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Formação Pensamento Ocidental – Aula 26/32 – Nietzsche (parte 2/4)

Luiz Fuganti

 Vamos fazer uma coisa, um percurso, que vai nos fortalecer para entender as figuras do niilismo em Nietzsche e a questão da transvaloração de todos os valores; ou seja, a denúncia do niilismo e a criação de uma maneira de viver absolutamente inédita, inaudita. Maneira de viver, de sentir e de pensar. Hoje então vamos ver um pouco da física de Nietzsche – ainda que ele não designe assim, nem Deleuze nem outros dizem isso, mas isso para situar um pouco melhor em que plano vamos atuar hoje. Vamos atuar um pouco na física e um pouco na crítica, que é o pensamento; a física é o corpo e o pensamento crítico. Vamos ver esses dois campos – que seriam objeto de 4, 5 ou 6 aulas e nós vamos dar em uma. Então eu vou ser sintético, evitar uma certa prolixidade, mas ao mesmo tempo tem coisas essenciais que eu não posso deixar passar. Então nós vamos ter que firmar o pé nisso em algumas questões centrais.

O que vimos na aula passada foi uma ideia geral do que significa pensar para Nietzsche. O objeto do pensamento para Nietzsche é o sentido e o valor, e não a verdade. A verdade é uma imagem clássica, é a imagem ocidental do pensamento; Nietzsche vai não só se opor a essa imagem clássica do objeto positivo, aparentemente, do pensamento, que seria a verdade, como também o seu objeto negativo que é o erro. Nietzsche vai dizer que o sentido e o valor, que dão a essência de alguma coisa, não se opõem ao erro, se opõem à tolice, à besteira, à parvoíce, à baixeza. Isso é uma coisa que ele vai insistir muito, porque Nietzsche sai do campo da verdade. A questão de Nietzsche é saber o valor da verdade, o valor dos valores, o sentido das significações. Ele quer fazer uma genealogia da decadência, uma genealogia de um pensamento ocidental niilista.

O que é o niilismo? Niilismo é um valor de nada, é uma negação de tudo o que é imanente à natureza, de tudo que é da terra, de tudo que é do corpo, de tudo que é da vida. O niilismo se expressa através de uma crença nos valores superiores – é o modo mais simples e ingênuo da expressão do niilismo. Na medida em que você acredita que existem valores superiores. Superiores a quê?

À natureza, à vida, ao movimento, ao tempo e ao espaço; valores fora do tempo, fora do espaço, valores eternos, valores que são transcendentes à própria natureza. Se esses valores são superiores, se essa realidade é mais real do que a que nós vivemos, evidentemente que essa realidade que vivemos é desqualificada como uma aparência, como uma ilusão ou como algo digno de um julgamento sob o peso dos valores superiores. Então um sentido básico do niilismo é esse: é vontade de valor superior, desejo das alturas ou, na linguagem de Nietzsche, vontade de nada, vontade de uma ficção.

E uma nadificação da terra, valor de nada que a terra toma. A negação da terra, do corpo, do pensamento ligado à vida.

Então Nietzsche quer fazer a genealogia do niilismo. E ele diz que o niilismo não é apenas um acidente na história; o niilismo é todo o princípio e o motor da história da humanidade.

  • Participante: tem uma obra em que ele trabalha mais especificamente o niilismo?

Genealogia da moral é a obra mais metódica dele, didática, onde ele vai fazer a gênese do ressentimento, da má consciência e do ideal ascético: dissertação 1, 2 e 3. Onde ele vai falar de modo didático em relação à ideia de cultura, que é o princípio anterior à história; a história nasce com o Estado e, portanto, é a interrupção da própria cultura. E a atividade genérica da cultura cai na noite da história. A história vai ter como princípio a negação do devir. A história é uma negação; o que Nietzsche chama de história vai ter não só afinidade com o niilismo, como a gênese da história está no próprio niilismo. Então a sua essência e a sua regulação são completamente niilistas. Claro que podemos ver o que seria uma história ativa – que daí não é mais só história humana, mas é história da natureza, uma história universal. O que seria uma história universal?

A genealogia que Nietzsche se propõe a fazer já é uma visão crítica da realidade – a realidade inventada pelo ocidente. Uma realidade, diz Nietzsche, que, no fundo, é produto do próprio negativo; uma realidade que já efeito de um devir reativo da terra. E quando Nietzsche vai criticar essa realidade, ele vai fazer a crítica da ideia de objeto no mundo, de sujeito e de objeto ideal. Ou seja, ele vai dizer que as ideias Deus, mundo e eu são ideias reativas e niilistas. Já são efeitos de uma ilusão de consciência ou de uma consciência que assumiu o lugar do pensamento; que inventou uma razão que se orientaria naturalmente para a verdade, o objeto da razão seria a verdade. Nietzsche diz: esse é o momento mais mentiroso da história da humanidade: os homens inventaram o conhecimento e inventaram que conhecer é conhecer a verdade. Nietzsche já sente o cheiro moral, a “moralina” que tem por trás do sujeito do conhecimento e, através do seu método crítico – que evidentemente rivaliza com o método de Kant; Kant também quer fazer a crítica – ele vai atingir o valor da própria verdade, o valor da própria razão, o valor da própria moral, o valor da própria religião, e o sentido do sentido delas.

Então ele vai inventar um método ligado ao que ele entende como o funcionamento e o princípio do próprio pensamento. Pensar, para Nietzsche, é não ver objetos no mundo, não ver fenômenos neutros, mas o objeto e o fenômeno são sintoma – sintoma de forças que geram aquele efeito; sintoma de uma vontade que é imanente à própria relação de forças que compõem aquele fenômeno, aquele objeto. Então tudo para Nietzsche é sintoma, tudo são – na linguagem do Ante Édipo e do Mil Platôs – índices de máquinas, índices maquínicos, indicadores. E nesse sentido Nietzsche diz que ser filósofo é ser médico: o médico é aquele que interpreta sintomas, que diagnostica e que faz o prognóstico.

Mas o diagnóstico e o prognóstico só vêm à tona quando você descobre o sentido e o valor do fenômeno. O sentido de um fenômeno é dado pelas forças que se apoderam da coisa; então é na relação de forças que o sentido emerge. Nietzsche diz: é o filósofo artista – é o artista que diz o tipo, é o artista que diz se é ativo ou se é reativo, é o artista que cria. Então o artista vai ter como objeto uma tipologia. Não a verdade do objeto, não uma causa no objeto, não uma essência no objeto, mas aquilo que domina o objeto; e nesse sentido o que domina já revela o valor do objeto, porque o que domina é o que vale o objeto naquela circunstância.

E quem dá o valor é o legislador ou o poeta – aquele que avalia, aquele que legisla, porque aquele que avalia ou que legisla é o criador, é o que cria. É o criador de valores.

Então ao se relacionar com o fenômeno e dizer o valor do valor daquele fenômeno – daquele objeto, daquela coisa, daquele corpo, daquela relação de forças, daquela vontade – o filósofo, ou o artista, ou o poeta, ou o legislador abre uma perspectiva para aquele corpo, para aquela vida ou para aquele fenômeno. Então interpretar é dar o sentido, dar a direção; e avaliar é gerar perspectivas. O filósofo ou o pensador é um artista, é um criador; ele cria modos de viver e maneiras de pensar. Através da interpretação, da produção da atividade e da avaliação afirmativa de alguma vontade.

Então Nietzsche, através do seu método genealógico, vai estabelecer três níveis ou três lugares ou uma espécie de topologia do pensamento: o valor, o sentido e o sintoma; ou, inversamente, tudo é sintoma de forças que dão sentido e de vontade que dá o valor. Assim, Nietzsche vai interpretar o homem como um sintoma, o pensamento ocidental como um sintoma – tudo ele vai olhar e ver um sintoma. E se é o médico que diagnostica o sintoma, se trata de uma questão de saúde. Nietzsche vai dizer: existem pensamentos saudáveis e pensamentos doentes; existe uma maneira ascendente de ser e uma maneira decadente de ser; existe uma maneira criativa ou geradora de ser e uma maneira degenerativa de ser. Então é o olhar médico do filósofo que vai detectar a doença ou a saúde de alguma coisa.

E Nietzsche interpreta o pensamento ocidental, a história ocidental, o devir do corpo ocidental, como um devir reativo e um pensamento negativo. Ele vai dar o sentido dos devires no ocidente – esse sentido é reativo; e vai dar o valor dos devires – o valor é negativo. Mas para entendermos isso é que eu quero entrar na física e na crítica – o que seria essa crítica em Nietzsche, o que seria o pensamento em Nietzsche.

Nietzsche rivaliza com Kant no seguinte sentido: Kant queria fazer uma crítica total dos valores – uma crítica da razão, da moral e da religião; e fazer com que a razão encontrasse o princípio de crítica nela mesma. E o elemento criticado seria ela mesma. O juiz seria ela e o acusado seria ela também. E Kant acredita que encontrou o princípio crítico e ele vai dizer: a razão que se julga a si mesma é a razão que encontra a pura forma que não vem mais de uma religião ou de uma moral – vem da própria razão; é um a priori puro da razão. E a crítica em relação a ela vai se dirigir aos domínios que ela invade, que não são da sua competência, e ao seu domínio, que é invadido por outros campos – o campo da moral e o campo da religião. Então o que Kant faz? Ele quer limpar o campo da razão, limpar o campo da religião, limpar o campo da moral: o que é moral é moral, o que é razão é razão, o que é religião é religião. É isso que ele quer fazer. Kant não busca a gênese da própria moral, a gênese da própria razão e a gênese da própria religião; ele não faz a genealogia disso, ele não encontra o princípio. O princípio de Kant não passa de uma condição, é apenas uma condição formal; ele não encontra o princípio genético, o elemento genealógico que gera a razão, que gera a moral, que gera a religião.

Nietzsche diz que encontrou isso – e encontrou de fato. Nietzsche encontra um princípio de fato no próprio ser; não é apenas uma ideia especulativa dele. Ele encontra o modo como funciona a natureza que moraliza, a natureza que raciocina, a natureza que acredita ou que espera; ele encontra os princípios genéticos disso tudo. Então Nietzsche diz: aquele que apenas critica os falsos pretendentes à moral, os falsos pretendentes à razão, os falsos pretendentes à religião, não criticou nada porque não atacou o próprio valor em si mesmo. A razão é um valor, a moral é um valor e a religião é um valor. Kant acredita que são valores em si: que há uma verdadeira razão, que há uma verdadeira moral e que há uma verdadeira religião.

Ontem eu ouvi alguém dizer o seguinte: “é, mas o fundamentalismo religioso na realidade é uma coisa autêntica; o que os terroristas fazem com o fundamentalismo é uma deturpação, eles não são suficientemente fundamentalistas”. Ou seja, como se houvesse uma verdadeira religião. Caímos nisso. Aí vem lá: os judeus, os cristãos, os islamitas – todos os crentes, enfim, defender a pureza religiosa que é pacífica, que é virtuosa, que é ligada ao Bem, como se houvesse uma verdadeira direção, um verdadeiro objeto do Bem. Kant está nessa posição. A mesma coisa a razão: “ora, o homem pensa e pensar é raciocinar”. Será? Kant diz que é, é conhecer. Então haveria uma verdade ou uma essência da razão ou do próprio conhecimento.

Nietzsche diz: sim, não tem problema, cada um tem a verdade que merece. É absolutamente verdadeiro o conhecimento, a razão é absolutamente verdadeira. A moral? Sem dúvida! Uma moral que não tem mais um objeto fora dela, uma forma de lei sem nenhum conteúdo, não precisa mais do Bem ou de Deus: a moral é o dever pelo dever. A razão tem como objeto a verdade que se forma no próprio sujeito; uma forma pura a priori que se forma no próprio sujeito e que se cola à moral ou à forma da lei imanente ao desejo.

Nietzsche diz: ora, é uma verdade, é um valor, mas não é um valor a priori; ou, se é um valor a priori, vamos ver porquê ele é tido como um valor a priori. O que quer aquele que deseja um valor a priori e o que significa esse valor a priori? Que valor ele tem? Qual é o valor do valor da razão? O valor do valor da moral? O valor do valor da religião? O sentido do significado da moral? O sentido do significado da razão? O sentido do significado da religião? É isso que Nietzsche faz. Ele diz: esse elemento genético, Kant não atingiu, então ele não criticou coisa nenhuma; Kant foi, na verdade, um funcionário de Estado, um filósofo que já, de saída, faz um pacto de não atingir os valores estabelecidos. Ele foi cúmplice, na verdade, do que de mais essencial no homem sobrou na época dele – e na nossa época. O que sobrou para o homem? Sobrou uma forma humana sem Deus. E Kant vai dar a verdade de uma forma humana sem Deus, acreditando que essa forma humana sem Deus é a mais pura forma da liberdade.

É por isso que Nietzsche diz que o avô de Kant é Lutero ou é o teólogo. O que faz o teólogo protestante? Ele quer botar o sacerdote no fiel. O que faz Kant em relação à razão? Ele quer pôr o legislador no sujeito – sujeito no sentido de súdito, de assujeitado. Ele quer pôr o legislador ali, dizendo que o legislador é que dá o sentido da liberdade do sujeito humano. E ele quer fazer da moral a máxima de um desejo como ordem universal; ou seja, eu quero me conduzir segundo uma lei, segundo uma regra, de modo que essa regra seja uma regra universal, que essa regra reja a natureza inteirinha. Uma pura forma de lei absoluta e a priori.

Aparentemente Kant nos dá autonomia; Kant se liberta da religião, se liberta dos objetos exteriores, de um idealismo, de uma transcendência dos valores superiores, dos valores divinos, e reconquista o que é do homem, dizendo “isso é do homem”. Hegel, com sua dialética, vai fazer ainda melhor – ou pior: ele vai desalienar a consciência; há uma consciência em si, há uma consciência em outro – que é a consciência alienada – e você se liberta em uma inversão, em uma reapropriação, fazendo dos valores que estavam fora, valores subjetivos, valores que são propriedades de um sujeito. É a consciência agora para si.

Então Nietzsche vai dizer: esse é o homem superior. O homem superior é aquele que ocupou o lugar de Deus e aquele que cultiva valores humanos e não mais divinos – não mais a eternidade, não mais o Bem, não mais a sabedoria absoluta, mas agora a felicidade, o progresso, a evolução.

Enfim, as ideias humanas que se põem no lugar das ideias divinas. E Kant acredita que assim pela primeira vez o homem se torna livre e autônomo. Kant, como diz Nietzsche, não passa de um funcionário de Estado porque – na medida em que ele limpa os domínios, que ele diz o que é de quem, legitimamente, e o que seria ilegítimo, separando as faculdades de conhecer, de julgar e de esperar no fundo está compactuando com o ideal ascético. O ideal ascético não é destruído quando você mata Deus; a morte de Deus e o homem em lugar de Deus não destroem, na verdade, nada, mas ainda leva mais longe a empresa, o projeto do niilismo, aprofunda ainda mais o devir reativo. Então você sai de um devir negativo – que era uma ordem transcendente, uma ordem divina que julgava a vida de fora, que recebia os fardos de fora – e agora você põe você mesmo os fardos em você; você introjeta a forma que antes era exterior, que antes era ideal. Agora você faz dessa forma exterior ideal, objetiva, uma subjetividade pura, uma pura forma subjetiva. Você mesmo se auto carrega; você é camelo e o carregador de si ao mesmo tempo.

Essa forma, diz Nietzsche, faz com que o homem entre no estado da reatividade ou do niilismo reativo. O niilismo reativo é aquele que, não tendo mais um mundo ideal, quer o mundo real; mas o mundo real é o próprio produto do mundo ideal: o mundo real que esse homem tem, na melhor das hipóteses, é o produto verdadeiro do mundo niilista cujo valor supremo era Deus. Então era nega o produtor e fica só com o produto; ele se reapropria do produto que, segundo Kant, legitimamente já era do homem.

Na medida em que esse homem apreende a realidade – que não passa de um produto do negativo – o deserto cresce; ele acredita que se relaciona com o real. Hoje mesmo me ligaram para falar sobre Lacan e essa pessoa dizia assim: “mas Lacan é muito interessante, é incrível porque ele vai na direção do desejo; ele afirma o real, ele vai na direção que afirmaria o real”. Sim, só que o real que ele afirma é o real que o próprio negativo já produziu. Um sentido ou um significado, que é um efeito de relação entre significantes, não tem nada de real; você tem uma ilusão de realidade e você goza com esse simbólico. Não é uma relação efetiva do desejo. Mas o desejo investe aquilo e realmente acontece um efeito; mas o efeito nunca é a liberação ou a autoafirmação da sua própria diferença – o efeito é sempre o aprofundamento da fenda.

O que ocorre? O deserto cresce. Por que? Porque você está numa forma que é incapaz de apreender o movimento real. E o mundo se torna de fato só aparência; o mundo já era aparência naquele devir niilista onde tinha Deus: tinha a essência no outro mundo e a aparência neste mundo. E a aparência virtuosa ou moral se dirigia ao outro mundo e era resgatada e era salva; agora você não tem mais a essência – aparentemente a essência está em você mesmo e essa essência não capta mais do que a aparência. O próprio Schopenhauer, que vai muito mais longe que Kant, no fundo cai na mesma armadilha; Schopenhauer diz: a essência da natureza ou do mundo é o mundo como vontade e representação. O que Schopenhauer faz é tirar a vontade da subjetividade humana, jogar a vontade em todas as coisas, mas a vontade que quer é a mesma que aquela que não pode; ela quer, ela busca o objeto, e o objeto é uma ilusão. Vontade que quer uma aparência, vontade que quer uma representação. Vontade de representação, mundo como vontade de representação. Só tem a ilusão, no final. Então essa vida sem Deus fica vazia, fica deserta, e não sabe mais nem onde está essa suposta realidade que ela pressupõe.

Essa vontade de nada, que ainda queria uma ficção, que se torna uma vontade agora reativa, uma vontade que não quer mais um ideal mas quer o real, descobre que o real é uma quimera; e quando ela descobre que o real é uma quimera, esse homem deixa de querer. Há uma vontade de nada e ele vai se por agora em uma outra posição como um nada de vontade. O homem entediado.

  • Participante: isso também é uma outra forma do niilismo, não é?

É uma forma aprofundada do niilismo. O niilismo está se aprofundando, está andando.

  • Participante: não é o niilismo que Nietzsche está falando.

É o niilismo que ele está falando, sim. Ele diz que o niilismo tem várias figuras: a figura negativa do ressentimento, a reativa da má consciência e a passiva do ideal ascético. Há uma evolução que vamos ver nas últimas aulas de Nietzsche e ele vai se aprofundando numa aliança que ele faz com a vontade de nada. As forças reativas só triunfam na medida em que elas se aliam a uma vontade de nada. No século XIX a vontade de nada e as forças reativas rompem a sua aliança: Deus e os homens romperam – Deus morreu, aparentemente. As forças reativas ocupam o lugar de Deus, ocupam o lugar da vontade de nada. E descobrem que não tem mais nada para querer porque o mundo é uma ilusão, é uma quimera – é o nada de vontade. O nada de vontade vai dar no último homem – o mais ignóbil dos homens, segundo Nietzsche – que é o assassino de Deus e ao mesmo tempo o que não vê mais nada nem no lugar de Deus e nem no lugar dos homens. O homem é uma ilusão – esse é o último homem. Isso desemboca no homem que quer morrer. Aí a coisa começa a ficar interessante.

Nietzsche abre o Zaratustra fazendo um elogio imenso ao homem que quer morrer. O prólogo: amo todo aquele que quer crescer, amo aquele que é uma ponte para o super-homem… Ele faz um discurso fantástico sobre o homem que quer morrer. Porque o homem que quer morrer vai fazer uma aliança com a vontade afirmativa; a negação vai estar a serviço da afirmação – que não é o caso do Bin Laden, antes fosse. Mas já pode se apropriar de alguma coisa aí. Algo se passa aí.

Então, ele vai dizer, é o momento em que o niilismo é vencido por ele mesmo. O niilismo vencido por ele mesmo é quando, ao romper a aliança entre forças reativas e a vontade de nada, a vontade de nada volta-se contra as forças reativas, destrói as próprias forças reativas e libera o campo para as forças ativas. Mas esse processo eu ainda vou descrever para vocês; eu só fiz uma introdução rápida para vocês situarem mais ou menos o que seria o movimento do niilismo. Esse último homem já não é mais nem o niilismo negativo nem o niilismo reativo, é o niilismo passivo. E depois você tem o niilismo ativo, que é o homem que quer morrer. São os vários momentos. Na verdade, isso se passa no inconsciente, isso se passa em nós.

  • Participante: e a coisa também não para por aí, não é? Porque quando querem falar mal de Nietzsche, colocam só um parêntese: (tudo que é negado, tudo que é niilista). E fecham os parênteses. “O bicho está pregando para morrer, mesmo”.

E dizem que ele é niilista.

  • Participante: é. E dizem isso em cima desse aspecto. E não apontam o “e daí?”.
  • Participante: mas eles invertem o Nietzsche. Não só um parêntese, mas é invertido. Porque Nietzsche não é niilista, ele está criticando o niilismo.

Isso. Perfeito. Aliás, o que ele faz é dizer exatamente como funciona a imagem invertida em nós, a imagem invertida nas forças reativas; a imagem invertida inverte tudo – inverte a hierarquia, inverte o que é o senhor e o que é o escravo, inverte o que é leve e o que é pesado.

  • Participante: inverte Nietzsche.

Inverte até ele próprio. Então ele está exatamente dizendo que é necessário o não, o não destruidor do leão, para liberar a vida para o artista ou para a criança, para liberar a vida para uma criação. Então o não é uma condição, mas o não já é efeito de uma criação. O genealogista já é criador; na medida em que ele está fazendo o diagnóstico, interpretando os sentidos e avaliando os valores, ele já está criando e, ao mesmo tempo, destruindo o próprio niilismo. Mas a negação, o não, é secundário em relação a essa afirmação dele. Nietzsche descreve, no Assim falou Zaratustra, a metamorfose do espírito em camelo, leão e criança. O espírito se torna camelo quando o espírito carrega os valores superiores – sejam divinos ou humanos; esse espírito acaba no deserto, com esses valores, e se transforma em leão – é o leão que diz não, ou que devora ou destrói os valores estabelecidos, os valores superiores divinos ou humanos; e esse não libera o espírito para inventar ou para criar – o espírito se torna criança. São as três metamorfoses do espírito.

Evidentemente que a crítica em Nietzsche é um instrumento, é um meio para liberar absolutamente o corpo, o pensamento, os devires, para a transvaloração de todos os valores. O ideal, em Nietzsche – ele diz “eu não refuto os ideais, eu apenas calço luvas contra eles” -, o grande ideal de Nietzsche, é a transmutação de todos os valores, ou a transvaloração de todos os valores. E isso já implica a liberação do mundo dionisíaco.

Vimos o mundo dionisíaco na aula passada: é o que traz a inocência e a pluralidade do sentido e do valor da existência. É uma primeira afirmação. E uma segunda afirmação: ele redobra a afirmação numa superfície ou na aliança com Ariadne. E descobre a sua síntese, que é o eterno retorno: Dionísio, que é pura vontade de potência, retorna sempre diferente; e o produto disso é o super-homem, ou o tipo superior de tudo que é. Esse é o produto, essa é a criação. Então a transmutação de todos os valores desemboca aí: desemboca no artista, desemboca no criador, desemboca no autêntico homem livre – e não nessa liberdade kantiana do homem superior. É por isso que Nietzsche inventa esse outro personagem do super-homem; porque o homem superior é um engodo. Ele diz: “era isso? A cultura, de grega virou alemã? Era isso que a cultura objetivava? A atividade genérica não queria inventar um indivíduo livre e soberano? A soberania no indivíduo e não no Estado, não na lei, não em Deus, não na família? Que indivíduo é esse? Esse indivíduo introjetou o Estado. Que cultura é essa? Que atividade genérica de cultura é essa? As forças reativas que triunfaram”. É isso que ele diz.

Então é preciso interpretar e avaliar o sentido que teria a cultura, se a cultura estivesse no seu devir ativo, no seu devir afirmativo; e isso ele vai chamar de super-homem. O super-homem não tem nada de mítico, absolutamente nada de mítico; o super-homem é, na verdade, uma vontade de potência afirmativa e seletiva – nada mais do que isso. Afirmativa e seletiva porque é uma vontade que retorna através da afirmação. Retorna sempre diferente. Então não é apenas o pensamento de algo que retorna e atinge a sua forma suprema; é o próprio ser.

O super-homem é isso: é o tipo superior de tudo que é, é o tipo limite, é o tipo extremo. Ou seja, é onde não há mais meios quereres; é todo desejo intenso com velocidade absoluta. Tudo isso é super-homem. O super-homem está numa ameba, numa formiga, na luz do sol, em qualquer coisa.

Então é esse termo que os homens reativos interpretam equivocadamente, achando que Nietzsche criou um mito que se chama super-homem. O super-homem não tem nada a ver com o senhor dos nazis, é exatamente o contrário; alguém que entenda muito pouco de Nietzsche, lendo algumas linhas de Nietzsche já vai saber em que lugar Nietzsche classificaria ou colocaria aquela raça superior dos nazistas, os senhores nazistas. Evidentemente que o escravo não deixa de ser escravo quando assume o poder.

E ele diz: hoje nós vivemos num mundo onde o vil acredita que se tornou nobre; o escravo assumiu o poder, mas, diz Nietzsche, jamais deixou de ser escravo e jamais deixará de ser escravo enquanto interpreta a vontade de potência como uma vontade que quer o poder, uma vontade que quer a potência. A vontade não quer nada fora dela, a vontade quer afirmar a sua própria diferença, a diferença na força. É por isso que é interessante entrarmos um pouco na física de Nietzsche, entender um pouco o que ele chama de corpo, o que são as forças e o que é a vontade de potência. Em seguida vamos entender com mais força o que seria a crítica do Nietzsche, através das três figuras – do médico, do legislador e do artista. E, em função disso, atingir a transvaloração de todos os valores.

Nietzsche diz: o ocidente sempre acreditou que a consciência e o espírito são o fundamento da ordem, da verdade, da representação; é aí que se aloja o lugar do comando das coisas, é a consciência que comanda, é o espírito que comanda, é aí que você tem o instrumento que atinge a verdade e que aplica a verdade: a verdade é aplicada através de uma consciência moral e a verdade é interpretada através de um sujeito especulativo.

Mas Nietzsche diz: chegou a hora, chegou o momento em que a consciência se torna modesta. O que significa a consciência se tornar modesta? Significa apreender o lugar próprio dela. Interpretar a consciência como um sintoma. A consciência é um sintoma, a consciência é um efeito; a consciência é um sintoma de uma submissão. Não há consciência onde não há previamente uma submissão; a consciência é inteiramente do lado da reatividade, da reação ou da submissão, ela é inteiramente reativa. Mas isso significa que ela seja má? Não. Ela só se torna má ou vingativa ou decadente ou degenerativa quando ela quer assumir o lugar do comando e da interpretação, da avaliação, com uma faculdade de conhecimento. Espinosa já dizia: não sabemos o que pode um corpo nem o que se deduz da natureza de um corpo; somos absolutamente ignorantes com relação ao corpo e falamos que o mais fantástico é o espírito ou é a consciência. Nietzsche diz a mesma coisa: a grande atividade é uma atividade inconsciente do corpo; toda a atividade é inconsciente. Onde há consciência, não há atividade – a consciência já é reatividade, a atividade nunca é consciente.

E o corpo é uma grande atividade, o corpo é o grande desconhecido, o corpo é inconsciente.

Diz Nietzsche: há um sábio no teu ser próprio que não se chama eu, mas se chama si – si é o teu ser próprio; e esse ser próprio é tudo de que se trata na vida. Diz ele: quando falamos de consciência ou de espírito, talvez apenas se trate do ser próprio ou do si, do corpo – de um corpo profundo, um corpo inconsciente.

O que é corpo, para Nietzsche? Corpo meramente é um sintoma. Sintoma de que? De forças em relação. O corpo não tem uma força: o corpo, no mínimo, tem duas forças; o corpo sempre é uma pluralidade de forças. E essa pluralidade de forças, Nietzsche vai muito mais longe porque é uma pluralidade que se distingue na própria tipologia das forças; ele vai dizer: existem forças reativas e forças ativas. Sempre quando um filósofo, um cientista, interpreta o corpo, ele interpreta como forças homogêneas ou que se diferenciam nas qualidades, mas essas qualidades ou quantidades no fundo não dizem da superioridade ou da inferioridade das forças, das que dominam ou das que se submetem, das que comandam ou das que obedecem; e Nietzsche detecta exatamente essa diferença.

Aquele que interpreta o objeto, a natureza, como um fenômeno neutro, não consegue fazer a distinção entre o ativo e o reativo e, assim, interpreta tudo pelo lado reativo. Porque você só vai saber exatamente o valor e o sentido de uma força reativa quando você descobre o que seria algo não reativo, o que seria a própria atividade, o que seria a própria força ativa. Então ele vai dizer que a pluralidade mais essencial está na distinção entre ativo e reativo.

O corpo, que é feito de forças em relação, não tem uma origem em algum ponto neutro do universo; não há um ser anterior ou final. O corpo se origina no meio, no devir, no acaso: a essência do corpo é o próprio acaso. A essência da força é o acaso.

  • Participante: por que?

Porque não tem uma força que não esteja em relação. E é da essência da relação da força ser o próprio acaso. O acaso é a essência da relação da força. Se não fosse o acaso, haveria uma finalidade ou uma origem da relação da força; a força se ligaria a alguma verdade, a algum objeto ou a algum sujeito. E não teria caos: haveria uma finalidade ou uma origem, um projeto ou uma memória. Nietzsche diz: no meio só tem o devir, e o devir é misturas, encontros, relações de força de modo arbitrário; a força se encontra com outra força e a distância e o encontro são o que constitui a própria diferença na relação com as forças. Uma força que se encontra com outra força é uma quantidade de realidade, diz Nietzsche. O corpo não é um campo de forças; não há uma quantidade de realidade fora da própria quantidade de forças; já a quantidade de realidade, o próprio corpo, já é força. Tudo no fundo é força, não tem nada atrás da força. A força é o solo de tudo – se é que podemos chamar isso de solo. Então não há campo de forças, o próprio campo já é força.

E na relação de uma força com a força, o único campo que é gerado é a própria relação; mas esse campo ou essa relação – que é a essência da força – é a diferença de quantidade de uma força em relação a outra força. A diferença de quantidade de uma força em relação a outra força é a própria qualidade da força. É uma qualidade por que? Porque a quantidade não se reduz a múltiplos ou divisores matemáticos de uma unidade qualquer; não é uma quantidade na extensão, não é uma quantidade numérica. A quantidade é sempre uma quantidade intensiva porque ela tem uma qualidade irredutível que não deixa a sua diferença de quantidade se anular. Então a qualidade é a própria diferença de quantidade; e a diferença de quantidade só aparece na relação, só aparece no caos, só aparece no acaso. A diferença de quantidade é a própria qualidade da força; a qualidade é o que determina se a força é dominante ou é dominada, se ela comanda ou se ela obedece, a superioridade ou a inferioridade da força na relação do acaso. A que comanda é a força ativa; a que obedece é a força que reage, é a força reativa.

Essas qualidades primeiras da força não têm nada de negativo – a força reativa não tem absolutamente nada de negativo. A força reativa jamais deixa de ser força ao obedecer, ao ser comandada, ao ser determinada. Ela obedece naquela relação. O que é exatamente uma força reativa?

Uma força reativa é uma força que sofre uma ação, que é modificada por isso, e que não é esmagada por essa modificação; mas que, através de uma modificação que ela sofre, ela se conserva e regula.

Então a função de uma força reativa é se conservar, é regular, é adaptar, é se adequar; é reagir à atividade sem se destruir. Ou seja, ela nunca deixa de ser uma força naquela relação. A própria relação, a diferença de quantidade de uma força e de outra – que diz que uma é ativa e outra é reativa – faz com que uma outra qualidade anterior à atualização ou à atividade da força seja a condição da reação e da atividade da força. Esse outro elemento é o elemento genético ou genealógico da vontade de potência. A relação é a própria vontade de potência.

A vontade de potência de uma força ativa é afirmar a diferença da força ativa; a vontade de potência de uma força reativa é limitar, segurar, bloquear, reagir, regular ou até negar a diferença do outro ou a diferença da força ativa.

  • Participante: como você falou, essa força reativa não é nem negativa nem positiva a priori. Mas a reação pode ressentida ou pode ser um próprio mecanismo de manutenção e sobrevivência do organismo.

Isso. Aqui eu ainda não estou no plano do organismo, mas podemos já ir pensando assim.

  • Participante: o reativo também pode permitir a sobrevivência, assim como também pode matar.

Exatamente. Agora, a função nobre do reativo é ser agido, ou seja, é obedecer à força ativa.

E a força ativa quer se expandir, ela quer ultrapassar, ela quer avançar, ela quer criar. O reativo regula, conserva, preserva, reproduz, ele tem uma memória, ele tem um projeto, ele tem uma consciência, ele tem hábito, ele se alimenta. Então, falando já do mundo orgânico, a reprodução, a alimentação, a memória, o hábito, a consciência, são todas funções reativas, mas que têm a sua nobreza, desde que ocupem o seu lugar e obedeçam às forças ativas. A obediência é no próprio corpo, não é um poder de fora que me faz obedecer. É isso que os tipos reativos que interpretam Nietzsche vão achar que ele está criando uma escravidão para as forças reativas e uma liberdade para as forças ativas. Esse ponto de vista é sempre o ponto de vista reativo, já é o tipo ressentido que interpreta assim. Porque já é o tipo reativo, não é mais a força reativa; o tipo reativo já é outra coisa, já é a imagem invertida que tomou o poder, que triunfou.

  • Participante: quando você falou “esse é o reativo”, eu já imaginei no sentido negativo – esse tipo de poder que triunfa e que não obedece à força ativa. Que é bem o contrário, subtrai.
  • Participante: você falou do ser próprio. Para Nietzsche há um ser próprio que habita esse corpo, ou não há esse si? Porque acho que você falou em um si, num ser próprio, e depois em corpo.

Em Nietzsche é o mesmo. O corpo orgânico não é o ser próprio, o corpo orgânico já é o corpo reativo. O ser próprio de Nietzsche, o existir, é um corpo ativo e uma vontade afirmativa; ele é o corpo sem órgãos do Artaud, por exemplo. Ele é um corpo que é pura atividade e pura afirmação. É por isso que Nietzsche diz que o surpreendente é o corpo e não a consciência; a consciência ou o espírito no fundo são funções desse ser próprio, desse corpo. Mas esse corpo emite forças e vontade de potência. Então não é o corpo que estamos habituados a ver, o corpo-objeto, o corpo orgânico. É a potência e a força – isso que é corpo em Nietzsche.

E o pensamento é a própria potência. A potência e a força geram sentidos e valores; sentido e valor é objeto do pensamento. Quem avalia é a vontade e quem interpreta é a força. Então são inseparáveis; corpo e pensamento são inseparáveis.

O que ocorre então? Vamos falar um pouquinho da imagem invertida. Você tem duas forças.

A força ativa é aquela que tem uma quantidade maior, uma quantidade mais intensiva, digamos assim. O que é essa quantidade intensiva da força? É uma capacidade maior de afetar e ser afetada, falando na linguagem de Espinosa; ou de modificar e ser modificada; é a que pode mais. É a força ativa. E na sua diferença de quantidade em relação a outra força, gera a qualidade da atividade: é ela que age.

O que é atividade? Atividade é sempre inconsciente porque ela não está reagindo a um estímulo exterior; a atividade não se liga à figuração – ainda que a figuração ou a arte possa até me estimular. Mas a atividade vai além: ela rompe, ela expropria, ela rasga, ela quebra, ela cria, ela se impõe, ela é agressiva, ela ousa – ela institui um movimento que não existia. O que é a consciência? Já é um efeito de uma relação, de um encontro; a atividade se impõe na conexão com as outras forças.

Claro, há uma relação. Mas ela não espera ser determinada, ela é que determina. Atividade é isso. E não há vida ativa sem atividade. E nem vida reativa. Acontece que na vida reativa a atividade está subjugada, é isso que ocorre. Senão você nem vivo se manteria.

É porque ela é inconsciente que os cientistas e os filósofos desconhecem a força ativa; eles só conhecem a reação porque eles acreditam que o pensamento está alojado na consciência. É a consciência que sente a reação, é a consciência que avalia o organismo, o alimento, a reprodução, o hábito, a memória, o projeto – é a consciência que faz isso. E a consciência não existe se não for determinada por algo de fora; é essa determinação de algo de fora que faz com que ela venha à tona: ela sempre é a subjugação de alguma coisa, ela já é o efeito de um resultado, algo que a determinou.

E ela tem a visão do efeito e acredita que é causa.

  • Participante: é assim que se faz ciência.

É assim que se faz ciência o tempo inteiro. É behaviorismo, é ação-reação, reação-ação. A ação é uma reação. Então a imagem de ação que se tem, ou de atividade, é uma reação, não é a ação que ousa, que cria, que de fato inventa, que é inconsciente – é sempre já uma ação que é efeito de uma forma, de uma figura, de uma memória ou de um projeto. O projeto ou a memória está antes da ação: eu ajo porque eu tenho projeto, eu ajo porque eu tenho uma lembrança, uma memória. Isso é a consciência, a consciência comandando – é pura reação. Por isso Nietzsche diz: a atividade é a grande desconhecida, é o inconsciente, é o sábio que tem o seu corpo, que fala no seu corpo.

  • Participante: o que é essa expressão “agir a reação”?

É Nietzsche. Agir a reação é fazer com que a reação cumpra a sua função nobre no seu lugar.

  • Participante: é submeter a reação? Agir a reação tem a ver com submeter a reação?

Sempre submete a reação, exatamente. Você submete a força reativa porque a vontade de potência está não só na invenção ou na afirmação, mas está na obediência também. Obedecer também é afirmar. Então há vontade na atividade e na reação, ela está nos dois. Então é a mesma vontade que faz com que algumas forças comandem e outras obedeçam no seu próprio corpo. A vontade dá unidade à ação e à reação; ela que dá a unidade, ela é o valor, ela que é o valor. O valor é a própria potência, o valor não é uma interpretação intelectual e abstrata, o valor é aquilo que se põe, é uma autopoiese, como falaria o Varela. Então a potência só expressa aquilo que domina, a força que domina um corpo; um corpo que é feito de uma pluralidade de forças hierarquiza as suas forças. Então necessariamente há hierarquia, e a hierarquia se dá sempre entre força ativa e força reativa. A hierarquia, diz Nietzsche, é a diferença na origem – origem aqui, entenda-se bem, é o caos, é o acaso, é o meio; não há uma origem no ser ou uma finalidade do ser, a origem é na relação. Então essa diferença na relação é o elemento diferencial ou o que Nietzsche chama de hierarquia.

A hierarquia, do ponto de vista reativo, é uma hierarquia sempre invertida. O que é uma hierarquia invertida ou uma imagem invertida? A reação interpreta a ação como uma diferença que ataca a reação, e a reação se defende ou se amolda, obedece, é modificada, mas a reação limita a ação. E tudo bem, é uma função nobre da reação – ainda é nobre. Então, ao limitar a ação, ela nega a diferença da ação. Claro que essa negação é uma negação em potência, não é uma negação em ato, ainda não é em ato; vai ser em ato quando as forças reativas dominarem ou triunfarem, inverterem a hierarquia. Então a força reativa vê a diferença como algo que deve ser negado antes de se afirmar.

Então a sua atividade é negar antes a força ativa e aí ela pode agir. Isso já é o tipo reativo, eu estou imaginando um tipo reativo. Mas ela sempre dá uma imagem invertida da atividade; ela nega a diferença do outro ao invés de afirmar a sua própria diferença.

É a força reativa que vê a dualidade das coisas. Vocês veem que até aqui Nietzsche apresentou um mundo dual: ativo-reativo, afirmativo-negativo: binário, dicotômico, dialético; mas a origem da dialética é uma origem sempre reativa, é a reação que vê o mundo assim. Do ponto de vista da afirmação, como seria? A afirmação não nega a diferença do outro, ela afirma a sua própria diferença. E o que afirma a diferença da força ativa? É a vontade de potência na força. É a vontade que afirma a diferença da força ativa. A vontade na força. A vontade de potência não é uma vontade que quer a potência; é o contrário: a potência é o que quer na vontade. A vontade não tem objeto, a potência é que quer na vontade. E o que é a potência? A potência é simplesmente uma virtualidade na relação que diz “sim” à diferença da força ou à atividade. A força vai, ela está em fluxo, ela está em devir; e a vontade é esse receptáculo, esse útero, esse ambiente, essa coisa que diz “sim”.

A força é atual, a vontade é virtual. Se isso ajuda… E é força porque a força não tem finalidade na sua ação, não há nada lá no fim onde ela se oriente ou siga, não há referencial. A força, ao afirmar a sua diferença – a sua diferença de quantidade ou de potencial – inventa ou cria segundo o acaso ou a ocasião da relação das forças que ela encontra. Então não há previsibilidade aí. O próprio acaso é a relação na força; só é força porque o acaso ou o caos está aí na relação – senão não seria força, senão seria uma peça mecânica, uma relação de causa e efeito. É por isso que Nietzsche denuncia a ciência mecanicista; os mecanicistas ou até os vitalistas não entendem porque não fazem a distinção entre atividade e reatividade. A força ativa não tem finalidade nem origem; a origem é a relação mesma e a relação é imprevisível, é caótica, é no acaso. Então o que é a afirmação dela? A afirmação dela é a própria afirmação do acaso. Então a vontade de potência que afirma o acaso é a vontade de potência que afirma a diferença na própria força.

Isso faz com que a efetuação da força seja sempre plural; dependendo dos encontros que ela faz ela, ao se efetuar, se auto modifica e modifica o ambiente. É isso que faz a força ativa: ela é capaz de se auto modificar e de modificar o ambiente; é por isso que ela é superior. Nietzsche diz: é o critério da química, do elemento nobre em química. O que é nobre em química? É aquele que é capaz de metamorfose, capaz de mudança, é um elemento plástico. A força ativa é isso, ela é capaz de se auto modificar e de modificar ao mesmo tempo; e nesta auto modificação e modificação o que aparece é a pluralidade virtual que a constitui. É por isso que ela é uma força, é por isso que ela não é uma relação mecânica de causa e efeito.

É claro, a força tem o tempo, tem o devir; e o tempo é o tempo aiônico mesmo dos estoicos, ele se subdivide, ele tem mil virtualidades. Então a força tem esse campo magnético, que é a vontade, e ao mesmo tempo essa pluralidade de efetuação; não há uma finalidade, ela não tem uma teleologia nela mesma, um objetivo final. E na essência dela você não deduz o que vai dar; a essência dela é o próprio caos ou a afirmação do caos ou a afirmação do acaso. A força ativa tem, no acaso, a necessidade; é uma necessidade, é a essência da própria força ativa a relação com o acaso. Ela só é ativa, ela só é força, se ela estiver intimamente colada ao acaso. A imanência dela está no acaso.

  • Participante: senão ela se esgota. Se ela tiver uma meta, ela se esgota. Ela saciou, morreu.

Isso. Deixa de ser uma força. Perfeito. Então o que ela vê no mundo? Ela, que afirma – ou que é afirmada em sua vontade – vê uma pluralidade; então a ação já é plural. A reação não, a reação vê a pluralidade na ação como uma unidade objetiva que age e que deve ser limitada, que deve ser negada em bloco ou limitada em bloco. Mas a força vê o mundo plural, ela vê o mundo molecular; a reação vê um mundo monista, de oposição, de unidade objetiva.

  • Participante: a intenção pode até canalizar a vontade para determinados fins, mas tem que saber atravessar esses fins. Porque o fato da força poder atravessar um fim faz com que qualquer elemento reativo de ressentimento não grude, mas você atravessa.

Agora você atingiu um ponto essencial. O que é se ligar a um fim? Ou fazer com que a força atravesse um fim? No fundo, fim é uma palavra que engana porque no fim não está uma forma, não está uma unidade; no fim é pura virtualidade. O virtual, você não sabe onde vai dar, você não sabe a configuração extensiva que isso vai ter; você afirma a intensidade, é o acaso que vai dar o efeito. E é por isso que afirmar o acaso ou jogar o lance de dados e afirmar o número que necessariamente cai é uma fatalidade e, ao mesmo tempo é o segredo da afirmação: aquilo é necessário. Mas aí você tem a vontade de potência na sua essência. O que é uma vontade de potência na sua essência? Não é uma vontade que quer algo fora dela; ela já é esse campo que cresce, que se energiza; ela é pura potência.

  • Participante: na relação.

Na relação. Mas ela é o campo virtual que faz a relação crescer e se efetuar – é a própria vontade. Então no fundo ela já está no fim e na origem, mas ela é meio. Ela é o próprio meio. E aí podemos lembrar do zen, o zen é isso. Não sei se o zen atinge esse nível de elaboração, mas é por aí, isso é zen também. Podemos até levar o zen aí, se o zen não chega aí. Mas é isso. Não tem fim e não tem origem; o meio é que é a vontade de potência, o meio é o virtual, o meio é o plano de imanência, o meio é o corpo sem órgãos. E a força é a atualização, a força leva para o campo da existência. E a vontade é o ultrapassamento dos limites existenciais, a vontade é o ultrapassamento de si.

É o sentido da vida – o sentido é o ultrapassamento, diz Nietzsche o tempo inteiro. A vontade é isso, ela vai dissolvendo os limites, os limites são móveis – se houver afirmação. A afirmação é condição para isso. Se não tem afirmação, a força não se desenvolve, ela já é desacreditada; você tira o solo, você tira o território onde a força se desenvolve ou cresce. É por isso que a vontade de negar ou a vontade de nada é terrível na sua aliança com as forças reativas, porque as forças reativas deixam de ser agidas quando elas se ligam à vontade de negar. É a vontade de negar que separa a força ativa do que ela pode. Porque a força ativa pode agir a força reativa, além de afirmar a sua própria diferença.

  • Participante: mas qual é a origem da vontade de nada?

A imagem invertida. A imagem invertida, diz Nietzsche, é a imagem que a força reativa faz do elemento genealógico, do elemento diferencial, na origem. Então é a reação que vê a atividade como algo que deve ser negado ou que deve ser limitado ou que deve se estabelecer um obstáculo. Enquanto isso não se desenvolve num tipo reativo, na medida em que as forças reativas não assumem o poder, isso tem um efeito de regulação, de adaptação, de reprodução, de alimentação, de hábito, de memória – enfim, tem lá o seu efeito nobre ou positivo. No momento em que as forças reativas assumem o comando ou assumem o poder, aí sim a vontade de nada emerge como poder. O poder, na realidade, não é o da força; o poder é da vontade. Como é que isso funciona? Eu só vou dar uma pista, porque na aula que vem nós vamos falar da origem do ressentimento, a origem disso vai ser objeto da aula que vem – vamos falar de ressentimento e de má consciência na aula que vem.

A origem disso é a força reativa que se subtrai à ação da força ativa. Isso é superimportante em Nietzsche. Por que importante? Porque senão acreditaríamos que, ao assumir o poder as forças reativas se tornariam forças ativas ou seriam mais fortes que as forças ativas. Mas Nietzsche é superclaro nisso, ele diz: a força reativa, ao se somar, não fica mais forte; ao se somar, ela apenas espalha um contágio e ela opera por subtração em relação à força ativa. Ela não se deixa mais agir, ela não obedece mais à força ativa. E como seria obedecer à força ativa? É assumir a vontade afirmativa; a vontade afirmativa é também vontade de obedecer – é por vontade de potência que se obedece. A força reativa já não vive mais essa linguagem, ela quer outro poder; agora ela quer algo fora dela mesmo.

  • Participante: é um buraco negro, porque ela traga a energia de qualquer tentativa de atividade. E quanto mais ela se soma em reação, em negatividade, mais ela é buraco negro.

Isso. Perfeito. Essa imagem é ótima, perfeita. Porque ela rouba a superfície; o buraco negro é um corpo sem superfície; o que ela faz é isso, ela rouba a superfície. Não tem Ariadne aí, não tem a mulher de Dionísio aí, não tem a superfície; o solo onde a força ativa se efetua não tem mais, ele desaparece, é puxado o tapete.

  • Participante: não cumpre a sua função.

Não cumpre a sua função. Ela vai agora obedecer à própria vontade de negar.

Então, a questão da imagem invertida: a imagem invertida da hierarquia faz com que a força reativa, que é inferior, domine. Então você vê que não necessariamente é o superior que domina; o elemento que domina pode ser o inferior, através de um jogo de subtração.

Vamos articular a vontade ao eterno retorno. Há um mal entendimento do eterno retorno, ou até uma exclusão do eterno retorno na interpretação mecanicista, vitalista ou finalista da natureza – ou até termodinâmica -, na medida em que se acredita, claro, que o universo é feito de forças; tudo é feito de forças. O mecanicismo diz isso, o vitalismo diz isso, o finalismo diz isso – todos dizem isso: tudo é força. Só que essas forças atingem um equilíbrio físico, uma igualdade matemática e uma identidade metafísica – identidade metafísica no ser, igualdade matemática na equivalência e equilíbrio físico numa espécie de estática ou até uma homeostase. Não importa se se diz que a natureza tem uma origem indiferenciada e vai no sentido de uma diferenciação, ou vice-versa, se ela tem uma origem diferenciada e vai no sentido de uma indiferenciação – como é o caso da morte termodinâmica do universo, segundo a lei da termodinâmica que diz que há uma entropia, há uma morte através da entropia (inclusive fala-se muito isso em relação à Terra). A entropia, então, dissolve a diferença das forças ou as qualidades das forças e viram quantidades equivalentes até nivelar e igualizar em unidades permutáveis. Isso vai para o indiferenciado.

Essas visões se resumem a uma única visão, a um único erro, a uma única ilusão; na verdade acreditam que o devir tem um começo, ou uma origem, e tem um fim – mesmo que o fim seja o mesmo que o começo. Ou não, não importa. Mas se há um devir, é porque ele começou a devir, ele iniciou um vir a ser, se torna alguma coisa e vai se tornar algo no fim – o devir acaba num objeto. Isso Nietzsche vai dizer: se o devir tivesse um fim ou se o destino dele fosse atingir o ser (ou se ele tivesse começado no ser, tanto faz), se ele tivesse um equilíbrio físico, uma igualdade matemática ou uma identidade metafísica, esse equilíbrio, essa igualdade e essa identidade já teriam sido atingidos em virtude da infinidade do tempo passado. Diz Nietzsche: já se passou um infinito de tempo; e se o tempo passado é infinito, e se o devir deviesse alguma coisa, se o vir a ser se tornasse alguma coisa, já teria se tornado, já teria devindo ou atingido o objetivo dele.

No fundo, diz Nietzsche, o passar é o solo de tudo, o passar enquanto passar, a passagem enquanto passagem, o devir enquanto devir. O devir não tem origem e não tem finalidade; é por não se saber apreender a natureza do tempo que se tem essas ilusões de equilíbrio, de igualdade e de identidade, que são ilusões fundadas na própria consciência reativa articuladas ao bom senso. O bom senso é o sentido único ou a direção única que as coisas teriam. Ele diz: é por não apreender o sentido do passar, o valor do passar, o ser do passar, a unidade do passar, a necessidade do passar, que se acredita na necessidade de um começo ou de um fim para o devir, como se o devir fosse absolutamente inconsistente, como se o passar desse no nada. Mas diz Nietzsche: já o nada é muito parecido com o ser, o ser e o nada são a mesma coisa.

O único ser, diz Nietzsche, está no próprio passar. Mas é o voltar do passar, é o retornar do passar, é o retornar do próprio devir: esse é o único ser. O retornar é um eterno retornar, porque se tivesse começo ou fim, esse retornar acabaria em alguma hora, mas a hora já teria chegado porque uma infinidade de tempo se passou. Logo, é um eterno retornar, é um eterno retorno. Mas algo de mais sutil ainda se passa aqui, porque o retornar não é o retornar de um instante, não é o retornar de um ser, não é o retornar de um indivíduo, não é o retornar de uma força, não é o retornar de uma unidade. Há uma síntese que envolve o passado e o futuro no próprio presente; o instante, no fundo, não é algo onde o devir chega, como se o instante fosse uma unidade de ser. O instante não é um ser; aliás, o próprio instante, nesse sentido, não existe. O próprio instante é feito de um passar; o passar envolve o passado – senão o passado não seria – e envolve o futuro. Você não desloca o instante presente para que um instante futuro venha atingir o lugar dele, porque esse instante não faria o passado, esse instante continua a ser o presente – um presente excluído. O ser do passado só se explica porque o passado já está envolvido no próprio passar – e o passar é o devir, o passar é presente. E nada adviria se o próprio futuro já não estivesse envolvido no passado. Então o passar é passado e futuro ao mesmo tempo. É o aion estoico.

  • Participante: Bergson fala disso.

Bergson fala disso também. O passado é. Ele só é porque há o devir. Nós fabricamos o passado, o passado é ser. Mas como ele se fabrica? Não é através de uma visão intelectual da consciência: o próprio ser funciona assim, o ser que nos atravessa funciona assim. Então o único ser, a única necessidade, a única unidade é o retorno do passar. Porque se não retornasse, o ser do passado nem se formaria e o jogo não adviria. O devir é sempre jogo e você já estaria no nada, estaria fora dele. O eterno retorno é a síntese do tempo, é uma ideia sintética´.

Mas o eterno retorno é indissociável – uma vez que ele é uma síntese – de um princípio. Mas se o princípio não é o ser, não é uma origem ou uma finalidade, não é uma entidade, o que seria o princípio? O princípio é algo que dá consistência ao próprio passar ou ao próprio retornar, que dá sentido ao retornar. Retorna a potência, retorna a vontade de potência; a vontade de potência é o sentido do retornar. Retornar sempre mais potente, retornar como um ultrapassar-se, retornar seletivamente: é a diferença que retorna com mais capacidade de modificar e se auto modificar. É o sentido do eterno retorno.

  • Participante: esse ultrapassar do passar é morrer e nascer?

Perfeito. E é por isso que o trágico é alegre. Isso é implacável. O trágico é alegre porque em cada atividade, afirmação, efetuação, você afirma uma pluralidade, você afirma o despedaçamento de Dionísio, você afirma o retorno do diverso, a diferença se diferenciando, a diferença se partindo; mas ela encontra de novo a unidade, a afirmação que dá o seu valor máximo, a sua forma superior do que ela é, o tipo superior do que ela é, no retorno da própria potência. Então o retorno é o retorno diferente, mais forte, mais enriquecido – porque afirmativo e alimentado pelo caos, pela diversidade do caos – e, portanto, necessariamente alegre. A unidade da vontade é exatamente a ressonância da pluralidade de sentidos afirmada ao mesmo tempo; a coexistência do diverso numa única afirmação. Você afirma o caos inteiro na afirmação da sua própria diferença. É por isso que o homem ativo não conhece o ressentimento, não pode conhecer o ressentimento. O homem ativo cria e quando ele cria é a natureza inteira que salta e que se alegra com ele. Tudo é junto, tudo coexiste. Ele não ameaça – ao contrário, ele estimula, provoca, diferencia, para que uma pluralidade ainda mais enriquecida se manifeste e atravesse o ser.

  • Participante: ele é alegria e é dor também, porque quando ele afirma na criatividade ele rompe e romper dói. Ao mesmo tempo em que é desejo de morrer. É dor e alegria.

É por isso que a dor tem o sentido da exterioridade. O cristianismo vai dizer que a dor é interior e quanto mais interior, mais ela me liga a Deus: a má consciência, “a culpa é minha”. Aqui é o contrário: o sentido externo da dor é a alegria do outro. O que os selvagens fazem no ritual de crueldade? Eles se alegram quando alguém está sendo torturado. E esse alguém não está sendo oprimido, massacrado – ele está ficando mais forte. É a alegria do despedaçamento de Dionísio, é a afirmação da potência, é a potência que está emergindo e se ultrapassando. É por isso que é afirmativo e alegre ao mesmo tempo. E trágico por que? Porque se diferencia, se despedaça. Mas ao mesmo tempo não é disperso porque na afirmação eu coleto tudo de novo – há uma unidade na afirmação.

Então há uma unidade no retorno e na vontade – é uma dupla unidade: na síntese e no princípio. Mas a serviço de uma pluralidade. O ser unívoco é o ser unívoco da vontade, no eterno retorno, que afirma a diferença.

A única coisa igual para todas as diferenças, o único mesmo, a única identidade, o único ser, a única necessidade, é o retornar; não há uma diferença que não tenha o sentido do retorno. É no retorno que nós vibramos, que nós ressoamos. É isso que substitui a ideia de significação, de comunicação, de reflexão ou de contemplação – as três ilusões metafísicas da filosofia: o contemplar, o refletir e o comunicar. Aqui é ressoar, é vibrar, é contagiar. Ao afirmar eu já afirmo o retorno; junto com o ir eu afirmo o retornar. O ir é a primeira afirmação. No ir, o ir só é vitorioso se houver a afirmação da afirmação; Dionísio vai, Ariadne afirma – afirma já a afirmação de Dionísio. E é na afirmação da afirmação que eu ganho o retorno do jogo, eu ganho o retorno do ir; então eu posso jogar novamente. Então é um eterno retornar do jogo, é um eterno retornar do diferencial, da diferença; não é um retorno da minha identidade, não é eu que retorno – aliás, eu nunca retorno o mesmo. Então isso implica naquilo que Nietzsche chama de intempestivo, porque o intempestivo é sempre o inédito no devir, é o inédito no tempo; e o inédito no tempo depende do segredo da afirmação, saber dizer sim.

Tudo é inédito sempre se você souber apreender o segredo do momento.

Estou ainda no aspecto físico, o que eu chamei de mundo físico de Nietzsche, é o plano do corpo. Vou falar um pouco mais da vontade, só para finalizarmos. A vontade tem três contrassensos.

A vontade sempre foi interpretada como algo que deseja algo fora dela; na medida em que ela deseja algo fora dela, ela acredita em algo fora dela e ela quer receber esse algo, ela quer que isso seja atribuído a ela; ela precisa dos valores estabelecidos: o poder, o dinheiro, a honra – o reconhecimento, enfim. Então a vontade quer o poder, quer ser reconhecida, quer algo fora dela. É uma vontade, evidentemente, impotente que quer o poder, o que está fora dela. E para isso ela faz do jogo uma disputa, uma luta: ela luta desesperadamente e aí a guerra tem um sentido negativo – ela precisa destruir ou subjugar o outro – isso é o poder – para que ela seja reconhecida como mais forte.

Há uma longa história da vontade, mas ela se fez famosa como vontade divina e, depois, em Kant, como vontade autônoma humana: a vontade era vontade do homem. E a vontade é tanto mais livre quanto ela vira uma pura forma de dever sem objeto. A vontade, diz Kant, se cola, ela solda a lei ao desejo – ou a lei é soldada na vontade – na medida em que ela não tem objeto, ela é um imperativo categórico. Vocês lembram do imperativo hipotético e do imperativo categórico? O imperativo hipotético é aquele que vai atrás de alguma coisa porque vai ser premiado, ele obedece à lei porque ele vai ter um Bem. Em Kant não: você obedece à lei porque ela é lei, o dever porque é dever – é uma pura forma sem conteúdo. Kant diz que essa vontade é a vontade autônoma.

Schopenhauer vai dizer: ora, essa vontade é uma vontade antropomórfica e antropológica, é uma vontade do homem; mas a natureza inteira é vontade. E a natureza é uma vontade que encontra a sua unidade no ordenar e no obedecer: é a mesma vontade que ordena e que obedece, é a mesma vontade que vence e que é vencida, é a mesma vontade que é premiada e que é desprestigiada. É por isso que o prêmio, o objeto da vontade em Schopenhauer, é uma representação da realidade que é pura ilusão; é o mundo como vontade de representação. Diz Nietzsche: é porque se antropomorfizou e se antropologizou a vontade, através de uma ilusão de consciência, que se acredita que a vontade tem uma unidade; mas a vontade não é de um sujeito, não é de um objeto, não é do mundo, não é de Deus – a vontade é a própria relação arbitrária ou casual entre forças. Então a vontade é sempre micrológica, microfísica, singular, no encontro de forças. A vontade é necessariamente plural porque não tem uma força sequer que não esteja em relação. Então ela já é imediatamente plural. E se ela é plural e é sempre diferencial – na medida em que ela é localizada em cada relação e não se reduz a outra vontade -, a pluralidade da vontade é vista ou apreendida como afirmativa. Só poder haver vontade afirmativa – ou seja, que não é negada por outra ou que não se negue, que não se anule com um objeto ilusório que ela obteria – se ela for a própria essência ou relação da força, se ela for a própria virtualidade da força.

Então vontade de potência em Nietzsche não é a vontade nossa psicológica, não é a vontade de um sujeito lógico, não é uma vontade divina, não é um desejo de consciência; a vontade é, digamos, o ímã da força, ela é a atração ou repulsão da força, ela é o próprio campo magnético. Portanto ela não tem objeto, a vontade não quer nada; ela simplesmente deixa a força passar. Mas ao deixar a força passar, ela se ultrapassa também, porque ela é potência.

Os três equívocos da vontade: acreditar que a vontade quer o poder. E por isso ela acredita que ela deve receber valores já prontos, estabelecidos, porque são reconhecidos por todos; não adianta nada eu receber um valor no qual só eu acredito. Precisa ter uma crença coletiva ali: esses valores são estabelecidos, todo mundo valoriza isso e quem ganha esse valor é valoroso, é virtuoso, é poderoso, é rico, é o bambambã. Mas, para ter aquele valor, eu vou disputar isso como as macacas burocráticas do Glauber Rocha: um subindo em cima do outro, trepando em cima do outro, matando, negando – é a guerra violenta da luta, é a depreciação.

Nietzsche diz: em toda a minha vida, em toda a minha obra, você não encontra nenhum sinal de disputa ou de luta. Disputar é uma má ideia.

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