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Formação Pensamento Ocidental – Aula 07/32 – Platão e o simulacro (transcrição)

Luiz Fuganti

Platão é um pensador que nos revela muitas facetas interessantes. Talvez por estar na origem do pensamento grego, ou nos meados do nascimento da filosofia, Platão ainda traga um certo frescor de como as coisas acontecem ou como as coisas se passam no plano do corpo e no plano do pensamento. Platão vive muitos problemas de época e esses problemas não são teóricos, esses problemas são de modos de vida. Apesar de ele ser um dos maiores responsáveis por mitificar o saber como desencarnado do modo de vida, a filosofia dele fica muito clara quando percebemos o que move Platão, o que ele quer, o que o incomoda, qual é o seu problema. Porque a teoria das ideias não veio do nada, não é uma coisa teórica simplesmente, não é que ele descobriu a sabedoria ou que ele descobriu o plano das ideias. Platão teve que inventar esse plano, esse plano não existia.

Só que ele foi tão fundo nisso que ele não inventou simplesmente uma teoria das ideias entre outras, ele inventou o próprio modelo pelo qual você acredita que o saber está fora da natureza. Ele inventou um modelo extremamente refinado neste sentido, ainda que as narrativas míticas das quais ele lança mão para efetuar essa tarefa às vezes nos pareçam patéticas ou até cômicas, ou irônicas, porque as narrativas interrompem o raciocínio lógico dialético; ele está lá numa disputa dialética, num desencadear de definições, numa oposição de ideias, disputa entre contrários, até chegar numa definição e de repente ele interrompe essas definições e começa a fazer narrativa mítica.

Ele está fazendo brincadeira conosco? Lemos uma obra dele e dizemos “isso não é sério, não se pode levar a sério uma obra que faz esse tipo de coisa”. Ou será que a coisa não é bem mais em baixo? Será que esse aspecto não faz parte de uma dupla ironia platônica? A primeira ironia seria que ele se serviria da dialética para gerar a ideia de que existiriam definições de modo verdadeiro, definições verdadeiras a serem atingidas; e as definições deveriam ser respeitadas ou observadas ou reconhecidas, enfim. Mas acontece que sempre que se chega a definições, em Platão, são definições nominais e uma coisa muito curiosa acontece: sempre que ele define alguma coisa, uma série de rivais ou de pretendentes disputam aquela definição como sendo uma qualidade que pertence a um ou outro rival, a um ou outro pretendente. Então isso é que é uma coisa curiosa em Platão: sempre que ele tenta atingir a verdade, há uma multidão de pretendentes ou de rivais que buscam ser os verdadeiros portadores dessas qualidades definidas dialeticamente, logicamente.

Evidentemente quando isso se instala – esse processo de disputa – Platão, ao menos em dois textos muito famosos – um é o Político e outro é o Fedro – começa a fazer uma narrativa mítica. Então o nosso problema: o que move Platão? Que problema ele tem, verdadeiramente? O que move Platão é uma vontade de fazer uma seleção; Platão não quer ser confundido com os sofistas de Atenas, com os artistas, com os tiranos, com os demagogos, com os retóricos, com os escravos, etc. Ele acha que existe um modo de fazer a diferença; e a cidade, assim como a natureza e o próprio cosmos, devem ser geridos por essa ordem que estaria subjacente às coisas, que estaria por trás das coisas. Haveria uma ordem subjacente às coisas – mas que não seria mais a ordem dos pré-socráticos, que não seria mais aquela ordem corpórea da phýsis, que não seria mais uma ordem onde pensamento e corpo têm o mesmo objeto, mas uma ordem puramente espiritual, uma ordem puramente transcendente à própria natureza que estaria por trás de tudo como causa de realidade, de ordenação, de distribuição dos destinos, distribuição dos espaços, dos tempos e dos quinhões de cada um. Então essa ordem subjacente ou transcendente à natureza, Platão vê como uma ordem espiritual.

E ele quer fazer a seleção e, a princípio, a obra dele nos confunde porque lendo Platão nós acreditamos que ele quer separar esse mundo espiritual do mundo material, ele quer separar o mundo inteligível do mundo sensível, o mundo das Ideias do mundo das imagens. Aparentemente é isso. E daí ele começa com a sua dialética, o diálogo, dividindo gêneros em espécies.

Aparentemente, se isso fosse verdade Aristóteles teria razão plena em acusar Platão de fazer um mau silogismo, porque faltaria a Platão um termo médio – o termo médio que levaria a dizer que tal objeto está do lado de tal definição melhor do que de tal outra, por exemplo. Então esse termo médio seria a diferença específica em Aristóteles, a razão de especificação, digamos assim. Como “racional” em homem: “o homem é um animal racional”. Animal: gênero; diferença especifica: racional; vai dar a espécie “homem”. Então essa diferença específica faltaria a Platão, é disso que Aristóteles o acusa. Só que na realidade isso é a primeira ironia platônica: Platão vai definir verdades, vai definir objetos gerais (como Sócrates queria: atingir os objetos gerais, as ideias universais), mas o objetivo de Platão é bem outro: ele quer, na realidade, fazer uma diferença que está numa outra instância, está num outro nível. Então o motivo platônico continua sendo querer fazer a seleção, querer fazer a diferença, querer separar o trigo do joio, o puro do impuro, etc. Ainda inspirado nos afetos xamanistas, na questão da renúncia do corpo, na questão da recusa da mistura dos fluxos da natureza, na medida em que essa recusa, essa renúncia, esse exercício ascético, essa askêsis geraria a condição de ascensão a um mundo espiritual. O mundo espiritual é absolutamente incorpóreo, é absolutamente desprovido de elementos materiais; então essa ascese, essa ascensão implica ao mesmo tempo um abandono do corpo, uma renúncia do corpo. Isso tem tudo a ver com aquilo que narramos sobre os aspectos da alma xamanística no momento em que ela é incorporada pelas seitas religiosas gregas.

Então você, ao perceber que Platão instaura uma narrativa mítica, percebe que o seu método de divisão, do qual ele lança mão para fazer esse empreendimento de seleção, não tem apenas a potência dialética, que chegaria às definições e verdades abstratas; esse método lança mão de uma outra potência: a potência mítica, a potência da narrativa mítica. E funde as duas potências. Ao fundir essas duas potências, Platão leva a divisão ao seu termo, ele cumpre a tarefa à qual ele se propõe. Que tarefa é essa? Fazer a divisão entre verdadeiros e falsos pretendentes. Rivais? Sim. Mas quais os rivais que têm um fundamento na sua pretensão? Então Platão quer fundar a pretensão, ele quer dar um critério de fundamento à pretensão. Você pretende o quê? Você pretende ser político? Você tem a qualidade verdadeira do verdadeiro político? Platão vai gerar o modelo imanente do qual se desprende essa qualidade. Essa qualidade é imanente ao próprio modelo. E só o modelo a tem em primeiro lugar.

E o modelo é um mito, o modelo é gerado pela narrativa mítica. No caso do político, é o deus Chronos com aquela definição de pastor dos homens; ela é dada dialeticamente e depois, quando tem uma série de pretendentes que se arvoram o direito à verdadeira qualidade de político, Platão então narra o mito do deus arcaico, de Chronos, onde o governo circular do mundo é um verdadeiro pastoreio não só dos homens, mas da natureza inteira. Então o cosmos é uma harmonia circular perfeita enquanto Chronos domina o governo do mundo, enquanto Chronos governa o mundo. Então Chronos é o verdadeiro político. E na medida em que Chronos permanece sempre idêntico a ele mesmo, os movimentos de organização da natureza são movimentos circulares perfeitos. Só a Chronos pertence a qualidade de verdadeiro político ou de pastor dos homens.

• Participante: esse é um critério de idealismo, não é?

Completamente. É a fundação do idealismo. Platão está dando todo o corpo ao idealismo que Sócrates já vinha esboçando nos seus diálogos. É a fundação do idealismo.

Não sei se vocês estão percebendo a questão fundamental. Porque o que interessa, como eu disse no início, não é sabermos a teoria platônica; é saber qual é o propósito platônico, o que pega Platão. O que pega seu corpo e seu pensamento.

Participante: esses mitos já estavam narrados, não é?

Existem várias narrativas míticas e Platão as altera também. O próprio Sócrates já tinha sido acusado de impiedade para com os deuses públicos, os deuses da cidade de Atenas. Inclusive um dos motivos da condenação de Sócrates à morte é esse, impiedade para com os deuses. Platão segue alterando a sua interpretação dos deuses mas o que é interessante é que Platão, consciente ou inconscientemente, percebe a estrutura interna dos mitos de soberania, que são mitos circulares de fundação. E ele se serve disso, consciente ou inconscientemente – isso não é problema porque ele se serviu e a coisa funcionou – para gerar o critério, o crivo ou a peneira seletiva. É a partir daí que você pode medir as pretensões.

Da mesma forma no Fedro: trata-se de definir o verdadeiro amante e o verdadeiro delírio. Quem é o verdadeiro amante e qual é o verdadeiro delírio? O verdadeiro delírio não é o profético, não é o poético e não é o dionisíaco, mas é o erótico, ele vai dizer. Esse é o verdadeiro delírio. E o verdadeiro amante é aquele que está possuído por esse delírio erótico. E como ele está possuído? Aí “eu estou possuído”, “eu é que estou possuído”, “sou eu que estou possuído”. Aí Platão vem e narra o mito da circulação das almas. E do mito da circulação das almas sai um modelo: as almas que viram muito e as almas que viram pouco. As que viram muito são as que têm o seu cavalo negro sob controle e as que viram pouco é porque são almas de fraca memória – é evidente, porque dessa vida anterior à encarnação não se lembram de mais nada. Porque a parte do corpo, a parte sensual é muito forte e a memória se opõe ao corpo. O corpo é fonte de esquecimento e o espírito é fonte de memória. Olha a dualidade que Platão está inventando, é ele que inventa isso. E isso ficou para o ocidente.

Participante: Bergson depois não pega um pouco disso quando ele fala da memória?

Bergson reverte bem isso; ele vai dizer que no fundo isso de Platão é pura memória psicológica, que no fundo é memória de marcas, que invadem a consciência e que geram o ressentimento. Bergson vai atrás de uma memória ontológica, que daí não tem mais forma; a memória ontológica de Bergson é virtualidade pura. O passado de Bergson é, não é o que foi. Em Platão é o que foi.

Então no Fedro você tem também o critério das almas que viram muito e das almas que viram pouco. Não vou narrar o Fedro, eu pedi para vocês lerem pelo menos o segundo discurso, que já é suficiente. E eu pedi para vocês lerem também um texto, Platão e o simulacro, do Gilles Deleuze, que é um apêndice, um anexo de Lógica do Sentido. Esse texto, aliás, é um texto que eu sigo à risca; é um texto muito importante, um texto definitivo sobre Platão, um texto importantíssimo.

Então você tem a potência dialética e a potência mítica que dão a unidade ao método de divisão. O método de divisão é um instrumento do qual Platão lança mão para empreender a sua tarefa seletiva. Como é que funcionaria isso, realmente? O que está implicado na narrativa mítica e o que está implicado no logos dialético? Que elementos estão por trás agindo aí e que dão essa consistência toda ao pensamento platônico? O que faz a força do pensamento platônico? O mito tem uma estrutura circular e ele gera a Ideia, ou o modelo, do Mesmo. Isso é que dá força ao mito. Esse modelo do Mesmo, na medida em que tem um movimento circular, vai sempre de um ponto ao mesmo ponto. Esse movimento circular é perfeito, homogêneo, eterno e idêntico a si mesmo. Idêntico a si mesmo na mesma medida em que eu posso falar que a Justiça nada mais é do que justa; a Beleza é bela, a Sabedoria é sábia. É a verdade platônica como verdade tautológica, a repetição de si mesma. Então a identidade é ao mesmo tempo a instauração do critério de autenticidade, que gera a autenticidade. A autenticidade única e primeira, verdadeiramente real, é puramente ideal porque ela não modifica um milímetro de si mesma, ela paira sobre a natureza, está fora da natureza. Porque tudo que existe na natureza se modifica – mesmo que seja algo insignificante, mas existe uma diferença comendo ali a identidade. Qualquer coisa na natureza tem um diferenciante e é isso que nos interessa, isso que nos seduz na natureza; mas para Platão isso é um horror, tudo que é diferenciante ele quer esconjurar ou subjugar numa imagem que ele vai chamar de imagem ícone. Então o primeiro aspecto do mito que dá o fundamento, ou que dá o critério seletivo, ou que funda a pretensão dos pretendentes, é a identidade da Ideia. A identidade da Ideia é, digamos, o primeiro fundamento do que chamamos de representação. Nenhuma representação subsiste sem a identidade da Ideia. Se não tiver identidade da Ideia, não há representação – primeira condição fundamental, fundante, primeiro princípio da representação e condição fundante.

Agora, existe um critério que se destaca no seguinte sentido: se o importante não é atingir apenas o modelo, ou atingir a Ideia, ou atingir a essência, mas o importante é o efeito prático que isso tem, como se dá esse efeito prático? Diz Platão: é por semelhança ao modelo que eu me formato, que eu me limito, que eu me defino, que eu imito internamente, que eu copio internamente as relações e as proporções que constituem a essência que o modelo libera. A essência circular que vai do Mesmo ao Mesmo, as suas relações de circularidade e as suas proporções sempre em equilíbrio, eternamente em equilíbrio, são copiadas por um tipo de ser aqui na Terra ou na natureza.

Platão vai ver a natureza inteira como imagem: tudo são imagens, tudo são eidolons (ou ídolos). E os eidolons podem ser eidolons-ícones ou eidolons-simulacros. Por exemplo: eu sou uma imagem de corpo e alma; se eu quero pretender alguma realidade, alguma virtude, alguma sabedoria, eu tenho que encontrar o modelo gerador disso, eu preciso fazer um movimento espiritual, noético. É o espírito que vai até o modelo, não é a nossa percepção que vai até um outro corpo ou até um outro espírito e cópia o modelo de alguém; é o espírito que internamente vai até o modelo, sobe até o modelo, sobe até a Ideia, e se adéqua, se imprime na própria relação interna da essência. Então aí eu adquiro uma legitimidade, segundo Platão; a legitimidade é meu grau de semelhança ao modelo. Então se eu me assemelho ao modelo eu vou ser uma imagem ícone., uma imagem cópia. Então esse é o critério. Eu estou sendo reproduzido, digamos assim. Ainda que Platão veja nessa cópia uma verdadeira produção. Platão vê uma produção aí. No fundo o que Platão quer é produzir um monte de clones, clones espirituais. Então é uma verdadeira produção de estereótipos.

Todos são iguais, no elemento universal, ao que pretendem. A diferença necessariamente estaria submetida a essa Ideia, ou à identidade na Ideia. É por isso que todo sistema de representação é incapaz de dar conta da diferença por ela mesma, da singularidade por ela mesma. E por isso a nossa guerra contra a representação: porque a representação é instrumento de poder, a representação é instrumento de separar a vida do que ela pode. Então a identidade faz exatamente isso – ela impede, ela te impede, ela te separa da tua verdadeira diferença, da tua verdadeira singularidade. E o que queremos é pensar a diferença enquanto diferença. Esse pensamento necessariamente é um pensamento nômade, ele não se adéqua a nenhuma identidade primeira.

Então você tem a identidade primeira e você tem a semelhança segunda. Esses são os dois grandes pilares da representação ocidental. Sem identidade e sem semelhança não há nada. Porque se fosse só identidade, muito bem: a identidade está lá fora, não me diz respeito e acabou. Mas quando existe um poder ou existe um estímulo para que você se rebata naquele plano de identidades, você é valorizado pela semelhança a aquele plano. Então é esse o verdadeiro objetivo da divisão platônica. O método da divisão platônica só atinge o verdadeiro objetivo quando ele começa a produzir imagens ícones.

Participante: Mas valorizado por quem?

Não importa. Por quem tem o poder ou por quem tem interesse nesse tipo de coisas.

Participante: Então são três, aí no caso. Sou eu que me rebato num além mas num respaldo num outro “quem” aqui. Não é só a minha negociação com essa transcendência e eu chegar a ser semelhante; isso é referendado por um terceiro.

Exatamente. Esse terceiro pode ser dentro de um plano espiritual isolado, o próprio Bem, a imagem mítica do Bem; mas o Bem se encarna no Estado, no sacerdote, no Papa, seja lá no que for. Não importa onde ele se encarne. Num psicanalista muitas vezes, ou num professor, num cientista. Não importa onde ele se encarne.

Participante: A ciência é bem isso, não é?

A ciência tem todo esse aspecto. Existe uma parte da ciência que é a ciência em movimento se processando, pensando e criando funções; e existe a parte da ciência dirigida pelo Estado.

Participante: Como uma verdade absoluta.

Como uma verdade absoluta. Isso é feito em tudo. Na língua, por exemplo. Há pouco estávamos falando sobre a virtude de Guimarães Rosa. Guimarães Rosa certamente não era obediente à gramática oficial, senão ele não criaria a obra que ele criou. E a gramática oficial é inventada por um Estado – a língua oficial é sempre a língua de um Estado, é sempre a língua de um poder. É por isso que às vezes podemos até fazer questão de falar errado. Eu lembro uma música, acho que do Renato Russo, que diz assim: “eu canto em português errado”. Muitas vezes é ótimo cantar errado ou fazer errado ou falar errado. Claro que existem coisas tolas e bobas e muitas vezes se fala errado por ignorância ou por falta ou por impotência. Isso é diferente. Mas quando você engravida a língua, como Guimarães Rosa faz o tempo inteiro, você gera elementos diferenciais criadores de sentido que não tinham expressão na língua oficial ou não eram permitidos por uma gramática oficial. De onde vem a ideia de modelo, de identidade de uma língua oficial? Toda a ideia de identidade é uma ideia nefasta. Por isso quando ouvimos, de modo lamentável, o movimento negro querer a identidade dos negros, o movimento das mulheres querer a identidade das feministas, os movimentos homossexuais quererem identidades homossexuais, eles já perderam o movimento.

Participante: É a mesma coisa que a memória. A memória pode ser para estratificar, para voltar; e há a memória para mobilizar.

A memória para mobilizar é uma memória informal, digamos assim; ela não pode ter uma forma prévia porque daí você já submete o devir a uma camisa de força: “eu projetei essa minha ideia, eu quero que ela se cumpra”. Isso é completamente platônico.

Participante: Isso não é memória.

É uma memória de marcas. É a memória que o ocidente cultiva muito.

Participante: Mas como é que fica o plano, o projeto?

O plano, o projeto, são absolutamente secundários. Você pode até fazer uma certa distinção – mas é uma questão que não deve se limitar às palavras, é fazer uma distinção real mesmo – entre projeto e programa. O que seria um programa? Seria mais um diagrama de forças, um diagrama afetivo, capaz de gerar um campo atrativo no futuro. Esse campo atrativo é até uma fatalidade, você cria algo que você não sabe bem o que é e que você quer, você deseja muito que se realize, você investe o seu desejo nisso. Isso é um plano virtual. As forças que te atravessam vão se articulando neste sentido. Então as forças tecem um diagrama ou um programa que quer se repetir. Mas aí é uma repetição absolutamente diferente da repetição nefasta do Mesmo; é a repetição sempre do diferente porque as forças estão sempre em movimento, nunca é a mesma composição que está ali. Então na medida em que aquela composição se repete, já é de uma maneira adiante do que tinha sido a primeira efetuação. Então há uma evolução, um crescimento, uma expansão, um movimento de expansão.

Então você não tem uma projeção de uma ideia formal lá na frente, você tem um investimento energético, de potência e de virtualidade – o que é absolutamente diferente. É como uma pintura. Se você disser assim: “eu vou pintar a cadeira e um homem em cima da cadeira”, é uma imagem, uma ideia, uma ficção de cadeira que você tem; você vai lá e não entra em devir. Agora se, ao observar a cadeira, você começa a brincar com a própria percepção, a jogar e ver que existe um movimento de
luz sendo emitido pela própria cadeira, as emanações dela, os movimentos dos gestos, os teus afetos e uma série de elementos que se compõem, a obra que for gerada é impossível que fosse projetada. Aquilo é um verdadeiro acontecimento, você está em devir, você está em acontecimento, porque as coisas estão acontecendo e você está afirmando o que está acontecendo, ao invés de você dizer “não, isso que está acontecendo eu deixo de fora porque é acidental e eu quero cumprir a ideia que eu planejei desde o início”. Isso seria perder de antemão o devir, você já fracassa no momento em que você projeta.

Agora, projeto é bom para o cérebro enquanto órgão, é bom para atividades práticas habituais porque você libera a vida para coisas mais nobres. Então submeter o orgânico aos projetos é bom. Não é jogar absolutamente fora o projeto, a representação, a imagem, mas é fazer com que elas sirvam ao pensamento e à vida. Completamente diferente. Não é negar essa realidade mas é botá-la no lugar dela. É por isso que tem que dominar as forças em você mesmo, é a primeira coisa. É um combate consigo mesmo.

Voltando então à nossa questão da semelhança: ao se assemelhar, ao fazer o movimento de identificação do modelo, você recebe como que uma impressão verdadeira, uma cópia verdadeira e uma opinião verdadeira. Você vai ter uma opinião verdadeira que pode ser um saber também, um verdadeiro saber. Mas você pode ter uma opinião verdadeira. Isso nos faz pensar no que os neoplatônicos fizeram ao liberar as tríades platônicas. Os neoplatônicos vão dizer que a realidade funciona da seguinte maneira: tem um plano do imparticipável, um plano do que é participado e o plano dos participantes. Ou, de outra maneira: o Pai, a Filha e o Noivo. Ou ainda de outra maneira: o modelo ou o fundamento, a qualidade do modelo e o pretendente.

Então usando a primeira tríade: a Ideia, o modelo, a identidade, é imparticipável; nós nunca participaremos dela senão nós seríamos Deus. Daí a revolta de Nietzsche: “como, se ele existisse, eu suportaria não sê-lo?”. Todo o jogo entre a univocidade e a analogia do ser. Porque quem vai na via da univocidade do ser sabe que o ser é o mesmo; Platão está fundando aqui a analogia, porque a analogia é exatamente isso, você nunca vai ter o mesmo ser que a Ideia, nunca vai ter o mesmo ser que Deus, nunca vai ter o mesmo ser que o verdadeiramente real. Então você não é verdadeiramente real; na melhor das hipóteses você é real em segundo lugar porque você recebeu a realidade deste outro ser que está fora de você.

Participante: É uma negação da vida, mesmo.

É uma negação da vida, é o que Nietzsche chama de niilismo; é uma desqualificação da vida, da natureza, do pensamento em devir. Porque ele diz que o pensamento vai naturalmente em direção a essa verdade uma vez que a alma dele é uma alma xamânica, aquela alma que tem a parte divina como origem.

Participante: A mesma natureza, não é?

A mesma natureza desse outro plano, mas que já tem uma mistura, necessariamente, de cavalo negro e branco e nunca é o mesmo modo dos deuses porque os deuses têm os seus cavalos absolutamente emparelhados. Não tem o negro, é tudo branquinho. Já os homens não, eles têm necessariamente essa parte deficitária, eles têm a dívida existencial. Eles têm já uma dívida infinita – ainda que a dívida esteja fora, que ela não esteja introjetada como vai ser o caso do próprio cristianismo que vai interiorizar a culpa através da má consciência. Aqui estamos no plano do ideal ascético. Até o ressentimento tem nuances mais brandas em Platão porque Platão busca até cooptar os inimigos; e os que não for possível mesmo, recalcar no mais profundo dos oceanos. Recalcar, acorrentar, não deixar de modo nenhum vir à superfície ou se insinuar na superfície. São os embusteiros, os falsários, os Proteus, os Centauros, os que iludem, os demagogos, os que criam ilusão de semelhança na superfície; esses têm que ser recalcados.

Então a questão do imparticipável se dá da seguinte maneira: o imparticipável tem aquilo que ele dá a participar, que é o participado, em primeiro lugar; só ele tem isso em primeiro lugar. Então só a Justiça é verdadeiramente justa, ou só Chronos é o verdadeiro político. Na medida em que ele dá a participar, ele dá a participar segundo o modo como o participante se amolda à própria Ideia de Justiça, de Beleza, de política – enfim, segundo a própria Ideia. Então o grau de semelhança vai dar a qualidade em segundo lugar. Então ele tem uma qualidade em segundo lugar, ele é possuidor de um saber e de uma qualidade em segundo lugar. Ao possuir a qualidade, ele adquire a semelhança; então ele se torna uma imagem com semelhança – uma imagem que, se for observada apenas enquanto imagem, é puramente estética; mas uma imagem que tem semelhança já é dotada de virtude, já é dotada de um movimento ascensional fundamentalmente moral, já é uma imagem moral; então eu me torno um ser moral no momento mesmo em que eu me dirijo a esses modelos e conquisto a semelhança.

Haveria não apenas a semelhança em segundo lugar, não apenas a qualidade em segundo lugar: existiriam aqueles que se assemelham menos que outros ao modelo. E esses que se assemelham menos vão receber a qualidade em terceiro lugar, em quarto lugar, em quinto lugar – até uma ínfima ideia de cópia que ainda tem um mínimo de semelhança, que está pendurada por um fio. No caso de Platão é o tirano, o tirano ainda teria possibilidade. O escravo, o tirano, os camponeses – aí tem uma série de gradações que estão lá no limite. E o que é esse limite? Esse limite é exatamente o divisor de águas, é onde atingimos a verdadeira divisão. O que seria a verdadeira divisão? A verdadeira divisão é quando você já não tem mais semelhança, é quando você é uma imagem sem semelhança, quando você é uma imagem simulacro. O simulacro é uma imagem completamente sem semelhança. Pior do que isso, o simulacro é uma coisa mais terrível do que isso: o simulacro produz efeitos de semelhança, ele ilude, ele engana. O simulacro é um enganador. Então o sofista, o artista, o tirano, os demagogos, geram efeitos de semelhança. Toda a questão política platônica é essa, é fazer com que a sua teoria das Ideias – aparentemente neutra, imperturbável, divina, sagrada – sirva como critério seletivo político de separação dos homens ou dos seres.

Participante: A arte é simulacro, não é?

A arte é simulacro. Haveria uma arte que passa pelo modelo do pai. A música, por exemplo, tem a harmonia como ideia essencial.

Participante: Algumas músicas.

Algumas músicas, música que tiver harmonia. A harmonia já é um modelo imanente que se manifesta como causa da ordem na geração musical. Isso já é uma herança pitagórica – tanto é que Platão, na obra As Leis ou na República, vai dizer que a prática da música, assim como a prática da ginástica, são fundamentais. Prática da música, das matemáticas, da álgebra e da geometria – para educar o corpo no caso da ginástica, educar um corpo bem formado, bem submetido, bem comandado; e a música e a matemática para começar a educar o espírito nesse movimento ascensional.

Então você tem uma imagem sem semelhança, uma imagem simulacro, que tem como qualidade essencial não a ausência de qualidade – como diria Platão em várias obras, desqualificando-a completamente como desprovida de toda e qualquer realidade –, mas uma qualidade demoníaca, verdadeiramente demoníaca. Platão acredita no Mal encarnado no próprio simulacro. E qual é a qualidade demoníaca do simulacro? O simulacro não é uma imagem que simplesmente não segue nem o modelo e nem a cópia, ele não nega simplesmente o modelo e a cópia; ele tem um modelo que é o próprio Outro – o modelo do Outro é o modelo do simulacro. E o modelo do Outro é o do Outro na natureza, não é modelo do Outro fora da natureza. O modelo do Outro na natureza é o que Platão vai denominar como imitação. Então a verdadeira cópia, para Platão, é produtiva; e o simulacro é que é imitativo. Imitativo, improdutivo, embusteiro, falsário; tudo que há de mau, todas as potências do Mal se encarnam no simulacro.

Participante: Na realidade é a diferença.

Na realidade é a diferença. Se você observar, todo animal, todo vegetal e todo mineral é radicalmente antiplatônico – estão sempre inventando máscaras, simulacros: a folha que imita a ferrugem, imita a ausência de vida para que certos animais ou insetos não a comam. Que potência louca é essa da natureza? É uma potência completamente imanente ao simulacro. Completamente demoníaca. Os vegetais são demoníacos.

Participante: O bicho-pau que parece uma madeirinha.

E o que é mais incrível no simulacro é que ele inclui o ponto de vista do observador, ou seja, ao produzir aquele efeito ele já está se pondo do ponto de vista do observador. Então o futuro do observador com o seu passado se dão ao mesmo tempo, é passado e futuro ao mesmo tempo. É o devir louco de Platão, é o Filebo, é o mais ou menos que vai ao mesmo tempo. É o devir louco, absolutamente louco. É por isso que você pode dizer que a árvore pensa, que a folha pensa; porque é essa inclusão do ponto de vista do observador que cria a máscara com efeito de semelhança e o efeito de semelhança ou de identidade; ou seja, a identidade e a semelhança agora são simuladas com objetivo absolutamente político – de defesa, de guerra, de combate, de triunfo, de expansão. Porque o vegetal quer se expandir, o mineral quer se expandir, o animal quer se expandir. E se conservar ao mesmo tempo. Então são técnicas e estratégias de vida, de existência.

Participante: Mas essa ideia é em relação a toda a natureza ou à espécie humana?

Existem coisas que não ficam totalmente explícitas. Platão inclusive tem uma dúvida – e aí está a tua dúvida também – se haveria Ideia de tudo na natureza. Esse é o grande dilema em Platão. Por isso ele vai atingir a definição de simulacro ao definir o sofista, ele vai ver que o sofista não é um mero não-ser, não é um mero falsário, não é uma mera ilusão e irrealidade. Ele tem uma potência, uma potência do falso – que Nietzsche vai tomar como elemento máximo da sua obra: “eu quero a mais alta potência do falso”. Nietzsche, como antiplatônico, vai assumir isso. “As almas querem naturalmente a verdade? As almas não querem a verdade, todo mundo quer o falso”. A natureza quer o falso. O falso é isso, essa capacidade de produzir simulacros; e produzir simulacros é produzir territórios existenciais, é a capacidade de fazer a vida respirar, produzir atmosfera, produzir ecologia para a vida. Atmosfera da vida é exatamente essa criação de simulacros, é isso que a vida faz. Então o simulacro não é um mero fingimento, ele é produção de uma maneira da vida passar, de uma maneira de ser, do ser passar.

Participante: A minha dúvida é se realmente isso era para ele em relação a tudo ou se ele está falando de homens.

O que ele vai dizer é o seguinte: haveria um modelo do Outro, haveria um modelo que não é o modelo do Mesmo, o modelo da identidade, mas um modelo do Outro ao qual uma parte da natureza seguiria – a natureza mineral, vegetal, animal, humana. Claro que ele vai identificar isso primeiramente no elemento humano, ele vai se centrar no elemento humano. Haveria a Ideia da sujeirinha alojada sob a unha? Uma Ideia da lama? Uma Ideia das coisas espúrias? Platão quer saber se tem Ideia de tudo. Então haveria uma parte da natureza que não é digna desse mundo das Ideias: a lama, a sujeira.

Participante: É uma coisa de exclusão.

Exclusão, você exclui uma parte do acaso. É por isso que quem quer um mundo melhor sempre é o moralista, aquele que quer o melhor e recusa o pior porque vê uma parte pior que deve ser negada na natureza.

Participante: Melhor do ponto de vista dele; mas por que você está falando de “modelo do Outro”? Explica um pouco mais essa expressão?

No Parmênides Platão vai inclusive ultrapassar a verdade tautológica dele. Por que? Num momento da obra dele ele chega a um impasse: a Justiça é justa, a Beleza é bela, etc.; então você não pode fazer nenhuma atribuição lógica de uma coisa a outra coisa, você não pode atribuir qualidades a sujeitos, por exemplo. Você inviabiliza a lógica, você inviabiliza o pensamento, você só pode falar que o Mesmo é o Mesmo. Então Platão, ao cometer o parricídio – que é o assassinato de uma ideia de Parmênides, que ele diz que é o pai dele ideologicamente, digamos assim, ou idealmente – vai dizer, ao contrário de Parmênides, que o não-ser é, de alguma maneira. Parmênides diz: o ser é e o não-ser não é; mas Platão vai dizer que o não-ser, de alguma maneira, é. Então isso vai se dar no plano das Ideias e também no plano da natureza. No plano das Ideias vai ser a condição de atribuição, vai ser o fundamento da lógica da analogia – é uma tese que eu defendo, inclusive: que a analogia não iniciou com São Tomás nem com Aristóteles, foi Platão que fundou lá nessa lógica da atribuição, com o seu parricídio com relação a Parmênides.

Agora, “o não-ser é, de alguma forma, no plano das ideias” é diferente de “o não-ser é no plano do simulacro”. No plano das Ideias é uma separação entre o modelo e a qualidade, entre o imparticipável e o participado, digamos assim, ou entre o Pai e a Filha, ou entre o fundamento e o objeto da pretensão. Essa separação, é o modelo do Outro que introduz. Mas o modelo do Outro na natureza é quando eu, em vez de amar a Beleza em si quando eu vejo um corpo belo, ou me lembrar da Beleza que eu vi antes de encarnar esse corpo, eu sigo o modelo do Belo e vou me encarnar nesse Belo, vou até as últimas consequências, vou me misturar no plano corporal; e no plano anímico, da alma, eu vou simplesmente entrar em jogo com modelos de vida a partir do próprio Outro e não a partir de uma Ideia em si mesma. Então eu vou me relacionar ao Outro. Essa ideia de se ligar ao Outro, de se ligar ao mundo, de se ligar à natureza, é que Platão censura. Platão quer por um corte aí: “gente, antes de vocês se ligarem à natureza, rebatam-se nesse plano divino; antes de você fazer um gesto, ter uma ideia, ter uma ação ou uma reação, siga o modelo que está no mundo ideal”. É esse intermediário que Platão quer introduzir; ele introduz um plano de transcendência que vai ser agora um elemento terceiro, um intruso, no meio da relação direta que até então a natureza tinha com ela mesma. O modelo do Outro na natureza, para Platão, é o modelo que leva à degradação, que leva à perversão; porque o Outro me leva sempre a um devir e Platão quer bloquear o devir, ele quer limitar o devir, ele quer dar a medida às imagens, ele quer fazer com que as imagens estéticas virem imagens morais, virem imagens cópias. É isso que ele quer fazer.

Então fica muito mais claro a questão do verdadeiro motivo platônico. O que Platão quer? Ele não quer simplesmente criar o mundo das essências, das Ideias; ele quer fazer com que essa divisão inicial – entre mundo das essências e das aparências, das ideias e das imagens, dos modelos e das cópias – sirva como critério para uma divisão mais profunda. Então aquela narrativa mítica na verdade era a segunda ironia, ou a segunda aparente escapada platônica: Platão abdica de fazer a divisão, aparentemente, mas ele está introduzindo o modelo, o critério para que se leve a divisão a cabo.

Participante: A exclusão.

A exclusão da diferença.

Participante: Depois que eu me remeto a um modelo; eu não estou na relação, eu estou no modelo.

Não está na relação, você perde a relação. Você só é virtuosa se você, ao ter a relação, passou antes pelo modelo. Aí você pode ter a relação. É por isso que Platão elogia o amor, os apaixonados, elogia a loucura: é para entrar em relação mesmo, mas entrar em relação segundo o modelo do amor verdadeiro, do verdadeiro amante e da verdade do amor. Platão vai fazer uma coisa com uma sutileza incrível: ele vai unir a ideia de desejo, amor e verdade. É aí que ele une desejo e pensamento. E ele une de uma forma extremamente perversa. Perverso é ele, para o rebatermos aqui e agora. Devemos encurralá-lo como ele encurrala o sofista. Ele é que está fazendo esse movimento.

Participante: Eu quero colocar uma pergunta. Você fica falando, mas escapa. Eu não entendo ainda a artimanha dele. Por exemplo, quando eu pego o marxismo eu entendo onde fica a mecânica, mas eu não entendo a potência disso que você fala. Quer dizer, que potência do giro, dessa inversão que inclusive você fala no texto; é quase como se ele ocupasse o lugar de um mito. E aí eu esbarro na outra pergunta da semana passada que ainda está aí trabalhando. Mas eu não entendo de onde vem tanta potência dessa inversão de Platão para ela se sustentar e se desdobrar até hoje. Eu entendo a potência do simulacro.

Nós vamos entender isso, de forma clara, com Espinosa e com Nietzsche. Nietzsche principalmente. Mas vou te dar uma prévia. É o seguinte: todo corpo cansado, todo pensamento confuso, todo aquele que não atingiu o pensamento e que não se sente à vontade no movimento da natureza, que não se sente à vontade com a própria natureza, que tenha algo de alguma forma que o incomoda, que o atravessa – depois vamos ver o que é esse algo: no fundo é o jeito como o corpo é organizado e como a alma é tratada segundo os valores estabelecidos; mas vamos dar isso como dado, agora, tem algo que incomoda e que atrapalha o corpo -, esse corpo e esse pensamento necessariamente ficam separados do que eles podem, eles separam o ato da sua potência. O que queremos aqui, para entrar em devir, é fazer com que a potência seja em ato, é reconquistar o ato na potência – porque senão você é uma potência impotente. Para você ser uma potência potente você tem que ser uma potência em ato.

Ato é capacidade de atualizar, de efetuar, de realizar; a potência é uma força virtual, digamos assim, que se efetua, que se realiza, nos encontros, nos agenciamentos, nas relações. Então a capacidade de entrar em devir, de entrar em relação com o outro – esse outro é tudo, no caso, e no fundo é um outrem porque a coisa é impessoal; é o fato de entrar em relação, por si só. O ato está na capacidade mesma de afirmar a relação enquanto relação – é aí que está o ato. Então para você reconquistar essa capacidade de afirmar a relação, atingir essa positividade da vida e da natureza, você não tem necessidade de nenhum referencial porque o referencial é gerado na medida em que você vive, que você se efetua, que você pensa, que você se movimenta. No momento em que alguma coisa te incomoda, te atrapalha, você é paralisado, quebra essa afirmação de relação. Alguma coisa se passa ali que você se paralisa, digamos assim. No momento em que você se paralisa você perde a capacidade de atualizar, a capacidade do ato, a capacidade de passar; essa afirmação de devir ou de passagem é que se vai. No momento em que isso se vai, você fica na impotência, você fica perdido, você fica sem referencial porque pensar é pensar em ato, é pensar exatamente esse movimento. Ou seja, a natureza se pensa – e se pensa também através de mim.
Isso que se passa em mim ou nos meus encontros é puro pensamento, desde que eu esteja afirmando o movimento. No momento em que eu perco esse movimento eu perco o pensamento também. E caio onde? Na imagem. O que era pensamento virou imagem e a imagem vira uma figura que cristaliza o devir, vira uma memória de marca, ela me marca. Então no momento em que eu tenho uma imagem, eu tenho outras imagens – tudo vira imagem. É por isso que Platão é um paranoico com medo de fluxos: ele vê o mundo como imagens. Ele já é um corpo cansado. Na realidade, como diria Nietzsche, será que Sócrates não mereceu a sua cicuta? Porque Platão era um jovem nobre e foi pervertido por Sócrates. Platão tem uma vontade fantástica. Mas aos 20 anos ele já se torna discípulo de Sócrates e põe a vida inteira dele a serviço desse ideal socrático. Ele vai elevar essa ideia socrática a mais alta potência. Platão então começa a ver nas imagens ameaças e esperanças. Então ele vai ter a relação das paixões tristes, como todo escravo tem.

As paixões tristes seriam advindas das ameaças que certas forças produziriam num tipo reativo, sob o ponto de vista reativo – efeitos da efetuação das forças ativas, dos corpos ativos que estão sempre em devir. E o que está sempre em devir não permanece, devém; não é nunca o Mesmo, é sempre outra coisa. Então essa outra coisa é fonte de discórdia, é fonte de desordem, é fonte de injustiça, é fonte de todo o mal segundo o ponto de vista platônico, ponto de vista reativo. Tudo que devém, nesta perceptiva, é fonte do mal. Não que seja possível estabilizar e paralisar absolutamente o devir; mas o movimento do devir mesmo deve ser submetido a um movimento circular – ou melhor, espiral; porque ao entrar em espiral ele vai para a altura, ele vai ascendendo. Então tem a ideia de círculo lá em cima que desce, então ela capta o movimento de devir; em vez de ser um movimento de devir louco – que se perde, que se degenera e que morre, que vai para o fim, que se desorganiza, que vai para o irreal, para o ilusório -, é um movimento que entraria numa circularidade eterna. Seria o único meio de obter a salvação, segundo Platão.

Então ele vê as imagens assim. As imagens que forem capazes de entrar nesse movimento, de se submeter à ação da Ideia – porque a ideia vai ser causa de movimento, ela vai ser princípio de movimento, princípio de realidade – vão ter um efeito benéfico. E qual é o efeito benéfico? É o ganho de qualidade da semelhança, que se adéqua internamente e espiritualmente ao modelo. Esse ganho de qualidade é um ganho também de realidade: eu tenho uma realidade em segundo, em terceiro, em quarto lugar, segundo a capacidade de me assemelhar ao modelo; segundo a capacidade de me libertar do corpo, de negar o corpo; segundo a capacidade de me purificar porque o corpo é fonte de esquecimento, é fonte de desordem e fonte de devir. É por isso que ele tem necessidade de um referencial exterior. Então todos os que têm necessidade de um referencial – e daí a potência da obra platônica, ou de um plano transcendente de organização – se sentem gratos. Por exemplo, os alemães: eles pediram um Hitler, eles precisavam de um Hitler, eles precisavam de um dirigente; eles estavam numa vida caótica, miserável, absurda; eles precisavam de um guia fora deles porque eles estavam na completa impotência e na completa invasão das paixões tristes, eles estavam totalmente dominados por paixões tristes – desespero, medos, ameaças, ressentimentos.

Participante: Não sei se é exagerar, mas se for assim, todos os Estados modernos foram formados por paixões tristes.

Todo Estado necessariamente se serve das paixões tristes. É por isso que somos contra o Estado. Todo Estado necessita de paixões tristes, mesmo o democrático. A sociedade que é incapaz de se autogerir e que precisa de um Estado fora dela para ser gerida está fadada a isso, necessariamente. Uma grande parcela de liberdade sobre a Terra desaparece nesse processo; uma parcela de ressentimento, de má consciência se dissemina e demanda esse plano de transcendência que necessariamente sempre instaura ou serve um tipo qualquer de Estado.

Participante: Eu estava pensando na formação dos países, dos Estados modernos, que vão copiar dos ideais iluministas, do ideal de igualdade, fraternidade e liberdade para montar as suas primeiras constituições. Quer dizer, sempre referenciais de lá para montarmos um projeto de constituição. O país vai começar a acontecer a partir do que é falado no mundo sobre o que deve ser um país.

Isso pode ser interessante como estratégia: vamos simular, vamos imitar, vamos nos assemelhar para não sermos esmagados enquanto estamos fracos, enquanto não temos consistência suficiente.

Participante: Usando, não é?

Usando. É assim que age a natureza toda. A vida começa imitando a matéria, senão a matéria esmaga a vida. É assim que fizeram os filósofos na origem do pensamento grego lá no século VI: eles começaram imitando o sacerdote. Você vê Empédocles: Empédocles você não sabe se é um curandeiro, um sacerdote ou se é um filósofo. Pitágoras mesmo, ainda que Pitágoras já tinha afetos xamânicos. Tales. O próprio Heráclito: Heráclito diz que o saber e o pensamento são sagrados, só que ele está falando de um ponto de vista que realmente é sagrado – o homem vulgariza o saber laico e profano limitando-o aos interesses utilitários da vida cotidiana, das riquezas, das relações de interesse; Heráclito está fora disso, ele quer atingir o pensamento puro e o corpo livre.

Participante: Mas isso não é uma estratégia consciente, não é? Espinosa foi um que sofreu na carne por talvez não ter tido essa prudência. Foi ameaçado, teve que sair, sofreu atentado a facada, fugiu.

Mas Espinosa talvez tenha sido um dos mais prudentes, apesar da violência da obra dele. Se você lê o Tratado teológico-político, Espinosa é de uma clareza total. O cara vai dizer coisa da seguinte natureza: os dez mandamentos de Moisés foram feitos para fundar o Estado de Israel, para fundar o Estado judaico; porque até então os judeus não tinham uma pátria, não tinham um Estado, não tinham uma sociedade. As doze tribos que são unidas a partir daí se baseiam em leis de um paranoico, evidentemente – Moisés ouve vozes, ouve Deus falando na montanha – e não é uma paranoia qualquer e não é uma lei qualquer: ele vai atingir modelos de leis que são extremamente úteis – não matarás, não cobiçarás a mulher do próximo; uma série de modelos essenciais para que a sociedade mantenha o mínimo de relação. É uma sabedoria de relação social, na realidade. Só que o pensador entende como sabedoria de relação, mas o povo tem que obedecer aquilo como lei. Então Espinosa tem uma consciência claríssima, ele é superconsciente dessas coisas, e ele diz exatamente o que é para ser obedecido e o que é para ser entendido, como a coisa se dá. Ele diz que esse é um estágio primitivo, um estágio inicial; não que os homens tenham ultrapassado isso inclusive hoje, os homens continuam nesse estágio primitivo, mesmo na era da informática – porque eles continuam no primeiro gênero de conhecimento que é a imaginação.

Toda ação que depende de uma imagem para se efetuar necessariamente faz com que a alma flutue e o corpo se submeta. Não tem liberdade aí. Então você só pode esperar ou temer: você espera que tudo ocorra de acordo, na medida em que você obedece a essas leis; que essas leis gerem o Bem e não a discórdia; e você tem a ameaça de punição ou do mal ou da desordem se você desrespeitar essas leis. Então você vive sob as duas paixões tristes básicas que o Estado estimula sempre nos povos: esperança e medo. Você espera e você tem medo, são os dois móveis essenciais.

Participante: Não sei se eu vou voltar no mesmo ponto mas eu ainda não tive uma resposta inequívoca. Porque Nietzsche fala do surgimento do Estado: ele surge como um raio. Em Kafka também, de repente surge o Estado. Mas não há uma clareza de como é que foram passo a passo esses encontros. Se a natureza tem essa essência, ou se ela é genericamente ativa, e o homem, fazendo parte nisso, também é, como é que acontece isso? Por que não esconjura isso, alguma coisa que submete o corpo? Por que hoje virou esse nojo que a vida é? Todo mundo sente. Tem gente que você vê que tem essas esperanças, tem esses medos, e tem essa vidinha. Como é que suportamos isso?

São duas coisas aí. O Estado é absolutamente artificial? Ele veio do nada como um mal que veio de um outro lugar? Não, o Estado também tem a sua imanência, esse mal também tem a sua imanência. Mas o mal, o Estado, não está no fundo da natureza, não é uma lei de natureza, ele é um acontecimento também. E o Estado já está lá no mundo selvagem como elemento virtual.

Participante: Mesmo sendo a essência ativa?

Mesmo sendo a essência ativa. Quando você tem a essência ativa atuando, a essência ativa sempre está inventando mecanismos de esconjurar o Estado. Existe um texto do Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado, que é fantástico sobre isso. Ele fala sobre os índios guaiaquis, tem um texto sobre o arco e o cesto, tem vários textos onde o Pierre Clastres insiste muito que os selvagens – e aí a questão entre a dualidade da consciência e do inconsciente é absolutamente desprezível; se é consciente ou inconsciente isso não interessa, o que interessa é que isso acontece –, a sociedade, reiteradamente cria e repete mecanismos de esconjuração do poder. Ela esconjura de várias formas. O chefe na guerra, por exemplo: ele tem uma função na guerra; quando ele volta para a tribo, esse chefe tem a função de falar muito – e os outros não têm a mínima obrigação de ouvir, geralmente ele fala sozinho – e ele dá muito presente. Então o chefe tem uma função terrível, ele tem que dar muito, ele não pode explorar ninguém, dominar ninguém. A função dele de comando é só no acontecimento da guerra – aí ele comanda, ele dirige. Mas é sempre para manter a tribo íntegra, coesa. Então esse mecanismo – o chefe tem a obrigação de falar muito sem que ninguém tenha a obrigação de ouvi-lo e de dar muitos presentes – é um mecanismo de esconjuração do Estado.

Participante: Eles lutam constantemente contra o Estado?

Constantemente isso volta contra o Estado. Exatamente. Esse elemento, por exemplo, esse dispositivo, impede, mas o Estado está ali na figura do chefe, ele pode surgir. Não é questão pessoal, não é que o chefe vai encarnar o Estado, nada disso. É que em certos encontros, em certas linhas que levam a uma certa conjunção, isso pode emergir. Mas depende de uma pluralidade de linhas. A coisa é impessoal, não é o gênio do mal, alguém que veio e implantou o Estado; são situações que fazem com que aquilo emerja. Se você tem dispositivos que impedem a ligação dessas linhas, você mantém as linhas separadas sempre.

Participante: É aquela coisa das sociedades matrísticas?

É também. Matriarcais.

Participante: Se não estivesse ali não precisava de mecanismos de esconjuração.

Sem dúvida. Mas acontece isso conosco mesmos. Se você olha uma imagem e se você cai numa fascinação dessa imagem, por exemplo, você fica fascinado pela imagem; ela te domina, ela te hipnotiza, você fica imobilizado e você reverte o processo de afirmação e de comunhão com aquela imagem. Você simplesmente se submete. Você inverte a relação de forças dentro de você mesmo.

Participante: Essa é a minha pergunta. Quando as forças reativas dominam as ativas?

Se vocês tiverem um pouquinho de paciência, quando chegar em Nietzsche…. Mas, já adiantei muita coisa, já falei muito sobre isso. Mais uma coisa: o segredo, ou a pedra de toque, está na capacidade de esquecer ou de recalcar as marcas. Toda relação tem marca e esse recalcamento é necessário, ele é vital; não é um recalcamento negativo, ele é um recalcamento seletivo, ele deixa a passagem para as forças mais nobres e essas marcas viram mero estoque sinalizador. Elas sinalizam.

Participante: É a coisa do presente mesmo, não é?

Exato: não congelar o presente. O presente no movimento. Você tem que ser capaz de esquecer o que o presente produz como marca, como imagem, como figuração. Não é fácil. Inclusive numa sociedade visual, somos treinados com os olhos a fixar.

Participante: A questão da imagem, a propaganda, é um bombardeio.

Bombardeio incrível de imagens em sequências. E achamos que pensamos associando imagem com imagem. No melhor dos casos é uma imaginação estudiosa, uma imagem encadeada com certos critérios.

Participante: É uma coisa proposital mesmo, algum desses autores fala dos mecanismos de esconjuração das marcas?

Espinosa fala, no livro III da Ética, como as imagens e as paixões se encadeiam e como elas podem ser vencidas. Uma paixão só é vencida por uma paixão mais forte, um afeto mais forte. Você quer deixar de fumar e você não consegue; é uma paixão triste que te pega porque te faz mal, te diminui a potência, enfim. Não adianta você dizer de uma forma moralizadora, através da instância da consciência, “parei de fumar”. Tem algo que se passa quando esse enunciado é feito. Esse enunciado só é feito e é eficaz quando algo já se passou e esse algo que já se passou é um afeto mais forte do que aquele de fumar. Então há uma terapêutica, há uma clínica em Espinosa; e há um cuidado em dizer como adoecemos e como nos tornamos saudáveis novamente, segundo o modo como as imagens e as paixões se encadeiam. Então há um encadeamento terrível das paixões tristes e há um encadeamento interessante das paixões alegres que te conduzem à ação. Porque o objetivo não é ficar nas paixões, mesmo alegres; é atingir as ações porque a ação é sempre alegre. Não existe ação triste, toda ação é alegre – não há depressão, não há angústia, não há nada na ação. A ação é perfeita, tudo é perfeito na ação; o mundo é perfeito, não falta nada, você reconquista o infinito na capacidade de agir. O agir já te leva para o infinito, ele te põe em contato direto com o infinito. Então não há cura melhor que essa, essa cura é perfeita. Não é cura, é só recontato – você readquire o contato.

Participante: Estou ainda na potência do Platão. Quando eu li na Lógica do Sentido, não está aqui escrito mas eu pensei assim: que danado o Platão! Porque ele criou um baita simulacro. É isso que eu fiquei pensando. Aí eu fiquei pensando que quando ele funda a história da cópia, da semelhança, tem algo ali a que vamos como a um ímã. Então o simulacro tem um campo de imanência. Aí mudou a questão do simulacro. Aí eu fiquei pensando assim: como é que eu consigo passar a transcendência como imanência? Esse é o simulacro de Platão. Essa é a questão da potência que confunde. Porque claro que para ter essa reverberação toda, e isso é tão contemporâneo, ontem eu estava na reunião e ficava pensando no texto e vinha essa questão da ação e pensamento totalmente separados, quer dizer como essa imanência que está na transcendência, quer dizer, aparentemente existe uma imanência na transcendência porque nós acabamos capturados. Essa é a questão do simulacro de Platão que eu fiquei pensando que é ardiloso. É ardiloso, mas opera. E, se opera, tem.

Então, voltando de novo. A questão da imagem. A imagem fora também é imagem dentro. Eu percebo a minha atenção, por exemplo – a minha atenção e a minha percepção – como sendo uma consciência, mas como sendo a parte divina da minha alma também. Lembram que eu narrei a ideia de que os xamãs trouxeram de uma alma que se separa do corpo? Uma alma que viaja, que gera a ideia de ubiquidade. E que os sectários ou as seitas religiosas que buscavam a salvação individual se serviram das práticas ascéticas para fazer com que essa alma se separasse ainda mais do corpo e inventaram nisso um motivo para acusar o corpo: que o corpo era a fonte de prisão ou até o túmulo da alma na medida em que, com o corpo desperto, essa alma estaria adormecida. E essa alma viajaria tanto mais e se separaria tanto mais do corpo quanto mais o corpo estivesse adormecido.

Na medida em que ela tem essa capacidade, eles vão interpretar isso como ela tendo uma origem separada, uma origem divina. Essa origem divina é o mesmo sentimento que eu tenho da minha consciência quando eu estou separado do que eu posso. Isso que é gerar a transcendência na imanência: eu estou na imanência separado do que eu posso. Ou seja, eu perdi a imanência. Então eu jogo para onde? Para um outro mundo e de lá as coisas emanam; não há mais imanência, há emanação. Então há uma emanação. Eu emano de lá, eu vim de lá, o meu mundo é no passado, a minha verdade está no passado; é por isso que o saber platônico é saber de reminiscência. E é por isso que Sócrates diz que é um parteiro: ele tem a mesma profissão da mãe dele, porque ele simplesmente vai estimular, através da maiêutica e da sua dialética, a verdade que você já tem em você mesmo, a verdade que você se lembra de uma outra encarnação. Então as verdades estão prontas já, são sabedorias prontas. Isso é a negação da filosofia. É por isso que Nietzsche diz: com Sócrates não é o começo da filosofia; é a decadência da filosofia que inicia com Sócrates, porque eles (Sócrates, Platão) acreditam em ideias prontas, em sabedoria pronta que estaria num passado divino que eu tenho que resgatar através da minha ascensão anímica.

Participante: Esse é o mito.

Esse é o mito. Então há um mito de que a minha parte divina da alma não é da natureza; a natureza já é o castigo da alma, a natureza é o exercício, é a provação da alma. Então quanto mais, segundo Platão, eu for capaz de obter semelhanças, mais eu me purifico e mais eu sou capaz de sair do ciclo das reencarnações.

Agora vamos para o modelo puro e simples, o modelo platônico. Você tem lá então plano de transcendência. Os modelos platônicos vocês podem associar a qualquer sociedade ou valores de época que tenham os valores estabelecidos como princípios sociais ou do bem social, da harmonia social. Então uma época acredita, por exemplo, que a loucura do delírio, como é o caso da sociedade arcaica grega, é coisa de deuses, coisa benéfica, é coisa que destaca um homem e ele se comunica diretamente com o sagrado; ele é mais que o profano, ele se comunica direto com o sagrado. Em outra época, por exemplo no século XIX, Pinel diz que a loucura é doença mental. Então você tem valores que mudam segundo as épocas. Cada época é singular na sua posição histórica e geográfica, ela tem os seus elementos que a condicionam, ela tem linhas ou diagramas de força que levam a aquela formação social. E aquela formação forma o corpo e forma a alma, forma o desejo e forma o pensamento, forma as duas coisas.

Participante: E estados de corpo.

Forma estados de corpo e estados de alma; e a consciência sintetiza os dois. Exatamente. Então o plano transcendente de organização é sempre um valor exterior – não importa se seja ao modo platônico, ao modo de Aristóteles – que vai ser uma ideia gerada a partir da psychê -, ao modo cristão -interiorizando numa má consciência – ou numa sociedade qualquer. Importa sempre que aquele que está separado do que pode almeja, deseja, aspira por um valor fora dele para que o oriente; ele suplica, ele faz sacrifícios – assim como um homem faz sacrifícios aos deuses ou a um deus, ou faz uma promessa indo de joelhos ou a pé para Aparecida do Norte porque quer uma graça, alguma coisa. Ele suplica alguma coisa de fora na medida em que ele vai cumprir uma ordem imanente a aquele valor, a aquele modelo, a aquela ideia.

Esse homem então que necessita disso funciona do mesmo modo como funciona o sistema platônico: você tem lá um valor em si – e fora de si -, você tem a imitação desse valor, o rebatimento sobre esse valor e uma autocópia, digamos assim: você se autocopia a partir dali – o que levou inclusive La Boétie a dizer que existiria uma servidão voluntária. Mas no caso é mais como Espinosa, que diz: os homens desejam e combatem por sua servidão como se se tratasse da sua liberdade. Por que? Eles estão buscando valores fora deles e isso é servidão pura. Eles estão investindo nisso e eles têm uma vantagem nisso: eles conseguem sobreviver.

É isso que Nietzsche viu profundamente: qual é a vantagem do ressentimento, qual é a vantagem da má consciência? Ainda é um apego à vida e à sobrevivência; ainda é querer conservar o seu corpo, a sua alma; ainda é um suspiro de vida. Porque é o modo que você tem de se proteger dos fortes, dos que estão em devir, dos que agem, dos que afirmam; porque os que agem, os que afirmam, são insuportáveis para aqueles que não têm a potência de agir e de afirmar. É por isso que a sociedade deseja os outros fracos – uma sociedade que é fraca deseja que todo mundo seja fraco. E é por isso que os sacerdotes têm um poder incrível, aumentado, na medida em que a miséria social aumenta. Porque o sacerdote vive exatamente do aumento da miséria dos outros: quanto mais miserável o outro é, mais ele precisa do sacerdote, mais ele investe o poder do sacerdote. Como quê? Como intermediário para que o sacerdote revele a verdade que esse miserável não consegue atingir. E não há iluminação possível que vá iluminar esse miserável porque essa verdade não existe, é um mito. Isso é um inferno terrível e eles buscam isso como se fosse o céu; ou nós às vezes buscamos isso, nós caímos às vezes nisso. Eu me exercito sempre para não cair, mas acho que é difícil.

Participante: Não é só o sacerdote.

O capitalismo faz isso de uma forma sutil e nos pega o tempo inteiro.

Participante: Não, ele antecipa o tempo todo.

E por isso nos pega: se não estamos antecipando, se não estamos no acontecimento enquanto acontecimento, ele já foi, já se efetuou; e você só tem a consciência de que você foi enrabado. Aí te resta ou o ressentimento ou a tristeza, que te faz pensar.

Participante: Ele toma o lugar do acontecimento porque justamente está, aparentemente, na frente – que é aquela história da transcendência e da imanência de novo.

Ele toma o lugar do acontecimento e dos territórios existenciais. Ele solapa o território existencial porque ele te vende o território existencial, ele tem que vender o território.

Participante: É uma condição quase que imposta, sugerida, para você conseguir o bem-estar.

Condição a priori de relação; sem isso você já é excluído de cara. Incrível: você é tanto mais excluído quanto mais você se inclui nisso. Por isso que é suspeita a ideia de incluir os excluídos, também é uma ideia muito ambígua. É interessante incluir os excluídos, mas incluir onde? Em que projeto, em que interesse, em que relação?

Participante: Porque não tinha nem que existir excluído, não é? Qual é a vantagem do miserável continuar sendo miserável? Porque parece que ele perpetua, por voluntarismo mesmo, a sua condição de miserável; ele continua buscando fora.

Não é um voluntarismo na medida em que aqui não tem vontade pessoal mais. A vontade é a própria relação, a vontade é a relação e a distância na relação; isso é que é a vontade. Então se eu sou feito de uma pluralidade de relações e uma pluralidade de distâncias, a minha vontade já é plural. Então a relação que se atravessa em mim, ou as vontades que se atravessam em mim, dependem também de conjunções externas; mas fundamentalmente do modo como eu, no mesmo lugar, me transmuto. Eu tenho que operar um acontecimento no mesmo lugar para não ver vantagem de alimentar a miséria.

Participante: Mas parece que, para isso, o esforço é muito maior do que o esforço de procurar o sacerdote, o psicólogo, um pai.

Aparentemente é, porque o mito é muito grande. É como ligação forte e ligação fraca em química: a vida funciona o tempo inteiro em cima de ligações fracas porque as ligações fracas se ligam e se desligam e se ligam com outras coisas – e a vida passa assim. A ligação forte não, ela se cola ali e fica aquela coisa forte, engatada, que não tem como você se soltar; então você precisa de um excesso de energia para romper aquela ligação, uma energia muito grande. Quando você incorpora um mito a esse nível você precisa, aparentemente, de uma quantidade de energia infindável para romper essa ligação, esse vínculo, esse aguilhão. Mas, na verdade, isso é um mito. É por isso que no caso de alguém que perdeu a autonomia – e que precisa de auxílio da clínica, por exemplo -, a clínica tem que ser uma atmosfera geradora de confiança para que você seja capaz de aventurar-se nas relações abertas e não precise de referenciais. Você pode até criar referenciais efêmeros que vão se diluindo na medida em que aquele paciente se torna novamente agente e vai reconquistando a confiança na ação; se você gera uma atmosfera propícia, ao mesmo tempo você diminui a necessidade de uma quantidade absurda de energia para romper aquele vínculo: a atmosfera já é uma condição para que aquilo aconteça. Assim, uma cena de teatro, por exemplo: você cria uma atmosfera para que aquela cena se incorpore, para que aquele acontecimento se passe ali. E tudo na vida é assim. É por isso que os rituais às vezes são muito interessantes. Você pode usar o ritual de uma forma completamente positiva. É por isso que a máquina mágica de Don Juan em Castañeda funciona; não como uma máquina mística – ainda que muitos mistifiquem –, mas você pode gerar um buscador.

Participante: O que te extenua e te deixa com o corpo e a alma cansados, a alma flutua e essa busca de buscar a mesma quantidade de energia para poder vencer esses aguilhões, só de buscar você já está extenuado.

Porque você já parte de uma imagem e aquela imagem é uma ficção.

Participante: Ele fala “conserve a energia”, “coopte a energia”.

Economize energia, não desperdice energia. A impecabilidade do guerreiro está na economia de energia, em não desperdiçar energia. A alguns ele recomenda até não fazer sexo, porque é fruto de uma corrida aburrida, como ele diz. Uma trepada aborrecida, digamos assim, uma coisa frouxa, sem verdadeiro gozo, sem tesão; e ele chega a gerar esse artifício, esse tipo de atmosfera – economize a sua energia, aplique em outras coisas. Isso não significa que ele está dizendo “sublime a energia”; não é nada disso, é “invista a sua energia”, faça sexo de outras formas, pode-se fazer sexo de n formas. Nada de moral, tudo são critérios estratégicos.

Então, voltando à questão do plano transcendente: Platão desenha lá o seu plano modelar, que é o plano de qualquer Estado, de qualquer poder, onde os indivíduos devem se rebater. Então os indivíduos, que são imagens, que são corpos, que são almas, seguem esse modelo, investem esse modelo; eles têm que investir o desejo lá. É por isso que eles desejam o plano, eles têm que desejar o plano. E daí a sutileza platônica: o amor platônico não é uma coisa qualquer, ele une o amor à verdade. E ele vai mitificar mais, ele vai dizer que nós temos um amor natural à verdade. Nietzsche vai dizer: que amor natural é esse? Que verdade é essa? A verdade é sempre a que você merece, a verdade é sempre um simulacro. Você tem a verdade que merece segundo a capacidade de você vislumbrar o real, de entender, de interpretar e avaliar. Interpretar é gerar um sentido e avaliar é dar um valor para aquele sentido – isso é que é pensar para Nietzsche.

E Platão acredita que não, que o pensamento é um movimento de uma imagem cópia, um movimento natural em direção ao modelo; então que a alma vai naturalmente para a sua origem, que a alma estava lá já antes de encarnar. Então o conhecimento platônico é uma recognição, necessariamente é uma recognição, é uma rememoração. Por isso que em Platão no fundo não se cria nada e não se produz nada, as coisas estão prontas. Mas em todo plano transcendente de sociedade, em todo Estado, em toda constituição, o ideal sempre é esse, é para que não se mude nada, é para que as coisas estejam em si, prontas, e para que funcionemos e respeitemos aquelas leis como sendo eternas. Esse é o ideal de toda a sociedade: criar leis que ao menos fiquem por mais tempo possível. Mas aquilo gera sempre a ilusão de que elas são eternas.

Ou valores de época: quem está prisioneiro aos valores de época necessariamente acredita que esses valores de época são valores universais. Édipo: Freud caiu nisso, era prisioneiro de um valor de época e acreditou que Édipo era universal, que a estrutura edipiana do nosso inconsciente era universal. É apenas um valor que se instaurou do século XIX para cá; antes disso não tinha Édipo, ainda que tenha certos tipos de relação, mas não se compõem como Édipo se instaura na sociedade capitalista.

Então relacionar-se com os valores em si sempre implica que você já está separado do pensamento e do corpo, você deseja esse plano, você ama a verdade que está nesse plano – ou seja, a sua erótica é sempre uma erótica platônica –; você ama de uma forma natural, e você tem a recompensa segundo esse plano. A recompensa é uma semelhança, é uma qualidade, é uma realidade, é uma organização. Porque esse plano é bondoso, é benéfico, é piedoso. Platão diz: o demiurgo, por piedade, se dobra em relação à natureza e forma a natureza, dá forma à natureza. É por piedade. Nietzsche vai dizer, numa das narrativas da morte de Deus: Deus morreu sufocado pela piedade que ele sentia pelos homens. De tanta piedade ele morreu. Isso é uma das versões cômicas da morte de Deus em Nietzsche. Esse plano sempre morre por excesso de piedade. É a mesma versão de um outro enunciado: as boas intenções são forçosamente punidas, tudo que eu projeto e espero, com a maior das boas intenções, nunca vai se efetuar.

Participante: De boas intenções o inferno está cheio.

Está cheio porque a boa intenção projeta uma forma que é inadequada ao devir, o devir não se sujeita a nenhuma forma. E Platão fica louco com isso, ele quer formalizar o devir, ele quer limitar o devir; mesmo que o devir esteja em movimento, mas é um movimento limitado e controlado, definido.

Então você tem o plano, as identidades, as verdades em si mesmas; o desejo que te leva a investir nesse plano; o ganho, a recompensa, a cópia, a verdade, a realidade – eu ganho realidade, eu me organizo, eu sou salvo, eu sou resgatado. Se eu desobedeço eu vou transgredir o plano e eu vou sofrer as punições; porque eu sou transgressor ou porque eu sou perverso, eu vou ser punido de alguma forma – ou no plano social ou no plano divino: se a sociedade observar que o indivíduo escapou imune ela vai dizer “mas de Deus ele não passa”; é o modo de apaziguar a consciência, a má consciência.

Participante: A vingança deixamos para Deus.

Onde não conseguimos – porque não conseguimos mais reagir, nós só ressentimos, não reagimos –, deixamos para Deus. Deus está vendo.

Esse modelo, então, é extremamente poderoso por esses motivos; se você faz um movimento de usurpação disso, imitando a verdade externamente para enganar a sociedade ou o Estado ou a Deus, você está gerando uma perversão, um movimento de desestabilização. Agora, se você gera esse movimento, ou você é capaz de se manter nisso ou você, necessariamente, é esmagado. E, no fundo, é essa a condição e o perigo dos devires nômades, do pensamento nômade, da vida afirmativa: necessariamente você vive na corda bamba. Mas viver na corda bamba, com o fio da afirmação não te dá nenhuma perturbação no sentido de angústia de morte, angústia do fim, angústia do esmagamento; você tem sim a sensação de que você tem que adquirir sempre mais e mais velocidade e se tornar mais e mais imperceptível. Ser mais veloz e mais imperceptível, no fundo é uma coisa só. Quanto mais veloz você é, mais imperceptível você é. Pode falar em nome próprio, usar o nome próprio, usar o eu, usar a representação, usar tudo o que é valorizado em sociedade, para melhor se esconder ou ser imperceptível, para melhor fazer passar os devires. Os devires não precisam de reconhecimento. Então a alegria, a força, a potência, se passa em outros planos. A sociedade só recebe o efeito disso. Quando se passa em sociedade, melhor ainda; como diz Espinosa, é uma alegria a mais. Mas se não se passar, não nos angustiemos, não desejemos a revolução no futuro, porque isso já é perder de cara o devir e a revolução no devir, porque a revolução se faz no devir.

Participante: O que é essa coisa de ser imperceptível? Eu queria entender isso melhor.

Ser imperceptível é não ser codificado ou rastreado pelos satélites, ou pelo plano transcendente de organização, ou pela sociedade de controle, ou pelos códigos. A abelha, por exemplo, é imperceptível no seu devir em relação à orquídea que, por sua vez, é imperceptível em relação à abelha. Se a abelha suspeitasse do que a orquídea faz com o que a abelha efetua na orquídea, a orquídea inventaria um outro mecanismo. E vice-versa.

Participante: Isso implica uma traição constante das identificações capturadoras.

Belíssima essa ideia. Ser traidor não é ser trapaceiro; seja traidor, nunca trapaceiro. Trair os valores estabelecidos, é isso mesmo; não ser capturado, não ser codificado. Isso, no fundo, não implica a destruição das vidas, dos corpos; implica a destruição daquilo que emperra a vida, porque as pessoas se confundem tanto, estão tão escravizadas que elas assumem as ideias mais parvas, as ideias mais nefastas como sendo ideias nobres e encarnam aquilo a ponto de morrerem por essas ideias. A questão nunca é pessoal, a questão é completamente impessoal. Mas as pessoas se tornam tão escravas e tão incapazes de se ultrapassar e se liberar desses valores que acaba sendo questão de fuzilamento, como, por exemplo, os Estados fazem. A China vai lá e executa 500 prisioneiros de uma vez. Quer dizer, isso tem vários sentidos. Mas isso ainda é uma forma tacanha de se relacionar; você ter que matar, você ter que negar, ainda é tacanho demais, ainda é pobre demais. Então você mede a potência e a liberdade de uma sociedade segundo a capacidade que ela tem de aguentar certos golpes e transmutar esses golpes – como faz, por exemplo, Sung Tzu na arte da guerra. Uma guerra bem vencida, bem ganha, é aquela em que você não derrama uma gota de sangue e transforma o inimigo em aliado de modo imperceptível. Então, isso funciona em tudo, inclusive conosco mesmos: nós conosco mesmos.

“O homem deve morrer”: aí o tolo vai lá e se dá um tiro. Absolutamente imbecil. O que é “o homem deve morrer”? É a forma homem gerada no homem que deve ser desmontada. E aí aquela questão sobre o humanismo – será que é possível falar de um humanismo libertário? Desde que o humanismo não seja mais ligado a essa forma homem que inventou o humanismo. Então acho que é melhor inventar uma outra palavra porque já está muito contaminada. O que importa não é a palavra em si, é o sentido; e o sentido qual é? Libertar-se da forma homem. E o que é a forma homem? A forma homem é a forma do imperativo categórico de Kant, é o dever pelo dever. Quando você incorpora o dever ao infinito você se torna um legislador – segundo Kant, um homem livre. Aí é que você entregou tudo, o ato, à moral. A moral é toda reguladora dos seus atos.

Então “o homem deve morrer”, ou “esse humanismo deve morrer”, é destituir as formas geradas por um tipo de forças que atravessaram o homem e se compuseram com as forças do homem; desmontar essas relações e unir o homem, as forças do homem, com outras forças capazes de gerar uma outra forma, uma outra maneira de ser. Então talvez o homem agenciado não com carbono, com as máquinas térmicas, mas com o silício, por exemplo, possa criar uma outra forma, uma outra expressão completamente diferente. Ou uma ainda mais terrível, pior. A sociedade de controle hoje é bem pior do que a sociedade disciplinar; mas, ao mesmo tempo, você tem toda a ocasião, toda a oportunidade para se liberar disso a todo o instante. Aí começam as sutilezas imperceptíveis da relação que você tem com o tempo e com o presente, como você vive o minuto, como você subdivide o seu minuto; de repente você está ouvindo uma música – e essa capacidade de esquecer é fantástica, que Platão recalcava ao máximo – e aquela música te faz esquecer de onde você está, de que tempo você ocupa; ela te tira da geografia e da história, ela te desterritorializa de modo tal que você é simplesmente levado, arrastado, como se um deus se apoderasse de você. Uma música se apodera de você desse modo. É como Henri Michaux narra a sensação depois de ele ter fumado haxixe: ele entra num cinema e imediatamente fogem as referências espaciais e temporais; ele perde a identidade, perde a relação com o mundo; mas ele ganha o devir. Então ele começa a perceber como a coisa funciona na imanência. Ele diz assim: eu queria descobrir o maravilhoso normal; como o cérebro, que faz micro-operações imperceptíveis – milhões, bilhões de operações num segundo –, opera em mim. Então você começa a entrar nesses micro-tempos, nessas micrológicas e nesses micro-espaços. Então, você subdividir as coisas, é o modo mais imediato que você já tem para começar a ativar a faculdade do esquecimento.

Participante: Essa é a revolução molecular?

Completamente. A revolução molecular é isso.

Participante: É paixão também.

É paixão porque você é um pathos absoluto em relação à potência de ser afetado. Você é uma potência de ser afetado, você se deixa modificar sem medo de ser destruído. O que não me invade, me fortalece – como diz Nietzsche. Sem medo de ser destruído. Claro que você tem que ter critérios seletivos, mas os critérios seletivos têm que ser o contrário dos que Platão criou, sem o referencial exterior, sem o referencial transcendente. O critério seletivo é aquele de um lance de dados vencedor. E qual é o lance de dados vencedor? É aquele em que você entrou em devir e foi capaz de afirmar até o fim aquela relação; e tudo que foi gerado dali é um presente do acaso e dos deuses, é uma estrela dançante que emerge no meio do caos, como diria Nietzsche. É um presente, tudo é dádiva; então a natureza é dadivosa se você sabe se relacionar com ela.

É difícil porque cada vez são mais sutis os mecanismos de captura e, claro, nenhuma sociedade inventou um dispositivo tão terrível quanto a nossa, que é o capital. No capital, nós dançamos muitas vezes. Tentamos, criamos, inventamos e muitas vezes não somos tão rápidos ou tão imperceptíveis. Então eu acho que o grande inimigo hoje é o capital porque ele gerou a transcendência mais imperceptível do mundo, que é a transcendência na imanência, é a transcendência na relação axiomática. Esse inimigo é o pior, e é o mais invisível, o mais imperceptível. É por isso que os sindicatos e as classes operárias fracassaram.

Onde está o inimigo? Hoje você vê, por exemplo, um partido como o PT muito mais valorizado por questões éticas – que atacam a corrupção e atacam uma série de atitudes e atividades sociais que levam à degenerescência e ao enfraquecimento de todo mundo – do que um PT ligado à luta de classes, ainda que você tenha uma parte forte ligada à luta de classes. Mas você vê que essa parte forte, sempre que domina, joga merda e você sente o mau cheiro. Sempre que essas forças da luta de classes, do ressentimento, dominam, é o pior que impera. Então, claro, a luta de classes tem o seu valor, ela tem a sua posição; mas ela tem o seu aspecto secundário que tem que ser visto como secundário – ainda que não seja terciário, quaternário: ele tem o seu aspecto, tem o seu valor, tem que ser valorizado, mas não como primeiro plano. Então é esse cuidado, essas sutilezas que a própria esquerda deixou de lado. Quando se diz e se cobra da esquerda: a esquerda não tem projeto; felizmente, podemos dizer, felizmente não temos projeto. Mas por outro lado, a esquerda tem consistência para gerar uma memória de futuro? Então, “não queremos projeto, queremos uma memória de futuro aqui e agora”; mas que memória é essa? É por isso que Platão é tão importante: sabermos visualizar o inimigo lá, quando ele ficou bem claro, e depois como ele vai sendo incutido em nós, como o Estado entra em nós.

E por isso a questão do mito de soberania, do George Dumezil e daquelas narrativas iniciais que eu fiz nas aulas iniciais, são tão importantes. Estudar o mito é muito importante. E é por isso que entende mal quem mitifica o mito, quem diz que o mito necessariamente é bom; eu já tive alguns feedbacks, uma vez eu fui acusado de ser impiedoso com os mitos, como talvez Sócrates foi impiedoso com os deuses, só que de modo contrário. Porque eu falei de modo indiscriminado em relação aos mitos. De forma alguma, os mitos criados nas sociedades selvagens – e “sociedade selvagem” não é depreciativo, é até um elogio, quanto mais selvagens mais livre somos, geralmente – não são mitos que levam à transcendência. E nem o mito dos guerreiros nômades, ou as práticas míticas ou ritualísticas dos guerreiros. Agora, quando você se utiliza do mito para fundar um Estado, para fundar uma instituição fora da própria natureza, aí começa nosso combate com o mito. Por isso dizemos que a razão, na sua origem, não é um milagre que veio do nada – nem no caso pré-socrático, porque são conjunções que acontecem, que levam a aquele tipo de pensamento afirmativo, e afirmativo do corpo e de si mesmo; nem no caso socrático platônico, em que a razão se funda totalmente no mito. Funda-se no mito porque sem identidade não existe a razão ocidental. E o que dá identidade a uma ideia é o mito porque não tem identidade no fundo de nenhuma natureza.

Toda a natureza é diferencial. No fundo da natureza só tem diferença enquanto diferença. Então eu sou uma identidade? Eu quero me tornar cada vez mais diferente do que sou – eis o meu objetivo; se há um objetivo, se há uma finalidade, é essa. Quanto mais diferente do que sou, mais a minha origem e o meu fim se distanciam, mais a minha vida tem força e estende o arco ou deixa o arco mais tenso para que o produto dessa vida seja o mais poderoso possível. Então é fazer da sua vida uma obra de arte, uma potência afirmativa, é você mergulhar no simulacro, usar o simulacro como a mais bela arte do pensamento. O pensamento tem como objeto o simulacro no ser nômade. E o simulacro não é dissimular, não é fingir; o simulacro é uma expressão plena daquele acontecimento, daquela ocasião, naquele lugar. O simulacro é a única roupa justa para aqueles fluxos, naquela ocasião, naquele lugar. Essa é a vantagem e a perfeição do simulacro. É por isso que Nietzsche diz que tudo na natureza vai em direção a mais alta potência do falso; o falso não como uma irrealidade, não como uma ilusão, não como uma degenerescência, mas o falso como a capacidade de se furtar a esses modelos, a esses valores de época, e criar sempre a forma própria de ser em cada ocasião, em cada lugar, com os seus elementos.

Sung Tzu na arte da guerra. Uma guerra bem vencida, bem ganha, é aquela em que você não derrama uma gota de sangue e transforma o inimigo em aliado de modo imperceptível.

Participante: Isso que nós poderíamos chamar de consciência.

A consciência acaba sendo gerada secundariamente em relação a isso. Não é a consciência porque isso é tempo puro e a consciência só se sustenta como tempo puro na medida em que ela é uma superfície absolutamente lisa. Quando ela está lisa, sem nenhuma marca, ela é uma tela aberta ao tempo puro. Aí sim ela é uma consciência. Mas o tempo puro é o pensamento, o tempo puro é o tempo puro dos processos. Você tem o tempo puro da relação enquanto relação e o tempo dos corpos enquanto extensão do ato no corpo. Vamos supor, tempo no corpo: o açúcar se dissolve na água. O tempo de dissolução do açúcar na água é o tempo de uma expressão do açúcar, de uma forma expressiva do açúcar, de um simulacro do açúcar, de uma maneira de ser do ser açúcar. Então aquele tempo foi um aspecto do açúcar naquela ocasião, naquele copo, com aquela água, com aqueles minerais, com aquela luz do dia; enfim, aquilo era completamente singular. E tudo na vida é assim. Agora, a questão: de que modo o mal, o Estado ou a negação aparecem? De alguma maneira os acontecimentos são eternos e nesse sentido nós podemos dizer que somos platônicos. Só que na realidade nós somos absolutamente antiplatônicos porque Platão vê a eternidade fora do acontecimento. Mas podemos dizer que o eterno está no incorpóreo. Por exemplo, andar: andar é um acontecimento, é um acontecimento eterno onde todos os andares particulares entram e dão as suas nuances, as suas intensidades. Então você tem um andar num lugar, num tempo, com um elemento, segundo a intensidade daqueles elementos que entraram naquele acontecimento. O andar é um acontecimento eterno.

Assim, o Estado também é um acontecimento eterno; mas o Estado é um acontecimento eterno que você pode deixar sempre submetido a outras forças. É como as forças ativas e forças reativas: se as forças ativas dominam, você tem um tipo de vida; se as forças reativas dominam, você tem outro tipo de vida, você tem um tipo de sobrevivência, uma vida claudicante. É um acontecimento – eterno também. O ressentimento também é um acontecimento eterno. A nossa questão é não idealizar e moralizar. Devemos esconjurar isso? Não, devemos nos manter totalmente em ato. Quando você está em ato você não tem mais e menos, você não tem o possível; você está no fatal, aquilo é fatal. Então é essa fatalidade que temos que conquistar. Não o amor erótico platônico, mas o amor fati dos russos, ou dos estoicos, ou de Nietzsche; amor fati e não o amor que se ressente.

Participante: Você estava falando de Estado – é uma forma de força também, poderosíssima, que tenta se apropriar do homem, do corpo, do ser. E me parece que não há como negar isso.

O Estado não é uma força. O Estado é um efeito de subtração de força. A negação age sempre por subtração. É por isso que o Estado se apropria da cultura, se apropria do pensamento. O capital se apropria disso também.

Participante: Então ele consome a força, é uma vontade, mas não existem forças sustentando?

Existem forças sustentando, mas essas forças são as forças que perderam o devir.

Participante: Reativas, talvez. Tudo bem. Mas são forças.

O Estado em si só, enquanto forma, não é uma força, ele é um efeito de força – que essas forças reativas se apropriam e dão a ilusão de que ele é uma força porque elas estão ali ocupando isso, inventando isso. Elas dão essa ilusão de que ele é uma força.

Participante: No mesmo sentido em que uma pessoa não é uma força, que o sujeito não é uma força. É isso que você está dizendo? É um efeito de forças; mas ele si não é uma força, ele é um efeito de forças?

Ele é um efeito, ele é uma conjunção, exatamente. Ele é um encontro e ele é alimentado; esse encontro é alimentado, essa conjunção é alimentada porque essa conjunção é vantajosa. De que ponto de vista? Do ponto de vista da conservação dos fracos.

Participante: Da força reativa.

Da força reativa. É por isso que os homens desejam o Estado e que a maioria dos homens que vive em sociedade não imagina uma sociedade sem Estado, não consegue nem imaginar isso.

Participante: Então tem uma diferença entre vontade e desejo.

Já com os estoicos nós vamos falar de um desejo que não é falta, de uma vontade que não é psicológica também; com Espinosa a mesma coisa e com Nietzsche a mesma coisa. Em Nietzsche a vontade não é igual a Schopenhauer ou igual a Hegel; não é uma vontade pessoal, é uma vontade completamente impessoal. A vontade é a relação entre duas forças – isso é que é vontade. Olha a definição de vontade. E se eu sou uma pluralidade de forças, a minha vontade também é plural. Eu não posso dizer “a minha vontade” como uma unidade; a minha vontade sempre é plural, existe sempre uma pluralidade de vozes que falam como sendo “a minha vontade”.

Participante: Essa vontade que você estava dizendo de Nietzsche é desejo.

É desejo também. O que ele chama de vontade de potência você pode dizer que é o que Espinosa chama de conatus.

Participante: Então, vontade de potência é desejo.

Mas esse desejo não é o hegeliano, não é o freudiano, não é o desejo platônico.

Participante: E existe uma vontade fraca. Essa vontade fraca que o Estado absorve. É essa diferença que eu estou tentando detectar. Se o Estado não é uma força e ele subtrai a força, então ele subtrai a vontade; as pessoas ficam frágeis, fica uma vontade fraca. Eu não posso dizer que isso já é mais um desejo: é uma vontade frágil.

Não é que ele subtrai a vontade; ele subtrai da vontade o seu produto. Essa é uma resposta bem rigorosa. Ele subtrai o produto; e o que é produzido, na realidade, é tido como causa do próprio Estado – então: “o Estado produz cultura”. É que como o capitalista que tem o dinheiro e diz “eu produzo o metal, eu produzo o automóvel, porque eu tenho o capital”. Essa é a ilusão. O Estado faz a mesma coisa.

Participante: “Eu produzo educação”.

Exatamente. Quando, na realidade, ele é o parasita mór. Nietzsche diz que a cultura, a atividade genérica da cultura, cessa com o nascimento do Estado porque o Estado é o sugador da própria cultura. Ele é como um vampiro mesmo, ele é literalmente um vampiro, ele é um morto-vivo que vive do sangue dos vivos.

Participante: No fundo, a educação produzida pelo Estado é a anti-educação.

É a anti-educação por quê? Porque o Estado ensina a obedecer e não a pensar. Ele ensina a obedecer o quê? O plano transcendente. Ele ensina você a respeitar os valores de época porque você, respeitando os valores de época, cai no interesse do Estado; você produz aquilo que interessa para o Estado, ou para os que ocupam o poder, ou para o capitalista. É isso que Foucault chama de produção de verdade; o tempo inteiro nós produzimos verdade – a verdade do poder.

Participante: Então essa educação produzida pelo Estado é uma educação que fragiliza.

É piedosa. Por quê? Porque ela pressupõe que você é caótico, e ela vem te dar uma forma para você se organizar e ter uma ordem, ter uma salvação, ter um objetivo na vida; “criar juízo, meu filho”.

Participante: Passar no vestibular.

Isso: passar no vestibular, por exemplo. Então você vai receber de fora essa forma que você não tem – é isso que o Estado pressupõe; enquanto a natureza nômade e o pensamento livre sabem que toda forma é uma invenção, é uma criação, a partir de uma intensidade sem forma. A forma é criada como regra de passagem. Você pode até inventar hábitos, formas que fiquem com você a vida inteira, formas de longa duração que fiquem com você 20, 30, 50 anos – quanto você viver; são hábitos interessantes que liberam a vida, o pensamento e o corpo para atividades mais nobres que não as atividades orgânicas, por exemplo. Então é interessante: você cria um organismo, você cria hábitos, você cria uma representação. Mas o Estado te ensina outra coisa: ele te educa que você não tem essa capacidade, que você precisa de um referencial exterior, que você precisa de um intermediário, de um atravessador – que é ele ou alguma coisa que se represente como uma verdade fora. Uma verdade que no fundo é tida como forma vazia, como saber neutro; mas ela depende sempre de uma espada, como diz Nietzsche; de uma força, de um poder. Por que o congresso cria leis? Para os lobbies melhor usurparem e transgredirem aquelas leis. As leis são criadas para impedir certos movimentos da sociedade que se apropriariam dos interesses daqueles que criaram as leis. Ou seja, a lei é feita para ser transgredida – enunciado de Deleuze. Ela é feita para isso. Então você cria a lei para barrar aqueles que já estão separados do que podem e a lei se acopla a esse plano transcendente de organização, ela está lá. Como diz aquela música: “eu não sou magnata, eu sou zé-ninguém, eu sou do povo, aqui de baixo as leis são diferentes”. Quando você está sob a lei você não tem opção: ou você transgride a lei e é punido – ou escapa -, ou você obedece à lei e a tua vida sempre fica paralisada ao máximo. Numa situação ou em outra você sempre acaba caindo numa negação.

Participante: Duas coisas me apareceram bem fortes. A primeira é a situação da criança que brinca que está no plano de imanência pleno. O exemplo que eu tenho é um exemplo que meu irmão colocou para mim: no final da semana ele estava brincando com o filho e ele queria forçar o filho a fazer uma construção no brinquedo; a criança chutou o brinquedo: “eu não quero fazer desse jeito que você está pedindo para eu fazer”. E saiu gritando pela casa. Depois ele voltou e foi fazer do jeito dele. Isso me impressionou bastante. Foi uma força altamente resistente à dominação.

Isso. A vida se defende, ela resiste.

Participante: Se defendendo. Ele se colocou como um Estado ali, uma lei passa a decidir. E a criança não quis fazer. Então a criança se defendeu e eu achei isso bastante interessante. Primeira colocação. A segunda é que essa criança está na escola e ela vai perder isso, alguma coisa vai forçá-la a perder isso ou vai enfraquecê-la.

Sem dúvida. Na sociedade disciplinar a primeira coisa que ocorre é o Édipo em família, em bebê já; você já tem um dispositivo para separar a potência do ato. Você já tem esse dispositivo. Depois você vai para a escola. Isso no caso da sociedade disciplinar.

Hoje a sociedade disciplinar já é secundária, você já não precisa mais da escola, você não precisa mais da família, você não precisa mais de quartel, de hospital; hoje já você tem atendimento domiciliar; você já não tem mais hospício, você tem o hospital-dia. Quer dizer, as coisas mudaram e estão muito mais sutis, para o bem e para o mal.

Participante: Tem um outro movimento, só para encerrar. Eu lido com adolescentes e percebemos no adolescente uma renovação desse movimento da criança, só que novamente existe uma força enfraquecedora. Os adolescentes, por excelência, brigam; negam toda essa força que vem de cima. E me parece que é a última chance – ou é uma das derradeiras – para eles vencerem isso.

Existe um filme fantástico que se chama Rumble Fish – foi traduzido por O Selvagem da Motocicleta – do Coppola. Você tem ali uma questão. Na década de 50-60, teve essas práticas nos Estados Unidos: as gangues, os bandos urbanos, tinham uma maneira de se autocomporem e de afirmarem a sua diferença. A CIA introduz a cocaína para acabar com os bandos. Isso é uma questão completamente real, não tem ficção nenhuma nisso; é uma questão já pesquisada, comprovada. A CIA introduziu a droga, a cocaína, para enfraquecer. Então tudo o que enfraquece interessa ao poder; o poder adora o que enfraquece. Então tome cuidado: quando ele se veste de benéfico, interessante, etc, é porque tem coisas muito sutis por trás, imperceptíveis.

A questão da educação é a mesma coisa. O tempo inteiro é isso: como fazer das crianças, dos jovens, aliados numa consistência; afirmar movimentos que gerem consistências para que eles, a partir deles mesmos, digam o sagrado não ao poder. Sem serem dialéticos. Digam não. Saber dizer não de modo consistente – e de modo até elegante e doce -, porque o não é a condição do simulacro, o não é a condição da criação. Não é princípio, é condição. Porque o princípio é a afirmação, é completamente afirmativo; e o princípio é mais forte, é mais alto, é mais elevado do que a negação. A negação é apenas um modo da pluralidade de modos da afirmação, a negação é apenas um dispositivo. Você nega, por exemplo, a história e a geografia como condições negativas que estão ali te aprisionando. Você tem que entrar numa máscara que o plano de transcendência te dá; ele projeta uma sombra e você tem que vestir aquela sombra. É aí que você tem que ter consistência para dizer não sem ter medo de se matar, de se desintegrar, de ser punido, etc. E mais: enfrentar a punição com uma outra arma que é a serenidade; desenvolver a serenidade – e não a angústia – a partir da interpretação do problema, do acontecimento enquanto problemático. Mas o problemático não é o negativo, mas é o diferencial: o que é problemático é diferencial e toda a diferença é afirmativa, positiva. Então o problemático é positivo, é diferencial e deve ser afirmado, em vez de você dizer “é um problema” – e chora, ressente e se retrai. Não, ao contrário: alegre-se com os tiranos, inclusive; receba como um dom – não para se submeter, mas como um modo de se ultrapassar.

Participante: Só uma dúvida. Você falou em ilusão de semelhança na superfície. O que é isso?

Porque você cria a semelhança a partir de uma dissimilitude interna, de uma diferença interna. Você é desequilibrado internamente mas você dá a aparência de que você é absolutamente equilibrado; você produziu uma simulação de equilíbrio a partir de uma distância interna não só sua, mas incluindo a própria visão do observador. Por exemplo, você está num ângulo em que você não consegue ver o meu desequilíbrio e eu te passo a ideia de que eu sou equilibrado. Mas eu sou um completo desequilibrado.

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