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Formação Pensamento Ocidental – Aula 18/32 – Espinosa: Não há um sujeito do conhecimento

Luiz Fuganti

Vimos na aula passada que Espinosa é um pensador exótico no seguinte sentido: ele é um dos mais amados dos filósofos e, ao mesmo tempo, um dos mais odiados. De fato ele consegue mexer com os extremos do humano e isso faz com que a obra dele gere muita polêmica, mas dificilmente uma indiferença. Por que isso ocorre? Espinosa tem teses teóricas muito radicais – como uma única Substância para infinitos atributos, os modos que são partes de uma Substância imanente à própria Substância, ou seja, parte de Deus atuando imediatamente na sua existência, que não se separa da causa. Essas teses teóricas levam a uma acusação, a uma denúncia de que Espinosa é um panteísta, de que Espinosa é um ateu, de que Espinosa vai combater o Deus pessoal, o Deus antropomórfico e antropológico das religiões cristãs, judaicas e islâmicas; mas essas teses teóricas não são suficientes para explicar essa mobilização afetiva em torno da figura de Espinosa. Na realidade, Espinosa tem, com a sua obra, um efeito prático muito violento – violento no seguinte sentido: ele é violento para quem se põe do ponto de vista da moral , do ponto de vista da religião, do ponto de vista da racionalidade ocidental; ele acaba construindo teses extremamente violentas e efeitos práticos extremamente violentos.

Que efeitos são esses? Nomeamos, na aula passada, as três teses – inclusive identificadas por Gilles Deleuze – sobre esses efeitos que giram em torno da consciência, em torno dos valores e em torno das paixões tristes. Uma leva a se acusar Espinosa de materialista, quando ele trata da consciência; a outra tese, a denúncia dos valores transcendentes, leva a uma acusação de que ele é um imoralista; e a tese das paixões tristes, que ele denuncia, leva a uma acusação de Espinosa como um ateu. Então Espinosa materialista, Espinosa imoralista, Espinosa ateu são três aspectos fundamentais que fazem com que ele seja tão amado e tão odiado.

E como é que essas coisas acontecem na sua obra e na sua vida? A nossa questão é fazer o percurso através desses efeitos práticos ao longo das 3 aulas relativas a Espinosa (temos mais 2, portanto) e marcar com ênfase aquilo que faria, a partir de um entendimento da sua obra, mudar não só a ótica teórica como o próprio modo de vida; na medida em que entendemos o que Espinosa diz, ele nos convida, ele nos empurra, ele nos arrasta, ele nos atrai para um modo de vida completamente diferente. É raro alguém entrar na obra de Espinosa e sair o mesmo; a obra de Espinosa não é uma obra teórica, Espinosa nos convida, através da mais pura filosofia – talvez ele seja o mais filósofo de todos os filósofos – a sair da filosofia pela filosofia. Ele leva o corpo e o pensamento para o fora que lhe compõe, que lhe constitui. Então o entendimento em Espinosa não tem nada de abstrato, não tem nada de teórico; o entendimento em Espinosa é completamente ontológico. O pensamento é ontológico.

O pensamento em Espinosa não é pensado por um sujeito, não atinge um objeto; o pensamento em Espinosa pensa em nós; a ideia não é objeto de uma consciência ou de uma vontade, não há vontade nem consciência – a ideia se afirma por si só. A ideia nos invade, se apodera de nós e se explica em nós; então não há um juízo por trás da ideia, não há um sujeito do conhecimento. O pensamento pensa. Não é “eu penso”, como em Descartes; o pensamento pensa. Então o pensamento é nômade, é absolutamente nômade em Espinosa; ele não se ancora num sujeito e nem visa um objeto.

E Espinosa faz uma denúncia radical da consciência, na medida em que, diz ele, a consciência quer reduzir o pensamento às suas dimensões. A consciência, diz Espinosa, é ignorante; ela não atinge a causa das coisas, a consciência não atinge a natureza das coisas – nem a minha própria natureza, a natureza do meu corpo, a natureza da minha alma, a natureza dos outros corpos, das almas dos outros corpos, a relação que se dá entre os corpos, a relação que se dá entre as ideias, a condição das relações. Isso tudo a consciência desconhece, a consciência é completamente ignorante nesse sentido.

Não só a consciência desconhece como o conhecimento que nós temos das coisas na verdade é sintoma dos estados de corpos; o conhecimento que temos das coisas é o conhecimento das coisas que nos afetam; e pensamos que o efeito delas em nós é a integridade do ser delas. Então o efeito delas em nós, o modo como elas nos atingem, acreditamos ser a essência e a causa final da atividade dessa coisa que estaria fora de nós. Então reduzimos a coisa ao efeito que ela produz em nós. Diz Espinosa: para além do conhecimento, existe um desconhecido muito mais profundo; e para além da consciência, um inconsciente absolutamente vasto e inexplorado. Então, o que Espinosa quer fazer? Ele quer atingir o inconsciente e o desconhecido – com o pensamento e com o corpo. Ele diz: o nosso corpo está submetido aos estados de corpos e a nossa alma está submetida aos estados de alma; e estados de corpos e de almas nada mais são do que as afecções, as modificações que o nosso corpo e a nossa alma recebem de fora e se prendem a aquilo que acontece neles, no corpo ou na alma. Prende-se a isso e, na medida em que isso se duplica – porque a duplicação é uma função da ideia, e nossa consciência não é nada mais do que uma duplicação -, duplicamos um efeito; e quando duplicamos um efeito, pensamos que entendemos a causa da coisa. Nós não podemos ser seres serenos, não podemos ser seres causa dos nossos próprios afetos, das nossas próprias ideias, na medida em que estamos prisioneiros dos efeitos, ou que reduzimos a realidade aos efeitos.

Nessa mesma medida, na medida da nossa ignorância e da flutuação da alma – que acontece segundo os encontros ao acaso que o nosso corpo e a nossa alma fazem – há uma angústia, há uma infelicidade, há uma miséria que só é preenchida pela consciência, nesse caso, com algumas ilusões. Então a consciência gera – a partir dessa ilusão básica que ela tem, de inverter a causa pelo efeito, ou seja, tomar o efeito pela causa – três ilusões: uma que diz respeito ao mundo, uma que diz respeito ao sujeito e outra que diz respeito a Deus. Explicamos isso na aula passada, então hoje eu vou ser um pouquinho mais rápido em relação a essas ilusões de consciência; e o objeto da aula de hoje vai ser a discussão sobre o Mal, o problema do Mal – que é o problema que gera o juízo ou o combate em relação ao juízo. Nosso inimigo fundamental aqui é o juízo – juízo de Deus, juízo da lei, juízo do Estado. O juízo enfim, ou seja, uma entidade que é transcendente e que se põe no meio da vida e da natureza para julgá-la, para avaliá-la segundo valores que transcenderiam a ela mesma, segundo valores superiores à vida. Espinosa é daqueles que não acredita nisso; não só não acredita como denuncia esse tipo de falsificação. Então, evidentemente que nesse sentido ele vai combater radicalmente a posição do juízo em Deus, do juízo em nós – enfim, o negativo na vida. Seria essa questão.

Se a consciência vive os efeitos e não apreende as causas, ou seja, não apreende as naturezas – a natureza dos outros corpos, das outras almas, a natureza do meu próprio corpo, da minha alma, e a natureza das relações e das condições que fazem com que esses corpos e ideias se encontrem –, a consciência vai, a partir do momento em que ela reduz a realidade ao efeito no corpo e na alma, ela vai tomar o efeito no corpo como o objetivo que o outro corpo tinha em provocar em mim. O meu estado, o que eu sinto, é o objeto, o objetivo ou a causa final do outro corpo em relação ao meu corpo; o outro corpo tinha a intenção de provocar esse efeito em mim. É assim que a consciência, ignorante das causas, apreende a relação com o outro corpo.

Logo, se o efeito que o outro corpo causa no meu é de um aumento de potência, eu vou sentir imediatamente uma alegria e, no momento que a consciência se duplica – porque na medida mesma que o efeito se constitui em mim, há uma duplicação da ideia desse efeito – eu, ao duplicar, ao refletir sobre esse efeito, vou relacionar esse efeito ao corpo que o causou. Logo, eu vou me dirigir ao corpo que o causou com amor. Por que? Porque ele produziu alegria em mim, porque ele produziu um aumento de potência em mim. Mas isso foi por acaso, isso ainda é uma paixão; mesmo que seja uma paixão alegre, é por acaso, é por acidente – eu não tenho o domínio, eu não tenho o comando disso. E quando Espinosa diz “não ter o domínio” ou “não ter o comando”, não é um sujeito, não é a consciência que tem o comando, que tem o domínio; não se trata disso, vamos ver do que se trata, depois.

Então a minha consciência vai apreender o efeito do outro corpo sobre o meu, na medida em que aumentou minha potência de agir ou de existir e que gera um efeito imediato ou uma paixão de alegria; ela vai se rebater sobre o outro corpo e amá-lo. Então o outro corpo vira um objeto de amor.

Mas geralmente acontece o contrário: geralmente, na medida em que a consciência é ignorante e ela fica sujeita ao acaso dos encontros, faz-se muito mais maus encontros do que bons encontros. E o efeito é que o outro corpo diminui a minha potência de agir ou de existir e ele subtrai algo da minha capacidade; então o outro corpo vai produzir em mim uma impotência, ele vai me separar do que eu posso. E nessa mesma medida eu vou ter um efeito imediato de tristeza; o meu desejo se torna uma paixão triste e a minha consciência inteira vira uma tristeza. E imediatamente, com a sua reflexão ou com a sua duplicação, que é uma propriedade da ideia, ela vai se projetar no outro corpo e odiá-lo; então o outro corpo vai ser objeto de ódio, vai se gerar uma vontade de destruí-lo. Essa é toda a origem do ressentimento, o ressentimento começa aí – no momento em que eu acredito que aquele corpo tinha a intenção de me ferir, de me magoar, de me deixar mais miserável, de me deixar mais infeliz, de me deixar mais fraco, de me aprisionar. Eu jogo toda a minha impotência, o meu estado, o meu sentimento como sendo a causa final que o outro tinha.

Então isso Espinosa diz: ilusão das causas finais; a consciência atribui tudo o que ela sente, tudo o que o corpo sente, os efeitos dos outros corpos no seu próprio corpo, como sendo uma causa final, como sendo uma intenção que os outros corpos tinham em atingir esse objetivo em mim. Logo, é uma ilusão de causas finais: eu projeto o efeito como sendo a causa e a integridade do ser do outro. É isso que acontece. É por isso que Espinosa diz que é a ilusão das causas finais.

Nesse mesmo movimento, uma vez que a consciência duplica a ideia, ela vai se manter distante de um efeito e vai se tomar como causa primeira; em vez de ser uma causa final, agora ela se toma como uma causa primeira. E vamos explicar depois – apesar de que na aula passada eu já expliquei isso de alguma maneira – o que causa a consciência. Na medida em que ela é transitiva, na medida em que ela é consciência de afeto, que é uma consciência contínua de uma passagem de uma realidade maior para uma menor ou de uma menor para uma maior, essa consciência de passagem vai imediatamente acreditar que é uma vontade separada dos seus objetivos, dos seus objetos ou das suas ações; então é uma vontade que pode agir ou não agir. Por que? Porque os efeitos, segundo a consciência, são livres; e são tanto mais livres quanto mais eu ignoro as suas causas. Uma vez que eles são livres, a consciência pensa que ela decreta livremente o modo de agir ou de reagir.

Então através de um livre arbítrio da consciência, ela vai reagir para o bem ou para o mal; ela vai escolher e deflagrar a ação. É aí que eu tenho a ilusão de que, através de uma consciência ou de um espírito, eu comando e dou ordens ao meu corpo. Essa segunda a segunda ilusão, baseada na inversão da causa e do efeito: a ilusão dos decretos livres, a ilusão das decisões livres ou a ilusão do livre arbítrio.

Então eu tenho duas ilusões: a ilusão das causas finais e a ilusão do livre arbítrio. É por isso que Espinosa, através de um ato de provocação, diz o seguinte: pensamos que a consciência é tudo, que a consciência é o máximo, que a consciência é um fenômeno; tagarelamos muito sobre os poderes que tem a consciência, o espírito, em comandar o corpo. Então eu digo “faça isso, faça aquilo” e sobrecarregamos o corpo, fazemos horrores com o corpo. E só quando o corpo explode, de alguma maneira, e força a consciência a ficar de joelhos – depois de uma doença grave ou de alguma coisa mais séria – é que pensamos não que o corpo tenha alguma razão, mas que recebemos algum castigo. Pensamos sempre nisso, nunca pensamos que o corpo tem razões próprias, ou tem uma autonomia em relação à consciência. Mais: em relação ao pensamento. O corpo é o corpo e o pensamento é o pensamento, e um não é superior ao outro, e um não causa o outro. Mas nas ilusões que temos de consciência, pensamos que a consciência tem que comandar o corpo. Então nós organizamos a nossa vida de modo que o corpo vira um mero mecanismo de execução de tarefas; o corpo vira um tarefeiro, vira uma máquina.

E Espinosa então provoca: nós nem sabemos o que pode um corpo e ficamos aí dizendo o que a consciência pode ou não pode em relação ao corpo. Nesse sentido ele ataca diretamente Descartes, que escreve um tratado sobre as paixões da alma para dizer o modo como a alma se liga ao corpo – através de uma glândula pineal – e dizer como essas funções são exercidas segundo uma entidade chamada vontade, segundo outra entidade chamada entendimento; uma vontade que é infinita, um entendimento que é finito – logo o erro é causado sempre por um excesso de vontade e a vontade acaba se ligando ao corpo e o corpo sempre fonte de erro. O corpo, portanto, tem que ficar quietinho, tem que ficar passivo, tem que obedecer ao pensamento para que ele seja retamente conduzido. Então Descartes de novo com aquela velha ilusão metafísica ocidental de que quando o pensamento é ativo, nosso corpo deve ser passivo, deve obedecer; e quando o corpo é ativo, o pensamento padece e caímos no erro, caímos na incerteza, caímos na ilusão. Espinosa reverte essa questão e diz o seguinte: é impossível o corpo ser ativo e o pensamento também não ser ativo; pensamento é ativo na medida em que o corpo é ativo, e vice-versa. E não há corpo ativo se o pensamento não for ativo; e não há pensamento ativo se o corpo não for ativo. Ou seja, esse é o famoso paralelismo psicofísico que Espinosa institui. Aliás, esse termo é do Leibniz, não é nem de Espinosa; Leibniz diz que Espinosa inventa um paralelismo psicofísico.

Mas o que Espinosa quer dizer, na realidade, é que o corpo é absolutamente autônomo e independente, ainda que tenha relação com o pensamento; e o pensamento é absolutamente autônomo e independente, ainda que tenha relação com o corpo. Há uma pressuposição recíproca entre os dois, mas não há uma relação de causa e efeito; então o pensamento não manda no corpo e o corpo não manda no pensamento.

Mas Espinosa vai mais longe: ele atinge um ponto em que a essência do Modo habita ao mesmo tempo o corpo e o pensamento; então se algo se passa no corpo, se passa necessariamente no pensamento também. Então ele nos leva para uma imanência tal que não estamos ora no pensamento, ora no corpo; estamos simultaneamente nos dois. E o homem livre é aquele que habita simultaneamente os dois, corpo e pensamento ao mesmo tempo, a partir de um elemento comum, de um elemento singular que é a própria essência. Então a essência não se reduz a um e não se reduz a outro, ela se expressa nessas duas formas ao mesmo tempo. É isso que ocorre.

Isso foi só um parêntese. Voltando às ilusões de consciência, Espinosa diz: além das ilusões das causas finais em relação ao mundo (ou seja, o mundo agiria através de causas finais) e além da ilusão dos decretos livres ou do livre arbítrio, a partir dos sujeitos, a consciência interpreta, na ausência de uma ordem aparente, de uma ordem que ela é incapaz de apreender, e na medida que ela só sente os efeitos, ela inventa, põe no lugar da sua ignorância a vontade divina e o entendimento divino; então ela eleva um Deus, uma entidade fora da natureza, e tudo que ela ignora ela atribui ou à vontade de Deus, ou ao entendimento de Deus, ou à potência de Deus, ou à onipresença de Deus – o asilo da ignorância, diria Espinosa. A vontade divina: o asilo da ignorância da consciência. Então diz Espinosa: na medida em que a consciência não apreende as razões segundo a sua ordem imaginária e a realidade acontece de um jeito ou de outro, para o bem ou para o mal, a consciência interpreta isso como prêmios ou castigos, recompensas ou castigos. De quem? De Deus. Então, na ausência de uma ordem humana, na ausência de uma ordem social, na ausência de uma ordem política, econômica, psicológica ou natural, uma ordem teológica: Deus cobre todos os lugares e tempos aonde a consciência não chega. Então essa seria a terceira ilusão que a consciência gera, a ilusão teológica.

E ela, na medida em que se apreende como uma vontade livre e com esse entendimento livre, que é entendimento de efeitos, que é uma imaginação pura, ela leva isso ao infinito porque em Deus isso deve ser infinito. No homem é finito, mas em Deus é infinito; então Deus vai ter um entendimento infinito, uma vontade onipotente e infinita. E com isso ele é capaz de dar conta de toda a natureza. Essa seria a posição fundamental para apaziguar a angústia e a miséria que vive a consciência.

Espinosa diz: nada mais miserável, nada mais escravo, nada mais fraco, nada mais infeliz do que uma alma flutuante ou uma consciência angustiada, que vive ao acaso dos encontros e não consegue coabitar ou coparticipar, tomar parte disso; apenas espera os efeitos e aí tenta reagir de um modo ou violento ou com muita astúcia, com muita esperteza, com muita trapaça. Ou transgride, ou faz trapaça, ou reage violentamente. Daí as guerras, a discórdia, o ressentimento, o ódio em função de uma pura flutuação de alma, de uma pura miséria de consciência.

Então Espinosa diz: é através dessas ordens ilusórias que ela preenche a sua angústia. Agora, se ela vai preencher a sua angústia desse modo, é porque de alguma maneira ela vai se ligar a valores que vão dar uma certa constância a ela; daí, além das paixões tristes que a constituem como o ódio, por exemplo, ou a tristeza, ela vai começar a gerar outro tipo de paixão triste muito mais sutil, que até pensamos que é uma virtude. Como, por exemplo, esperança, segurança. Então ela se agarra à segurança. Como? É necessário que eu me proteja das intempéries da vida, do acaso e das contingências, do acaso ou da fortuna; é necessário que, de alguma forma, eu preveja o que pode acontecer. Então eu monto uma teia de aranha, um muro representativo, uma transcendência de valores que vai ser o intermediário através do que a realidade vai ser filtrada. Então a realidade tem que passar pelo crivo dessa peneira, desses valores transcendentes e, a partir daí, ela pode chegar até mim; então eu monto um esquema de segurança. Qual é o esquema de segurança? No fundo eu estou investindo em valores que são transcendentes à natureza: são as leis dos homens, as constituições, os valores religiosos – tudo que é valor que transcende à vida tem esse mesmo caráter, não tem exceção; o valor transcendeu à vida, ele se descola e tem o mesmo objetivo: separar a vida do que ela pode e orientar a vida fraca para que a vida fraca se mantenha, não seja ameaçada.

Então, a segurança dos fracos é uma segurança que é obtida através de uma falsificação da natureza, você falsifica a natureza para se proteger.

Isso vai levar à ideia de que existe um Bem supremo na natureza que deve ser procurado por uma consciência obediente e virtuosa, e existe um Mal que deve ser evitado. Em qualquer plano: no plano psicológico, no plano social, no plano político, no plano divino – sempre a ideia de Bem e de Mal. A consciência apreende sempre os signos ou as imagens, os efeitos dos corpos ou das ideias sobre o nosso corpo e sobre a nossa alma, ela apreende com signos. E um dos aspectos ou um dos
sentidos desses signos é o signo imperativo. O signo imperativo tem a propriedade de nos dar ordens – ou entendemos como ordens. Espinosa dá um exemplo claro: supondo que o mito bíblico é verdadeiro (não interessa se é verdadeiro ou se é falso, é um exemplo), Deus diz para Adão não comer do fruto porque, no fundo, o fruto irá decompor as relações próprias que constituem a essência de Adão; o fruto, no fundo, é um veneno. E Adão, absolutamente ignorante, um ser que não entende as relações da natureza, apreende a palavra de Deus como uma proibição, como uma ordem; o signo é um imperativo: “não comerás o fruto”. Desse modo nos relacionamos sempre com a ideia de Bem e de Mal: haveria valores transcendentes, que funcionam como palavras de ordem, que permitem ou proíbem a vida de fazer ou não fazer qualquer coisa; é deste modo que nós, ignorantes que somos, nos orientamos através desses referenciais externos a nós mesmos.

O que é, de fato, a natureza? A natureza, diz Espinosa, é bem mais profunda do que o que nós temos ou recolhemos de conhecimento ou de consciência; há um inconsciente e há um desconhecido muito mais profundos do que a consciência, do que o conhecimento do corpo e da alma. Que desconhecido e que inconsciente é esse? Espinosa diz: vivemos na ordem comum da natureza, e na ordem comum da natureza a consciência apreende sempre a contingência dos encontros; haveria uma ordem ao acaso que seria regulada por essa projeção de intenções nas ações dos outros, ou nessa memória de intenções da nossa vontade e da nossa consciência, e nessa entidade teológica que faria uma ordem que transcende a natureza – seria uma ordem transcendente que organizaria a natureza inteira. Então haveria um plano transcendente de organização que organizaria os corpos, as almas, a natureza e as relações entre esses elementos. Isso é o que a natureza apreende.

Espinosa diz: existe uma outra ordem, inconsciente e desconhecida, que é a ordem das causas, não a ordem dos efeitos; Espinosa é daqueles que sabem que a natureza é causal, ou seja, aquele que sabe que todo movimento tem uma causa. Mas a diferença de Espinosa para os outros pensadores ou para os outros filósofos, é que Espinosa não é idealista e ele não acredita nas formas ou nas ideias como causa – a não ser no seu próprio domínio: ideia causa ideia, corpo causa corpo.

Mas há algo no corpo e na ideia que não se reduz à efetuação no corpo e à efetuação na ideia; esse algo que não se reduz é uma intensidade, é uma potência. Então Espinosa diz: são as potências que causam; a causa é sempre uma potência, não é uma forma, não é uma lei, não é uma ordem mecânica, mas são intensidades que se relacionam. Então a ordem das causas é a ordem das intensidades, é a ordem das potências; e isso é o desconhecido do corpo e isso é o inconsciente do pensamento. É essa ordem das potências, é isso que ele chama de ordem das causas. Ele diz: é essa ordem que temos que atingir; se não atingimos essa ordem, ficamos refém das ilusões da consciência, necessariamente. Não tem outro jeito.

Como funciona essa ordem? Diz Espinosa: nosso corpo e nossa alma não são, ao contrário do que diz Descartes, ou Aristóteles, ou até Platão, não são Substâncias; o nosso corpo não é uma Substância e a nossa alma não é uma Substância. Nós somos modos. O que é um modo? Um modo é uma modificação ou uma potência de modificação. A Substância é algo que existe em si, é algo que tem um solo fixo, uma permanência e uma forma, como solo. Espinosa diz: não somos Substâncias, nós somos modos. Por que? Nós somos uma potência em metamorfose, nós somos uma potência de modificar e ser modificado. Então essa é a razão de usar a palavra modo e não usar a palavra substância, ou não usar a palavra sujeito ou objeto; modo tem essa virtude de expressar uma potência em movimento, uma potência de afetar e de ser afetado, de modificar e de ser modificado. Esse que é o significado essencial da palavra modo.

Então ele diz: nós somos modos; modos em relação, necessariamente – não há um modo isolado, não existe. O solipsismo de Descartes é uma ficção de signos da imaginação. Nós não estamos sós, nós estamos necessariamente ligados ou plugados ou conectados numa pluralidade de relações. Relações com outros corpos e com outras ideias: o nosso corpo se relaciona com outros corpos, as nossas ideias se relacionam com outras ideias. Mas o que é o nosso corpo, o que é nossa alma? Diz Espinosa: nosso corpo e nossa alma são a existência do modo; o modo existente existe no corpo e existe na alma, é a dimensão existencial. E o que faz a dimensão existencial? Como ela é feita? Ela é feita de partes, partes extensivas. Por exemplo, eu bebo água; a água é uma parte extensiva que faz a minha existência ou que constitui a minha existência; ou melhor, que atualiza a minha relação singular ou típica da minha essência. As partes extensivas do corpo efetuam a essência do corpo; e as partes extensivas da alma efetuam a essência da alma.

Então há uma essência do modo e há uma existência, são duas coisas distintas. A essência é uma potência, é um grau de potência ou uma intensidade, é isso que é a essência; mas a essência se expressa numa relação só dela, absolutamente única. Não existe uma essência igual à outra essência – para Espinosa não existe o geral, isso é uma abstração, uma ficção que a consciência produz; só tem singularidades para Espinosa. Então a minha essência é absolutamente única, é absolutamente singular; e para ela tem uma relação de expressão que é só dela. Essa relação de expressão é o que Espinosa chama de relação singular ou relação característica da própria essência. Essa relação, diz Espinosa, é uma verdade eterna; e a essência também é eterna. O que não é eterno? O que não é eterno é a existência. Essa essência e essa relação são reais virtuais, são reais que não necessariamente existem; mas eles ganham existência na medida em que um conjunto de modos concorre para a sua efetuação. Por exemplo, meu pai e minha mãe geraram de um jeito lá e tal que me produziu desse jeito; os alimentos que eu ingiro vão fazendo com que eu mantenha os elementos do meu corpo e preservem a atualização da minha essência e da minha relação singular.

De modo que se eu perco a existência, a essência e a relação singular são eternas. Não é uma alma que é eterna, não é um espírito que fica, não é nada disso. Vamos gerar outros elementos para vermos se esclarecemos um pouco mais essa questão. Isso aqui é superimportante para distinguirmos a questão do Mal, o problema do Bem e do Mal e do Bom e do Mau. É superimportante na medida em que uma posição vai nos levar para a transcendência, para o juízo e para o julgamento, e a outra posição vai levar para a imanência. A consciência apreende sempre o que me envenena, o que me destrói, o que me ameaça, como sendo uma punição ou um castigo – de Deus, ou da sociedade, ou seja, lá do que for: de algo fora que me pune ou que me castiga. Porque eu não cumpri com a minha forma, com a minha obrigação, com a minha finalidade; a minha finalidade é me guiar segundo o Bem, e o Bem é determinado por uma demanda exterior a mim mesmo – ou seja, a minha vida precisa preencher o que a sociedade ou o que esse plano transcendente de organização espera de mim; se eu não faço isso, eu sou punido. Então a moral que vem das ilusões de consciência relaciona a minha existência aos valores que são transcendentes à minha própria existência; e vai julgar a minha existência – se a minha existência é boa, se ela é má, se ela é culpável, se ela é meritória, se ela merece alguma recompensa ou se ela merece ser punida.

A ética, a partir do entendimento e não da obediência – a ética vem do entendimento –, ao entender as relações de natureza, vai ao mesmo tempo saber que a existência se liga a uma modalidade, a um modo, ao modo como a minha essência é preenchida na existência. Nos encontros que eu faço, a minha essência necessariamente é preenchida. Então vamos fazer uma distinção aqui: a essência é absoluta no seguinte sentido: ela é incomparável; ela é perfeita, ela tem a energia própria dela, só dela; é acabada nela mesma. Neste sentido é uma quantidade intensiva que não tem o mais e não tem o menos, ela está nela mesma plena de si, não falta nada para a essência; não há dívida infinita ou finita para a essência, a essência é o que é. Mas a cada essência, que é necessariamente uma potência ou um poder de sofrer modificações, esse poder de sofrer modificações se dá sempre quando uma essência ganha existência; quando ela ganha existência, ela é modificável. Mas aqui tem dois sentidos desse modificável: ou ela é modificável de fora de modo passivo, que ela não participa dessa modificação, ou de um modo que ela toma as rédeas de sua própria modificação, ela se torna causa de si mesma, ela se torna causa das suas próprias modificações. Essa é a diferença entre dois tipos de modificação.

Então o que ocorre? A essência, na existência, é feita então de uma quantidade intensiva de potência, de uma relação singular; e essa relação singular subsume uma pluralidade de partes extensivas que atualizam essa relação singular; há uma atualização das relações singulares ou da essência. Essa atualização é que se chama existência; existir é fazer com que a minha essência e a minha relação singular subsuma uma pluralidade de partes extensivas do mundo e eu faça desse fora um dentro; o que está dentro é algo que vive sob a minha relação. Então essas partes que vivem sob a minha relação têm sempre limiares, zonas e gradientes; elas vão a certos limites de movimento e de repouso; o corpo atinge limites de imobilidade e limites de velocidade.

Mas um corpo é feito sempre de uma pluralidade de partes; então sob essa minha relação singular dominante existe uma pluralidade de outras relações. Exemplo: o sangue é uma parte do meu corpo, então nesse sentido o sangue é uma parte de um indivíduo; mas agora, do ponto de vista do próprio sangue, eu tomo o quilo e a linfa: são dois elementos que compõem o sangue. Então, desse ponto de vista, o indivíduo é o sangue e as partes são o quilo e a linfa. Assim indefinidamente e eu vou atingindo microelementos na natureza de modo que cada relação que forma um indivíduo é sempre singular, a ponto de você não encontrar nunca, na natureza, um sangue igual ao outro; por mais parecido que seja, você não encontra um sangue igual ao outro. Então o meu sangue, por exemplo, o sangue de qualquer um, vai ter sempre uma capacidade de sofrer modificações e de modificar; então, ao ingerir certos alimentos ou certos venenos, ele pode aumentar a sua velocidade ou se imobilizar, e até ultrapassar os limites de velocidade ou de imobilização e se desintegrar. Quando ele se desintegra ou quando ele se decompõe, as partes extensivas que estavam sob aquela relação se compõem com outras partes extensivas de outra relação que domina agora, que não mais o do meu sangue. Exemplo: o veneno que decompõe o meu sangue vai não destruir aquelas partes, mas fazer com que aquelas partes se componham com as partes do veneno; então as partes do sangue vão entrar sob uma outra relação e vão ser alteradas, vão ser modificadas.

O modelo espinosista é o modelo do alimento e do veneno; é um modelo químico ou físico e não um modelo do juízo, não um modelo moral. O Bem e o Mal são sempre uma questão de alimento ou de intoxicação, nunca uma questão de julgamento, nunca uma questão de dívida infinita, de dívida existencial; é sempre uma questão de composição e de decomposição, o que me alimenta e o que me envenena. É disso que se trata. Então um corpo é feito de uma pluralidade de partes extensivas que determinam a minha existência, ou que atualizam a essência e a sua relação singular numa existência; enquanto essas partes estiverem sob o domínio dessa relação dominante, o meu corpo existe; quando essas partes forem determinadas de fora – porque é sempre de fora que é determinado, é por isso que Espinosa diz que a morte vem sempre de fora; inventar uma morte interna é uma falsificação absurda e no entanto os homens só têm feito isso, dizer que a morte vem de dentro. São sempre os corpos que vêm de fora que forçam as partes do meu corpo a entrarem sob outra relação; ou, no caso inverso, a se comporem com as partes do meu corpo – aí as partes do meu corpo com as partes do outro corpo formam uma relação mais poderosa, formam uma entidade mais poderosa. E essa entidade é também um indivíduo. Exemplo: um casal pode ser um indivíduo, sob o ponto de vista daquela relação. E assim indefinidamente: a natureza, para Espinosa – do ponto de vista do corpo, ou das ideias e das almas – é um grande indivíduo. Mas é um indivíduo completamente plural que se subdivide e que se compõe ao infinito.

Do ponto de vista da natureza, sempre tem composição, por isso que não tem Mal – o Mal é uma ficção nesse sentido; sempre há composição. Mesmo o veneno com o meu sangue é uma composição, do ponto de vista da natureza. Agora, do meu ponto de vista é um Mal; ou seja, do ponto de vista da parte, do ponto de vista do modo, existe a relação de bom e de mau; nunca de Bem e de Mal. O Bem para Espinosa não é nada também, não é só o Mal; muita gente diz que o Mal não é nada, mas dizer que o Bem não é nada, isso faz muito ódio contra Espinosa. Isso é um dos motivos que se acusa Espinosa de imoralista e que leva a uma depreciação absurda da sua obra, que é a depreciação feita pelos moralistas; evidentemente que isso é inevitável, não tem como, e é melhor que seja assim; e quando os moralistas descobrirem alguma coisa que serve para eles em Espinosa, aí tem alguma coisa errada com Espinosa – ou com os moralistas.

Participante: você fala em essência ser eterna, quer dizer, quando algo deixa de ter existência.

Por outro lado, pensamos em composição: novo corpo, novo indivíduo. A essência eterna estava onde e entra como? Não consigo entender.

Perfeito. Nem tem muito ainda como entender porque eu não expliquei.

Participante: e o que você chama de relação? Quando você fala de relação, eu sempre penso em estrutura; eu sei que não é porque senão você falaria “estrutura”, estrutura fixa. Mas se você fala de relação, se você pensa a relação, é mais de um: você não está falando dos elementos subsumidos. Então eu não estou entendendo a palavra relação, também.

A relação é um arranjo, ela é uma conjunção.

Participante: de partes, então.

De partes extensivas na existência, mas também de partes intensivas. Vamos ver se chegamos no ponto mais importante, que seria o seguinte: eu disse antes que à essência corresponde uma potência de afeto ou de modificação; a essência tem uma capacidade de ser modificada e de modificar. Essa capacidade de ser modificada e de modificar necessariamente é preenchida sempre; então a essência é uma virtualidade que se atualiza por várias partes extensivas e intensivas que preenchem essa capacidade de ser modificável. Agora, esse preenchimento faz com que a essência varie na sua potência de agir. A potência de agir da essência varia – aumenta ou diminui; o que não varia é o poder absoluto da essência ser afetada, ela tem aquele poder, isso é implacável, isso é eterno. Mas acontece que essa capacidade de ser afetado é preenchida por tipos de afecções. O que é uma afecção? Afecção é algo que modifica, é uma modificação, é algo que vem de fora e modifica. Então essa modificação pode ser boa ou má, ela pode compor com as partes que a minha essência e a minha relação subsume, ou decompor essas partes. Na medida em que ela se compõe, a minha potência de agir e de existir aumenta, porque na composição aquele outro elemento que se compôs é uma potência; e se é uma potência que se adéqua com a minha própria potência, essas duas potências formam uma potência maior. É bem óbvio, bem lógico.

Então eu vou aumentar a minha capacidade de existir e de agir; logo, eu vou ter um afeto de alegria. O que é o afeto? O afeto não é a afecção. A afecção é a causa digamos que instantânea; o afeto, na medida em que eu tenho aquela afecção, que eu sofro aquela afecção, é a passagem de uma potência maior para uma potência menor se aquilo me destruiu, ou de uma potência menor para uma potência maior se aquilo se compôs comigo; o afeto é uma passagem, necessariamente.

A consciência, na medida em que ela é sempre consciência do efeito, ela também é consciência do afeto; por isso a consciência vira a nossa vontade: “ah, eu tenho desejo, eu tenho vontade” – é a pura consciência que está ali. É a passagem porque a todo momento eu aumento e eu diminuo a minha potência; então eu flutuo; a minha potência de existir e de agir aumenta e diminui segundo os encontros que ela faz, segundo o modo como o meu poder de ser afetado é preenchido. Então existe essa variação – é o que Deleuze chama de longitude. Longitude e latitude.

Bom, se algo se compõe comigo, a minha essência é determinada a aumentar a potência e eu tenho um afeto de alegria; mas esse algo que se compôs comigo eu não fui o agente, eu não fui um participante, eu não fui um coparticipante; eu simplesmente sofri a ação de fora. Por isso é uma paixão, mesmo que de alegria. Mas evidentemente Espinosa vai distinguir as paixões tristes das paixões alegres; então é uma paixão de alegria. No caso de uma paixão de alegria a minha potência aumenta e ela tem a condição de se duplicar. O que seria essa duplicação? A duplicação da paixão alegre é quando, na medida em que a minha potência aumenta, esse excedente de energia é usado para entender como aquilo aconteceu, a causa daquela relação. Nesse momento eu ultrapasso a imaginação e começo a atingir, a entender as noções comuns. É o que Espinosa chama de noção comum. A noção comum não é uma abstração, não é um universal; a noção comum é uma relação que tem necessariamente algo em comum porque senão seria impossível a própria relação; algo de comum na relação que faça com que a relação se estabeleça. Esse algo de comum é o que Espinosa chama de noção comum.

O entendimento, ou o segundo gênero de conhecimento – porque o primeiro gênero é a imaginação, é a própria consciência – já atinge essas relações, essas condições de relação; no momento em que ele atinge isso, ele já sabe a condição daquela composição. E isso gera um novo afeto de alegria – dessa vez o afeto de alegria é derivado, claro, de um aumento de potência porque eu entendi, eu fiquei mais forte, eu já sei a causa, e agora esse afeto de alegria não é mais uma paixão, ele é uma ação porque eu fui a causa do entendimento. Então eu faço a transmutação de uma paixão para uma ação.

Quando eu estou na ação de alegria, essa ação de alegria vai preencher de modo duplo aquele preenchimento primário feito pelo objeto externo do qual eu não era causa; então eu tenho uma nova afecção, agora uma afecção de essência, da qual eu mesmo sou a causa, ou a minha essência mesma é a causa. Quando eu me torno a causa da afecção na minha essência, eu me identifico a Deus, eu me identifico à essência; eu atinjo a essência, eu atinjo a intensidade pura. E quando eu estou na intensidade pura, eu estou na singularidade pura; não tem universal e não tem mais o individual – o indivíduo é um individuante; ele não é um indivíduo, ele é um diferenciante. Então aí já é uma outra via.

Então no momento em que eu transformo aquela paixão alegre em ação – que necessariamente é alegre, não existe ação triste, toda ação é alegre… E é por isso que em Espinosa, mesmo que a vida dele tenha sido muito difícil, com esse tipo de obra, com esse tipo de pensamento e de modo de vida, não tem como ele ter sido uma pessoa triste. Porque ele não está imaginando que ele está na ação, ele não está acreditando nisso, ele está na própria ação.

Participante: o indivíduo, quando chega ao individuante, está no terceiro gênero de conhecimento?

No terceiro gênero. Quando se atinge as essências, é isso que Espinosa chama de terceiro gênero de conhecimento. Porque o entendimento, o segundo gênero, o que ele chama de razão, é o entendimento de relações; e a essência já é a intensidade. Só a intuição atinge a essência, e a intuição, em Espinosa, é o terceiro gênero de conhecimento.

Participante: é essa intuição que é o conatus?

Ela intui o conatus. O que é o conatus? Temos elementos já para definir o conatus. Ele é um apetite ou um esforço de perseverar na existência. O conatus já é uma determinação existencial, já é a essência na existência. Isso que é o conatus. Então ele é um esforço ou é uma potência na existência. O que quer o conatus, o que visa o conatus? Manter-se na existência e se expandir, se compor. É isso que ele faz o tempo inteiro. Ou o desejo, é a mesma coisa – desejo ou conatus. É um conatus, é um ato conjunto dessa essência na existência; há uma coexistência da existência com a essência. Isso que é o conatus.

Participante: é um desejo que tem como causa esse si mesmo.

Sem dúvida: esse si mesmo que se identifica a Deus, no caso. Essa parte de Deus ou da Substância em mim. De novo, para quem não ouviu a primeira aula: em Espinosa, Deus ou Natureza, Deus sive natura. Não é Deus transcendente, Deus como forma pessoal, antropomórfica ou antropológica; não é essa ficção das religiões, não. É a Natureza Naturante, é isso que ele chama de Deus.

Então em nós esse Deus é uma parte do próprio Deus que está em nós. Então nós somos uma modificação de Deus e essa modificação continua imanente à própria causa; a causa de Deus continua agindo em mim, agindo no efeito, ela não se separa do efeito. O conatus é a causa junto com o efeito na existência. Mas vamos atingir algumas definições ainda mais claras.

Participante: você falou das paixões alegres. Eu queria que você falasse das paixões tristes.

Eu vou seguir nesse caminho.

Participante: eu estou querendo entender ainda. Então quando eu sou afetada por uma paixão alegre, eu sou capaz de chegar a uma ação alegre.

Ação é necessariamente alegre, ação é alegria pura.

Participante: mas para eu chegar a uma ação alegre, eu tenho que ser afetada antes por uma paixão alegre?

É isso, você passa pela paixão. Agora, o homem livre, o que atingiu a liberdade…. há um nível onde o Mal já não te atinge; aí não existe mais grau que você age mais ou menos, que você aumenta ou diminui a sua potência de agir; você já é senhor, é causa da sua potência de agir. Quando você atinge isso, você não flutua mais entre a alegria e a tristeza, você atinge o que Espinosa chama de beatitude, você atinge a serenidade, é aquele contentamento íntimo. Mas a tua questão escapou.

Participante: o final eu entendi, eu não entendi o início. Eu preciso ser atingida por uma paixão alegre e precisa ter um excedente dessa alegria para que eu possa….

Atingir a noção comum.

Participante: essa noção comum, é isso que eu não entendi. Porque é atingindo a noção comum que eu sou capaz então de praticar uma ação alegre.

Participante: não há um alegre na ação, toda ação por si só é alegre. Não há esse adjetivo no caso, a ação é livre.

Ela já é livre. Mas é necessariamente alegre. Só que você já não depende, você não busca mais a alegria, a alegria invade e você vai num fluxo. É desejo que se efetua livremente, aí já é liberdade pura mesmo, que é igual à necessidade. Não é livre arbítrio.

Participante: necessidade da essência. É isso?

A necessidade é sempre da essência. E na existência existe a necessidade do acaso, por isso que a morte é necessária também.

Participante: tem a ver com os encontros.

Tem a ver com os encontros. Há uma necessidade da ordem dos encontros; a ordem comum da natureza é a ordem dos encontros, essa ordem é necessária. A ética começa quando esse ser organiza seus próprios encontros, ele seleciona os encontros, ele começa a se tornar uma potência seletiva. É aí que entra a ética – e não a moral. Porque a ética vai entender o que? Ela vai começar a entender as noções comuns; ela entende o que compõe e aumenta a potência de agir, de pensar e de existir, e o que diminui essa potência. E o que aumenta ou diminui? É a relação que compõe a minha relação singular com a relação singular do outro corpo; ou a relação singular da minha alma com a relação singular da outra alma ou da outra ideia. Então a composição é uma composição entre relações, é composição de relações; o plano de composição em Espinosa é um plano de articulação ou de composição de relações. Então são as relações que expressam uma essência e, ao encontrar outra essência como outra relação, se compõe. Esse encontro gera ou pressupõe necessariamente algo de comum; é esse algo de comum que é a noção comum. Isso só o entendimento pega, não é a sensibilidade que pega isso.

Participante: e aí quando eu compreendo o que se dá no plano da composição, e não uma coisa que venha transcendente, mas que eu posso compor também com esse outro, essa relação, eu sou capaz de efetuar uma ação.

Isso, porque daí você antecipa, você precipita, você acelera, você retarda – você começa a jogar com a potência mesmo, você monta na sua potência, você se torna senhor da sua potência. É isso que faz o artista, o artista livre faz isso.

Participante: é metabolizar esses encontros.

É, metabolizar, porque é química, é física, é alimento. Exatamente.

O afeto é um modo de pensar que não é necessariamente ideia, então o pensamento se dá não necessariamente por ideias. Tudo é pensamento, também, só não que não necessariamente via ideia.

E o corpo é composição de alimentos ou decomposição por venenos ou por intoxicações.

Agora vamos entrar na questão do mau encontro, das paixões tristes, porque em função disso vamos explorar bem esse aspecto e retornamos para a questão da liberdade e das ações que necessariamente são alegres. O que ocorre no mau encontro? Um corpo subtrai uma das minhas partes, digamos assim, ou todas as minhas partes; ele rouba ou ele decompõe, ele destrói. Mas o que ele destrói? Não é a parte em si mesma e nem a minha relação, que é eterna; ele destrói a relação da minha relação que subsume as partes. É esse encontro da essência com a existência que ele destrói.

Agora, existem vários níveis de destruição; por exemplo, um objeto ou um alimento pode ser alimento segundo algumas partes do meu corpo e um veneno segundo outras partes. Vamos supor o açúcar: o açúcar pode afetar o meu pâncreas, me fazer um ser diabético; mas ao mesmo tempo ele pode gerar energia, gerar potência. Ou seja, ele pode afetar de várias formas várias partes do meu corpo ao mesmo tempo; então um objeto já é plural, um alimento já tem uma pluralidade de elementos. E o meu corpo também tem uma pluralidade de indivíduos ou de partes, e cada parte do meu corpo é afetada de uma maneira e às vezes não é nem afetada, às vezes é até indiferente. Então tem o que afeta de modo a se compor, existe o que afeta de modo a decompor e existe algo que simplesmente não tem efeitos colaterais digamos assim, para usar a linguagem médica.

Então o que ocorre? O alimento ou o veneno é sempre relativo. Isso sob o aspecto objetivo do que vem de fora se compor comigo. Então pode ser bom ou mau segundo esses aspectos; eu digo que um alimento é bom, ou que é um veneno ou um intoxicador – daí ele é mau – em função do modo como ele se compõe comigo. Então ele pode afetar ora de um jeito ora de outro; em tempos
diferentes e em lugares diferentes ele muda às vezes de bom para mau. Então nunca existe o Mau em si ou o Bom em sim. Um alimento não é sempre bom, às vezes ele se torna um veneno. Então isso aí é fundamental.

Outra coisa fundamental é que esse mal que é feito em mim pode simplesmente decompor parte do meu corpo ou da minha alma, mas não ser suficiente para me derrubar ou para me separar do que eu posso ou para roubar aquela parte do meu corpo e fazê-la entrar sob outra relação.

Exemplo: célula cancerosa; quando ela se desenvolve num órgão, ela acaba tomando conta do órgão. Se o meu corpo for suficientemente capaz de reagir e fazer com que essa célula volte a aquela relação de movimento e de repouso sob a relação do próprio órgão, essa célula volta a ser subjugada pela relação e volta a ser organizada por essa relação e por essa potência do órgão.

Agora, se ele é incapaz disso, essa célula vai inventar uma linha de fuga que vai destruir aquela relação eterna do órgão com as partes existenciais do órgão, então aqueles elementos existenciais que compõem o órgão vão entrar sob uma outra relação, que é a relação da subdivisão da célula cancerosa. Ou um vírus.

Isso faz com que um corpo estranho entre no meu corpo e modifique o meu corpo até um ponto tal que eu não sou mais o mesmo indivíduo que era; ou seja, a doença pode se apoderar de mim de modo tal que o meu corpo já não é mais o mesmo. De modo que você pode dizer de alguns doentes que eles ou já estão mortos ou estão absolutamente degenerados em relação ao que eles eram. Espinosa diz: você tem muita dificuldade em dizer que esse indivíduo é o mesmo. Ou melhor, que não se espera o corpo virar cadáver para dizer que esse indivíduo morreu. É isso que o próprio Deleuze entende em relação ao próprio corpo dele.

Participante: existe uma predisposição do corpo?

Não, não existe a predisposição. A predisposição é sempre uma potência de ser modificado.

Participante: algo torna possível.

No encontro, sempre no encontro. E existe um ponto em que o corpo reage, que são as chamadas doenças autoimunes; por exemplo, tiroidismo, tireoide, as doenças ligadas ao hiper ou ao hipotiroidismo; elas detectam um elemento estranho, que era do próprio corpo; esse elemento foi cooptado por uma outra força que veio de fora, por uma outra relação que veio de fora, e ele passa a ficar a serviço dessa outra relação. No próprio corpo. Aí o que o corpo faz? Ele reage, isola esse elemento e combate esse elemento. Nesse ponto você ainda tem o corpo reagindo contra um corpo estranho no seu próprio corpo. E o ponto em que tudo se desintegra mesmo, em que o outro vem, invade e te destrói. Mas destrói quem, em você? Destrói sempre aquela relação de articulação ou de composição entre as partes existenciais que a tua essência e a tua relação singular subsume, e faz com que essas partes entrem sob o jugo de uma nova relação e de uma nova potência. É sempre isso que ocorre.

Então a coisa é complexa porque ela se dá em vários níveis. Mas sempre com o mesmo sentido, é sempre uma relação de alimento e de veneno que fortalece ou que enfraquece. É sempre isso que ocorre, nunca é uma postura moral; nunca é o descumprimento de uma forma que seria a finalidade da minha existência; nunca é algo que o destino, que Deus ou que o meu carma prescreveu para mim e que eu deixei de cumprir e logo, portanto, eu fui punido. Nunca é isso, é sempre um mau encontro.

A mesma coisa no pensamento. Ou seja, a nossa alma é plural – isso também é outro objeto de ódio em relação ao espinosismo, dizer que a alma é plural, que ela não tem uma unidade ou que a unidade dela não é formal no sentido tradicional, a unidade dela é uma potência, é uma capacidade de ser afetada, é isso que é a unidade dela. E acontece a mesma coisa com as ideias. Então de que modo as minhas ideias são decompostas? Quando uma ideia confusa, mutilada, vem gerar desconexão ou uma decomposição das ideias que eu articulo, que fazem com que a alma seja mais capaz de agir ou de pensar. Então no momento em que eu separo uma ideia de outra através de uma ideia intrusa, de uma ideia estranha, e que não se compõe com alguma ideia da minha alma, mas simplesmente faz com que as ideias se percam, eu vou ter menos ideias – logo, menos capacidade de pensar, a minha potência de pensar diminui. A alma é envenenada do mesmo modo que o corpo.

Participante: e o indivíduo só fica se relacionando dentro das três ilusões. Eu posso dizer que com isso eu eliminei a possibilidade de afecções? Porque é como se as mesmas afecções tivessem acontecido, e geram só um afeto que é repetitivo. Só um ou poucos que se repetem.

Muito bom isso que você falou, perfeito. Aqui atingimos, agora, uma outra qualificação: bom e mau não é mais o objeto que eu encontro, o alimento ou o veneno. Bom e mau é dito agora do próprio modo, do próprio indivíduo: o indivíduo é bom se ele é forte, se ele é capaz de selecionar os encontros, se ele é livre, se ele é dinâmico; e ele é mau se ele é fraco, se ele é impotente, se ele só fica na imaginação, se ele não é capaz de organizar os seus próprios encontros, se ele fica sujeito ao acaso dos encontros. Não tem nada a ver com moral, isso, absolutamente nada; tem a ver com dinamismo, com potência. Não com poder que alguém vai me delegar; a minha existência é uma provação, não é Deus que está me provando, não é nada.

Participante: isso é ética, não é?

Isso é ética pura, não é moral.

Participante: o estado é um índice.

O estado é um indicativo, é um índice, exatamente. E o que o mau faz? O mau vê o índice, o indicativo como causa; ele reduz a natureza inteira, o inconsciente e o desconhecido, a aquele efeito conhecido, que é um último grau de expressão da natureza; ele pega aquilo como se fosse a natureza inteira. E aí ele liga aquele efeito com outro efeito, com outro efeito e com outro efeito, e aí aquela imaginação absurda, aquele delírio – isso é o delírio; um delírio que pode ser superorganizado. Por exemplo, Aristóteles é delirante, e, no entanto, inventou a razão representativa. É a imaginação estudiosa. De efeitos, o tempo inteiro é efeito, efeito com efeito. “O homem é um animal racional”: quer delírio maior do que isso? Reduzir o homem a essa racionalidade que ele inventou? O homem mau é o que fica no efeito e liga efeito com efeito, inventa uma ordem fictícia, inventa uma capa para a natureza.

Participante: parece que de tudo que você falou até agora, o básico é essa conclusão da causa e do efeito.

Sem dúvida. Então vamos seguir porque agora vêm outras revelações, aqui.

Participante: deficiência não é dívida, não é?

Olha só, Espinosa diz: ao cego não falta a visão, do mesmo modo que não falta a visão à pedra. Porque a visão é um afeto que alguém tem, e aquele que não tem esse afeto, a sua potência é preenchida com outros elementos e não com a visão. Então não falta a visão ao cego. O mau não é privação. Mas vamos voltar um pouco para a questão do bom e do mau como tipos, porque atingimos também essa ideia do que é privação, esses outros elementos aos quais o mau é ligado.

Na medida mesma em que você sofre uma ação de fora ou uma afecção, e essa afecção diminui a sua potência de agir ou de existir, ela subtrai alguma parte de realidade que me atualiza; ao subtrair essa parte de realidade que me atualiza – isso se dá necessariamente no corpo e no pensamento ao mesmo tempo –, eu tenho menos ideias e menos partes que atualizam a minha existência; e menos afecção de essência. Logo, eu sou menos real, menos eterno; e mais a morte tem importância para mim. A relação entre a morte e a atividade é inversamente proporcional: quanto mais ativo eu sou, menos a morte significa para mim, a morte se torna uma ilusão. Se eu sou inteiramente ativo, a morte não existe; se eu sou passivo, a morte se avoluma e eu passo a ter cada vez mais medo da morte. Então essa questão de bom e mau é fundamental porque na medida em que eu sou subtraído do que eu posso, eu sou afetado por menos elementos, eu sou modificado por um número menor de elementos; até o ponto em que eu chego ao cúmulo da impotência, que é o caso do suicida por determinação exterior, por alguma coisa que ele sofre sem ter a participação; algo que ele sofre que o modifica de modo tal e que se torna a modificação por excelência – do ponto de vista do corpo e da alma. A modificação por excelência é uma ideia fixa e essa ideia fixa se torna contra a minha própria natureza, ela vem para destruir a minha própria natureza; ela se apodera de mim em mim mesmo: é algo que veio de fora, se apoderou de uma parte do meu corpo ou da minha alma (ou das duas coisas ao mesmo tempo) e me destrói. Então esse é o auge da impotência, é a ideia fixa – que não necessariamente leva ao suicídio, mas muitas vezes leva também. Ou a ideia fixa de um paranoico, por exemplo, ou de um neurótico. E por aí vai.

Então vemos claramente que a essência é eterna na existência; na existência ela se torna mais ou menos eterna. Se eu faço com que a essência seja modificada por um número cada vez maior de afecções, essa essência é mais eterna; e o contrário leva para a morte ou para a mortalidade: ela é mais mortal quanto menos elementos ela efetuar ou modificar a partir dela mesma. Então esse é o problema ético por excelência; bom e mau, agora, vão designar o tipo – o tipo que é capaz de selecionar os seus encontros e fazer com que o seu corpo e o seu pensamento façam o maior número de composições possíveis. E esse maior número de composições ou de modificações, na medida em que decorre do entendimento da relação entre relações, entre corpos e entre ideias; na medida em que decorre daí, na medida em que é a consequência de uma ação do pensamento, duplica a afecção na minha essência.

A minha essência necessariamente é preenchida ou por paixões tristes ou alegres, ou por ações que são sempre alegres – por esses três elementos ela é necessariamente preenchida. Se eu me torno ativo, inclusive no pensamento, eu faço com que as paixões – que necessariamente eram alegres porque me levaram a essa atividade – agora virem ações e eu modifique a minha essência segundo essa atividade. Então eu posso atingir um ponto tal onde o mau passe a significar muito pouca coisa ou quase nada; o mau é um nada. Então o mau é nada para o homem livre – o mau e não o mal, porque esse é ficção mesmo; mas o mau é totalmente real sob o ponto de vista das partes que se encontram na natureza; mas na medida em que eu aumento a minha capacidade de existir, de agir e de pensar, eu sou mais capaz de selecionar os meus encontros, de criar um filtro. Não mais representativo: não é a razão que representa, através da imaginação, um meio de atingir a segurança e de esperar que eu faça bons encontros; eu não crio uma tela ou uma peneira covarde, eu tenho
uma relação imediata com a própria natureza.

E aí entra a natureza da noção comum. O que é a noção comum? Nesse momento eu vou descobrir que ela é a própria expressão, ela é a própria condição expressiva do ser; o ser, ao se expressar, ele se expressa já numa entidade ou num plano tal que não que ele vai através de uma noção comum, mas ele é a própria noção comum, o ser é a própria afirmação. Então afirmação, noção comum e ser são uma única coisa; e esse ser não me pertence, ele atravessa a natureza inteira, as relações todas; ele é o ser das composições. Ele é o plano de composição, é ele que compõe, é ele que dá a liga. Esse plano é completamente expressivo e imediato, ele não tem mediação nenhuma.

Então eu não fico projetando o futuro da natureza que é previsível pelo lado bom, e evitando um futuro mau; tendo uma esperança numa memória projetiva e evitando um desespero ameaçador que seria a invasão do caos. E nem tenho uma memória que, a partir de um sujeito ou de uma vontade originária, se orientaria em direção a esse bem final ou a esse projeto.

Eu tenho agora um programa, que é completamente diferente de projeto. No fundo não é nem programa, a palavra é diagrama. O diagrama é o fígado das relações, ele é o fígado da existência, o rim da existência, ele é um filtro imediato, ele filtra de modo não a julgar o que se passa nele, mas de modo a fazer as composições que se passam nele. Ele é a condição da composição, ele é o próprio plano de composição. Então o que eu faço? Um plano de composição que é absolutamente expressivo, que traz o plano de imanência, ou a imanência toda, do ser intensivo, à superfície; o profundo sobe à superfície. Então a superfície é iluminada, a superfície é completamente energética; a energia é a potência virtual efetuada na existência, a energia já é existencial; o virtual não é a energia, mas o virtual atual é pura energia, a atualização do virtual é a energia, é a iluminação na superfície. A iluminação na superfície é essa potência intensiva que se expressa nessa linha abstrata, que no fundo é uma linha de fuga, é uma linha de passagem, é uma linha labiríntica ou, em outras palavras, é a linha do tempo. A linha do tempo que não é mais, agora, a causa da morte, mas a causa da minha eternidade, porque esse tempo não tem nada a ver com abolição, com fim, com morte; esse tempo é onde eu componho de modo tal que o meu poder de ser afetado é preenchido por mais e mais ações e as paixões são cada vez menores – mesmo as alegres.

Elimino absolutamente as paixões tristes, quando o mau já não significa mais nada para mim, aí já não tem paixão triste; e mesmo as paixões alegres ocupam um lugar pequeno. O meu ser é inteiramente ocupado por ações, eu me torno causa de mim mesmo, causa de si.

Aqui Espinosa libera mais uma determinação do que é um ser unívoco. Vocês lembram da ideia de univocidade, que levantamos a partir de Avicena e de Duns Scot: Avicena diz que a essência é neutra, Duns Scot vai dizer que o Ser é neutro; em Espinosa a noção comum, no fundo, é unívoca quando ela se torna o próprio atributo. O atributo é o mesmo que constitui a essência de Deus e que envolve e desenvolve os modos. É a mesma forma expressiva, o atributo. Mas Espinosa vai dizer mais: Deus é causa de si. O que é causa de si? É aquele que não só é causa da sua essência como da sua própria existência; é um ser cuja essência necessariamente existe; então a sua existência é necessária – isso que é ser causa de si. E Espinosa vai dizer: os modos são causa eficiente. Mas os modos são causa eficiente no mesmo sentido em que Deus é causa de si. No fundo a causa, em Espinosa, funciona sempre do mesmo modo; existe uma única causa em Deus e nos modos. Então eu me torno causa de mim mesmo – que já não é um eu, que já não é um mim, mais, mas é a essência em mim – quando eu me identifico, eu me torno, eu sou essa própria parte substancial ou esse grau de potência na sua plena expressão. Quando eu atinjo essa plena expressão eu levo a minha potência de agir ao limite extremo do que ela pode.

É isso que reza a ética: faça do seu corpo e do seu pensamento algo que vá ao extremo do que pode; e quando chega no extremo, o pensamento e o corpo sabem que podem mais. Algo se revela na extremidade que diz: “opa, aqui eu mudei de natureza, eu transmuto”. É o que fala Deleuze, o que fala Simondon, também: a vida cresce pelas bordas. É o extremo de tudo que é. É na superfície extrema – que é a expressão pura do ser – que a eternidade se fabrica. Então a eternidade é uma questão de duração, é uma questão de tempo, é uma questão de existência – não tem nada a ver com a vida depois da morte ou com a vida antes da morte. A eternidade se faz aqui e agora.

Neste sentido, então, você tem uma diferença radical entre o tipo bom e o tipo mau.

Participante: essa ideia de potência não tem nada a ver com potência como se entende nos
tempos modernos, que é acumular, de que quanto mais se acumula, maior a potência. Pelo contrário: quanto mais você acumula, menos potência. Na proporção em que você menos tem, maior poder de afecção. A potência se dá em quanto menos eu carrego.

Perfeito. É o despojamento, é a capacidade de limpar a superfície. O meu corpo é uma casca, é um instrumento onde a potência se efetua. É o templo da vida.

Participante: é o pensamento nômade.

Isso. É exatamente isso. Essa noção é essencial, de você liberar o corpo e não se apoderar, porque isso é uma falsa potência, isso é a noção de poder e não de potência. Aquele que quer o poder é aquele que tem necessidade de reter; e o que tem necessidade de reter não entende a natureza, porque você não precisa reter nada dela – ao contrário, ela tem que te atravessar. E ela só te atravessa se você não retiver nada, porque se você retém você não deixa lugar para as outras coisas.

Participante: eu estava pensando em fazer um exercício de imaginação aqui sobre expressar-se.

Estávamos falando sobre os animais. O guepardo, um animal de alta velocidade, exerce esse modo dele, de altíssima velocidade, com um gasto de energia colossal. Esse gasto de energia dele tem que ser executado de uma forma muito precisa, e ele exerce isso de uma forma tão precisa que quando ele vai executar o ato dele, ele executa esse ato sem pensar mas ele executa plenamente. Então a caça sabe que vai ser caçada e ele sabe que ele vai caçar; mas ele vai exercer isso plenamente. Então ele fica preparado para caçar e quando ela aparece ele vai com tudo para cima, ele não pensa se não vai acertar, ele vai para acertar. É a expressão plena dele, de acertar a caça. E a caça também vai fugir plenamente disso. Então é a ação do guepardo, a ação do leão, a ação de toda a natureza.

Estar ligado à sua própria potência. Toda a natureza que está, na realidade, à espreita.

Participante: o modo do guepardo se expressar é assim e ele expressa plenamente isso.

E não tem falta, mesmo se ele não alcança a presa. Porque ele não espera mais que algo lhe chegue – a coisa o espera. Ele inverte a relação de esperança, ele está inteiramente no campo de atração, no campo de composição. O campo de composição é um grande ímã, ele atrai e aquilo se torna fatal na efetuação. Necessário. É por isso que Espinosa diz: o único modo do Ser é a necessidade. E esse sentido do necessário é outro aspecto da univocidade do Ser.

Então a univocidade do Ser em Espinosa é sob o ponto de vista do atributo, da causa e do necessário. O atributo, que envolve e desenvolve os modos, é o mesmo que constitui a essência de Deus ou da Natureza Naturante; a causa, que age na Natureza Naturante como causa de si, age do mesmo modo que age no modo; e a necessidade da existência dessa essência que é causa de si é a mesma que o modo tem na essência, enquanto essência – porque ele é uma modificação da Substância e a modificação da Substância sempre é necessária – ou na existência quando, através da modificação de vários outros modos (que são modificações da mesma Substância), eles se compõem de modo tal que determinam a existência desse primeiro modo. Então há uma necessidade desses encontros, há uma necessidade do acaso; como diria Nietzsche, o ser do devir e a necessidade do acaso é que fazem o eterno retorno, há uma necessidade disso. Então o necessário – na Natureza Naturante e na Natureza Naturada –, a causa – na Natureza Naturante e na Natureza Naturada – e o atributo – na Natureza Naturante e na Natureza Naturada – é o mesmo, se diz num único e mesmo sentido.

Aí, quando o entendimento atinge a noção comum…. a noção comum que, na medida em que vai encadeando, segundo o plano de composição, até atingir o atributo… quando a noção comum se torna um atributo, ela necessariamente revela uma essência de Deus ou da Natureza Naturante. Por exemplo, o atributo Extensão revela toda a essência do corpo, a essência que está em qualquer corpo, aquilo que é o mesmo em qualquer corpo. O atributo Extensão revela isso: tudo que é do corpo está ali. Isso faz com que a noção comum seja agora uma ideia singular; eu atinjo a singularidade, eu atinjo Deus como singularidade ou a Natureza Naturante como singularidade. Da mesma forma o Pensamento: quando eu ligo uma ideia com outra ideia, e um entendimento finito, depois eu vou para o entendimento infinito imediato, infinito mediato, etc., até atingir o atributo – atributo Pensamento.

Quando eu atinjo o atributo Pensamento eu entro no ser do pensar. Ser do se mover ou parar, ser do movimento e do repouso; ser do pensar, que é um ser expressivo – faz com que eu atinja a singularidade daquele ser.

Quando eu atingir a singularidade, qualquer relação não funciona mais agora segundo noção comum – a noção comum transmuta, ela vai ter um outro brilho, ela é uma expressão singular. Ela vai ao limite do que ela é. É aquela história do animal à espreita: vai ao limite. Aquela expressão é perfeita – não é que ela é a mais perfeita, ela é a coisa acabada; a natureza inteiramente perfeita e livre.

Nisso a natureza não tem mais graus, ela é completamente acabada; e, no entanto, flutuamos segundo o modo como organizamos. A questão é não mais flutuar, mas entrar em velocidade absoluta e em movimentos infinitos. Movimentos infinitos que se dão através dos atributos, e velocidades infinitas que são as viagens intensivas. A viagem intensiva é uma velocidade absoluta; e o movimento infinito é o movimento no atributo. Movimento infinito é aquele movimento que faz com que todos os modos do atributo coexistam naquela expressão; então eu tenho todas as ideias ao mesmo tempo em que eu estou tendo uma ideia e expressando essa ideia; e todos os movimentos, velocidades e lentidões no movimento que o meu corpo encarna.

Então, fazer com que tudo coexista ao mesmo tempo é ter a potência absoluta de afetar e ser afetado, modificar e ser modificado. É um ser absolutamente plástico, absolutamente estético e absolutamente ético; é por isso que ética e estética, aqui, se confundem: é um ser ético e estético. Não um ser moral, racional, crente. Espinosa diz: eu não creio que eu sou eterno, eu sinto que eu sou eterno.

O ser está na imanência, ele nos atravessa.

Participante: perceber os teus ressentimentos, ter consciência deles, ainda não me faz me livrar deles. Eu vejo que estou preso e não me liberto. Eu não sei se filosoficamente eu consigo dar um braço na coisa.

É porque não se trata de signo.

Participante: como é que isso desliza?

Quando Espinosa diz que o encontro é como um alimento ou como um veneno, ele está dizendo: é química, é física, não é signo teórico, não é interpretação significante; não adianta eu entender a marca na significação ou na representação; não adianta eu ligar essa marca – que é um efeito, que é um signo – a uma outra marca ou a outro signo. Porque é isso que o significante faz, o significante remete um signo a outro signo. Um significante que remete a outro significante dá um significado; aí eu penso que se eu tenho o significado, eu entendi a coisa. E aí eu penso que eu posso mudar.

Ao contrário, eu alimento ainda mais o ressentimento e crio um muro ainda maior. É por isso que a linguagem é uma faca de dois gumes, a linguagem pode ser o veículo do sentido e ela pode ser o reforço do signo; e quando o signo fica opaco e eu ligo um signo a outro, eu fico naquela verborragia, falo um monte e não acontece nada comigo.

Então tem que atingir o ponto em que uma ideia invente um neurônio e não o contrário, onde a minha ideia esteja submetida ao neurônio. É onde a ideia cria o neurônio, cria os canais. O pensamento é produtivo, ele cria canais; ao modificar a minha essência, essa modificação da essência não é uma coisa teórica, ela é um canal novo que foi inventado. É por isso que a eternidade se faz na existência e na produção: você produziu algo que é eterno. E aquilo fica. É o canal e a energia que o atravessa, é a intensidade das velocidades absolutas e os movimentos infinitos daquele canal. Isso, necessariamente, é químico, é físico, é – como diriam alguns medievais – alquimia, porque a coisa não é teórica abstrata; é pensamento, mas não enquanto uma teoria abstrata. É uma ideia, mas é uma ideia enquanto potência, é uma ideia que tem afirmação nela mesma. É isso que é uma ideia com potência: ela se autoafirma, ela não é afirmada por alguém que a julga, por um sujeito do conhecimento. Ela te invade e se apodera. O que é a ideia? A ideia é o canal da energia, é só isso. A ideia nada mais é do que isso. A ideia é uma forma do tempo – o tempo te dá o fluxo daquela energia. Então a ideia é inteiramente ontológica, é real; não tem nada a ver com abstração, com representação, com verborragia linguística; é puro canal de energia.

Então para ultrapassar o ressentimento ou a má consciência – ou, como diria Espinosa, o ódio e o remorso, o que envenena a vida do outro e o que envenena a minha vida – é começar a ver no signo um índice que me leva até outras realidades desconhecidas no outro e inconscientes em
mim. Então esse desconhecido e esse inconsciente vão chamar – e aí você pode até inventar ícaros, ou mantras, ou elementos que chamem espíritos, deuses, tudo que faça com que aquela realidade
das essências invada aquele signo, aquele índice; é algo que vem e se apodera e se mostra. Quando aquilo se mostra, não tem mais porque eu ficar ressentido, porque aquilo se compõe comigo; e quando aquilo se compõe, a minha potência aumentou; e se ela aumentou, eu sou capaz de novas afecções, de novos afetos, de novas modificações.

Então a questão do ressentimento e da má consciência, ou do ódio e do remorso, é uma
questão de modo de vida, é uma questão de visão, é como vemos as coisas; mudar o jeito de ver, o jeito de pensar, o jeito de se movimentar, a postura do corpo – você vai mudando sutilmente as coisas e a realidade vai se transformando e dissolvendo as marcas.

Participante: você olha uma criança brincando, ela está totalmente colada, ela está ligada no que ela está fazendo. E algumas experiências que nós podemos fazer também. Quando você está fazendo algo – fazendo uma pipa, ou cozinhando ou namorando –, se você está ligado naquilo que você está fazendo, se está colado mesmo…

Aí a consciência muda de natureza. Porque necessariamente existe a consciência. O que é a consciência? É sempre um duplo, é sempre uma duplicação; se eu tenho a ideia da noção comum que se duplica, eu tenho a consciência da noção comum. Aí esta consciência está a serviço da vida, aí já é outra coisa. E eu posso ter, também, a consciência da essência – apesar de que a consciência da essência ou da noção comum não acrescenta nada nem à essência nem à noção comum. Serve para que? Serve para organizar, ela ajuda a organizar; ela entra num plano de organização que é puro plano, no fundo, de composição, porque ele não é representativo. Mas essa consciência é efeito ou reflexão ou duplicação; é a ideia que se duplica, é a ideia que se reflete. Não é a ideia que se reflete num espírito, é a ideia que se duplica, ela se duplica infinitamente. Isso que é a consciência.

Então, se eu tenho uma ideia de efeito, a ideia de efeito é que se duplica; se eu tenho uma ideia de relação, é a ideia de relação que se duplica; se eu tenho uma ideia de essência, é a ideia de essência que se duplica. Então a duplicação tem a sua função interessante, nobre, também. Mas o que é mais importante é ter a ideia; a ideia da ideia já é secundário. Então a consciência, nesse sentido, é sempre secundária – ainda que você se sirva dela para organizar os seus encontros.

Então, limpar a consciência. É por isso que Nietzsche diz: faculdade do esquecimento – agora ligando Nietzsche a Espinosa. Faculdade do esquecimento ativa, limpar a consciência das marcas; esquecer é fazer com que aquele corpo que me afetou e que me subtraiu, ao invés de eu investir no efeito que eu sinto e atribuir esse efeito ao outro – isso é uma marca que vai fazer com que toda a minha existência e a existência do outro (se eu consigo capturar o outro através de alguma máquina de poder ou de acusação, de juízo) sejam submetidas; ao invés disso, eu sentir que aquilo foi um dos infinitos efeitos que poderiam acontecer comigo e um dos infinitos efeitos que a coisa é capaz de produzir ao efetuar aquele ato. A coisa não tinha a intenção de produzir aquele efeito em mim; a coisa produz uma pluralidade de efeitos na medida em que ela se efetua. Nesse sentido, o bom pode fazer mal, também, porque uma ideia ou um corpo pode decompor ideias e corpos de outros. Então, da mesma forma que eu sofro males, eu também produzo males; depende do outro, de como é que o
outro vai ser afetado.

Então a questão é (des)intencionalizarmos a natureza – a natureza não tem intenção, nem no objeto nem no sujeito, mas ela tem intensidade ou intenso. O que é uma intensidade? Ela não é a extensão; a extensão é uma parte acabada, aquilo se estende e vai até ali, se estendeu. Você tem um balão de ar ou de gás; ao romper o balão, aquele ar comprimido se expandiu. É a mesma coisa a extensão, a extensão é essa expansão. Mas nessa expansão você vislumbra os limites, as partes, você sente essas partes. Na intensidade não; a intensidade é capaz de produzir indefinidas ou infinitas expressões na extensão. Então a intensidade não tem a intenção de produzir aquela extensão em você, aquele efeito em você; ela só quer se efetuar. E quando ela se efetua, ela produz uma infinidade de partes extensivas e cada parte extensiva atinge alguém, algum ser; e esse ser, se estiver fraco, vai dizer “ah, aquela intensidade tinha a intenção de fazer isso comigo, ela visava isso”. Ou seja, a consciência também é o centro do mundo, é o centro de tudo. Essa história de egoísmo é própria de quem? Só fala, pensa, se refere ao mundo, se refere a Deus, se refere a si a partir de si próprio, a partir desse efeito que as coisas fazem consigo próprias. Então tudo dói, tudo machuca e tudo é signo de alguma coisa: “ah, fulano fez isso, isso quer dizer que então ele tinha a intenção de fazer aquilo, etc”. E aí você encadeia e entra no regime significante e no regime que é passional; um é passional reivindicativo e outro é paranoico interpretativo, que é uma questão que vamos ver nas últimas aulas.

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