelo. Mas não é pessoal.
Participante: não é pessoal mas essa personalidade, essa pessoa ou essa personagem conceitual…
Só vinga porque tem um povo, porque tem uma massa de má consciência latente que ele vem e vai dar forma para essa massa.
Participante: é a mesma coisa se formos pensar, hoje, dos crentes. Os evangélicos estão se espalhando porque há uma massa.
Participante: por que dá certo?
Max Weber, que é um sociólogo, fez uma obra chamada Ética protestante no espírito capitalista. E ele diz exatamente que esse ideal protestante é o mesmo ideal do judeu que vê a pátria no dinheiro. É a mesma terra prometida. A terra prometida é um território centralizante, o tempo inteiro. No caso das seitas novas, dos evangélicos, o que tem? Tem uma retomada do ressentimento o tempo inteiro; dirigem as suas misérias à causa, o tempo inteiro, para fora; e há um estímulo imenso à luta de classes, um arcaísmo – já que estava quase morto, ressuscitam a luta de classes; e a recompensa. Só que há uma esperteza maior: como o deus evangélico geralmente é um capital que está crescendo, a recompensa é aqui e agora: quanto mais você acreditar e gerar em dízimos, mais você está sujeito a enriquecer e a se dar bem na vida. Então o prêmio é imediato, a salvação; existe um prêmio imediato agora que é o dinheiro. O prêmio imediato é prometido direto. Material. E isso retoma o sentido primitivo das religiões niilistas e monoteístas: você pega o Moisés no deserto, com aquela paranoia dos Dez Mandamentos que ele ouve lá, ouve vozes, etc. Ele cria aquelas leis para quê? Para unir o povo judaico e fundar o Estado judeu – na diáspora, no deserto. Então as leis de Deus, os mandamentos de Deus, nada mais são do que a constituição de um Estado, a fundação de um Estado, é tudo em nome de um poder. É sempre assim, qualquer religião. Mesmo São Paulo, falando do amor de Cristo: tudo é poder. É por isso que Lawrence diz: eles não são bondosos como eles pregam, porque eles estão o tempo inteiro julgando. Eles julgam, eles julgam, eles julgam; eles querem julgar, qualquer coisa é julgamento. Então toda a nossa máquina de guerra deve ser montada para destruir o juízo. E o juízo é impessoal. São Paulo é apenas uma personificação.
Claro, você tem daí os padres da Igreja. Tem vários. Você tem Clemente de Alexandria; você tem Orígenes; você tem Santo Ambrósio. Tem uma série deles que vão formar a chamada patrística, que são os padres após o período apostólico. Então você tem os apóstolos, os discípulos dos apóstolos – e São Paulo está entre os discípulos dos apóstolos – e depois você tem os padres. Aí vão ter os padres que formam interpretações alegóricas, que vão usar diatribe também como meio de proferir a verdade, de inspiração grega. Então eles vão se servir de todo o pensamento helenista para se fortalecer. Então vai ter uma parte dos padres que vão ser apologetas; eles vão fazer um elogio ao helenismo e incorporar o helenismo para melhor destruir o helenismo. E vão ter aqueles que vão ser contra – aí vão ter os gnósticos, os herméticos. E os gnósticos e os herméticos vão ser hereges depois. Vão ter os ortodoxos, que vão fundar os dogmas – o dogma da trindade – porque, antes, existe uma hierarquia entre Deus, o Filho e o Espírito e aí, depois, eles fundam uma substância única em três, que têm o mesmo status. Ou seja, há uma série de dogmas e vai se formando a instituição que vai gerando os heréticos…
Depois dos padres da Igreja, que vai até o século VI-VII, aí há uma interrupção; a filosofia que eles se apropriam muito é um estoicismo muito deturpado e fundamentalmente um médio platonismo e o neoplatonismo. Desde a origem Santo Agostinho incorpora muito isso, mas é o que domina até o século VIII. No século XII, Aristóteles é redescoberto através dos árabes, as traduções árabes de Averrois, Avicena, e há uma sedução tal, a partir de Aristóteles, a ponto de que Aristóteles vai ser chamado de O Filósofo – não vai ter outro filósofo, o filósofo vai ser Aristóteles: quando eles se referirem a “O filósofo”, eles estão se referindo a Aristóteles. E o tomismo inteiro vai ser fundado em cima de Aristóteles. Aristóteles vai estar a serviço da fé.
Aí já vai ser um novo momento do cristianismo – é quando surgem as universidades no século XII-XIII; surgem as novas exegeses, novas interpretações, as transcrições; enfim, uma série de elementos que vão gerar um novo impulso para a teologia. Aí a teologia realmente se desenvolve de modo a se fazer a prova da existência de Deus.
Participante: os copistas.
Exatamente. E há uma certa redescoberta do helenismo que vai mesmo se dar de modo super-radical com o Renascimento; mas ali já tem alguma coisa que rola nesse sentido. E aí o aristotelismo vai dominar e lapidar a racionalidade a serviço da fé. Então a razão vai reconquistar o seu lugar, a filosofia submetida à teologia. Depois vem Espinosa e dá o corte radical.
Participante: mas não é Aristóteles, não é? É a leitura de Aristóteles.
É a leitura e é Aristóteles também. Tem muito Aristóteles ali, sim. Porque, no fundo, Aristóteles é o modelo orgânico do corpo e da nossa consciência; é por isso que ele serve ao homem do ressentimento. Ele serve perfeitamente, ele é apropriado.
Participante: Aristóteles deu uma forma a essa força reativa. Como São Paulo, como outros. São personificações dessas forças reativas.
Com certeza. Então aí você vai ter uma outra tendência, que é conciliar razão e fé, que já vem dessa atitude de São Paulo que tenta lá ter uma aliança com os gregos, com os atenienses; depois a outra atitude é “não, a verdade cristã é única, essencial” e eles fazem a ruptura. Então tem esses dois extremos onde sempre se oscila – os padres, os teólogos, etc. E aí ora vai ter um papa que é mais favorável a uma coisa, ora vai ter outro que é mais favorável a outra, ora vai ter um rei que é mais favorável… e aí as disputas e brigas e toda a complicatio que é essa Idade Média.
Agora, a Idade Média é riquíssima; ao contrário do que imaginamos, a Idade Média não tem nada a ver com Idade das Trevas. Muito pelo contrário. Atualmente vivemos muito mais essa Idade do que a própria Idade Média – com certeza. E até a invenção da Idade Média é uma ficção, fixar um período lá com a queda de Constantinopla.
Participante: no processo terapêutico, o que é essencial o terapeuta trabalhar é o ressentimento.
Isso. Quanto mais ressentimento, mais eu ganho dinheiro. Análise infinita é isso, não acaba nunca. Por que? Porque introjeta mais ainda.
Participante: se ele quiser trabalhar com o seu cliente, é fazer com que essa pessoa consiga perceber que é uma pessoa ressentida.
Fazer sabe o quê? Exatamente o contrário do que a psicanálise reza. Dizem: “lembra daquele instante, daquela época?”. Tem que dizer: “esquece, é o futuro, cara, não memória de marcas”.
Participante: eu não estou falando da terapêutica psicanalítica.
A terapêutica não psicanalítica – ou fazendo a psicanálise entrar em um devir revolucionário – é exatamente fazer o contrário do que a psicanálise ortodoxa prega. É a contra-memória de marcas. Ou seja, você não vai encontrar nenhuma verdade que vai te libertar, lá atrás. Esquece aquilo e entre em devir.
Participante: ou fazer daquele fato um acontecimento.
Participante: aí tem a ver com o aion.
Sem dúvida. Isso.
Participante: mas eu acho que a questão não é o ressentimento, eu acho que é a potência.
Mas “fazer daquele trauma um acontecimento”… você só faz daquele trauma um acontecimento se antes disso você entrar em devir. Então você tem que saborear o devir, te dar algum sabor do que é o devir. Então fortaleça a faculdade do esquecimento – é a primeira regra e a regra final. Antes de você transformar aquele trauma, aquela marca, aquela fixação, em acontecimento, em devir novamente, já entre em devir aqui e agora. Porque o devir está aqui e agora. Não vá buscar o passado para daí entrar em acontecimento, em devir. A psicanálise tenta fazer isso, ela diz: “buscamos o passado para que aquilo vire um acontecimento e você entenda”. Se você disser que não é isso, eles vão dizer: “o que você chama de acontecimento é o que nós chamamos de interpretação do sentido do trauma”. Então a questão é o meio, a superfície, o aqui e o agora, o devir. Entrar em devir.
Participante: como você vê a questão da ancestralidade? Estou pensando nos rituais. O que muitas vezes nós chamamos de traumático está ligado a uma questão da memória, mas há a ancestralidade no sentido de uma memória em devir, também.
É como de canibal, índio que come cérebro, por exemplo. É a mesma coisa. Ou então a antropofagia. Acho que é isso a antropofagia do Mário de Andrade, Oswald de Andrade; eu nem li esse pessoal, mas deve ser esse sentido. Ou seja, você incorporar a potência do outro, não é isso?
Participante: é nesse sentido, a memória de um movimento.
No trauma, é fazer do trauma um acontecimento; aí você incorpora a potência que tem ali. Que força gerou aquele acontecimento, que eu estava de um jeito tal que virou um trauma? Então isso é uma coisa. Mas o que é fundamental é captar esse sentido que é a memória ontológica. É a mesma coisa que Proust fala em relação ao passado. Henry Müller escreveu uma obra chamada Plexos, Sexus e Nexus – a trilogia. No Sexus ele já diz: “aqueles sete anos de crucificação encarnada” – aliás, o subtítulo da obra é A crucificação encarnada – “aqueles sete anos de inferno que eu tive ali, são transmutados em obra de arte”. Ou seja, ele vai lá e reincorpora tudo como potência, ele resgata aquele passado, ele muda o passado.
Participante: ele ressubstancializa, ele muda a coisa.
Ressubstancializa, transmuta. É a transmutação do Nietzsche.
Participante: porque senão nós absolutizamos.
Com certeza. E até com os outros. Aquilo que Mozart faz com a sogra dele, quando ela começa a ter aqueles ataques histéricos; ele se inspira naqueles berros e faz uma ópera lindíssima. Então é a mesma situação conosco mesmos e com os outros; saber brincar com os outros. Mesmo que eles ainda queiram alimentar o ressentimento. Você vai fazer o quê? Eles não têm outra saída. Alimentar o ressentimento não tem sentido. É por isso que o humor é puro, ele é diferente da ironia; a ironia traz ressentimento, você ironiza – “eu sou superior”, “eu estou numa posição, no lugar da verdade”, então você ironiza, você debocha. O humor é inocente; e ele é criminoso, completamente assassino. Mas é inocente. O humor é inocente e assassino porque ele destrói o ressentimento, não há ressentimento que fique em pé, não tem como. Assassinar o ressentimento.
Participante: a solução é o “foda-se”.
Participante: o “foda-se” é perfeito. E o humor tem a ver com o “foda-se”.
Limpa a área. É como quando chega o cara discutindo: “ah, mas eu discordo da sua opinião”. Foda-se. Eu não sou dialético, caramba. Eu estou no devir, eu estou no sentido, eu não estou discutindo se é verdadeiro ou se é falso.
Participante: eu demorei muito tempo para entender isso, do debate. A merda que é o debate. Eu achava tão lindo debater!
“Não, mas você não entendeu bem a minha questão!”. Pois é, a sua questão não é a minha, eu estou em outra. Formule bem a sua questão que você já vai ter a própria solução que merece, segundo a sua formulação. Pronto. A liberdade está no problema e não na solução; é por isso que temos que saber o problema: do que se trata? Qual é o problema? Onde está o problema? Não é na solução. A solução já era.
Participante: quando você vai jogar o I Ching, você tem que formular a pergunta o melhor que você puder.
Participante: é por isso que você usa bem qualquer resposta.
Agora, no problema bem formulado, você nunca o esgota com a solução que ele tem.
Participante: essa palavra solução… não é solução. Abre portas, a coisa vai embora.
É solução no sentido de que naquele momento aquilo é acabado, é perfeito. Mas aí, quando retorna como problema, você já tem outra abertura.