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Formação Pensamento Ocidental – Aula 30/32 – Foucault e o biopoder

Luiz Fuganti

  • Participante: aqueles conceitos de que você falou na aula passada estão em que obras?

O enunciado é na Arqueologia do saber, de 1969; o diagrama é no Vigiar e punir, uma obra de 1975. Ambas estão em português. O Arqueologia do saber é, digamos, uma invenção metodológica – de um método que Foucault já exercia, mas ele se auto pensa, num certo momento. Ele já tinha feito História da loucura, O nascimento da clínica, Raymond Russel, e já tinha praticado esse método da extração de enunciados, que é uma coisa que ele inventou, não existe antes dele. E ainda tinha também As palavras e as coisas, que é um livro fantástico onde ele vai dizer que as forças do homem emergem com a própria forma homem, porque antes do ser linguagem, do ser da vida e do ser do trabalho – que são as forças e formas com que o homem se alia -, o homem estava ligado ao infinito, a Deus; então, por mais que o homem levasse a sua força até a perfeição, ele encontrava sempre a forma do infinito, que era Deus. Então era a forma de Deus que dominava a episteme, as ciências, os saberes; e com o século XVIII-XIX, o nascimento de um outro tipo de sociedade, com um outro diagrama, emergem também novas formas de expressão e novas formas de conteúdo. E emerge um novo estrato, junto com o diagrama. E esse estrato e esse diagrama já vão ser os estratos e os diagramas da forma homem; então a forma homem está no centro, agora. E a função disciplinar do poder é que vai esculpir o homem; o homem vai ser formado, vai ser inventado, vai ser produzido através de uma forma de conteúdo e de uma forma de expressão.

E até no final de As Palavras e As Coisas, Foucault vai anunciar a morte do homem – isso em 1966. Gerou uma série de equívocos, uma série de críticas e comentários absolutamente cretinos, estúpidos; acusaram Foucault de novo nazismo, de uma série de cretinices, enfim; ou, então, se fosse apenas uma interpretação laica, diziam apenas que esse homem era um conceito, que não era o homem existente, que era o homem conceitual. E Foucault está falando do homem existente e do homem conceitual, dos dois – forma de expressão e forma de conteúdo, dos dois planos. E isso porque Foucault diz que o homem está em contato com forças diagramáticas do poder disciplinar, que geram esse tipo de forma; só que existem pontos, nós de resistência, que fazem com que o diagrama do poder se abra para o fora ou para uma imanência das forças. Na verdade, esse fora, ou esses pontos difusos de um diagrama, fazem com que os homens, ou a vida, resista também; e na resistência, eles criam linhas de fuga – se agenciam com outros diagramas, com outras forças, com outras relações exteriores ao poder, fora do poder. Ainda que tudo seja poder para Foucault. Mas aí você sai do poder do diagrama – disciplinar, no caso, no capitalismo.

Essas obras – História da Loucura, Nascimento da Clínica, Raymond Russel, As Palavras e As Coisas – vêm com um método meio intuitivo; e na Arqueologia do saber Foucault não dá mais nenhum exemplo, é uma obra super desértica (vocês reclamam que eu não dou exemplo, vão ver A Arqueologia para vocês verem).

Aí ele vai estabelecer uma estratégia dos estratos, do plano dos estratos. O plano dos estratos é sinônimo do plano do saber: estrato e saber estão num nível só, no mesmo plano. O estrato ou o saber é a atualização do poder. Mas até aí Foucault não trabalha o poder, a não ser de modo implícito.

Então ele se refere a essa outra dimensão como formações não discursivas; e junto com as formações não discursivas ele coloca também uma forma do saber, que é a visibilidade, que é a forma de conteúdo; ele joga isso para a formação não discursiva. Ele só se preocupa, na Arqueologia, com a forma de expressão.

Com Vigiar e Punir ele descobre, aí, as visibilidades, a forma de conteúdo – a prisão, por exemplo, é uma forma de conteúdo; os enunciados em relação ao direito penal – que é uma forma de expressão; acentua a heterogeneidade das formas – elas não são homogêneas, não são isomorfas, elas têm uma forma heterogênea e uma lógica distinta; e articula a relação entre essas formas através de uma outra dimensão, que é o poder. Isso é Vigiar e Punir, de 1975. Em 1976 ele escreve A vontade de saber, que é a História da Sexualidade I, onde Foucault vai descobrir o biopoder; até então é só o poder disciplinar, mas ele amplia o poder disciplinar. Porque o disciplinar se liga a formas fechadas, como a escola, a prisão, o hospital, etc.; e ele enfoca indivíduos, ele seleciona de modo a repartir o espaço, a esquadrinhar o espaço em células – e ele joga o modelo no panóptico, algo que vê e não é visto.

Esse algo que vê e não é visto é exatamente a forma de visibilidade do panóptico. Então esse modo vai instigar, incitar, criar uma postura ou uma conduta no indivíduo, vai impor uma conduta ao indivíduo no meio de uma massa qualquer, mas essa massa é limitada porque ela está no interior de um espaço fechado: os presos estão lá no interior do espaço fechado, os alunos estão no interior de uma escola, os doentes estão no interior do hospital, a família é mais restrita ainda. Então são massas limitadas.

O biopoder já são massas abertas, são as massas ou as populações; e eles vão regular e controlar a sexualidade, a natalidade – vão gerir a vida sob o ponto de vista do poder. Não é gerir a vida para afirmar a vida e ativar a vida, é para submeter a vida. Porque no regime anterior de soberania, o déspota, o monarca, tinham o poder de vida e morte sobre o povo; eles ou deixavam viver ou matavam. E no atual sistema você precisa extrair e incutir, embutir, impor um modo de se comportar. Foucault, inclusive, analisa como havendo um novo procedimento aí que é o exame; antes das sociedades disciplinares não havia exame, havia inquérito. O inquérito era para saber o que houve, o que aconteceu. Uma outra função da sociedade de soberania ou do poder soberano era extrair algum produto, alguma acumulação, alguma energia, algum excedente; no capitalismo, não é extração do que está pronto, é produção.

Então eles vão fabricar um corpo e uma alma que produzam na fábrica – a fábrica é outro meio de encerramento. Então existem funções que funcionam num espaço fechado, de encerramento, e existe uma outra função que Foucault descobre na História da Sexualidade, em 1976, que é o biopoder, que é um controle sobre as massas abertas – uma massa agora indeterminada, não é mais limitada ao espaço – e se dá em cima da vida. Aí ele vai desenvolver essa história do biopoder.

Depois disso Foucault fica algum tempo em silêncio – se não me engano, quase 8 anos. Ele se refugia, entra em crise, tem uma série de problemas que o atormentam; e ele acaba encontrando uma saída, porque ele estava encurralado entre o saber e o poder. E aí ele encontra a saída, que é a dobra da subjetivação; ele cria uma linha de fuga que não se liga nem ao poder – que são forças submetidas a uma segmentaridade que se estratifica necessariamente (em códigos, em formas, em saber) – e nem a códigos morais. Mas são forças que se exercem sobre as próprias forças; forças que se dobram em si mesmas e formam um dentro.

Então esse homem livre vai fazer de si uma obra de arte. De que modo? Rompendo com a moral, rompendo com o saber, rompendo com o poder, criando uma ética estética – a ética de ligar força com força, desejo com desejo. E a estética é uma superfície seletiva que reencontra o fora. Mas o que é o fora? No fundo, fora não é o mais longínquo; ele é também, mas é o mais imediato, ele é mais próximo. Então você reencontra a superfície, digamos assim, para usar a linguagem de Deleuze na Lógica do Sentido: você reencontra a superfície, você reencontra uma forma transversal de viver.

Você não se submete mais nem a uma verticalidade do significante, nem a uma lateralidade do significado; mas há uma diagonal, há um desvio, há uma transversalidade, ou há uma perversão que não remete mais a nenhuma forma e a nenhum poder. É uma perversão no sentido de uma linha esquiza, uma perversão polimorfa, e não a perversão que deriva de alguma estrutura ou de alguma transgressão.

Enfim, aí Foucault vai publicar História da Sexualidade II, que é o uso dos prazeres: aí é uma análise sobre a erótica grega, a dietética e o óikos – a dietética é o cuidado de si, com o corpo; o óikos é o cuidado com a família ou com aqueles que o cercam localmente, na cidade, mas apenas limitado ao seu óikos, à família; e em seguida a pólis vai abrir para uma prática erótica que, no fundo, é uma prática de si. Você funda o cidadão a partir do momento em que o cidadão domina as suas próprias forças no plano dietético; no plano sexual com o óikos, a família; e no plano político com essas práticas eróticas que eles transformam em amizade – que é uma espécie de homossexualismo grego que é estilizado. Então a amizade é que é a grande força atrativa que leva o jovem a se formar como cidadão.

Esse jovem, então, não está ligado a uma moral ou a códigos: ele tem a potência para exercer as suas forças, as suas diferenças, na pólis; então ele tem o domínio das suas paixões, da sua sexualidade, e das relações com os homens para, aí sim, poder comandar a cidade ou problematizar, inventar saídas para a cidade. Então é uma prática que os gregos inventam – ela é localizada, evidentemente, é uma prática bem singular; mas é uma prática libertária e que estiliza a existência ou faz da existência uma obra de arte e não um sujeito do conhecimento, não um sujeito moral e nem um objeto de códigos pré-estabelecidos, mas sim uma força que se dobra a si própria. Então você cria a dobra ou o dentro, na medida em que você se relaciona com o fora das forças. Na relação que você afirma, da força com a força, é que você gera a dobra, você gera o dentro. Então envolve uma afirmação.

E Foucault deixa uma obra interrompida e não publica, que é As Confissões da Carne, que daí já é o sujeito cristão. E ele vai denunciar um poder pastoral que a Igreja e o Estado exercem sobre o rebanho. Há um modelo até que vemos no Político, do Platão, que afirma o seguinte: o político é o pastor dos homens. Nietzsche denuncia que o homem do ressentimento é o homem que precisa se reunir em rebanhos, e ele formaliza que ele triunfa ou que ele se mantém, ou sobrevive, na medida em que ele se alia com um tirano, com uma vontade de negar; e aí Nietzsche vai inventar o sacerdote judaico, vai dizer que é o sacerdote judaico que faz esse tipo de coisas. Após os reis, rei Salomão, etc. – que foi uma época rica das tribos de Israel – emerge o tipo ressentido que é o sacerdote, o rabino. O rabino conduz a acusação e tal.

Mas acontece que a acusação ou o ressentimento não encontrou a sua potência plena; ele só encontra a sua potência plena quando não há mais ninguém para acusar e o ressentimento se volta contra si próprio; ele muda de direção e aí funda a má consciência. E vem o sacerdote cristão para dar forma a isso. Daí As Confissões da Carne: arrancar a tua culpa. Então esse é o movimento que Nietzsche foi o primeiro a analisar, mas que Foucault analisa a seu modo, cria um método próprio. Mas ele é profundamente nietzschiano. Então isso é uma coisa bem genérica.

Para resumirmos esse resumo que eu já falei aqui como introdução, vamos dizer o seguinte:

Foucault recorta o ser ou a natureza em três planos, ele faz três cortes. O corte primeiro é o corte do saber, o plano do saber, o plano das formas ou dos estratos; e, nesse sentido, Foucault é um arqueólogo e um arquivista – ele mexe arquivos e escava e encontra sedimentos, estratos que se sobrepõem um sobre o outro, estratos formais de saber, de códigos. São as páginas cinzas dos livros administrativos, burocráticos e morais. Então ele faz pesquisas e cerca, digamos, certos corpos de enunciado; ele recolhe um conjunto de frases, palavras, textos, e extrai os enunciados daí.

Por exemplo: direito penal vai inventar um enunciado, uma substância de enunciação, uma substância de expressão, digamos assim, chamada “delinquência” – isso é uma invenção do século XIX. Assim como o “doente mental”: no século XVII era “desrazão”, no século XIX já é “doença mental”. No século XVII você tem um asilo geral que seleciona vagabundos, pedintes, os homens da desrazão – que são os loucos como desrazoáveis – e uma massa que gera uma visibilidade própria do século XVII. Então aquela visibilidade é do século XVII; aquela forma de conteúdo – que gera um regime de luz ou de visibilidade – é do século XVII.

A psiquiatria – que vai fazer o discurso da doença mental, vai inventar um enunciado, uma forma de expressão própria – vai dizer que é necessário haver uma extração de uma outra visibilidade: o louco é diferente do vagabundo, é diferente do pedinte, é diferente do leproso. O louco é o louco, então você precisa separar o louco num espaço só de louco. Louco segundo o discurso enunciativo da doença mental. Então o psiquiatra vai inventar um saber, ou um regime de enunciados, uma forma de expressão, que vai se conectar ou pedir conexão com uma outra forma que não é de expressão mais, que é de outra natureza, que é a forma de conteúdo – que é como você distribui os corpos no espaço, como você os recorta, como você os encadeia, como você põe em sequência no tempo, como você ordena no tempo. Quer dizer, há uma série de elementos aí nesse campo de visibilidade, que é uma forma de conteúdo. E as substâncias de conteúdo são os próprios loucos, digamos assim. Então você tem a forma de conteúdo e a substância de conteúdo. O que é uma substância? Uma substância é uma matéria formatada. O louco é uma matéria que recebe a forma. A forma o que é? Doente mental.

Então você tem uma substância de conteúdo numa forma de conteúdo no regime da visibilidade. E você tem uma substância de expressão e uma forma de expressão no regime da enunciação ou do discurso.

Esses dois planos formam o saber. O saber não é só o regime discursivo, ele envolve a forma de conteúdo também. A mesma coisa a prisão. A prisão, na sociedade de soberania, era um equipamento, era uma instituição relegada a segundo, terceiro ou quarto plano; era uma situação de exceção alguém ir para a prisão. Geralmente eram intrigas familiares que levavam o indivíduo a ser exilado, a ficar em algum porão, em alguma prisão. No século XIX a prisão vai se destacar como o modelo de toda instituição disciplinar, porque a prisão vai funcionar na forma de um panóptico. E a prisão vai ter a função de impor uma conduta a uma massa qualquer, só que de modo individualizado, ou seja, em células. Você vai ter uma série de células num círculo, numa construção circular ou hexagonal ou octogonal ou dodecadenal, e no centro alguém que olha, que vigia ou que controla sem ser visto, sem ser olhado, sem ser controlado. Então esse é o regime de visibilidade da forma de conteúdo, da forma do poder.

Mas para você atingir o diagrama disciplinar, você tem que ultrapassar essa forma de conteúdo; e ultrapassar essa forma de conteúdo é não apenas ver os objetos que estão sendo observados – que são os presos -, ou o meio pelo qual isso é feito – que é a prisão, aquela estrutura toda – ou o sujeito da visibilidade que é aquele que está lá vendo e controlando. Você precisa atingir o próprio regime de luz, o próprio ser da luz que funda o lugar daquele sujeito, o lugar dos presos e o meio de visibilidade. É isso que Foucault chama de forma de conteúdo, no fundo: é a condição da visibilidade.

Mas a condição da visibilidade se abre para um puro informal, para uma função pura, que já está ligada ao poder. Essa função pura é uma função da força; a força é informe, ela não tem forma; é uma função informal e a matéria da força é uma matéria não formada. A matéria da força é o poder de ser afetado da força, poder de a força ser modificada numa relação; e a função da força é a espontaneidade da força, é a ação da força. Então Foucault diz: o poder está num outro plano, ele é mais móvel, ele está em devir o tempo inteiro; ele é difuso; ele é local e ao mesmo tempo não localizável – ele tem uma espécie de não lugar porque ele escapa o tempo inteiro. O lugar é lugar das formas – de expressão e de conteúdo; mas o poder, em si mesmo, não tem forma: ele gera as formas, mas ele não tem forma.

E essa função da força e essa matéria da força levam a aparente dicotomia das formas – da forma de conteúdo e da forma de expressão – a uma multiplicidade: abre as formas para uma exterioridade. As próprias formas vão ser formas de exterioridade, as formas não vão ter nenhuma interioridade; a interioridade das formas vai ser puro efeito de relação. O conteúdo delas já vai ser expresso pela própria relação de forças. Então a forma não é uma forma interior; não há um sujeito interior, um objeto exterior, que seriam objetos globais ou sujeitos unitários. Não há isso.

  • Participante: o que é conteúdo? Não estou conseguindo entender: se dentro não tem nada, o que é forma de conteúdo?

O conteúdo é o que remete ao corpo. Foucault diz: regime de visibilidade, ou então processo de visibilidade. Geralmente dizemos que é objeto da visão uma qualidade sensível, um estado de corpo, uma figura, uma cor, etc. Foucault quer romper com isso, ele não quer ficar nos objetos em si, ele quer quebrar os objetos, ele quer quebrar as coisas. Inclusive o título As Palavras e as Coisas é um título irônico, porque ele quebra as palavras e quebra as coisas. Ele quer extrair enunciados das palavras, e quer extrair linhas de visibilidade das coisas – o que forma as coisas, o que forma o objeto, o que produz o objeto, a condição da visibilidade. Mas aí visibilidade ganha uma forma mais ampla: não é apenas uma forma de sensibilidade, porque daí você tem a visão, você tem o ouvido, você tem o olfato; não é apenas uma forma de sensibilidade. É a própria condição da sensibilidade. E não igual a Kant, que é uma condição de possibilidade da experiência, mas é uma condição da experiência real, e não possível.

Então Foucault nunca vê a forma a priori. É por isso que ele diz que toda forma é imediatamente atual – ainda que ela fique oculta, que você precise extrair essas formas de conteúdo ou até as formas de enunciação. Você precisa extrair isso. Mas, no fundo, tudo o que é dito está dito e só poderia ser dito assim, não tem mais nada a ser dito; não tem nada atrás da cortina. Não há ideologia e não há uma infraestrutura; não há o subentendido e nem o sobre-entendido; nem significantes hierárquicos das proposições numa linha vertical, nem significados laterais de uma estrutura que estaria descolada do referencial do mundo ou da natureza. Mas uma diagonal enunciativa, uma forma de enunciado, uma curva que faz a conexão entre todos os pontos singulares. Isso fica difícil porque eu não expliquei o poder, ainda.

O poder emite pontos singulares; quando você é modificado ou modifica, a própria modificação já é um ponto de intersecção, já é uma encruzilhada. E essa intersecção, essa encruzilhada, tem um certo valor, ela vai adquirir uma certa função, ela vai adquirir uma certa relação de poder. Na relação mesma, você já tem bifurcações de séries; então esse ponto de modificação ou de encruzilhada já é um ponto singular. De um ponto singular a outro ponto singular se estabelece uma linha ou uma série: a dos pontos ordinários. Então você tem o ponto extraordinário, o ponto singular – que é o ponto de encontro -, e a regulamentação – que é a repetição ou a passagem, a comunicação de um ponto singular com outro, que gera uma linha ordinária, uma série ordenada. Então em cada ponto singular, você tem uma bifurcação ou uma conjunção de séries, de devires, de forças, de linhas que se relacionam. Então há uma série de linhas que convergem para aquele ponto e afetam essa força; e há linhas que saem dessa força e geram uma função sobre outras forças, agem sobre outras forças.

Então, a matéria que resiste, ou que é modificada, que é afetada, e a função que age, que modifica e que é espontânea. Isso é o poder. O poder é sempre assim. Isso é um diagrama também, isso já é diagrama. Então o que ocorre? O enunciado não é a singularidade; o enunciado é a curva, ou a linha, que envolve ou que liga uma singularidade com a outra – é isso que é o enunciado. Ele dá um exemplo misterioso: o teclado da máquina de escrever francesa; tem lá a sequência, AZERT, etc. Aquilo é uma visibilidade, é uma forma de conteúdo; mas antes da forma de conteúdo, existe uma distribuição de pontos, de forças e de linhas. Então vamos supor: o S vai ter uma certa frequência na língua, o T vai ter outra frequência; e vai ter uma articulação com os dedos. Então isso são linhas de força que emitem pontos singulares. Então ele diz: o teclado de uma máquina, quando eu reproduzo isso em letras, é um enunciado.

Então o enunciado não é uma frase, não é uma proposição, não é uma palavra; o enunciado é a condição de dizibilidade de alguma coisa. Você só diz alguma coisa se uma série de singularidades forma um conjunto – o que Deleuze chama de agenciamento coletivo de enunciação – e te permite dizer algo. Você só pode dizer que o louco é um doente mental depois de ter uma série de emissões de singularidades num diagrama disciplinar; antes do século XIX era impossível você emitir esse enunciado – aí o louco era você. Então doente mental: só é possível você dizer isso porque existe uma certa relação de forças, um certo diagrama de poder que emite singularidades; e a forma de conteúdo unifica ou integra o dizível. Então o poder se efetua no dizível, o poder se efetua na forma de expressão, o poder se atualiza nessa forma. E se atualiza também na forma de conteúdo, no visível.

  • Participante: a forma de expressão não é visível?

Não, é só dizível. No cinema, você tem exemplos fantásticos do cinema contemporâneo: a voz em off; uma imagem, uma cena, que não tem a ver com aquele discurso; ou então um discurso que vai esculpir uma visibilidade que não está visível, mas que não é do plano da imagem visual. Então há sempre uma disjunção entre o visual e o sonoro. O audiovisual é o que Foucault chama de dispositivo: há uma pressuposição recíproca, entre o visível e o dizível, entre a forma de expressão e a forma de conteúdo. Elas são irredutíveis. E há, diz Foucault, uma dominância da forma de expressão sobre a forma de conteúdo; a forma de expressão vai ter a função ativa, digamos assim, de excitar, extrair, estimular, recortar, gerar, impor um certo comportamento; porque ela vai dar a forma da verdade. Mas a forma da verdade ficaria incompleta se ela não se articulasse com a forma de conteúdo.

  • Participante: ela matiza as formas de conteúdo.

Sem dúvida.

  • Participante: ela organiza, não só matiza.

Não: a forma de conteúdo se auto organiza, ela tem uma independência. O que existe é o seguinte: vai haver uma outra dimensão, que é a dimensão do poder, que vai relacionar as relações de saber, as relações entre as formas de expressão, e articular essas relações com os relacionamentos maquínicos de desejo do corpo ou da forma de conteúdo.

  • Participante: mas não é um corpo disciplinado? Não é um corpo construído pelo próprio poder?

O corpo é formatado por uma forma de conteúdo e não pela forma de expressão. E a alma é formatada pela forma de expressão. Alma e corpo são disjuntas. Espinosa. Só que Espinosa só entra quando eu entro com a dimensão do poder, porque aparentemente é uma dicotomia.

  • Participante: então quem formata o corpo é a forma de conteúdo? Eu pensei que a forma de conteúdo era limpa. Você falou: não tem verticalidade, não tem horizontalidade, ela é diagonal. A forma de conteúdo é desprovida de signo.

Ela é desprovida de signo; ela não é o designado pela linguagem, por exemplo – o indicado no mundo. A forma de conteúdo tem não só objeto próprio, como ela tem sujeito próprio e meio próprio.

Ela é independente, ela é uma forma independente, uma forma autônoma nesse sentido. É por isso que ele diz assim: a forma de expressão não é o significante e a forma de conteúdo não é o significado; não é que você está fazendo uma interpretação com a forma de expressão em cima da forma de conteúdo que é o mundo. Não é isso. Isso já é efeito de um campo de poder, isso já efeito de efeito, isso é a representação mais ridícula, digamos assim, e que a ciência está inteiramente presa. Nesse sentido, a ciência é completamente ideológica. Mas Foucault não diz isso, porque a ideologia supõe a verdade; Foucault diz: não, o poder produz a verdade do poder, ele produz essa verdade. Então a ciência produz verdades. Mas a verdade da ciência é uma forma de conteúdo articulada com uma forma de expressão. Há uma pressuposição recíproca entre elas, mas não são as mesmas, elas são diferentes; há uma diferença de natureza entre elas. Mas o que é pressuposto e o que é relacionado é a relação de formas como os relacionamentos de corpos; é isso que é articulado. E há uma guerra entre elas: ora é a forma de conteúdo que quer impor enunciados, que quer ser dita na forma de expressão, ora é a forma de expressão que quer fazer o conteúdo ver diferente. Mas o que você diz, você não vê; e o que você vê, você não diz.

  • Participante: não tem eminência, então; não tem nenhum tipo de interferência.

Há. Há um elemento que circula nos dois. Esse elemento é o poder ou a força. Esse elemento circula nos dois. Na verdade, é esse elemento que conecta os dois e que os faz brigarem ou se ordenarem numa paz de adequação.

  • Participante: ele se utiliza dos dois?

O poder inventa as funções que ele imagina. Exemplo: Foucault descobre que a função pura do poder disciplinar é impor uma conduta, um comportamento qualquer, a uma massa qualquer. Ele diz: isso é a função pura, a função sem forma, é uma pura função; não tem finalidade na função como objeto, nem sujeito – aí é força com força que gera essa função. É uma ação sobre outra ação, é uma ação que quer dar uma função para outras ações, para outras forças. Essa ação quer extrair vantagens, ela quer conduzir, ela quer direcionar as relações – é isso que faz a disciplina, isso que é o poder disciplinar: ele impõe condutas, impõe direções, impõe orientações às forças, às ações. Então é ação sobre ação, é força sobre força.

E a força que recebe essa conduta é uma matéria não formada, ela não tem forma; ela é capaz de ser modificada – isso é da essência da força: a força é capaz de ser modificada, ela tem uma certa plasticidade, é uma matéria plástica. Senão não seria força, seria um objeto mecânico que você quebra, que você parte; ela é plástica, ela tem uma capacidade de ser afetada. E, ao mesmo tempo, a ação sobre ela é uma pura função que é informal também, porque você está dirigindo a própria força; e ao dirigir a força, você não deu forma para a força – você deu uma orientação, mas não é uma forma.

Então é abstrato. O poder é abstrato, o poder é invisível, é imperceptível, porque ele age aí, ele age sobre os afetos; ele direciona, ele orienta os afetos e os afetos não são apreensíveis.

Mas, na medida em que ele age assim, ele se expressa no corpo e no pensamento, ele se expressa nos dois campos humanos – o campo da alma ou da linguagem, e o campo do corpo, o nível do corpo. Nisso essa pura força que gera uma função, gera uma certa distribuição das forças no espaço; ela gera um certo recorte, ela distribui as forças em células individuais, que é um conjunto de forças já. Então ela seleciona um campo de forças, outro campo de forças, outro campo de forças, e vai distribuindo em células individuais. Ela vai ordenar os gestos do corpo, dar uma sequência – vai serializar os gestos. Vai estipular um ritmo. Enfim, nisso o poder age sobre a forma de conteúdo; é a forma de conteúdo que tem a função de formatar o corpo. Então o corpo formatado é o objeto, digamos assim; é uma substância – que era informal ou que era pura matéria – que é formatada ou que ganha uma forma.

Lembram da definição de Aristóteles? Uma substância é uma forma e uma matéria – isso que é substância. Foucault usa, se serve disso, e diz assim: então você produz substâncias de conteúdo e produz substâncias de expressão. A substância de conteúdo, no caso da prisão, é o prisioneiro; no caso da escola é o aluno ou o educando; no caso da fábrica é o operário, é o trabalhador; no caso da família, é o indivíduo obediente, edipianizado; no caso do hospital, é o doente. Então isso tudo são substâncias de conteúdo. A forma é o hospital, a escola, a casa, etc.

No outro plano, você tem o enunciado, que gera uma substância de expressão e uma forma de expressão. O que é a forma de expressão? A forma é o conjunto das singularidades que vai constituir uma condição de saber ou de dizer algo sobre aquele objeto. Mas aquele objeto não é o mesmo que está no mundo; o preso que está lá na prisão, na expressão ele é delinquente e, na prisão, ele é prisioneiro. Então o delinquente e o prisioneiro não são a mesma coisa, ainda que se encarnem no mesmo corpo.

  • Participante: as expressões são contextuais; as formas de expressão são todas de acordo com o contexto.

Foucault vai dizer: a forma de expressão e a forma de conteúdo são a priori. Uma é a condição da experiência ou da sensibilidade e a outra é a condição do saber ou do dizer, ou do enunciado.

E elas são históricas porque elas se ancoram numa zona flutuante, dinâmica, instável que é a zona de poder; o poder muda o tempo inteiro, ele migra, ele é dinâmico, ele está em devir. Então o campo do diagrama é devir. O campo das formas é histórico. Então a história está sempre alterada, enrabada, modificada pelo campo do devir, das forças e do poder. Só que o poder cria instituições, ele dá uma certa frequência, ele dá uma certa repetição a certas formatações; por exemplo: a prisão teve a sua função do século XIX até a metade do século XX, porque agora ela não tem mais a função principal, ela já não é o modelo principal da nossa sociedade porque nós não estamos mais na sociedade disciplinar, agora nós estamos na sociedade de controle.

E o controle é aberto; você agora administra e controla fluxos, e os fluxos são dividuais, não são mais individuais. Então não importa mais o seu nome e o seu número, que te dá uma posição na massa; o que importa agora é a tua cifra – é o que você tem no banco, é o teu código magnético, o cartão magnético que deixa passar – ou não – um fluxo de visão, um fluxo de audição, um fluxo de alimento, um fluxo de merda, um fluxo de andar. O corpo é inteiramente dividualizado. Então o controle se exerce sobre os fluxos. A prisão perdeu então a função – assim como a escola perdeu a função, a família perdeu.

As instituições todas estão em crise. E diz Deleuze: não é uma crise qualquer, é uma falência completa que os políticos todos ainda tentam esconder. A escola, hoje, se exerce em cima de uma formação permanente e não mais de uma formação localizada num espaço fechado e num certo tempo: em 5 anos eu faço uma faculdade – não tem mais isso, agora é formação permanente. Você sai da faculdade e está sempre na falta; e vai se formando infinitamente, indefinidamente. É o que Kafka chama de prorrogação ilimitada ou moratória, que é a segunda dimensão da dívida infinita. Absolvição aparente era na sociedade disciplinar; na sociedade de controle é a prorrogação ilimitada, é a moratória. Então você empurra com a barriga, você sempre articula outras coisas no fluxo aberto e num tempo simultâneo.

Na sociedade disciplinar você tem um espaço fechado, você tem que ser formatado no corpo e formatado na alma, você tem que introjetar uma forma de conteúdo – você tem que se organizar, o seu corpo tem que virar um organismo com funções e finalidades nas funções – e você tem que formatar a sua alma: a sua alma tem que ser um sujeito de enunciação com um sujeito de enunciado e objetos de enunciado que estão dentro daquele saber. Então você recebeu aquele saber e você é funcionário daquele saber; você vai produzir verdades na medida em que você articula aquele saber com aquela forma de corpo, você articula a forma de expressão e a forma de conteúdo. Então esse é o processo de formação da verdade ou da problematização do verdadeiro. A verdade é produzida o tempo inteiro.

Só que ela é produzida e você está formado – e você é examinado através de um exame se você se formatou mesmo ou não. Aí você é aprovado e você quita aquela dívida; aquilo é temporário, é o que Kafka chama de absolvição aparente.

Então você sai da família. Foi edipianizado? Quitou sua dívida, aparentemente. Aí você vai para a escola; aí lá você tem que ser educado – e a escola ensina a obedecer, porque a função disciplinar é impor uma certa conduta. Então se você se formatou ali, muito bem, você quitou e foi absolvido.

Agora você passa por exército: lá você tem outra função – de guerra e tal, que é o Estado que se apropriou da máquina de guerra e forma um corpo de guerra. Em seguida você vai para a fábrica; eventualmente para o hospital, às vezes para a prisão, para o hospício. Você tem aí os vários meios de encerramento e de formatação com forma de conteúdo e de formação de alma com a forma de expressão. Então você inocula na sua alma, na sua consciência, o saber; por exemplo: eu sou um doente mental, eu sou um doente mental, eu sou um doente mental – até incorporar isso. E você só é curado quando você aceita isso. Como o Édipo: você só ultrapassa o complexo de Édipo se você aceitar que você é neurótico, que você é incestuoso, que você é parricida e que você é castrado. Aí você entra na cultura.

Isso é o modo de poder e de saber disciplinar. Agora, a nossa sociedade atual é uma sociedade de controle; então ela não se importa mais com os meios de encerramento e com essa formatação.

Por exemplo, você tem agora o hospital-dia, você tem o médico indo na casa. Trabalho: a Volks impôs agora para os arcaicos trabalhadores brasileiros… porque esse nosso sindicalismo é absolutamente arcaico, absolutamente defasado; eles continuam com aquelas idéias de velhas formas. A Volks impôs redução de salário e redução de trabalho. Isso porque agora não é mais o molde, é a modulação – a modulação em cima de uma produção que tem consumo ou não tem consumo; então, de acordo com o consumo, eu aumento a produção. Quer dizer, é uma flexibilização: é tudo fluxo, agora. A mesma coisa as bolsas.

  • Participante: o que eu não estou conseguindo entender é como uma forma de conteúdo é contextual. Eu entendo as formas de expressão.

A prisão, a escola. O pelotão que usa o fuzil: só existe a partir de um certo momento. A falange grega não usa mais o carro, não usa o cavalo – usa o escudo e a lança; esse escudo e essa lança, essa máquina técnica só funciona porque existe uma forma de conteúdo, existe uma certa distribuição no espaço, uma certa relação de gestos e uma certa ordenação dos gestos no tempo, que geram um efeito, que impedem que o indivíduo seja o herói. Porque você não pode sair do seu lugar, você não pode sair daquela situação espacial; se você está atrás, ao lado, à direita, à esquerda, na frente, na ponta, na retaguarda, na vanguarda, não importa. Então você vai ocupar aquele lugar e não pode abandonar aquele lugar. Esse tipo de formação é ocasional, não tinha antes do século VI, foi Esparta que inventou; e com o desaparecimento do regime espartano, desapareceu a falange. Então a forma de conteúdo é ocasional.

  • Participante: mas a tal forma espartana que deixou de ser não foi uma forma de conteúdo que deixou de ser, foi uma forma de expressão espartana.

E forma de conteúdo também. O diagrama é que mudou. É o diagrama que faz com que uma forma seja histórica, seja ocasional, seja de curta duração. O que é a forma? Vamos usar duas palavras que Foucault utiliza: a curva dos enunciados – que liga as singularidades emitidas pela relação de forças ou pelo poder, pelo diagrama – e o quadro das visibilidades, que integra os corpos. Então você tem um integrador de corpos e um integrador de discursos, um atualizador do poder nos corpos e um atualizador do poder no discurso. Os corpos e o discurso atualizado formam um campo de saber. Forma de conteúdo e forma de expressão. Mas é o poder que muda, que entra em devir; se o poder muda, muda a forma de conteúdo e de expressão.

  • Participante: então um não depende do outro. Não é só porque mudou a forma de expressão para mudar a forma de conteúdo. Tem a ver com esse diagrama. Mudando o diagrama é que muda a forma de expressão e a forma de conteúdo.

Eu quis explicar antes uma coisa, interrompi e fui por outro caminho.

  • Participante: mas então elas não são autônomas, pois se é o diagrama que muda essas coisas.

No fundo eles são autônomos um em relação ao outro. Eles não são autônomos, eles são irredutíveis, porque um domina – e o que domina é a forma de expressão. Porque a forma de expressão é que vai esculpir a função.

  • Participante: mas ambos são condicionados pelo diagrama.

Exato. E é o diagrama que os faz entrarem em relação – ou em choque, ou em aliança, ou em combate.

  • Participante: sem diagrama, a princípio essas coisas não são nada.

Não são nada. Mas o diagrama não é nada sem essas coisas, porque essas coisas atualizam o diagrama; o diagrama seria apenas uma virtualidade efêmera. Então isso constitui, isso integra as singularidades, a pluralidade das forças, essas multiplicidades moleculares. São integrados num campo molar por essas formas de expressão e de conteúdo. E aí você vai ter unificações, você vai ter instituições. O que é uma escola? É uma instituição. O que é o Estado? Uma instituição. A família? Uma instituição. A religião é uma instituição. Então, as instituições vão ser os reguladores que vão repetir a efemeridade do diagrama; integra porque faz com que aquele tipo de relação de forças se repita na forma de expressão e na forma de conteúdo. Então a forma de expressão e a forma de conteúdo são a condição da repetição do afeto; o afeto se repete. Então o campo do saber é o campo da reprodução e o campo do poder é o campo da produção; você produz relações e o saber reproduz. Então o saber já é redundância.

  • Participante: quer dizer que o diagrama, para Foucault, ocupa o lugar do conatus, para Espinosa. É isso?

É. Só que o conatus não se reduz ao diagrama, o conatus tem uma ligação com o Fora. Sim, todo o diagrama se liga ao Fora, que é o informal puro, é o plano de imanência, digamos assim. O diagrama é um plano de composição. Só que o diagrama do poder é aquele que remete uma força, que submete uma força a uma repetição de relação, uma repetição afetiva, através de uma forma de conteúdo e de expressão – isso que é o poder. Então Foucault vai descobrir uma outra coisa fora do poder: vão existir zonas cegas e de resistência – ou indiferenciadas sob o ponto de vista do diagrama e das formas de conteúdo e de expressão – que vão escapar ao poder. Essas forças é que entram em relação com outros diagramas ou com o Fora. Então essa relação escapa ao poder.

  • Participante: aí é linha de fuga.

Aí é linha de fuga, aí você pode gerar um outro diagrama.

Deixa eu só voltar para a questão do hospital e da prisão, para vocês entenderem uma coisa.

Por exemplo, no final do século XVIII e início do século XIX, inicia um discurso sobre a delinquência; antes o criminoso não era delinquente, ele era criminoso no sentido de que, geralmente, ele atacava a pessoa; agora ele ataca a propriedade. Então é uma outra relação de forças, é um outro combate – e vai se dizer que ele é delinquente. Então ele tem que ser punido. Na época dos regimes de soberania, ele era esquartejado em praça pública; por exemplo, Foucault inicia o Vigiar e punir descrevendo a danação de Damião – ele é esquartejado, arrancam pé, arrancam mão, arrancam braço, e é uma festa em praça pública. O regime disciplinar não quer saber disso, o regime disciplinar quer controlar o presente e o futuro; ele quer controlar o virtual porque se ele controla o virtual, ele obtém uma vantagem na ação. Ele quer formar um sistema produtivo; ele não quer punir um objeto ou extrair um objeto, simplesmente; ele quer gerar uma relação de forças que uma soma de 10 elementos seja uma soma não aritmética, mas uma soma geométrica – gere uma produção muito maior do que uma simples soma individual aritmética. Então ele vai distribuir de uma forma tal no espaço, encadear de uma forma tal os gestos no tempo e compor os espaços-tempos; fazer uma máquina mesmo, um mecanismo do ponto de vista do corpo. E um dispositivo quando o corpo é articulado com a expressão – aí vira um dispositivo.

Isso é uma máquina concreta, realmente uma máquina; e é uma máquina social, antes de ser técnica. A máquina social é primeira. O que ocorre? Às vezes, você tem defasagens de uma forma em relação à outra, então no século XIX você tem o discurso sobre a delinquência e a prisão não era, no regime anterior, uma forma de conteúdo privilegiada; ela se torna uma forma privilegiada porque ela vai ter uma condição ideal de impor uma certa conduta numa massa indiferenciada, individualizando os indivíduos na massa. As ciências humanas são saber sobre indivíduo, nascem sob o modelo do panóptico: é você distinguir na massa células individuais e formatar essas células.

Por que formatar essas células, sob o ponto de vista do conteúdo ou da organização do corpo, e da organização da alma? Porque você controla os seus gestos, os seus atos, os seus discursos; e os seus gestos, atos, discursos, vão ser função, vão ser uma peça da engrenagem da máquina, eles vão entrar numa máquina produtiva. Você não tinha indústria antes do século XVII-XVIII; você vai ter uma indústria e você precisa fabricar o sujeito que vai operar essa indústria, você precisa fabricar o corpo do operário, você precisa fabricar a alma do operário também. Aí não interessa mais matar o indivíduo; você vai punir porque você tem que impor um comportamento. Se ele se comportou mal e se ele é um criminoso, ele é um delinquente – porque geralmente o efeito dele vai ser atacar a propriedade. E a propriedade é sagrada para o sistema capitalista: o capitalismo não funciona sem propriedade. Então atacou um ponto essencial. Mudou o valor da relação de forças.

Então você destaca, pega uma forma de conteúdo que é privilegiada nesse sentido, articula com o discurso ou com o direito penal; a prisão passa a reproduzir os delinquentes do discurso e o discurso do direito penal passa a produzir e reproduzir prisioneiros. E a prisão produz e reproduz delinquentes. Então é uma máquina de imposição de uma certa conduta. A conduta é importante porque é no devir que está a produção. E como você controla o devir? Você não sabe o que vem no futuro.

Então você instaura um estrato que estimula uma certa probabilidade: é muito provável que você seja um ser produtivo; se não for, você vai para o hospital, vai ser preso, vai ser isso, vai ser aquilo.

Exemplo em relação à questão psiquiátrica: você tem um regime de visibilidade no asilo ou no hospital geral, que tem lá desarrazoados, vagabundos, etc. A psiquiatria está formando o seu discurso, o seu saber; ela está tecendo a linha ou a curvatura que une singularidades e que faz com que um indivíduo seja doente mental. Ela está criando a condição para dizer que o indivíduo pode ser doente mental. Só que quando ela diz isso, ela vai lá e encontra um bando indiferenciado: aquela visibilidade não é suficientemente distinta, é indiferenciada para esse novo regime. Então a psiquiatria vai criar o hospital psiquiátrico. No hospital psiquiátrico só vai ter louco.

Aí surge um outro problema: vamos supor, é fácil você identificar a paranoia do Schreber, por exemplo. O Presidente Schreber tem uma certa frequência na loucura dele, na paranoia dele; então você visualiza facilmente e diz: o lugar dele é no hospício; você o visualiza a tempo. No caso de uma monomania não: como você vai ver, ou impedir, ou controlar o ato de um monomaníaco a tempo, se é um ato raro? Se até então ele era um indivíduo normal? De repente ele assassina a mãe, o pai, o irmão – e aí vai para o cinema. É o Pierre Riviere do Foucault, ele vai analisar essa história.

Então existe aí uma certa divergência, uma certa luta, uma certa inadequação entre a forma de conteúdo e a forma de expressão; essa é a chamada problematização da verdade. Mas a verdade é sempre a verdade de uma época: não há doente mental antes do século XIX, não há psiquiatra antes do século XIX. Então você tem o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado, a substância da expressão, a forma de conteúdo, a substância de conteúdo – tudo como coisas ou objetos, e palavras e saberes absolutamente inéditos; antes disso não tinha o doente mental, não tinha o psiquiatra. Então os objetos e os sujeitos são produzidos. Por isso Foucault diz isso: o saber é produção de verdade e a verdade é a verdade do objeto, é a verdade do sujeito – são as integrações, as unificações molares de um conjunto molecular. O poder faz isso, ele precisa das atualizações molares, das unificações, das integrações, para manter a repetição das suas articulações, do relacionamento de forças. Isso são as instituições.

  • Participante: com isso podemos entender porque a escravidão se acabou: era necessário ter pessoas que consumissem, era preciso ter pessoas que trabalhassem e que tivessem um salário.

Chicote não é dinheiro, não conta se ele não compra.

E não funciona o sistema. Não foi um ato de altruísmo ou de humanidade. Direitos humanos é isso. Direito humano sob o ponto de vista do poder, porque a forma humana é a forma do poder. Por exemplo, agora estão impondo à Aliança do Norte que ela respeite os direitos humanos; quer dizer, eles querem de todo jeito impor o poder ocidental lá e só com os direitos humanos é que funciona.

Direitos humanos é direito do poder sobre o humano. Quando os que são contra o aborto, em nome da vida, geralmente são extremamente reacionários – é o discurso do poder sobre a vida. Não é a vida que está reagindo.

Eu acho que o que é importante é vermos que existem vários planos de atuação ou de funcionamento. O saber, ou o plano dos estratos, é o plano do atual; o poder é o plano do virtual. O saber é formal e ele diferencia e repete o poder através dos seus integradores – de enunciado e de visibilidade ou de organização do corpo.

  • Participante: mas o poder virtual não é do campo do possível? O poder tenta transformar o possível.

Não é possível. Ele é virtual e ele cria o campo do possível, ele é que cria o campo do possível. Mas o virtual é mais amplo e mais poderoso do que o possível. O possível é limitado à forma do enunciado e à forma de conteúdo: é possível você dizer algo só se a forma de expressão te permitir; é possível você ter esse gesto ou aquele gesto só se a forma de conteúdo te permitir. Se você vai ter um gesto que não está encaixado na forma de conteúdo, é o que Deleuze chama de desterritorialização.

Esse campo do saber são as territorialidades.

  • Participante: por isso que eu pensei: o virtual não interessa ao poder, o que interessa é o que é possível.

O poder quer estriar o virtual num campo do possível, porque ele vive do possível; ele estimula, ele instiga o possível. E agora o possível atual é a compra: você precisa comprar, você precisa consumir. Antes era a produção, agora é a compra – deslocou. E a compra se dá em regime aberto. É por isso que a sociedade se deslocou, é uma sociedade de controle. A própria máquina técnica só é possível na medida em que há um deslocamento da máquina social; o diagrama mudou. Assim a informática foi possível. Apesar de que a relação do homem com a informática gera uma ambiguidade, gera linhas de resistência e gera linhas de fuga. É o uso ambíguo da rede, você pode usá-la sob vários…

  • Participante: você colocou três planos: o do saber, o do poder e….?

E o de imanência ou o Fora. O de imanência, na verdade, é o que dá o ar puro, é o que abre o poder; porque senão só existiria poder. Foucault fica preso no poder e nas formas de resistência como sendo apenas uma reação, até Vigiar e Punir; depois ele problematiza, problematiza, problematiza, leva 8 anos e tal, mas ele inventa essa outra linha. No fundo é o que falamos o tempo inteiro que o estoico faz, que Espinosa faz, que Nietzsche faz: é reencontrar a superfície, é a seleção na superfície.

É aí que você novamente alisa a superfície e você dobra o Fora num dentro.

Então o que ocorre? Deleuze diz o seguinte: o poder é um modo de agenciamento maquínicos do desejo. Foucault até então dizia que tudo era poder, e Deleuze diz: não, tudo é desejo, mas nem todo desejo é relação de poder, o desejo é potência também. E na potência ele reencontra a imanência. Aí é força ligada a força, é desejo ligado a desejo, fluxo ligado a fluxo; e não mais fluxo, desejo, força ou potência ligado a forma, ligado a signo.

  • Participante: quer dizer, estrato que desdobra já é Deleuze, não está em Foucault.

Foucault, na Arqueologia do saber, vai tratar dos estratos, ele vai se chamar de arqueólogo: “arqueologia do saber”. O que é uma arqueologia? É retirar camadas e descobrir formas. Mas essas camadas que ele escava são atuais e, no entanto, elas estão ocultas; mas, ao mesmo tempo, elas se deixam atingir plenamente. Só vai ter elas, você vai encontrar a forma de enunciado que diz tudo, não tem mais nada escondido atrás do enunciado – nem uma ideologia nem o subentendido, e nem uma estrutura por trás. O enunciado já é uma pura forma de exterioridade – ele não tem interioridade nenhuma aí – articulado com o poder que gera aquela forma, que gera aquela condição. Então o valor de época é sempre o valor que submete o indivíduo a um saber como uma forma de conteúdo ou uma forma de expressão – ou seja, como uma condição da experiência que é permitida ou tolerada ou instigada pelo poder – e uma condição de saber que é permitido, que é tolerado, que é instigado ou disseminado pelo poder.

Então geralmente nós acreditamos que um valor de época é universal porque não quebramos nem a coisa nem a palavra; não quebramos as frases e as proposições e não descobrimos os enunciados e nem atingimos a visibilidade pura dos objetos. Nós nos relacionamos com os objetos como se fossem objetos, como se eu fosse uma natureza neutra, universal; até os marxistas caíram nisso: há um sujeito do conhecimento que interpreta o visível ou os objetos no mundo e tem um saber verdadeiro e científico, que é contra a ideologia ou contra a alienação. Mas pressupõe o sujeito. Foucault diz: a visibilidade vai inventar o sujeito. E a visibilidade é a visibilidade de uma época. Então você vai ter um sujeito que vê naquela época.

Os gregos inventaram a semelhança na percepção e Aristóteles fez disso um sistema representativo, uma lógica, já inspirado em Platão – Platão tinha iconizado a matéria. Ou seja, ele diz que a cópia, no fundo, que é uma forma de expressão e uma forma de conteúdo, é a mesma – é isso que Platão diz, é isso que Aristóteles diz. E a forma de expressão – como sendo uma ideia, uma causa, uma essência – domina o corpo; é a mesma forma e o corpo está submetido a essa forma. Foucault diz: não é nada disso, o corpo é uma coisa e o discurso, o pensamento, é outra; mas existe uma pressuposição recíproca entre os dois, existe uma interferência, um se mete no outro. E por que se mete um no outro? Porque se mete exatamente no intervalo entre a condição e o que é condicionado; há uma fenda ali. A condição digamos que é um atual puro; e o condicionado é o atual incorporado, encarnado. A condição é a forma de um sujeito; o condicionado já são os vários sujeitos que habitam essa forma.

Então você tem o visível que se mete, uma visibilidade que se mete entre a forma do sujeito e o indivíduo, o sujeito de enunciação que encarna ali essa forma mesmo. Há um desencontro entre a estrutura ideal, entre a forma ideal, e a incorporação; aí se mete uma visibilidade. Na visibilidade a mesma coisa: há um desencontro entre o gesto perfeito que a forma de conteúdo impõe ao corpo, e o gesto encarnado – aí se mete o discurso, o discurso se intromete ali. Então é desse modo que uma forma se mete na outra. E é o poder que faz com que elas briguem ou com que elas se aliem. Em épocas de paz você tem uma adequação perfeita entre sujeito e objeto, é a mesma forma – aparentemente, isso é uma ilusão, isso é a ilusão que o poder cria: da harmonia, da unidade, da pacificação, da paz. Porque assim ele vai produzir do modo mais eficaz.

Então o diagrama, ou o não estratificado, ou o plano das estratégias – que é o plano do poder é virtual, mas ele não se atualiza sem as formalizações dos estratos – sem a forma de conteúdo e sem a forma de expressão, sem o saber: é o saber que atualiza o poder. Então também o saber e o poder estão em pressuposição recíproca: o saber não é nada sem as emissões de singularidades, porque é aí que você tem as curvas de enunciado que ligam singularidade com singularidade, e você tem os quadros de visibilidade que fundam o objeto, o sujeito e o meio de visão, de luz, o regime de luz. Sem o poder, você não tem o saber. Mas sem o saber o poder permaneceria abstrato e não se efetuaria, ele estaria na virtualidade, na efemeridade, ele não geraria uma consistência, ele não geraria uma integração, ele não seria integrado.

Então o poder inventa instituições que o integram; e você tem poder mais ou menos difuso, segundo as várias instituições. E o poder mesmo cria a ilusão de que o Estado é o lugar dele; o Estado – numa forma superior como Deus, por exemplo – estaria englobando ou integrando todas as subunidades ou as sub-integrações; as instituições como a escola ou como a prisão: a função principal é impor uma conduta e controlar a ação, extrair da ação um efeito de produção, mas isso é feito a partir de um Estado – é a ilusão que o poder passa para nós. Então o poder estaria ocupando um lugar.

Foucault diz: o poder está no não lugar, porque ele está em devir e o devir impede que você se fixe em alguma coisa. Mas quando as formas integram e fixam de alguma maneira, as formas capturam esses fluxos, esses afetos, essas forças, e fazem com que a força entre numa circularidade, numa repetição circular. E a força passa a ser devedora dessa relação ou desse movimento circular, ou de uma forma.

Daí a absolvição aparente. Ou remete uma força, através de uma forma, para outra força que liga com uma outra forma; aí o adiamento ou a prorrogação ilimitada.

  • Participante: na aula passada você explicou o que era poder?

Um pouco, mas vou repetir.

  • Participante: quando o diagrama – que já tem uma certa ligação, uma tessitura entre formas de conteúdo e formas de expressão – se encontra com outro diagrama… quando duas culturas se encontram em que, pelo poder de uma, impõe-se que certas formas de conteúdo sejam capturadas por aquele diagrama, a partir da sua intenção; eu não sei até que ponto é possível impor uma expressão e uma forma de conteúdo para um outro diagrama.

O que faz o capitalismo? Ele não codifica mais e não captura códigos; ele axiomatiza. Então ele abre a forma para um fluxo mensurável, ele estende a forma e distribui unidades instantâneas no tempo: uma sucessão de instantes, de tempos, e uma ordem distributiva no espaço. Ele faz isso. E estabelece um valor para cada unidade e para cada movimento. O que é um movimento? O movimento é o deslocamento de um instante até outro instante. Ele, no fundo, inventa um movimento aparente porque esse movimento não é um movimento real, isso não é um devir. E ele te impõe um consumo.

Então você pega uma tribo, por exemplo, que tem lá valores: o cesto tal com a geometria tal com o arco tal. O que faz o sistema capitalista? Ele não quer aniquilar com o índio, ele quer que o índio viva bastante e faça muitos cestos, muitos arcos, enfim. Mas para que ele possa comprar algo que ele não tem que é sempre mais caro que o cesto que o outro fabrica. O índio vai estar sempre na falta, nunca ele vai atingir; são duas moedas, no fundo, ou uma moeda esquizofrênica – a da compra e a da venda. E ele vai dizer: tudo é venal – essa é a máxima do sistema capitalista; então todo código, ou diagrama, ou estrato de cultura é bem-vindo, porque é transformável em compra e venda, ele é axiomatizável. Os cestos ou as roupas de Bali, as túnicas da Índia – tudo, não importa o quê.

Então, no fundo, o que faz o capitalismo? Ele dá um sentido universal para a história; ele diz: tudo que foi produzido até aqui vale, é axiomatizável. Não importa se tem 5, 10, 5000 ou 1 milhão de anos, não importa – até fóssil hoje é venal, roubam fósseis do Nordeste direto. E vendem, o povo vende.

  • Participante: isso é um exemplo interessante. Para aquelas pessoas lá, que estão quebrando as pedras, um peixinho de 3.000 anos não é nada. É uma forma de conteúdo dentro de uma coisa que para eles é esvaziado. Mas quando ele passa por 10 centavos para o arqueólogo americano…

E vale 1 milhão, 2 milhões, 3 milhões.

  • Participante: cai num outro diagrama.

Isso mesmo. Então o que o capitalismo faz? Ele amplia os seus limites, gerando crises, impondo dívidas. Como ele impõe dívida? Ele estabelece a relação comercial. Raul Seixas dizia: vamos alugar o Brasil, nós não vamos pagar nada; o Brasil é nosso. Como ele não é nosso? A relação comercial: necessariamente somos endividados. Precisamos de crédito. A Argentina tinha uma oportunidade agora de dar o calote de vez e inventar uma outra linha; não inventa. Por que? Porque o Cavallo é funcionário do FMI, assim como o Malan é funcionário do FMI. Então o que eles fazem? Eles vão estrangulando, inventam leis contra a greve, como fizeram com os professores agora; o que seria mais importante se fazer, do ponto de vista da vida, dos afetos, da expansão e da criação, eles vão extraindo mais-valia desses fluxos, achatando cada vez mais e submetendo cada vez mais. É o modo de manter todo mundo com a coleira – só que a coleira agora é eletrônica, que é onde passa ou não passa o cartão. Em qualquer coisa: fluxo de merda, fluxo de luz, fluxo de som, fluxo de cabelo, fluxo de vestimenta, fluxo de pele. Até a água agora vai ser paga – ainda que em nome de uma preservação ecológica que tem lá a sua função, mas claro que isso é pura máscara, no fundo o outro sentido é que prevalece. No fundo tudo é econômico. E é assim que ele expande os seus limites, ele vai expandindo, expandindo. Gerando falta, gerando crise, estabelecendo relações.

É por isso que a comunicação é superimportante e é por isso que os interruptores são mais importantes ainda: temos que gerar interruptor. E podemos gerar interruptor aparentemente aumentando a comunicação; é essa a forma mais imperceptível, hoje. É um segredo até do Proust, isso: você tão próximo que você não é pego ou não é apreendido; você se torna imperceptível por excesso de aproximação. Kafka fazia o contrário: ele mandava cartas – para a Felícia, para a Milena, e tal – para não estabelecer um encontro espacial; era a maneira dele manter a distância, porque se encontrasse corpo com corpo ia cair na edipianização e na conjugalidade. Então ele gerava um afastamento, estabelecia um pacto lá diabólico entre eles – que era contra o contrato conjugal – e criava umas condições para que o encontro se tornasse possível.

  • Participante: onde está isso?

As cartas de Kafka. Que dizem que não faz parte da obra dele. Existe em português. Era uma forma que ele tinha de não entrar numa relação conjugal. A outra forma é o amor cortês: você inventa um amor intenso e molecular sem a efetuação carnal – ainda que haja toda a efetuação dele na intensidade molecular. Que não tem nada a ver com o amor platônico, é o contrário, é intensidade pura.

Claro que isso ainda é molar demais. Mas Proust gera uma coisa interessante, porque a proximidade vai anular uma certa distinção que só se dá com uma certa distância – a distância do poder. Então anula a distância que o poder precisa para diferenciar. A comunicação vai fazer a mesma coisa.

  • Participante: explode a identidade – é isso?

Explode a identidade e explode a modulação. O que é o controle, hoje, do sistema capitalista?

É a modulação axiomática; não há mais molde, como na sociedade disciplinar, agora é um modulador; é uma serpente, não mais uma toupeira. São fluxos abertos e simultâneos – simultâneos no tempo e abertos no espaço. E na sociedade disciplinar é a segmentação sucessiva no tempo e encerramento no espaço. Então hoje você pode voar à vontade, tem satélite para tudo que é lado – só não descobrem o Bin Laden. Tem muitas dobras, muitos pontos de resistência, ainda.

  • Participante: eu perdi essa última parte. Aumentando a comunicabilidade…?

Inventei isso agora. Porque, olha só: vamos deixar de usar a internet? Vamos deixar de usar as teleconferências? Vamos é acelerar esse processo. Mas acelerar como? Para ser axiomatizado?

Não. E como escapamos à axiomatização?

  • Participante: gerando relações de autonomia.

De autonomia. E essa autonomia não pode ser descoberta pela axiomática. É no invisível, é no imperceptível. E o segredo pode ser segredo por excesso de exposição; você é tão exposto, aparentemente tão previsível, que ninguém se preocupa. Você está encarnado, aparentemente você é submetido. Masoch tinha inventado uma espécie de máquina assim, era o seu humor em relação à lei: ele inventava uma lei e um contrato, e se submetia à lei – até ela ser desmontada. Era a forma que ele tinha de rir da lei. Então, precisamos inventar, criar e multiplicar as linhas de fuga. A comunicação deixa de ser comunicação – ou ela se torna um simulacro de comunicação – quando a informação que eu passo não é a mesma que o outro recebe. Ou seja, não tem como você medir por equivalente abstrato ou medo.

  • Participante: e nem reproduzir.

E nem reproduzir, porque ela já é a diferença que, ao reproduzir, já vai ser outra.

  • Participante: aí é linha de fuga de novo.

É linha de fuga de novo. E isso só acontece com a intensidade.

  • Participante: no terreno dos acontecimentos.

Nos acontecimentos. Então subdividir o acontecimento, por exemplo – o instante, a intensidade; inventar meios de aumentar a intensidade; inventar meios de quebrar as coisas e as palavras e jogar blocos de intensidade. O cinema faz isso com as imagens óticas e sonoras, que é o que Deleuze chama de sonsignos e opsignos: são blocos que não são nem flashback e nem voz em off; ou seja, não são nem memórias nem projetos, são blocos de passado que são inteiramente presentes e que esculpem ou que investem no futuro.

  • Participante: isso é Proust. O próprio.

É Proust também. É Bergson. E a questão dos blocos de intensidade: ao invés de nos relacionarmos com objetos globais ou sujeitos unitários, nos relacionamos com objetos parciais ou com blocos de intensidade. O que é uma intensidade ou uma força? Só é intensidade, só é força porque você nunca sabe o que ela pode; você só sabe o que ela pode quando ela se atualiza numa relação. Mas ela pôde aquilo naquela relação. E depois tem outras em que ela pode mais. Isso escapa, isso é imensurável, então você não sabe o que pode a intensidade. É assim que se cria a linha de fuga. Na extensão não, na extensão acabou: você tem aquela expressão acabada, murcha; vamos usar aqui um enunciado obsceno: você trepa, broxa e não levanta mais, acabou. É isso que ocorre com toda relação que é na extensão.

  • Participante: na forma.

Na forma. É a figuração do visível e a forma da enunciação.

  • Participante: porque no pensamento também. Captura numa forma, é a mesma coisa. Não é só na extensão.

Então precisamos libertar o pensamento do saber; e o saber não é só a ciência, o saber é a opinião, o saber é até a arte de época, submetida à época – que, no fundo, não é arte, que no fundo não sobrevive à sua época.

O que Freud fez com o Édipo? Ele caiu num valor de época. Ele diz: Édipo é universal. Ora, Édipo nasceu no século XIX, não tinha Édipo antes do século XIX. Por que? Porque a família é um agenciamento maquínicos de desejo, como diz Deleuze, ou um mecanismo, como diz Foucault. Que, junto com o saber, forma um dispositivo – é a máquina concreta. Papai-mamãe-Édipo; quarto do Édipo, ou do filho, e quarto de mamãe-papai. Você tem uma casa edipianizada. Essa casa, essa forma de conteúdo, não tem no século XVII; no século XVII você tem avô, avó, tio, primo, aquelas salas. Todo mundo dorme junto e você tem outro tipo de relação de forças.

Então você só ultrapassa o valor de época, você só libera disso quando você apreende a visibilidade como ser da visibilidade, como ser da luz; é a luz que esconde e que mostra. Então não é simplesmente a luz que ilumina o objeto; você tem que ver a luz que olha e a luz que é a forma que está entre, que gera aquele que olha e aquele que é olhado. É esse entre que é a forma de visibilidade, que é o ser da visibilidade ou que é a condição da visibilidade. Assim o ser da linguagem, também: não é um sujeito de enunciado, não é um sujeito de enunciação, não é o objeto que é designado no mundo e não é a significação entre o sujeito e o objeto, a relação entre sujeito e objeto. Não é nada disso. É o ser que gera essas três dimensões.

Segundo Deleuze, na Lógica do sentido, esse ser é o sentido; segundo Foucault, é a forma de expressão.

Então vocês podem fazer já uma outra ligação: forma de expressão e sentido, no sentido dos estoicos, ou acontecimento. O que os estoicos dizem? O que Deleuze diz na Lógica do sentido? O acontecimento tem uma dupla face: ele é atributo dos corpos e expresso ou sentido da proposição. Só que essa dupla face, em Foucault, gera a dimensão da expressão; e a forma de conteúdo não é mais o que se atribui ao corpo – o corpo vai ter uma forma de conteúdo que é a própria frequência ou regularização da relação entre os corpos, entre as ações e as paixões, entre os gestos, esse encadeamento espacial. Então, no fundo, a própria forma de conteúdo é difusa, está sob um vulcão, digamos assim; aquele vulcão é mantido por uma certa duração; quando aquele vulcão cessa a sua atividade, aquela forma desaparece. Assim é o poder e o saber: sempre você tem o saber que se adequa ao poder de cada época.

Então as épocas têm diagramas e estratos ou saberes diferentes. Elas têm poderes e saberes diferentes. Ou, em outra linguagem: máquina abstrata e máquina concreta, que são diferentes; o que Deleuze chama de agenciamento – já para dar um outro salto aqui – é exatamente o que Foucault chama de dispositivo. E o que é o dispositivo? É essa inter-relação de forma de expressão e forma de conteúdo; a forma de expressão com a sua substância de expressão, a forma de expressão com a sua substância de conteúdo, e as relações de forças pressupostas por essas formas ou por esse estrato.

Isso é um agenciamento ou um dispositivo, isso é uma máquina social. Então você tem máquinas, e máquinas de máquinas, e engrenagens de máquinas; a máquina sempre mais importante é a máquina social, as máquinas técnicas são efeitos da máquina social. Foi a feudalidade que inventou o estribo, por exemplo – não existia estribo antes do regime feudal.

  • Participante: o inverso não acontece? A máquina técnica agenciando?

A máquina técnica pode estimular, digamos assim, mas ela não é causa. É como aquele saber estoico: é uma quase-causa, digamos; ela instiga, ela estimula, ela se introduz, mas ela não é aquela mesma forma, a mesma causa. Ela não é o motor, ela não é o princípio, ela é uma ocasião, digamos assim.

O que fez o sistema capitalista, no seu início? Inventou a máquina a vapor. É uma máquina técnica. E as caldeiras. Mas, diz Foucault: o panóptico é uma máquina que é muito mais importante, sob um ponto de vista, e muito menos sob o ponto de vista do poder que quer dissimular. Então não se vê o panóptico; não se solta fogos de artifício em homenagem à invenção do panóptico, mas se solta fogos de artifício em homenagem à invenção da máquina a vapor e das caldeiras. Não se solta fogos de artifício por uma invenção de sociedade de controle em espaço aberto em tempo simultâneo, como as coleiras eletrônicas; mas se solta fogos de artifício pela invenção da informática, do computador ou das máquinas de terceira geração.

Foucault diz: muito bem, é um outro diagrama – aliás, é Deleuze que diz, comentando As Palavras e As Coisas. É um outro diagrama. E o homem tem a ocasião de ligar as suas forças não mais com o carbono, que era o caso das máquinas a vapor, mas com o silício, que é o caso das máquinas de informática. E essa nova articulação com esse novo elemento, esse novo diagrama, essa nova relação de forças, pode gerar uma coisa que fatalmente desconhecemos; não sabemos o que seria a liberação das forças no homem. Então a questão é liberar as forças do homem e não aniquilar com o homem – aniquilar é com a forma homem, sem dúvida. Mas a forma homem é a forma existencial e de conceito também – é corpo e alma que têm que ser aniquilados. Mas não é a potência, não são as forças que formam o corpo humano, digamos assim, ou o pensamento no homem; essas forças ou essas potências têm ocasião de se ligarem com novas forças, novos elementos que, agora, são ligados ao silício e não mais ao carbono.

Então a questão é sempre articular a força com o Fora – a força submetida ao poder e ao saber. É por isso que o devir imperceptível é mais importante até do que os outros devires – animais, negros, mulheres, etc. O imperceptível é o que reúne todos os outros devires e faz com que habitemos zonas para as quais o poder é cego e não pode estabelecer as coleiras eletrônicas; então temos que reinventar a relação, temos que descobrir uma relação de outra natureza que não mais a relação submetida à axiomática. A relação submetida à axiomática é uma relação na extensão, é uma relação que é quantificável, é uma relação que é numérica – mesmo que esse número seja fracionado ao infinito.

Mas o que interessa é que você mata o intervalo, você mata o acontecimento – você cria fatos, imagens e instantes, você cria projetos e memórias, você submete ou rouba o território do devir. Você rouba o não lugar.

Temos que saber valorizar o não lugar como o lugar privilegiado do acontecimento; porque é no não lugar que o devir se estabelece; é na superfície fluida, móvel, lisa. Esse seria o não lugar. Ou seja, seria o virtual – reencontrar o virtual. Uma alma submetida e um corpo submetido não acreditam que o virtual seja real, eles acham que o virtual é um nada, que o virtual é uma ausência, que o virtual é uma falta. É isso que faz o poder: ele transforma o virtual em falta. Então você fica descrente na vida e na natureza, não sabe mais o que a vida pode, o que o corpo pode – porque o corpo é um corpo orgânico e a alma é uma alma estratificada.

Então libertar o pensamento dessa alma estratificada, dessa consciência, do sistema de juízo; e libertar o corpo do organismo como queria Artaud, e atingir o corpo sem órgãos. O corpo sem órgãos é um corpo de fluxos, das intensidades, das forças; é o corpo onde pululam as intensidades. É um plano de imanência atravessado por intensidades ou consistências.

O que é gerar uma consistência? É gerar uma espessura do real que pode algo; então você cria potências em você, você cria eternidade, você gera eternidade. Na relação. Mas numa relação livre da axiomática.

  • Participante: o poder.

Foucault diz várias coisas do que não é o poder: o poder não é centralizado, por exemplo; ele não ocupa uma unidade fora da sociedade, como o caso do Estado. Ele não é localizável porque ele é difuso, ainda que ele seja local; mas é um local disseminado, digamos assim. O poder não se tem, o poder se exerce. Então se uma força se exerce sobre outra força, há uma relação entre as forças e a outra força não é aniquilada; ele só se exerce porque a outra força mantém a sua espessura, a sua distância, a sua intensidade, mesmo que ela seja reativa. Então a outra força reativa ou submetida também tem poder. Ou seja, Foucault acaba com aquele mito cristão dos povos ou dos coitadinhos e dos desvalidos e dos fracos que precisam ser ajudados; acaba com essa ideia que gera piedade, que a esquerda tanto cultiva. Então o poder se exerce. Então se eu estou submetido, eu estou sendo cúmplice dessa submissão, eu estou alimentando essa submissão.

  • Participante: quer dizer, poder tem a ver com a ideia de domínio de força sobre força?

Domínio de força sobre força ou ação sobre ação. Uma pura ação é uma espontaneidade da força. O que é espontaneidade da força? Eu sou uma intensidade, eu me expresso numa relação; a expressão da força é ao acaso, é puro acaso, porque o meio já é uma pluralidade de outras forças numa distância móvel, movente – porque as forças estão em devir, então elas aumentam ou diminuem as distâncias. E numa relação dessas eu afeto, eu modifico, eu interfiro, eu gero uma modificação na outra força. Isso é um acontecimento, muda a relação de forças porque as outras forças todas, que estão em relação, se redistribuem também. É por isso que o poder emite singularidades: cada modificação é uma emissão de singularidades. Mas é abstrato enquanto eu não formalizo um produto, um efeito; o poder abstrato ou a essência do poder é não ter essência, porque ele se exerce na relação, é o ser da própria relação; e o ser da própria relação é alterar ou reorientar a ação da outra força – é dirigir, desviar, incitar, estimular, ou então precipitar, ou extrair algo.

Cada diagrama vai criar as suas funções puras para a força; o diagrama disciplinar cria a função de impor uma conduta – essa é a função genérica e não formalizada, é uma pura função informal da força – e de controlar e gerir a vida. Essa vai ser a essência do diagrama disciplinar, que vai se dar através de instituições ou de meios, os meios são as máquinas – a prisão, a escola, a família, o Estado, etc. Então você tem lá as máquinas que vão extrair, ou impor, ou exercer a formatação, segundo essa função pura. Essa função pura não é formal, ela não tem forma, ela é a força. Mas ela gera uma forma. Por que? Porque sem a forma ela seria dispersa, ela seria efêmera, ela não se repetiria; o poder gera uma repetição, gera um círculo vicioso: é necessário que você repita, que você reproduza – sem reprodução não tem poder. E não há reprodução sem o saber, sem as formas que integram essa pluralidade de forças. Então isso é uma outra visão de diagrama ou de poder.

Então ele não é propriedade de ninguém, ele não ocupa um lugar privilegiado nem central, ele não está alojado no Estado; ele não é atingido quando eu ocupo alguma posição e ele não é atribuído também – ainda que ele gere efeitos de atribuição: por exemplo, eu entro em um concurso e passo em certas provas e recebo um prêmio. Foi atribuído a mim um certo poder, uma certa honra, um certo cargo, uma certa posição. Mas isso já é um efeito do poder; são efeitos, são simulacros, são movimentos aparentes do poder; assim como o Estado é um movimento aparente do poder.

O que é o Estado, no sistema capitalista? Ele é a condição da modulação dos processos. Nos outros sistemas o Estado é um sobre codificador o déspota codifica os fluxos da aldeia, sobre codifica um fluxo de aldeia. Uma índia vai produzir um cesto e o déspota se apropria de uma parte desse cesto; se ela faz 10 cestos, 5 são do déspota. Porque o déspota cria uma dívida e um direito, um código, e ele extrai um produto da aldeia. A nossa sociedade faz diferente.

  • Participante: ela se apropria também em termos de imposto, etc.

Sem dúvida, mas isso já é um efeito porque, no fundo, o Estado está aí para garantir a regulação dos fluxos. O que o Banco Central faz? Ele estabelece a proporção; ele vê o balanço das cifras mundiais entre moedas – o dólar, o franco, etc. – e aí ele vê a relação com a produção, com a venda, etc. Quer dizer, é tudo flutuante, não é mais uma moeda cunhada: 1 real vale 1 real. Não é. Há 1 minuto atrás o real não vale mais a mesma coisa que vale agora; não importa se agora é noite e a bolsa esteja fechada, tem a bolsa de Tóquio, tem outras bolsas. Então ele está variando permanentemente, é um fluxo permanente. Não há um código. Então a função do Estado hoje é essa; ele não é o lugar do poder, ele é um regulador a serviço do poder.

  • Participante: ele é funcionário.

O Estado é funcionário.

  • Participante: ele não dita regras, ele é regra, ele faz parte da regra.

É por isso que o Taleban é contra o regime americano, por exemplo: porque é inadmissível para o regime americano um Estado que não seja regulador de fluxos. Lá o Estado é sobre codificador de fluxos, é um Estado paranoico; e o sistema americano, ou o regime capitalista, não admite outro Estado que não o Estado esquizofrênico ou até neurótico.

  • Participante: e a proposta é que haja um governo multiétnico. O que é um governo multiétnico senão uma forma de regular flutuações? Que não dá certo, porque cada um vai comer o outro.

Vai ser uma zona total.

  • Participante: é, porque o Taleban, de certa maneira, segurava a questão do petróleo. Querendo ou não, ele não deixava ninguém entrar, não passava nem informação nem nada. Eu não estou dizendo que é bom ou ruim, mas vai ter uma mudança ali de forças incrível. O petróleo estava regendo tudo isso.

E as estratégias de guerra, os controles com a máquina de guerra. A máquina de guerra é a imposição da forma de conteúdo e da forma de expressão na marra; a paz segundo a guerra.

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