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Formação Pensamento Ocidental – Aula 22/32 – Hume e o empirismo

24Luiz Fuganti

Eu vou fazer uma introdução rápida com relação a Hume e colocamos os elementos básicos para entrarmos na questão das instituições, da lei, do contrato, da liberdade; vamos ver se fazemos uma coisa interessante.

David Hume: um escocês do século XVIII; nasceu em 1711, morreu em 1776. Hume é classificado, na história da filosofia, como um empirista. O empirismo sofreu muitos preconceitos porque o empirismo, de cara, não acredita numa autossuficiência da razão; o empirismo, ao contrário, destitui a razão e a liga à sensibilidade, liga à experiência. A experiência seria o fundamento da razão e a razão empírica é uma razão geralmente convencional, não é uma razão universal, é uma razão ligada às convenções, fundada em hábitos. O sujeito é um resultado da experiência – e o objeto também. Então isso, evidentemente, é um princípio de um ateísmo radical, de um “irracionalismo” radical e de um imoralismo; acaba atraindo muitos inimigos e Hume sofreu isso na pele, apesar do empirismo de Hume ser um empirismo superior, digamos assim. Superior por que? Porque Hume não fica na experiência sensível, na experiência orgânica, na experiência material; Hume encontra modos de ultra passamento da experiência pela própria experiência. É o que Deleuze chamaria de empirismo transcendental. Então, encontrar algo na experiência que ultrapassa a própria experiência, que vem da experiência – não que vem de fora da experiência e que interpretaria a experiência, que limitaria a experiência.

Então Hume é um empirista, mas um empirista que faz a diferença no empirismo. Ele leva o empirismo à sua mais alta potência. O século XVIII não foi mais o mesmo depois de Hume, não tem como ser o mesmo após uma obra como a de Hume. Hume vai fornecer a matéria problemática para Kant fundar o sujeito na lei, no dever; e Kant acredita ultrapassar o empirismo assim e ultrapassar Hume assim. Mas, na realidade, Kant reduz de modo até caricato o empirismo e não entende, evidentemente, o que Hume está trazendo. Então nós vamos começar a estabelecer um embate entre Hume e Kant; depois nós vamos articular Hume com Nietzsche para destituir Kant. Então Hume e Nietzsche contra Kant – lembrando que Kant é aquele que soldou a lei ao desejo; a soldagem do desejo e da lei é obra de Kant. Isso que funda a ideia de homem ou de humanismo, em que está centrada toda a ideia de democracia moderna; quando Tony Blair fala que é essa democracia que foi atacada, tem essas bases: essa ideia de homem, o homem fundado na lei. Uma lei que seria independente da natureza e que te daria direitos esquizofrênicos, digamos assim: não importa o que você faça, como você age, como você estabelece as relações na sociedade, “a lei é a lei” – essa é a forma pura de dever como imperativo categórico, e o império da lei é primeiro em relação à vida. Essa ideia de Kant, evidentemente, não é a ideia de Hume; Hume faz exatamente o contrário: o que ele faz é dizer que a lei é completamente derivada e ele vai explicar porquê.

Então no século XVIII, a partir da herança anterior do século XVII, a partir de uma nova ordem estabelecida pela filosofia moderna que inicia com Descartes, uma série de sistemas vão se estabelecer, vão ser criados, mas Hume vai ser o primeiro a inventar um sistema sem nenhuma substância, sem nenhum princípio absoluto; o princípio em Hume é crença e paixão. Tudo que existe na natureza são paixões – ou desejos – e crença. Nada mais. Desejo e crença antecedem ao sujeito, antecedem ao objeto e antecedem ao conhecimento. A natureza funciona no encontro das paixões, no encontro de uma matéria pluralista, atomizada nas suas impressões, ou na impressão que cada paixão ou cada elemento imprime. Então o que temos, na origem de tudo, são impressões. E Hume diz: essas impressões são sinônimas de ideias; impressões ou ideias.

Hume diz: as relações entre essas impressões e essas ideias são exteriores à própria ideia.

Isso significa que a relação está na coisa, está na experiência, não está na ideia; a ideia não tem qualidade nenhuma, a única coisa que a ideia é, é essa impressão. E você tem, na medida mesma das impressões que uma paixão sofre, que um desejo sofre, a adjacência de um sujeito que ainda não existe – o sujeito é inventado na reflexão da impressão. Inicialmente você tem uma impressão de sensação, um plano de sensação: uma sensação impressiona, uma sensação modifica o espírito.

Introduzi um termo novo aqui: espírito. O espírito, na realidade, é a minha paixão ou o meu desejo. Eu sofro uma impressão; essa impressão é uma impressão de sensação, mas ela devém espírito, ela se torna espírito quando ela se reflete no meu desejo – aí vira uma impressão de reflexão. A impressão de reflexão é um efeito passivo da experiência que gera o sujeito: o sujeito é completamente passivo, é um efeito da experiência. Onde há uma reflexão já há o fundamento passivo – está se fundando o sujeito, sempre passivo, na reflexão da impressão. Então você tem uma impressão que é sensação – é impressão imediata, sensível; e essa impressão vira uma imagem na minha subjetividade. Ou seja, a subjetividade já é a reflexão da impressão, já é essa interiorização.

  • Participante: é reflexo.

Isso. Subjetividade é isso. Então o sujeito é completamente passivo, a subjetividade emerge daí ela é um efeito do encontro. Então isso é uma coisa muito importante para Hume porque o sujeito não existe a priori, é isso que ele está dizendo. Não há sujeito a priori – nem sujeito ativo, nem sujeito passivo. Você tem sempre o sujeito como resultado de um encontro, de uma impressão, e ele é necessariamente passivo, ele é um hábito.

  • Participante: ele é uma colcha de reflexos.

Isso. O sujeito acaba se tornando um conjunto de impressões refletidas; e esse conjunto de impressões refletidas vai adquirir uma unidade. A questão da unidade nós vamos ver depois, como é que ele funda essa subjetividade, como é que essa subjetividade emerge.

  • Participante: a tábula rasa?

Sim. Só que você não tem tábula rasa no sentido vulgar aqui porque você está envolto por uma pluralidade de impressão. Então essas impressões já não são uma superfície plana, rasa, limpa; são impressões. Já tem ali alguma coisa. E o que Hume diz é que essa alguma coisa é uma ideia. E essa alguma coisa refletida já é um espírito e já se liga a uma tendência ou a um instinto. Então nós somos feitos de uma pluralidade de instintos ou de tendências ou de paixões – tudo a mesma coisa: instintos, tendências, paixões ou desejos. O fundo da natureza é isso.

Hume quer atingir a natureza humana, ele não acredita que a psicologia seja capaz de atingir a natureza humana, a psicologia do espírito. Ele diz que é preciso fundar uma psicologia das afecções. E a psicologia das afecções é o encontro dessa matéria humana com a própria natureza; é no encontro, ou seja, nas afecções que essa matéria sofre, que eu começo a perceber o que é a natureza e o que é a natureza humana, fundamentalmente. E a natureza humana só se revela então nesses encontros, nessas afecções. Isso é fundamental marcar. Então ele joga a natureza humana para uma história; há uma história, não há uma natureza separada e nem uma natureza humana separada – nem a natureza do mundo, nem a natureza humana. As duas naturezas só são conhecíveis na medida em que se observa a afecção, o encontro, a impressão, a ideia que emerge no encontro.

Mas a ideia não tem qualidades internas a ela, a ideia é qualificada a posteriori, na relação. A relação não é objeto da ideia; a própria relação já é uma ideia. A relação é enquanto relação e ela também se reflete na ideia; mas não há uma interioridade da relação na ideia, a ideia não tem qualidades atributivas que diria “isso é aquilo”, “aquilo é aquilo outro”. Em Hume você não tem “isso é aquilo”, você não tem a velha lógica atributiva estática, você não tem a velha distribuição sedentária do ser; em Hume você tem a conjunção “e”, a natureza é “e”: “isso e aquilo e aquilo e aquilo outro e …”. A natureza é conjuntiva e não atributiva.

Se ela é conjuntiva, ela é relacional, ela é inteiramente relacional; mas a relação tem realidade própria, a relação não é a instituição de um sujeito em relação a um objeto. O sujeito e o objeto já são instituídos na própria relação. A relação tem realidade própria ontológica, fora da razão. É isso que está sendo dito. A metafísica ocidental o tempo inteiro falou que a relação é um ser de razão, ela é interior à ideia; o que ele diz aqui é que a relação é exterior às ideias. Há um fora, Hume atinge um fora da razão; e esse fora da razão vai ser fundamentalmente associativo. O que ele chama de associação? Ele diz: são três princípios ou qualidades da relação. A causalidade, que não vem de uma razão, que existe realmente na própria natureza; a semelhança e a contiguidade. São esses três princípios que ele vai articular.

A tendência, a paixão ou o desejo se duplicam ou se qualificam na medida das reflexões de impressão; nessa qualificação é que emerge a subjetividade passiva. O sujeito é formado, inteiramente produzido na experiência; a partir da experiência é que ele pode reagir enquanto sujeito. Se não tem nenhuma natureza humana prévia às relações, aos encontros, às afecções, a natureza é construída, ela é produzida; e, na medida em que ela é construída, que é produzida, ela tem alguma relação com o artifício, com o artificial. Natureza e artifício em Hume na realidade não se opõem. E Hume vai dizer que as tendências, as paixões ou o desejo são parcialidades, mas nunca egoísmos; o ‘eu’ é um resultado absolutamente secundário e vem depois, inclusive, do sujeito.

Ele diz que toda a natureza é parcial, tudo são parcialidades, conjuntos de parcialidades ou de tendências parciais. No caso da natureza humana, a tendência ou a parcialidade tende a se efetuar, a se realizar de alguma maneira; a efetuação de uma tendência é sempre uma paixão, sempre parcial. Isso põe, de saída, um problema – problema da cultura, da sociedade, da política, articulado com o sujeito moral: como você fazer com que as paixões, com que essas parcialidades ultrapassem o seu estado de parcialidade, os seus limites reduzidos a aquela situação de isolamento do sujeito ou de um indivíduo? Então haveria, diz Hume, uma tendência – que já é um desdobramento da própria natureza – a se produzir uma aliança ou uma convenção ou uma regra geral que ultrapassa o próprio dado da experiência.

Ele diz o seguinte: as tendências ou as paixões funcionam por simpatia; ou melhor, haveria dois níveis ou dois estágios de efetuação dessas naturezas: um, no plano mais imediato e parcial das paixões e das tendências, e outro que acaba estendendo as paixões e as tendências num plano um pouco maior – ainda que esse plano seja limitado. Exemplo: o indivíduo que efetua as suas paixões e a família desse indivíduo, ou o grupo desse indivíduo, ou um bando, ou uma aldeia. Diz Hume: tudo funciona por simpatia; na medida em que eu me comovo com o aniquilamento de alguém próximo, é porque eu tenho simpatia por esse elemento próximo; e a simpatia, evidentemente, nasce de uma conjunção de elementos, ela nasce de uma expansão de paixões ou de tendências.

Acontece que você não tem uma sociedade simplesmente com uma coleção de simpatias, a sociedade precisa de algo mais; as paixões e as simpatias se opõem em sociedade, entram em conflito em sociedade, entram em contradição em sociedade – ou não. Você tem essas possibilidades, você tem essa divergência ou convergência, dependendo do modo como as paixões se organizam ou se efetuam. Haveria, diz Hume, um princípio gerador de regras, mas que são regras de passagem, que são regras de situação, que são regras de ocasião, e que fazem da lei um elemento derivado do modo como você efetua as paixões ou estende a simpatia.

Há um fenômeno muito interessante em relação a isso que é o seguinte: o homem que não estende as suas paixões, que está limitado ao mais imediato no tempo e ao espaço mais restrito, pode amar infinitamente mais o seu gato ou o seu cachorro do que a humanidade feita de 50 milhões de pessoas, sei lá; ele é capaz de chorar e lamentar muito mais a morte do seu gato, do seu cachorro, do que chorar e lamentar a morte de milhares de pessoas mortas numa catástrofe, por exemplo.

Isso é um fenômeno que acontece em função da extensão ou da amplitude das paixões e da simpatia.

Viver em sociedade, de acordo com Hume, é algo inteiramente positivo desde que a sociedade crie, invente, os meios para mediatizar as paixões, ou as ações, ou os interesses, ou as tendências. Mas mediatizar no sentido de efetuá-los e não de reprimi-los; mediatizar no sentido de fazer com que eles se tornem ativos, ações realmente, ações positivas que façam crescer e expandir, e não no sentido de dizer “não, eles têm algo de negativo, eles têm algo de contraditório, eles têm algo de faltoso”. Aqueles que acreditam, diz Hume, que a lei é primeira – ou que o contrato, na sociedade, é regido por uma lei e a lei é primeira – necessariamente acreditam que as paixões, que as tendências são elementos que devem ser reprimidos, ou contidos, ou controlados, ou limitados.

Essa visão da lei acredita que há um direito independente do seu conteúdo, um direito inteiramente inscrito numa pura forma de contrato; então se estabeleceria um contrato entre pessoas e esse contrato, que é regulado por uma lei, impõe direitos e deveres em função do seu cumprimento – é necessário se cumprir o contrato, regulado de acordo com aquela lei, mas os direitos e deveres dizem respeito única e exclusivamente ao modo legal como foi estabelecido o contrato. Então a lei seria uma instância que atribuiria, a priori, direitos. Então o indivíduo que faz parte de um contrato cria direitos a priori, independente dos conteúdos que atravessem ali; os conteúdos seriam formatados por essa lei a priori.

Hume diz: isso é um equívoco extremo porque, na realidade, se passa de modo absolutamente inverso; na realidade a instituição é anterior à lei e ao contrato. E a instituição não é uma forma de governo ou de Estado, a instituição é sempre uma instituição social, é sempre uma conjunção de meios, de mecanismos, de elementos artificiais ou de artifícios – que fazem da ação passional e parcial uma ação social e que eliminariam a contradição entre o indivíduo e a sociedade. Simplesmente fazem com que a ação ou a paixão individual se estenda. Toda paixão, na instituição, é imediatamente social; não haveria então um conflito primário do indivíduo com a sociedade.

A ideia de Hobbes, aquele mito de que o homem, estado de natureza, está numa guerra de todos contra todos e que tudo o que vale são as paixões individuais que geram a guerra, a discórdia, a diferença; e que esse estado de direito natural precisaria cessão a um certo centro, nós cederíamos a algo uma parte do nosso direito natural em troca de uma regulação que viria de fora, que seria dada pelo Estado. Essa regulação nasce, segundo Hobbes, de uma concessão do indivíduo em relação ao direito natural e ele conquistaria o direito civil a partir de uma atribuição de organização a uma instância exterior à sociedade civil que se chamaria Estado. Então o Estado teria a função de reprimir, de limitar, de impor barreiras a essas paixões individuais, ao que estaria ligado ao direito natural; e em função dessa submissão e dessa repressão o indivíduo obediente – agora o sujeito assujeitado, o sujeito obediente – acaba conquistando o direito de viver em sociedade, na sociedade civil. Então a sociedade civil seria fundada a partir de uma repressão oriunda do contrato; um acordo primitivo social – os indivíduos entre si concordam em se abster de uma parte de seus direitos naturais e atribuiriam isso a uma instituição organizadora comum que seria o Estado. Logo, esse tipo de visão acredita que a natureza é faltosa, que a natureza humana é passional, é parcial e por isso faltosa. É eólica, no fim.

  • Participante: tendenciosa.

Sempre é tendenciosa, mesmo em Hume é; é interesseira, sempre é. Porque Kant vai querer que você atinja uma pura forma desinteressada, que é a forma da lei. Em Hume não, sempre tem o interesse. Mas ele diz que o interesse ou a tendência ou a paixão não é eólica, é parcial. E parcial não é doente, não é devedora, não é negativa; parcial é apenas que está limitada a uma parcialização de efetuação. Mas a sociedade só é sociedade quando esses indivíduos se encontram e criam uma instituição comum, ou instituições comuns; inventam artifícios, inventam elementos que são convenções e a partir daí é como se eles filtrassem as suas ações ou as suas paixões. Eles dão um sentido não imediato a aquela paixão parcial, eles dão um sentido já social, eles estendem a paixão.

Então a instituição seria anterior ao contrato e à lei; não há contrato na base da sociedade, há uma vontade, há uma tendência em expandir-se. É completamente diferente de uma coisa que regula a partir do nada ou regularia a partir de fora dos indivíduos envolvidos; são os próprios indivíduos que geram a vontade de instituição. Então a instituição seria inteiramente positiva, neste sentido, e não haveria nenhuma contradição entre instituição e paixão – as instituições são apaixonadas, são interesseiras, só que o interesse não entra em conflito com os outros interesses individuais; os interesses se conjugam, há uma conjugação de interesses. Há, então, uma invenção de regras ou de meios; a instituição, no fundo, é a regra geral que ultrapassaria a lei ou que é anterior à lei e que rege a justiça social. Só há justiça social na medida em que essa sociedade criou instituições que dão fluxo, dão vazão às suas paixões.

Igualzinho à sociedade americana, ou às sociedades árabes, ou às sociedades islâmicas, ou à sociedade judaica (risos)! As sociedades em geral, as sociedades que existem aí como modelo, mesmo contra um modelo – o Islã contra o ocidente – funcionam sempre do mesmo jeito: a lei e a transcendência de fora impondo às paixões um limite.

  • Participante: as instituições acabam sendo como que vórtices de desejos; mas haveria possibilidade de, numa mesma sociedade, haver vórtices, instituições diferentes que se antagonizam?

Neste sentido, então, alguns desejos, algumas forças seriam constrangidas para que houvesse convivência. Então haveria uma poda.

Haveria uma poda, mas essas instituições já sofreram de alguma transcendência, elas já foram invertidas de alguma maneira. E elas sofrem de alguma transcendência a partir da imanência pela limitação da sua simpatia. O que é você ultrapassar a paixão ou a simpatia local e atingir uma simpatia não universal, porque isso é difícil de falar de simpatia universal em Hume; mas na medida em que a natureza, em estado de sociedade, exige – para se manter coesa, ativa e expansiva – essa conjunção de elementos, essa expansão das paixões até se tornarem diferenças que compõem na sociedade e não que se antagonizem. Então haveria uma incapacidade, uma limitação, na medida em que você não encontra uma simpatia superior a aquelas simpatias locais que se antagonizam; haveria aí uma demanda de uma instituição que ultrapasse as limitações dessas instituições locais, menores ou mais limitadas. Mas não é uma universalização – ao contrário, é uma imanência que faz com que aquelas ações mediadas já por essas duas instituições, ações de um conjunto social e de outro conjunto social, sejam como que filtradas por uma instituição mais afirmativa, digamos assim, que faça com que essas ações não sejam mais antagônicas, mais diferenciadas.

  • Participante: aí no caso seria a expressão de uma lei, ou de leis, ou de regulações possíveis para que essas instituições coabitassem no mesmo espaço social.

Regulações.

  • Participante: mas são regulações que emergem do conflito, elas não surgem a priori até para regular e coibir o conflito antes de existir. Elas emergem do conflito.

Isso. É que esse tipo de instituição ativa ou afirmativa não supõe que a natureza passional é devedora, é faltosa, é culpada; supõe apenas que a paixão precisa ser reorientada, dirigida de modo distinto. O que faz a sociedade americana, por exemplo? Viva a diferença! Que diferença eles respeitam tanto? O que é ser politicamente correto, ecologicamente correto, para a sociedade americana?

É ser democrata, não é isso? Ou seja, respeitar o direito dos outros. Mas todo mundo tem um direito a priori, o indivíduo tem direito a priori a partir do momento em que ele está ligado a lei – é a lei que dá o direito a priori para o indivíduo, independente da postura ética dele em relação à vida. É como se a lei dissesse tudo para a vida, a vida não tem que dizer nada; a lei está ali dizendo que aquele estado de coisas é o que nos leva a convivermos pacificamente, democraticamente – todo mundo tem liberdade de escolha para isso e para aquilo. Esse tipo de falseamento da natureza humana é uma ilusão de transcendência vinda da lei.

Mas quem institui a lei transcendente, se não é sempre um poder de fora? É sempre ao poder que interessa instituir uma forma independente da vida, isolada da vida. Então aí você pode, em nome dessa forma, falar em nome de um bem comum – porque essa forma é o bem comum; se você abstratamente obedecer a esse bem comum, você estaria suficientemente nutrido de segurança, de paz e de opção de diferença, você seria livre para escolher entre isso e aquilo. Só que esse tipo de lei – a atual, por exemplo, que é a lei axiomática do consumo – não te oferece uma escolha de efetuação de ação, de efetuação de tendências, de efetuação de diferença mesmo que essa diferença seja uma diferença conflituosa; e então essa axiomática simplesmente desviaria essa ação para que tivesse um mínimo de sociabilidade; então ela filtraria a ação e a ação se torna social e expansiva. Não, ao contrário, o que essa axiomática faz, o que essa forma pura faz, é dizer assim: a tua ação só é importante, ela só deve ir até o momento em que ela se separa da própria produção ou do efeito dela mesma. O efeito, ou o produto da ação ou da paixão ou da tendência se separa do indivíduo e é apropriado por essa pura forma – que, evidentemente, não é nada, é uma ficção, mas por trás dela existe algo, existe uma força dela que de fato se apodera. E só te devolve isso em forma monetária.

Então você fica separado do que você pode necessariamente; há uma separação já imediata e invisível, você vive já no plano da lei necessariamente, você já é kantiano necessariamente – mesmo sem saber quem é Kant, sem saber o que é a lei soldada ao desejo, você já está no campo. É essa diferença que os americanos tanto defendem, que a Europa defende. No fundo é uma falsificação absoluta. E o que eles chamam de democracia é uma capitalcracia, é o poder do capital; onde está o demos? Demos era uma parte da sociedade grega. O que eles querem dizer com: “ah, você não pode levar etimologicamente a palavra porque realmente neste sentido não existe mais a democracia”.

Mas o que seria a democracia? Todo mundo é livre para efetuar as suas diferenças desde que não fira a diferença do outro. E o que fere a diferença do outro? Quando você interfere no direito à propriedade, no direito ao consumo, no direito ao mercado – uma série de elementos que, no fundo, funcionam independentes da própria sociedade, ainda que precisem da sociedade para que ela dê vida a esse sistema. Mas o sistema se separa da sociedade. Neste sentido que ele é transcendente.

Dá uma ilusão de imanência porque ele é invisível, ele é imperceptível, ele já está em nós. Mas é uma rede invisível que separa a vida do que ela pode. Aí você diz: “bom, então essa ideia de democracia não expressa os desejos porque os desejos devem necessariamente ser regulados por uma lei, devem necessariamente ser regulados por uma cultura, por uma castração ou por algum elemento que limite a sua desmesura – porque necessariamente é uma desmesura e essa desmesura seria fonte de tirania, de arbítrio, de atos como esses que assistimos nos Estados Unidos”. Ou seja, o desejo teria uma monstruosidade imanente a ele mesmo, ele teria uma porção de morte imanente a ele mesmo que, se não é regulado, é capaz de levar a uma tirania absurda, a uma tirania estúpida, a uma tirania monoteísta, etc. Que a democracia é a força do Bem em relação a essa força do Mal que seria uma tirania fundada num Deus ou numa força onipresente, onipotente, onisciente, etc. – mesmo que na forma de um homem, na forma de um Estado.

  • Participante: como é que fica quando começa a surgir o pensamento hegemônico? A figura do império, por exemplo. E a pergunta que eu faço, que toca numa coisa que você sempre fala, que a morte nunca vem de dentro. Mas no império, toda morte veio de dentro.

Ela nunca vem de dentro, enquanto contradição interna. O negativo é sempre resultado de um mau encontro. Todo encontro se dá numa pura forma de exterioridade, ou melhor, no Fora. Nenhuma potência ou essência, que subsome elementos ou partes na existência, traz a morte dentro de si, mas a encontra como decomposição de sua relação singular com as partes que subsome, as quais irão se compor com outras partes sob outras potências. As partes são existências vindas do Fora dobrado numa composição ou encontro e que retornam para o Fora sob novas dobragens. Mesmo num império, mesmo no caso do inimigo interno. O que é a figura do inimigo interno? O inimigo interno simplesmente se apodera de um elemento que já é inimigo da vida, já é inimigo interno; e volta o elemento contra ele mesmo. O que se chama de inimigo interno já é na verdade o próprio inimigo exterior que circunscreveu um campo de interioridade como superfície rebatida, isto é, voltada contra a vida, sobre a qual o poder se exerce. Isso que é o inimigo interno. Em outras palavras, o Estado, ou o Império, é quem gera a falsa ideia de interioridade. Na verdade, a interioridade é um efeito de uma dobra reativa do poder. E toda dobra é dobra do fora que cria o dentro. Mas o dentro jamais se reduz a interioridade. Todo Dentro é uma memória ontológica que expulsa qualquer negativo. A interioridade que traz a morte interior não passa de uma ilusão gerada pela separação fictícia. Ilusão que instaura uma fenda topológica intransponível entre o dentro e o fora separando a vida do que ela pode: dobrar o Fora.

A natureza é completamente positiva; o estado de natureza e o estado de sociedade podem ser contraditórios na sua relação se eu ficar limitado, se os indivíduos que entram numa relação social se limitarem às suas paixões parciais. Mas não é que na paixão parcial já existe o Mal; o Mal é não levar as paixões até onde elas podem ir, é deixá-las achatadas, é deixá-las reprimidas; é reduzir a vida, a natureza e a sociedade a essas efetuações locais.

A tendência da natureza é a expansão, mas você só expande através de uma membrana seletiva, você tem que fazer seleção para compor e para fazer com que as paixões, ao invés de serem um elemento antagônico a outras paixões, sejam diferenciais e elementos que se compõem. Aí entra o papel das instituições, aí entra o papel das regras de passagem que são artifícios, hábitos ou convenções que os homens inventam segundo a situação, e não a partir de uma lei de fora que regularia isso. A lei de fora é sempre a lei de um grupo que não expande, que limita e que vê o outro grupo como uma ameaça. É sempre aí que a lei vem de fora. E o contrato a mesma coisa: a ideia de contrato, nesse sentido, é uma ideia exterior e transcendente. Então o contrato fundado numa instituição ativa, na realidade é uma convenção, é uma composição de expansão, e não uma submissão a uma regra que limitaria as paixões. É o contrário, ele é um acordo de expansão e não de limitação. Ele não está pressupondo que a minha paixão é irracional em si mesma; ela é irracional se ela ficar limitada, se ela ficar naquela parcialização. Irracional! Ela tem a razão que ela merece, só isso, ela tem a razão limitada, estreita.

O que fazem esses impérios, esses Estados? Cada um tem a sua razão, limitada à sua visão estreita. O que é o islamismo, o que é o cristianismo e o que é o judaísmo? Vieram todos do mesmo monoteísmo e já fizeram lutas, guerras, brigas sanguinárias, absurdas, durante séculos e séculos e continuam até hoje. De onde veio agora essa explosão de terror? A questão ligada, claro, ao fanatismo religioso; a disputa entre israelenses e palestinos; e a visão do Islã contra o ocidente – o Islã contra o judaísmo, o Islã contra o cristianismo – porque, no fundo, o judaísmo e o cristianismo são muito próximos. Mas o Islã o que é, também? É a mesma herança, eles são primos. Israelenses e árabes são primos. No fundo são tribos locais, ainda, que acreditam que a verdade está naquela localização, naquela expansão limitada das suas paixões. No caso dos Estados Unidos, você tem o símbolo do capital, você tem o centro do capital localizado num território -com uma expressão limitada, com uma expressão política e com uma expressão financeira – que regula todos os mercados mundiais, regula tudo. Agora, dois ou três dias sem as bolsas de Nova Iorque, as outras bolsas nem funcionaram no dia seguinte, a do Japão, se não me engano, não funcionou; aqui em São Paulo funcionou e foi lá em baixo, afundou. Aí subiu ontem, porque tinha afundado muito. A referência ficou Londres, que são irmãos: Londres é os Estados Unidos na Europa.

Então, regulando, você tem um capital que diz a hora; ou seja, o Estado não é mais igual aos velhos Estados despóticos que sobre codificam os fluxos sociais; agora são os fluxos do capital que impõem uma regulação aos fluxos sociais. É o capital que dá a ordem; e a ordem do capital é a ordem, evidentemente, democrática. Tem que ser democrática porque é onde vende mais, é onde ele acumula mais, onde ele funciona melhor. Por que na América Latina, depois de um certo momento, eles, que tinham posto, instalado as ditaduras aqui – que era o combate contra o comunismo, contra um Estado que sobrecodificava as relações sociais de capital -, no momento em que vence, em que elimina o perigo, começam a derrubar os ditadores? Eles põem os ditadores e derrubam os ditadores; agora o Estado é democracia, porque na democracia o capitalismo funciona muito melhor. A democracia é idêntica à tirania – idêntica, não tem o que tirar nem pôr. Essa democracia é uma tirania.

Aí está o cinismo da luta do Bem contra o Mal. Que democracia é esta? É a democracia do lugar e do tempo onde o capital acumula mais rapidamente. É essa axiomática. Onde não funcionar essa axiomática, é necessário intervir, se aliar a grupos locais para tomar o poder e se apoderar depois do próprio grupo que tomou o poder – como eles tentaram fazer com o regime Taleban do Afeganistão.

  • Participante: no Oriente Médio a mesma coisa, ele está se apossando das paixões locais para um outro uso.

O Kuwait foi isso: inventaram um Estado, cujos membros nunca existiram como nação ou povo. Antes da Segunda Guerra Mundial não existia o Kuwait. É que o americanismo e os poderes ocidentais precisavam alargar as suas fontes de energia. E o que era então o Oriente Médio?

Só petróleo, apenas isso. Aí Irã e Iraque: muito bem, Iraque contra o Islã, que então encarna-se na figura dos aiatolás. Aí o Império americano apoia o Sadam, apoia o Iraque que, daqui a pouco “venceria a guerra contra o Irã” (entre aspas porque não venceram nada). Eles plantam e colhem. Aí o que ocorre? No momento em que não precisam mais da aliança com o Sadam Hussein, eles vão tentar impor alguma polícia ao Iraque, o Iraque se volta contra e entram em choque – guerra contra o Iraque. E assim vai. Fizeram isso com o Khadafi. O século XX inteiro foi isso, foi essa história. Então o que ocorre? Onde a ordem da axiomática e da acumulação não se impõe, eles vão dar um jeito de minar, de se infiltrar. Eles são a grande orelha mundial: ouvem tudo, eles se infiltram em tudo, eles violam tudo. Aí, depois, os idiotas ficam dizendo “morte ao Pinochet! ”. Sem dúvida, Pinochet é um carrasco, é um cretino, mas Pinochet é um fantoche. Morte a quem? À CIA, ao FBI. O que é o Pentágono?

Quer dizer, é uma máquina impessoal, nem é o Bush. O Bush é um débil mental, é um fantochezinho que está lá para falar as bobagens mesmo que ele fala. Por que o povo americano elege aquele tipo de coisa? Elegeu simplesmente a máquina republicana – que tem umas diferençazinhas em relação à máquina democrática, mas que é mera nuance, é mera discordância de ritmo de avaliação, só isso; a natureza é absolutamente a mesma. Então não interessa se o Bush nunca visitou a Europa, se ele é um sujeito ignorante que não fala nenhuma língua. Isso não interessa. Tanto é que agora eles falam um monte de bobagem, mas quem está no comando é o general, que é outro débil mental, mas a logística ele tem, a máquina ele tem.

Então, no fundo, o que é o cinismo que se estabelece aí? O cinismo é você, aliado ao capital, você pode escolher. O capital te fornece uma moratória provisória na sua dívida, desde que você esteja servindo a ele. Então aí sim você atinge o Estado democrático. Aí você vê lá 20 mil pessoas sendo mortas – geralmente bem estabelecidos, com belos salários, gente bem formada, e você lamenta: “olha que desperdício”. Todo mundo muito refinado, todo mundo bem informado. Então há uma comoção mundial fantástica e a mídia inteira dizendo “olha o absurdo, olha o horror”, e condena, e condena, e condena.

O que adianta condenar, se aquilo que levou a esses fatos está invisível e está sendo realimentado e produzido o tempo inteiro? Ao invés de se buscar a causa real: como é que se produz um terrorista, um sujeito disposto a morrer, um kamikaze? Como é que se inventa isso? Vem de onde?

Do demônio, do Mal? Existiria uma instância do Mal? É a natureza que fabrica isso; é a sociedade, que faz parte da natureza – uma sociedade estreita e limitada – que produz o tempo inteiro terroristas kamikazes. Porque a morte não vem de dentro deles, eles não querem morrer, mas eles chegam num ponto tal que tanto faz, chegou num ponto em que não interessa mais. Quer dizer, interessa que – uma vez que eles se aliam a uma série de mitos também – “quanto mais gente eu levar comigo na hora da morte, mais pontos eu ganho de Alá”. Olha que máquina louca que esses caras inventaram!

É a mesma máquina pitagórica-platônica da transmigração das almas; e é uma máquina hinduísta também. É o mesmo mito da reencarnação: você pode ascender, na reencarnação, você vai se elevando na medida em que seus atos são mais puros e mais justos.

Aos olhos de um sujeito desse, se ele fizer um ato e levar um máximo de gente, Alá vai se regozijar ao máximo e vai querer mesmo elevá-lo a um estado superior. Então eles vão para a morte sabendo – evidentemente na ficção, mas aquilo lá é absolutamente real para eles, acreditando mesmo – que eles vão se elevar. E aí você vai dizer assim: “isso é condenável”. Não se trata de moral, de Bem e de Mal; trata-se de saber como é que se produz um negócio desses. É um monstro? É, mas o monstro não vem do nada. Como é que se produz isso?

Então é esse cinismo de não se respeitar as diferenças. Ao invés da instituição ser um filtro que leva a diferença a se efetuar plenamente e se compor com outras diferenças, as instituições são fontes de contradição o tempo inteiro. Se eu entro numa instituição, se eu me adequo com uma instituição, eu tenho que sofrer, necessariamente uma castração. É isso que a instituição reza, porque a instituição está submetida à lei e a lei, necessariamente, é castradora. No fundo há democracia, sem dúvida: todos somos iguais – na castração, na impotência.

  • Participante: então só seria possível pensar uma ética planetária a partir de uma afirmação total das diferenças, e que as instituições tivessem possibilidade de regras, como leis de passagem, entre elas.

Sem dúvida.

  • Participante: em sociologia se discute muito essa possibilidade de uma ética planetária que pudesse enxergar certas coisas que estão acontecendo – a castração das mulheres na Namíbia, os chineses mortos na China…

A venda de crianças na Índia.

  • Participante: … como uma questão planetária.

Agora já é planetária.

  • Participante: mas eu fico pensando até que ponto é possível colocar isso como pauta a ser discutida sem levar em consideração aquilo que gerou aquilo existir; vamos discutir a castração dessas mulheres como se isso fosse uma questão que dali surgiu e que dali pode surgir uma forma de acabar.

Mas é por isso que é absolutamente urgente e necessário compor as várias sociedades de uma forma ou de outra, inventar meios, criar meios; porque a morte não vem de dentro, mas no encontro a morte é gerada. Tome-se um louco como Bush: imagine se agora o pai dele estivesse do outro lado – coexistências de idiotias em poderes com máquinas de destruição similares – destruiriam praticamente o planeta. Então a questão é a seguinte: temos câncer, ou vírus, inimigos internos. E quem são os inimigos internos? São todos esses que acirram as paixões em nome de um Bem em oposição a um Mal. São sempre esses. Se, ao invés de você dizer “eu vou retaliar, agora começou a guerra no século XXI, é a primeira guerra, etc.”, você percebesse o que faz, o que fabrica situações de inimizades e de produção de morte, você simplesmente inventaria instituições a serviço das necessidades das paixões. Aí sim você redireciona as paixões e faz delas potências de vida e não de morte.

Assim você elimina a paranoia e não precisa instaurar nem um Estado policial. Porque agora é o seguinte, agora vocês se preparem, até o Fernando Henrique: vão autorizar a escuta telefônica; eles acham que o Estado policial vai ajudar, vai melhorar; vão se defender do quê?

Não pensam a causa, então cada vez a paranoia é mais presente, porque a paranoia é produzida na mesma medida em que você afirma cinicamente que a democracia é isso que está aí, quando isso que está aí cada vez esmaga mais e mais e mais as diferenças. E você de vez em quando produz um louco. Os americanos têm os loucos que, de vez em quando, detonam as suas próprias crianças nas escolas; gente com 7, 8, 10, 12, 15 anos! Já formam psicóticos dentro do sistema deles, eles é que geram isso. Pode ser que o inimigo seja interno.

  • Participante: a bomba que explodiu na porta do World Trade Center: foi um americano.

E aquele outro em Oklahoma, foi um americano também. O que é ultradireita? A ultradireita é uma aberração dessa direita central. Aí fica essa coisa da comoção nacional e mundial. Alguém disse esses dias que reduzindo o mundo a 100 pessoas, parece que os 5 mais ricos eram americanos, tinha 5 também universitários, 57 mulheres, 43 homens; e 80% passam fome. 80% da população mundial vive em estado de miséria. Quer dizer, que democracia? Isso é respeito à vida, isso é respeito à diferença? Enquanto não tiver esse respeito, todo mundo pode se preparar. Aí “não temos nada a ver”, “gente inocente que morreu” – gente inocente que morreu está usando o mesmo espaço do planeta e sendo conivente com isso. Então somos coniventes com isso. Agora, dizer que somos culpados? Não é isso, não sou cristão para dizer “a culpa é minha”. Mas temos que estar presentes. Não se trata de culpa e de inocência, não se trata de Bem e de Mal. E aí você vê quanta gente morre de fome a cada minuto. “Ah, mas é porque é indigente, é miserável, então não conta; aqueles eram bem-nascidos, eram bem resolvidos, bem-sucedidos, trabalhavam no World Trade Center.

  • Participante: se acontece alguma coisa assim na Índia, vai para o noticiário um dia e acabou.
  • Participante: mas os caras destruíram o ícone do capitalismo.

Nesses dias eu ouvindo a CBN, parecia que era aquele americano mais moralista, babaca, falando através da CBN. Aí que você vê direito o que é a função da linguagem ou da comunicação ou da mídia ou da imprensa. A mídia diz o que você deve pensar ou acreditar; não é que aquilo é verídico ou não, aquilo é o que você deve pensar. Hoje eu tive uma discussão com uma pessoa que não se conformava porque eu dizia que eu não era uma questão de Bem e de Mal ou de inocente ou de culpado: “imagina, morreu um monte de inocentes! ”. Não entra na cabeça da pessoa e aí ela pensa que você está do lado do terrorismo. Essa história de Bem e Mal é um horror. Olha o “Bem” que o Bush representa. Nesse sentido, viva Sade; Sade optava claramente: o Mal contra o Bem. Sade fazia opção pelo Mal. Se não tiver mais opção nenhuma mesmo entre os fanáticos do Islã e o Bush, não sei não. É jogo duro.

Eu acho que a questão que Hume traz de interessante é essa, ele traz uma potência fantástica para pensarmos uma sociedade absolutamente positiva. A sociedade não necessariamente é fonte de guerra, de conflito, de violência. A violência só é gerada na medida em que as paixões ficam limitadas à sua estreiteza, à sua parcialidade. Mas a sua estreiteza e a sua parcialidade são só questão de ocasião, de oportunidade, de atmosfera; e a instituição seria uma máquina, um mecanismo, um instrumento, um meio para elevar as paixões. Então aí você atinge um sentido de justiça, e aí você vê a função do advogado ou a função do legislador; o legislador, agora, não é mais aquele que inventa leis, mas é o que põe instituições, o que cria, o que inventa instituições – esse é o autêntico legislador em Hume e esse que é o verdadeiro político. Porque daí você está criando meios para elevar e expandir a vida, e não dizer que precisa ter uma série de regras, de barreiras e de diques que segurem esse desejo e as paixões.

  • Participante: nesse caso, ele não é representante de um grupo que vai formular regras casuísticas em função do interesse desse grupo, como um Congresso Nacional, que é representações de interesses. Mas o político simplesmente vai representar a viabilidade dos interesses.

Exemplo claro e imediato: vão acabar com o Tribunal de Contas do Município. Maluf diz: “todas as contas foram aprovadas pelo Tribunal de Contas”. Evidentemente que é uma instituição de lei, de juízo, uma instância judicial que está aí para legitimar os desvios do próprio capital. Ela legitima a acumulação, porque o capital precisa de acumulação; a corrupção é inerente ao capital, ele precisa disso para que haja bolsões de acumulação. É assim que ele desterritorializa mais e gera mais acumulação. Então a corrupção é necessária ao capital. Agora tem uma outra conjuntura política, acabou a CPI do Tribunal de Contas e a decisão é extinguir o Tribunal – esse é o relatório, essa é a sugestão.

Por que? Porque o Tribunal não só é inútil como é nocivo.

  • Participante: tem a despesa que isso traz.

Só agora, 300 funcionários, vai dar 35 milhões ao ano. Dá para fazer 35 escolas públicas por ano com esse dinheiro e mantê-las. Isso só eliminando 300 funcionários; são mais de 600, vai dar mais de 80 milhões por ano. Para os caras legitimarem os ladrões. Aí uma parte da sociedade chega e diz assim: “isso não só é desnecessário como isso é nocivo”. Então acaba com essa instituição e você cria uma instituição útil. Então vão fazer uma Secretaria de Controle Externo – então elementos da sociedade civil que vão controlar as contas públicas. Aí você criou uma instituição, você legislou de fato: você cria uma instituição de acordo com os interesses da sociedade, porque tudo é uma questão de interesse e de utilidade. É útil, é interessante para uma sociedade que se quer viva, que se quer ativa, que não tenha elementos solapando a sua energia, roubando a sua energia. Então isso é uma instituição, isso é a legislação. Isso faz com que a lei seja agora articulada a uma jurisprudência e não mais a uma justiça em si, não mais a um juiz, não mais ao juízo, não mais ao tribunal. O que é a jurisprudência? A jurisprudência regula sempre os casos inéditos, as singularidades; e inventa instituições para que aqueles problemas locais se tornem soluções expansivas das potências, das paixões, das tendências, dos interesses. Diz-se que uma instituição tem que ser desinteressada em relação aos interesses individuais e egoístas dos indivíduos que fazem parte de uma sociedade, submeter os interesses egoístas ao interesse público e por uma oposição entre interesse público e interesse privado; ao invés disso – porque isso absolutamente é cínico e vemos sempre o interesse público em função do interesse privado dominante – você de fato diz “não, a instituição não é neutra, a instituição não é desinteressada, a instituição é completamente interessada”. É interesseira. Em que? Em fazer com que as paixões se expandam, em que a vida se expanda, em que a vida da sociedade se expanda. Então a instituição é interesseira sim, as regras são interessadas – e não desinteressadas como Kant queria.

  • Participante: a arte, como instituição, é interesseira?

Absolutamente interesseira. A questão é: interesses legítimos, usos legítimos dos interesses e não usos ilegítimos. Porque o uso ilegítimo é exatamente essa inversão: a regra se volta contra.

  • Participante: tenta-se abafar um em função do outro.

É. Aí você tem usos legítimos e ilegítimos – isso é uma ideia de Hume também.

  • Participante: a legitimidade da sobrevivência de tudo que está em conflito. Tudo que está em conflito sobrevive.

Sobrevive, mas, mais do que sobrevive, vive e se expande. Essa é a ética. Aí Hume diz: o homem moral é idêntico ao homem público; ou seja, acabou aquela visão moralista estúpida. O homem moral é um homem político e é um legislador que inventa instituição e não que impõe a lei. É completamente outra coisa, é um criador; esse seria o homem moral de Hume.

  • Participante: Nietzsche fala que essa questão entre egoísmo e altruísmo é uma falsa questão.

Com certeza. O altruísmo é uma generosidade em função de uma culpa eólica. É a ambição individual e eólica que gera culpa. Epicuro e Lucrécio esclareceram super bem essa questão dos falsos infinitos no desejo, que gera aquela inquietação infinita da alma. Porque a cada elemento de desejo, necessariamente há uma frustração, na medida em que ele está ligado aos falsos infinitos.

Ele se frustra; e quanto mais ele se frustra, mais ele se sente culpado e mais ele espera uma punição de fora. E o altruísmo vem daí: “eu vou dar, eu vou ser generoso, porque assim eu me sinto menos culpado, eu me sinto bem” – aí você separa uma moedinha em cada esquina para dar para um pedinte. Ou para não ser assaltado e assassinado. Claro, é uma estratégia de sobrevivência também, mas tem aqueles que fazem isso exclusivamente por culpa.

  • Participante: se eu for fazer a gênese, a fundação de certas instituições, elas são geradas sempre nesse movimento do altruísmo: “meu filho se suicidou e então eu começo a pegar grana e começo a ajudar”.

Isso. Lá no Rio e em outros lugares, a história do “sou da paz”, ou “campanha pela paz”. Aí uma mãe que perdeu o filho num assalto, alguma coisa assim: aí ela assume aquilo como bandeira a vida inteira. Por que não assumiu antes? Tudo bem, legal, já assume, é bom; mas você vê a estreiteza da coisa. Por que as pessoas se sentem átomos isolados da sociedade? “Ah, eu sou inocente, eu não tenho nada a ver com nada”. Como? Está tudo em relação.

  • Participante: até o dia em que a coisa está na sua cara.

Aí é “como, o que é isso, não tenho nada a ver com você”. O cara não quer saber se tem a ver ou se não tem a ver, ele quer saber do efeito que aquilo vai causar; se aquilo é inocente ou não é inocente ele não quer saber, ele quer saber do efeito. É como os sem-terra, aqui no Brasil: “ah, é tudo violento, invadem prédios públicos, bandoleiros”. Claro, tem uma série de violências. Agora…, eles é que forçaram o Fernando Henrique a fazer um mínimo de reforma agrária! Foi com violência; eles devolveram a violência dos grandes latifúndios, eles simplesmente começaram a devolver a violência.

Aí a “sociedade” fica horrorizada…. O Boris Casoy diz “isso é uma vergonha, têm que ser punidos com a lei porque a lei, porque a lei…”. E o movimento continua. Aí vem o líder do movimento e diz “não, nós vamos desobedecer, nós estamos fazendo isso, isso e isso porque nosso direito é legítimo”.

Aí eles encontram uma legitimidade porque as leis sociais são ilegítimas aos seus olhos – mesmo que isso seja inspirado por um movimento cristão, religioso; não importam os arcaísmos aos quais eles se ligam. Eles começam a produzir esse tipo de coisa.

  • Participante: essa é a razão do terrorismo, o terrorismo surge dessa forma.

Claro, você produz o terrorismo. Não existe o sujeito mau. É como o Hitler, “aquele louco”: foi o capitalismo que fabricou Hitler. Aquele que sabe história, que pensa, que vai ver direitinho: uma parte do judaísmo que hoje alimenta o sionismo em Israel produziu Hitler e se aliou com Hitler; uma parte pequena, evidentemente, e não justifica absolutamente nada. Mas a questão não é moral, não estamos analisando sob o ponto de vista moral; estamos analisando sob o ponto de vista das forças que produzem esse tipo de aberração, esse tipo de monstro – mas monstro que produzimos. “Ele era mau, na infância ele sofreu um trauma” – tem um monte de explicações e justificações, mas ele não se cria se a sociedade não deixar. Mas a sociedade é cúmplice, ela alimenta esse tipo de coisa, ela pede esse tipo de coisa. Não, de modo algum, se sentir responsável ou culpado pela coisa; aí o que Hume diz: não ser parcial, mas tomar parte. Você já é parcial, necessariamente; mas faça dessa sua parcialidade uma tomada de parte, tome parte das coisas; e aí você começa a ver que necessariamente você é político e social, imediatamente político e social, que o indivíduo é uma ficção. Aí vai acabar essa história de “não tenho nada a ver”: tem, tem a ver, ainda que você não seja conivente com a bosta, com o cocô, e queira produzir uma coisa afirmativa e ativa. Mas aí é o conflito, o combate, a problematização, porque você tem que inventar uma postura ética e fazer com que a coisa ressoe.

Por isso é necessário um complô que assuma o comando do planeta urgentemente; os Estados Unidos têm que ser literalmente destituídos, assim como o Islã, como todo poder autoritário, que vem de fora, tem que ser destituído. E isso explica também uma certa alegria, uma certa satisfação que dá em todo aquele que não gosta dos americanos – não dos americanos enquanto povo porque a coisa não é pessoal, é a máquina política americana, é sempre isso, não é o povo; aliás, tem muito americano que é fantástico e que é contra aquilo. Eu acho que, no fundo, talvez seja até uma maioria, eu não sei. O importante é que quem é conivente com esse tipo de máquina e que se identifica a essa máquina vai tomar a luta como pessoal; e essa é a origem do racismo, é a origem de tudo o que leva à aniquilação da vida. É essa confusão entre essa rede impessoal, entre essa máquina institucional, legal e estratificada, que se cola às pessoas, porque as pessoas é que dão vida a isso.

Aí entra o problema do investimento de desejo legítimo e ilegítimo. Hume ainda fala de interesse, ele fala claramente de interesse. O Ante Édipo diz: existe o investimento libidinal inconsciente de desejo e existe o investimento consciente ou subconsciente de interesse; e aí o Ante Édipo liga ao organismo. A questão orgânica e utilitária faria com que eu me sinta como um indivíduo isolado – então eu tenho os meus órgãos para suprir, para fazer com que funcione; eu tenho a minha situação local, a minha propriedade, a minha casa, o meu carro. Ou seja, eu estou ligado ao meu sistema orgânico e o meu desejo investe esse meu interesse utilitário orgânico. Hume não chega a fazer essa distinção de modo claro, como o Ante Édipo faz, mas existe em Hume o critério do legítimo e do ilegítimo. O que é o legítimo? O legítimo é aquele que tende à simpatia e à justiça, ou a essa unificação como um efeito de composição e de expansão. Não é uma unidade original, primeira, que vem de fora e se impõe contra uma pluralidade social; a unidade é um efeito de uma conjunção ou de uma composição de diferenças plurais, racionais e interesseiras. Vai haver necessariamente um efeito de expansão se eu uso do interesse for um uso legítimo; e daí o critério ético da instituição: a instituição tem que ser uma invenção como meio de passagem, meio de fazer passar a paixão para uma ação que se compõe socialmente. Esse é o critério ético. Então aí você não tem nem distinção entre uma ética individual e uma ética social; a ética atravessa esses planos todos.

Então eu acho que Hume tem uma potência fantástica para nos ajudar a criarmos esse complô porque precisamos – como fala o próprio Klossowski – fazer uma conspiração planetária. Não dessa forma babaca e fanática como fazem os terroristas; é realmente tomar as rédeas da vida, ser criativo e fazer com que isso se expanda e se apodere e faça com que esse tipo de poder se destrua como a noite no sol – quer dizer, simplesmente aquele poder não era nada. Como o avião no Pentágono: o Pentágono é porra nenhuma. Nesses dias na USP eu falava que o sujeito humano – essa substância, essa identidade que acreditamos que é o nosso solo individual, o sujeito moral, o sujeito lógico, o sujeito metafísico, essa vontade de livre arbítrio e de escolha, de direitos democráticos. É como o Pentágono: é indestrutível até o momento em que você o destrói. É uma ficção. Então precisamos atingir outro elemento implacável. O implacável está no movimento, não está nessa substância; o implacável está no habitar a vida, no expandir a paixão.

No fundo é isso: o que gera o terrorismo? É o esmagamento das diferenças. Eles vão esmagando, esmagando, encurralando – e a vida, em alguma hora, explode. É como nos filmes de Fassbinder; vejam os personagens do Fassbinder – os caras são quietos, tímidos, catatônicos, esquizofrênicos. De repente irrompe os efeitos imprevisíveis de uma psicose até então não manifesta…, e daí…, sai de baixo! Explode tudo! Porque é o que diz Nietzsche: não adianta conter uma força. Hume diz a mesma coisa: não adianta conter a paixão não, você tem que redirecionar a paixão.

  • Participante: o que é esse redirecionar a paixão?

É fazer com que a paixão não seja inimiga da outra paixão que pode se compor contigo. No fundo, nenhuma paixão traz uma negatividade nela mesma; o que é negativo nela mesma é só não a levar ao que ela pode. É o que diz Nietzsche: eliminar os meios quereres, os meios desejos; leve a natureza ao que ela pode. A natureza quer ir até o limite do que ela pode; e quando ela atinge o limite, ela encontra necessariamente uma outra paixão, uma outra força que se compõe e forma uma unidade maior, um indivíduo maior ou uma instituição maior. Então é uma expansão de vida. No fundo ela nunca vai ao limite do que pode, goza e morre – isso não existe. A ilusão de morte é dada porque nunca vamos ao limite do que podemos; aí ficamos imaginando que quando formos no limite, morremos.

  • Participante: o que a psicanálise fez no século XX, então! Ela fala que o gozo é morte.

O tempo inteiro. É o equipamento que serviu. É muito clara a história da psicanálise. A psicanálise é uma maquininha de assujeitamento já do indivíduo da família. Antes o capitalismo inventa um tipo de família que interessa para ele, que é a família nuclear burguesa; no século XIX, essa família tem uma série de desajustes e problemas, com um monte de anormais e desequilibrados e criminosos e loucos, etc. O que eles inventam? Inventam a assistência social, inventam a psiquiatria, inventam um sistema judiciário penal, inventam o manicômio, a escola, o exército; inventam uma série de instituições, e a família é uma delas. Século XX: muda um pouco o regime, já não estamos mais exclusivamente na produção, entramos agora nos serviços, na venda, na circulação. A psiquiatria não dá conta disso; a psicanálise vem e abre um campo muito maior na axiomatização do desejo. Porque a psiquiatria aprisionava, encurralava, trancava mesmo o desejo; agora a psicanálise – e eu falo sempre da psicanálise ortodoxa, não estou aqui dizendo que não tem outros modos de fazer psicanálise – cria então uma maneira de axiomatizar o desejo. E não só de axiomatizar: ela une o útil ao agradável. O que é útil? Útil é edipianizar o que a família não fez; se a família não edipianizou o indivíduo, manda para o psicanalista que ele vai dar um jeito de fazer com que você acredite no Édipo. É a utilidade. E o agradável é que você pode ganhar muito dinheiro com isso. E ainda faz o capital se expandir mais ainda. A psicanálise é só isso.

  • Participante: o Bush falou hoje que são dois os inimigos: o terrorismo e o narcotráfico.

Coisa estúpida. Na década de 60 o FBI utilizava a cocaína para acabar com os bandos, os guetos.

  • Participante: quem não tem sucesso, quem não tem acesso ao bem-sucedido, vai sobrar o que?

O poder é cínico. Ele diz assim: “é imoral você ser drogado, você ser isso, você ser aquilo”. É imoral para que você fique sob aquela forma da lei. Mas ele está sempre acima ou aquém da lei, ele é que inventa a lei, ele é que faz com que você acredite que as formas são puras e neutras. Ele que faz com que você acredite que o mais importante, numa relação, é o contrato, que ele é regido por uma lei e que a lei está acima de tudo. Aí, quando você rompe o contrato, aí você tem outras funções mais interessantes. A base não é o cumprimento, a base ou a regra é a transgressão. Hoje em dia te enviam cartão de crédito à vontade e rezam para que você atrase, porque daí evidentemente eles ganham muito mais. Esse é o cinismo do capitalismo.

Aí ficamos ouvindo essas bobagens, o povo acreditando; eles manipulam o povo, eles levam o povo a votar, levam o povo à guerra, levam o povo a se grudar num Deus fictício, eles levam o povo para onde eles querem. A mídia faz isso o tempo inteiro. Então a questão nossa não é numérica – tanto não é numérica que meia dúzia fizeram um mundo diferente em alguns minutos, o mundo não é mais o mesmo, certamente. Agora, a nossa preocupação é qual? Que o terrorismo vai aumentar. Mas qual terrorismo? O de Estado, o do capital. É esse terrorismo que é o pior de todos, o outro é apenas o visível; e esse invisível? Esse é o terrorismo. Dizer assim: você vive numa base democrática, que a tua vontade de escolher é que escolhe e consome. Esse é o terrorismo fundamental: você estar separado dos teus produtos. Tudo tem um valor, tudo é axiomatizado.

E ficamos surpresos com isso. Você vê: eles não usaram armas sofisticados, apenas estiletes, facas – faquinhas e pensamento, só isso. Pegaram a própria máquina dos caras e dirigiram contra eles mesmos. Aí vamos dizer: “mas temos que combater”. Combater o que se o cara já está destinado a morrer, se ele vai morrer junto? Vai ganhar a vida inteira, vai sair do ciclo das reencarnações.

  • Participante: o que me tocou nessa aula foi a questão da paixão, do desejo, que é muito internalizada em nós como uma coisa híbrida, que tem que sofrer o recalque.

Se isso sugerisse então que eles começassem a pensar e problematizar por que eles atraem tanto ódio contra eles! Porque o ser humano é mau? Porque as paixões necessariamente têm uma parte delas que é demoníaca? É só você redirecionar. Não precisa ser igual, pelo contrário, quanto mais diferente melhor, mas uma diferença que se componha. Será que é tão difícil isso? Realmente não tem base, no fundo da natureza, que diga que a natureza se contradiz a ela mesma. Não existe.

A natureza só se contradiz na relação de superfície quando é estreita, quando alguma coisa se apequena, quando você fecha alguma coisa – aí que ela se contradiz. Quer dizer, a arte de abrir – isso que deveria ser a nossa máxima ética. Abrir e compor, abrir e compor. E a nossa maneira de superar a morte também – essa ilusão de morte que temos, que nos atormenta, porque o ocidente construiu uma ideia de morte terrível e é função dela que ele estimula a covardia, estimula o medo e faz com que você invista na tua própria merda, na tua própria submissão, na tua própria separação. Ou seja, você faz o terrorismo com você mesmo – humanismo e terror: a lei que inventa a forma humana é a mesma que funda o terror. Não há separação entre lei e terror. Então o terrorismo, que já foi inventado pelos regimes despóticos, é o mesmo que se instaura na instituição da lei; é o mesmo, não tem diferença nenhuma. Quem viu Danton, em relação à revolução francesa, vê direitinho como o terrorismo se instaura em nome de uma vontade geral, de uma lei geral, de uma liberdade, de uma igualdade, de uma fraternidade. Quer dizer, vamos alterar o sentido dessa fraternidade. Fraternidade sim, por que não? Mas aliados, alianças e diferenças; não irmãos que estabelecem relação para simplesmente alimentar mais o seu egoísmo ou as suas paixões parciais reduzidas ao indivíduo.

A questão da aliança é absolutamente fundamental e nesse sentido faria com que as paixões ou a expansão das paixões, e a simpatia nossa, se dessem muito mais em relação a uma bela aliança do que uma má filiação. Existem aqueles que dizem assim “ah é meu irmão, é minha mãe, é meu pai, é minha família, é meu tio”. Tudo bem, ótimo; mas preze pela qualidade das relações familiares também, faça das relações familiares relações de expansão de vida e não de interesse mesquinho e utilitário. Ou com aquela falsificação moral do dever para com o pai, para com a mãe, para com o irmão, que vemos o tempo inteiro sendo fraudados por atitudes trapaceiras, um ferrando com o outro numa invisibilidade, cria zonas invisíveis e ele ferra por trás.

Aliança sincera. Mas a aliança é primeira em relação à filiação. É seu pai? Faça dele um aliado, e não porque ele é seu pai. Ame seu pai porque ele é um aliado, e não porque ele é seu pai. Kant diria: ame seu pai porque ele é seu pai. É a lei. Então a fraternidade sim, mas a fraternidade aliada, aquela que gera expansão – essa fraternidade é interessante. E essa fraternidade só é possível quando você inventa instituições – o meio onde a ação parcial se torna uma expansão que entra em ressonância com outras paixões.

  • Participante: seria uma coisa de somar, não é?

Com certeza. Você pega o seu vizinho, por exemplo; geralmente vizinho é sinônimo de inimizade, não é isso? Ou sogra, sogros, tem uma série de relações. E por que? Aí nos estimulam a essa fraternidade cínica. Que fraternidade é essa? A fraternidade passa por outro lugar – pelo critério de aliança, que não é o do contrato, que não é o da moral, que não é o da lei. É aquela frátria, aquela irmandade do Melville; Melville buscava isso – ao invés de filiações, onde há antepassados e antecedentes, busca as relações laterais, busca as composições, os encontros, as alianças. Aliança é mais importante. Fora do clã.

  • Participante: é órfão.

É órfão. Isso, você falou tudo: ser órfão e celibatário – nunca conjugal. Tudo bem, você pode ter uma pluralidade de amores, mas nunca o amor conjugal. Aliás, hoje em dia o capitalismo inventou uma outra forma, já, ele não precisa mais da família, agora basta o amor. Entre homossexuais, por exemplo, você edipianiza tranquilamente; você edipianiza o seu cão, o seu gato. É só na relação binária, não é necessário mais nem um triângulo. É só relação de amor, não precisa mais de filho e não precisa mais ser de sexos distintos. Tanto é que hoje o capitalismo – a Alemanha, a Holanda, uma série de outros países aceitam já oficializar o casamento gay. Porque ficaram mais modernos, mais liberados? Não, para acelerar os fluxos de acumulação de capital. É só isso, é sempre o mesmo sentido. “Ah, somos contra o cigarro”. Por que? Até esses dias não eram! Agora as companhias de seguro-saúde, que não estão mais apoiadas no poder público das tiranias da América Latina, resolveram diminuir o seu prejuízo. Então é tudo uma questão de axiomática. A Folha é mais democrática do que o Estadão. Será? Ela vende para a esquerda inteira. A Globo ficou legal agora, às vezes você tem matérias fantásticas no Jornal Nacional; e tem lá de fato jornalistas realmente interessados em problematizar. Agora para a Globo interessa ser politicamente correta – é o modelo americano.

Dei um Hume ligado bem à questão. Porque é isso mesmo, Hume é prático, é pensamento prático, pensamento empírico. É um empirismo incrível o do Hume, é muito interessante. Ele diz que a razão legítima é uma convenção, a razão legítima é um conjunto de regras inventadas.

  • Participante: a serviço de…?

Se é legítima, a serviço da vida. Se é ilegítima, a serviço do poder. Legítima é sempre quando é uma regra de passagem; ilegítima é quando ela se quer primeira, ela se quer original. Hume diz: a única coisa original é a impressão. Isso que é original. Isso que funda objeto, sujeito e depois a regra entre eles que é a lei. A lei é sempre uma regra de passagem.

Aula que vem vamos seguir um pouco mais em Hume e aí eu vou falar sobre o sistema de impedimento, dele; vamos falar um pouco mais em relação a desejo e crença e ver como vamos ultrapassar a experiência no pensamento. No fundo, é reencontrando a experiência no pensamento; o pensamento é sempre experimental, é sempre prático, há sempre uma ligação direta com a experimentação. A experimentação é tudo em Hume. E para nós também.

  • Participante: onde Kant bateu de frente com Hume? É na não experimentação?

Hume diz que os interesses sociais são levados a cabo por uma regra convencional, por uma invenção, por um artifício; e Kant diz que não, que há uma forma pura que funda isso tudo, que a lei vem antes de tudo. Kant inverte tudo e diz: e a lei é desinteressada. Porque ele acha que Hume é um empirista vulgar, ordinário e que não ultrapassa a experiência. Mas o empirismo de Hume é um empirismo do acontecimento, e é por isso que você pode dizer que o empirismo de Hume é um empirismo transcendental. Mas nunca transcendente. É transcendental porque atinge o acontecimento enquanto acontecimento. Ou seja, não fica no fato, entra no acontecimento; o acontecimento é muito mais amplo, mais rico do que o fato. O fato é apenas um lado, uma face do acontecimento efetuado; e o acontecimento é anterior e posterior ao mesmo tempo, e ele é muito mais amplo e mais rico do que o fato em si. E os ingênuos racionalistas e metafísicos e idealistas dizem que o empirismo reduz tudo a fato.

  • Participante: quais foram as obras que ele deixou? Existe coisa em português?

Na obra Os Pensadores existe uma obra dedicada ao Berkeley e ao Hume que são dois empiristas – esse Berkeley é outro empirista anterior a Hume – mas aqui você tem Investigação sobre o entendimento humano, você tem Ensaios morais, políticos e literários. Tem uma outra autodefesa de Hume, porque houve uma crítica em relação ao Tratado da natureza humana, foi super mal recebido na Inglaterra e aí existe o Sumário do tratado da natureza humana que é uma explicação, um desenvolvimento dos pontos que mais geram equívocos para uma mente vulgar, para uma mente ordinária.

E Hume vai esclarecer.

  • Participante: por que a primeira obra de Deleuze foi com Hume?

Não sei. Poderia ser Nietzsche, poderia ser outra coisa. É que Deleuze necessariamente tem a visão empirista; Deleuze não acredita na razão, não acredita na moral, não acredita na lei em si. E Deleuze teve professores como Hyppolite, que é um hegeliano, e Alquié, que é cartesiano e também kantianos, e outros hegelianos. Correntes de pensamento muito fortemente instituídas nas academias francesas. E Deleuze reage a isso com Hume. Tanto é que essa obra, Empirismo e subjetividade, ele fez em 1953 – ele tinha 28 anos de idade. E ele dedica a obra assim: “A Jean Hyppolite, homenagem sincera e respeitosa”. Realmente ele quer dizer: “eis uma diferença” – que não está reduzida ao que Kant tenta reduzir. Hume, na realidade, é o grande marco do século XVIII. Claro que Leibniz, à sua maneira, também. Mas Hume é o grande empirista. Depois só Nietzsche, para fazer um empirismo novo.

Empirismo e subjetividade saiu agora pela Editora 34. É a primeira obra de Gilles Deleuze.

E na História da filosofia do François Châtelet, volume IV, chamado Iluminismo, existe um texto de Gilles Deleuze sobre Hume; é uma síntese de umas 10 páginas.

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