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Formação Pensamento Ocidental – Aula 32/32 – Deleuze

Luiz Fuganti

Hoje vamos falar especialmente de Deleuze, para ter uma espécie de aproximação direta – ainda que ele esteve inteiramente presente durante o curso; é impossível, para quem é afetado como eu sou, ele não estar presente em um momento qualquer de pensamento. Deleuze já faz parte do corpo. Deleuze, como Nietzsche e Espinosa, são talvez os três maiores afirmadores do pensamento da diferença; e os três pensadores que mais se ligaram à noção, ou à prática ética da alegria; acho que alegria e afirmação são absolutamente inseparáveis em Espinosa, Nietzsche e Deleuze. De longe são os pensadores que levaram a alegria e a afirmação mais longe.

É impossível separar a vida e a obra de Deleuze, o modo como ele viveu e o que ele produziu; inclusive nesse último ato que muitos homens sórdidos e estreitos interpretaram como sendo um gesto de negação ou de desespero, algum tipo de elemento que viesse a comprometer a conclusão de uma vida e de uma obra que, na verdade, nunca deixou de se pautar na afirmação do pensamento e na alegria ética.

Então, nesse sentido, podemos sinalizar algumas linhas mais gerais, ainda que o geral não seja o genérico e nem o abstrato universal, mas digamos que as tendências mais imediatas ou mais atuais, como uma espécie de diagrama ou de nervura da obra e da vida de Deleuze; e esse diagrama ou essas nervuras se tecem a partir do que o próprio Deleuze ensinou a vida inteira, como uma posição de vida e uma orientação do pensamento. O pensamento, antes de tudo, se orienta; antes de entrar nos sistemas, antes de inventar teorias, ele é uma orientação, ele tem direções e dimensões. Completamente diferente de atrelar o pensamento a uma estrutura, ao estruturalismo, a uma fenomenologia, a um existencialismo, a um idealismo, a um empirismo vulgar; porque pensamento, do modo como Deleuze entende, é um pensamento da imanência; e essa é a primeira linha essencial, digamos assim, ou a sutileza ou a pedra de toque para se entender a obra e a vida de Deleuze. A imanência é tudo para Deleuze; e não é à toa que, no final da vida e em outras passagens, ele diz que o arquivo, ou o estoque, ou a memória, ou a erudição não servem absolutamente para nada; as coisas devem ser usadas e esquecidas, abandonadas; então tem que ter esse desprendimento essencial.

Mas existe um pensador que não está na cabeça de Deleuze, que está no coração; esse pensador é Espinosa. E diz ele que Espinosa foi aquele que concebeu o mais puro plano de imanência da vida e do pensamento, com a exclusão a priori de qualquer referencial exterior à vida ou à natureza; nenhuma transcendência, nenhum lugar, nenhum tempo, nenhum momento, nenhum movimento que se conceda à transcendência – a não ser como efeito ou como ilusão de superfície ou de consciência. Espinosa então concebe um plano que não é intermediário, a partir do qual se pensa, como se fosse um princípio ou um fundamento; ou onde se chega, como se fosse uma finalidade última. Mas como sendo o próprio meio, ao mesmo tempo mais longínquo como o Fora que está exterior ao próprio exterior, Fora da própria exterioridade, e o mais próximo e profundo, muito mais profundo que qualquer interior – e por isso mesmo muito mais próximo e imediato. Então o Fora e o Dentro como o mais imediato; e o mais imediato como ausência de mediação. Se é ausência de mediação, esse plano é onde tudo se tece; não é a partir de onde, como fundamento, algo se tece; e nem em direção ao qual tudo vai, mas é o meio que gera princípios e fins. É o próprio meio.

Deleuze é um aficionado por essa ideia de imanência. E o combate fundamental de Deleuze é: a partir desse encontro com a imanência, que é a sua própria vida, o seu pensamento, estabelecer um combate contra – que seria contra a transcendência – e um combate entre – entre significa entrar em devir: um combate entre forças. E isso é intimamente inspirado em Nietzsche, porque Nietzsche diz: o pensamento não se dá numa interioridade, o pensamento se dá numa pura exterioridade – ou, digamos assim, no Fora. Fora do que? Fora da consciência, fora da alma interior, fora da subjetividade; o pensamento é o entre forças – ele é expressão de forças, ele é relação de forças. E a força se dá fora da forma; a forma é uma pura forma de exterioridade, a forma é um efeito entre forças. Então o pensamento está no Fora, o pensamento está no acontecimento. Essa é outra ideia, outra orientação, outra direção fundamental que persegue Deleuze. E aí ele se inspira e esgota e rouba muito do estoicismo – o estoicismo vai dar muito a Deleuze; e ele vai tirar, ele vai gerar um estoicismo nunca visto até então, a partir de Lógica do sentido, que é uma obra de 1979.

Claro, já a partir de um encontro que ele tem com Bréhier que resgata um estoicismo fantástico; então Bréhier é um dos responsáveis, é um dos aceleradores, é uma das enzimas que leva Deleuze a encontrar o estoicismo de modo absolutamente novo. E o estoicismo tem uma lição essencial: tudo é acontecimento; mais do que fenômeno, é acontecimento. E o acontecimento é sintoma, é sintomático – ele é fenômeno -, porque ele é efeito de encontro de corpos ou de forças, é mistura de corpos ou de forças.

Mas o acontecimento é a própria matéria do pensamento, é o objeto do pensamento. Não a ideia platônica e nem uma profundidade que não se encontra nunca e que sempre escapa – como diria Nietzsche, atrás de uma caverna tem outra caverna e tem outra caverna e tem outra caverna. Mas encontrar a profundidade na própria superfície; a expressão da profundidade na superfície, como acontecimento. Então o pensamento é acontecimento. Isso leva a um encontro fundamental entre o estoicismo e Nietzsche, ainda que Nietzsche nem considere o estoicismo; Nietzsche não tem tempo para analisar o que se passa na filosofia e ele desqualifica, a partir de Sócrates, o que se passa com a filosofia. Nietzsche é muito ligado aos pré-socráticos, com exceção de Espinosa, a quem ele vai fazer algumas críticas e depois ele fica espantado com a obra de Espinosa, ele relê um pouco melhor e aí ele vai ter um devir fantástico em relação a Espinosa.

Na verdade, é Deleuze que vai rearticular o estoicismo com essa ideia de Nietzsche de que o pensamento se dá no Fora; o pensamento não vem de uma subjetividade, de uma interioridade, como o próprio Sócrates, depois Platão e Aristóteles – em quem essa ideia fica mais sólida – dizem, afirmam, que pensar é pensar é pensar por natureza ou por boa vontade; você tem uma substância, um sujeito espiritual, uma alma intelectiva que tende naturalmente para a verdade e essa verdade seria o objeto ideal, o Modelo fora do mundo.

Nietzsche é absolutamente inimigo dessa ideia, ele diz que é preciso encontrar as forças que levam a pensar, as forças que forçam a pensar, as forças que violentam o pensamento. É só assim que se pensa: através de uma agressão, de uma violência, de uma coerção, de um encontro com forças – Nietzsche tem essa ideia; e não uma coisa natural, uma boa vontade de uma subjetividade. É no encontro que se pensa. E o estoicismo diz a mesma coisa: é no acontecimento; o acontecimento é efeito de encontro. E não há encontro que não seja dinâmico, ou em guerra, ou em conflito, ou uma mistura instável de forças, de elementos ou de corpos. Então isso gera uma modificação nos corpos. E a modificação é o próprio acontecimento, a modificação é sempre uma modificação das relações. É isso que é o acontecimento, o acontecimento é a própria modificação. O pensamento pensa a modificação, é isso que o pensamento pensa.

Então Deleuze vai se ligar muito a essa ideia do acontecimento ou do pensamento como Fora – fora de uma interioridade, fora do saber, como diria Foucault; em uma palavra, é fora exatamente do saber.

E o que é o saber? O saber é a forma do visível e do dizível, é esse conjunto, o que Deleuze chama de estrato, o próprio Foucault chama de estrato. Essa estratificação. Então fora da estratificação, fora das formas. Pensar não é pensar formas; a forma aprisiona o pensamento numa interioridade. E não há interioridade que já não seja uma invenção de Estado: é o Estado que gera o movimento da interiorização. Toda interioridade é função de Estado. E é ao mesmo tempo que o Estado funda a interioridade e funda o meio exterior; o exterior nada mais é do que a organização do mundo em relação a uma alma e a um corpo absolutamente organizado e assujeitado. Então é a dupla captura: a captura do Dentro – você estria o Dentro e faz do Dentro um interior e você estria o Fora e faz do Fora uma exterioridade organizada. Então a exterioridade e a interioridade são as dimensões da subjetividade e da objetividade absolutamente estriadas, organizadas, estratificadas, reduzidas ao campo das formas. O saber está nessa dimensão. Mas o pensamento não está preso ao saber, a não ser quando ele está assujeitado.

Então pensar é pensar fora do saber.

Mas mais do que isso: pensar é pensar fora do poder também. Então o pensamento que é pensamento é necessariamente um pensamento nômade, porque o poder sedentariza e fixa. Então essa é outra ideia fundamental em Deleuze. Há uma imagem no ocidente de que o pensamento pensa coisas fixas, que ele pensa começos ou pensa fins, pensa origens ou finalidades; ou então essências em si.

São idéias intramundanas que têm um início e um fim no mundo, no movimento do mundo, no movimento do devir – você fixa uma origem, fixa uma finalidade e estabelece uma relação entre a origem e o fim, que é o chamado bom senso, e então pensar é pensar bom senso. Isso é uma das estruturas, uma das dimensões do juízo; e é por isso que o pensamento ocidental é algo absolutamente íntimo ao julgamento. E a outra coisa é pensar o objeto fora da natureza como um ideal, como uma essência em si, como um valor em si. Então você pensa estruturas fixas – fora da natureza ou interiores à própria natureza. Isso é o que Deleuze chama de pensamento sedentário. Então há uma imagem do pensamento absolutamente ligada a uma maneira sedentária de se orientar; há uma orientação, há uma direção sedentária que é imanente ao modo de vida reativo e ao modo de pensar negativo. E que vai cultivar, como diria Espinosa, as paixões tristes; ou aquilo que leva a um cultivo da dor como um sentido interior ou signo de culpa ou signo de dívida, e signo de expiação e pagamento de dívida ou de culpa.

Enfim, essa interioridade obscena, essa interioridade pornográfica que foi inventada por uma moral cristã e que invadiu absolutamente o pensamento e essa interioridade ocidental que é uma interioridade evidentemente sórdida, é o mais baixo ponto onde pode chegar o pensamento. E esse pensamento vai então funcionar através de fixações, ele vai ter começos e fins; e esses começos e fins vão se fundar em identidades de sujeitos ou unidades de objetos. Essas identidades de sujeitos ou unidades de objetos é o que chamamos de senso comum. Então o pensamento ocidental inteiro é submetido ao bom senso e ao senso comum. E essas duas dimensões são as linhas duras que constituem o juízo; as linhas enrijecidas, as linhas morais, as linhas fictícias que desqualificam a vida e o pensamento e por isso mesmo julgam a vida e o pensamento a partir do bom senso e do senso comum.

Então Deleuze atinge exatamente o ponto onde a vida e o pensamento se encontram e tecem um plano ou de organização ou de composição ou de imanência; e a ideia fundamental dele é exatamente a partir do encontro com a imanência fazer uma desmontagem, uma desconstrução e um combate contra o pensamento da transcendência, o pensamento sedentário ou, em outras palavras, o pensamento da analogia, pensar por analogia – que é o pensamento do juízo: julgar necessariamente é achar uma proporção ou fazer uma comparação a partir de uma referência exterior ao que está sendo julgado.

Deleuze quer sair da dimensão espacial tridimensional, a dimensão espacial inventada por Descartes e que nos habita até hoje, onde há uma distância entre ponto, linha e volume, e atingir aquela dimensão onde não há como discernir o volume, a linha ou a superfície; mas que cada posição de fluxo é uma dimensão ou uma pluralidade de dimensões, segundo o modo como você habita esse ponto. E isso é um plano de imanência em Deleuze; esse plano de imanência então é aquilo que te chama para uma involução: involuir até esse mínimo de espessura, até o sem espessura do tempo.

E esse sem espessura do tempo é quando a subdivisão ou a repartição deixa de ser uma diminuição, deixa de ser um enfraquecimento, deixa de ser uma divisão feita pelo poder; quando a subdivisão se torna puro plano de composição, se torna pura potência de conexão. Então tanto crescer quando decrescer, tanto evoluir quanto involuir, do ponto de vista do plano de consistência ou do plano de imanência, é se compor, é se conectar, é aumentar a potência de afetar e ser afetado. É isso que Deleuze descobre com o acontecimento estoico: a subdivisão do acontecimento não é uma minimalização da realidade, uma fragmentação até encontrar elementos mínimos de matéria ou de força; mas encontrar exatamente o ponto onde a coisa acontece, onde a coisa se modifica; o acontecimento enquanto acontecimento, a modificação enquanto modificação. Então essa subdivisão, como a própria composição no outro plano crescente, no fundo faz parte de um mesmo plano de articulação ou de composição, que só faz aumentar a potência de agir e de pensar.

E esse modo que leva para a imanência desarticula completamente, ou desestabiliza, ou destitui a posição do juízo. O que é o juízo? O juízo é aquele que se destaca espacialmente numa dimensão de sobrevoo espacial e numa dimensão de fixação temporal; ou seja, ele se separa do próprio processo do tempo e se põe numa posição elevada em relação ao volume espacial, como um mediador ou um plano que vai avaliar o objeto e o sujeito, ou as relações no mundo e na própria natureza. Esse plano que se destaca seria um plano transcendência de organização – organização de formas e formatação de substâncias, e desenvolvimento dessas formas e dessas substâncias.

Esse plano, então, Deleuze vai estabelecer o combate logo no início da sua obra, a partir de um peso que ele sente após o que eles chamam de liberação – ou seja, após a Segunda Guerra Mundial, após a liberação da Europa da mão dos nazistas; ele vai dizer que vai ter um peso, algo ainda mais terrível e em nome do qual vai se querer ensinar a liberdade ou se atrair para uma posição de fortalecimento.

Esse algo é o que Deleuze chama de história da filosofia – esse peso que pesa sobre os pensadores que só podem falar de alguma coisa a partir do momento em que estão entupidos pela história da filosofia, absolutamente paralisados e eruditos, aí sim eles podem falar em nome de alguma coisa, a partir de uma autoridade. É aí que Deleuze já sente, evidentemente, a necessidade de fazer o combate contra – contra a transcendência, contra o idealismo, contra o existencialismo, contra a fenomenologia, contra o estruturalismo, contra o heideggerianismo; Heidegger pesa demais, Hegel pesa demais, Descartes pesa demais.

E ele tem dois professores que o formam, que são Ferdinand de Alquier, que é um cartesiano, e Jean Hippolyte, que é um hegeliano; e a reação primeira de Deleuze vai ser, em 1953, uma obra chamada Empirismo e subjetividade, sobre o David Hume que é um empirista inglês que leva o empirismo à sua mais alta potência, que tira o empirismo daquela visão vulgar de que o sujeito deriva do sensível, etc.

Você vai ter um sujeito transcendental – não transcendente -, porque o sujeito emerge, ele é um resultado de uma relação entre paixões, entre tendências, entre forças que geram o acontecimento, que se desdobra em objetos e em sujeitos. Hume vai fazer a gênese do sujeito e, em seguida, ele vai ser reduzido e formatado por Kant; Kant é que vai dar origem a todo o idealismo alemão. E toda a formatação do homem, ou da forma homem – que vai ser o modelo para as ciências humanas -, vai estar ancorada em Kant. Kant e depois Hegel. Então evidente que Deleuze reage contra.

E ao mesmo tempo efetua o combate entre. O combate entre é o entrar em devir; ele está sempre entrando em devir. Essa é outra ideia fundamental em Deleuze: entrar em devir é, numa tradução vulgar, tornar-se. Mas não é tornar-se o outro. E não é tornar-se algo. E nem ver o outro como uma limitação, nem ver o outro como um modelo; nem, a partir de um referencial, fazer-se algo ou uma identidade. Não é nada disso. Devir é encontrar, fundamentalmente; e encontrar é, necessariamente, um duplo roubo – ou, em outras palavras, é um dom e um contra dom. Quando você encontra, você não vai traduzir o autor, você não vai interpretar o autor, não vai fazer a hermenêutica do autor, dar a estrutura da obra. Você vai se encontrar com linhas de força e com um plano de imanência; e nesse encontro necessariamente existe uma criação.

É por isso que Deleuze nunca fez história da filosofia ao escrever sobre Hume, ao escrever sobre Espinosa, ao escrever sobre Nietzsche, ao escrever sobre Bergson, ao escrever sobre Epicuro e Lucrécio, ao escrever sobre Kafka. Ele nunca fez história, ele sempre encontra; ele busca o ambiente do encontro, propício ao encontro. Essa é uma ideia cara a Deleuze porque isso o põe contra a história – a história da filosofia e qualquer tipo de história. Porque a história é sempre história das formas, a história é sempre história do que está estabelecido, a história é sempre história das condições de produção e de pensamento de alguma coisa. O devir é a destituição das formas, é fazer de uma forma uma linha, é injetar o tempo na forma – é isso que é encontrar alguma coisa. Então Deleuze faz isso o tempo inteiro com Hume, com Bergson, com Espinosa; e aí os historiadores, os intérpretes, os estruturalistas dizem: “mas isso não está em Bergson! ”. Deleuze não está preocupado com isso. Ele diz: “filosofar é enrabar e ser enrabado. Eu enrabei todos menos Nietzsche, que me fez um filho”. Isso ele disse uma vez.

Mas, enfim, ele foi enrabado por outros, com certeza, e com muito gosto; teve muitos filhos que foram feitos nele – como acontecimento. Ele mesmo diz, na Lógica do sentido, que temos que nos tornar filhos do acontecimento. E se tornar filho do acontecimento é, ao se encontrar, você tirar do acontecimento ou fazer emergir o que o acontecimento tem de melhor. E esse algo que o acontecimento tem de melhor é algo que muda o outro e muda a si mesmo. É por isso que você nunca sabe o devir em que você vai entrar e no que você vai se transformar. É por isso que você não se transforma no outro e nem em algo: porque esse algo e esse outro já são outra coisa quando você está em devir, nunca é a mesma coisa. Então você não tem a posição do julgamento ou da proporção ou da comparação ou da analogia. Não tem como você ter analogia.

Então as três idéias básicas contra as quais Deleuze vai exercer um combate é contra a analogia do ser, a transcendência do ser e a imagem sedentária do pensamento. Em nome de uma univocidade do ser contra a analogia, de uma imanência contra a transcendência e de um nomadismo contra o sedentarismo.

  • Participante: o conceito de devir é um conceito extremamente mal interpretado. As pessoas falam do devir como um advir.

Vir a ser. Virá a ser.

  • Participante: há uma enorme dificuldade de se entender isso. Deleuze dá alguns exemplos, como o daquele filme, a história do cara que vem num cavalo e escuta os ratos sendo mortos num lugar e os ruídos parecem ruídos humanos. Naquele momento a produção do devir no encontro, quando os ruídos do bicho parecem com ruídos humanos. A história da vespa entrar em devir com uma flor.

Ele dá um exemplo no Diálogos, o encontro dele com a Claire Parnet. É um encontro porque era para ser uma entrevista e ele começa destituindo a relação de entrevista como uma relação de diálogo ou de dialética entre a pergunta e a resposta, porque o que você elimina, quando você faz uma questão, é exatamente o encontro, é exatamente o devir. E aqui ele vai estabelecer uma diferença entre devir mulher, devir da revolução, devir criança, devir animal como não sendo futuro ou vir a ser algo no futuro. O devir, na verdade, é o aion estoico; ele está indo para os dois sentidos do tempo, ele tem a dupla ponta da desterritorialização. Ele vai para o passado e para o futuro ao mesmo tempo. Então devir é um verbo infinitivo, é no infinitivo que você entra em devir. Mas você entra em devir sempre no encontro com alguém ou algo, alguma coisa; mas esse alguma coisa, no fundo, não é um objeto – ele é um bloco, ele é feito de linhas, ele é feito de feixes, ele é feito de afetos. Ele é um bloco intensivo, assim como você também é um bloco intensivo.

Esses blocos intensivos que se encontram vão gerar uma superfície de encontro, um meio de encontro; mas o meio de encontro não é o mesmo para um e o mesmo para outro, o meio de encontro vai gerar como que uma dupla captura. Você rouba algo daquele encontro, o outro rouba algo daquele encontro, e o devir do outro vai ser completamente diferente do seu devir. Daí ele dá o exemplo da abelha e da orquídea: a abelha se torna o órgão reprodutor da orquídea e a orquídea se torna um órgão sexual para a vespa ou para a abelha. Os dois devires, no fundo, é um único devir; e a evolução é uma evolução a-paralela; não há uma correspondência entre termos, mas sim o devir da abelha não tem nada a ver com o da orquídea e vice-versa, o da orquídea não tem nada a ver com o da abelha. Ainda que o bloco seja o mesmo, seja um bloco de devir, seja uma relação de encontro.

Então o encontro impossibilita a troca – outra ideia que Deleuze combate na obra inteira dele. A troca é uma má ideia ou é uma ideia de captura de Estado. A troca nunca é origem de nada, a troca já é efeito de uma captura de poder. É impossível haver troca se não há equivalência; e é impossível haver encontro onde há equivalência. O encontro exclui a equivalência, o encontro exclui a troca. Onde há encontro não há troca; há dupla captura, ou roubo e dom, ou dom e contra dom.

Então a ideia de Deleuze, ao se relacionar com os pensadores, é a mesma coisa: encontrar é encontrar idéias, intensidades, blocos. Ele diz que o que menos encontramos, o que é menos interessante encontrar, são as pessoas; é muito mais interessante encontrar as pessoas à distância, porque às vezes você encontra a pessoa e a pessoa é absolutamente interessante. Quer dizer, não é a pessoa desinteressante; a atmosfera que é gerada impede o devir. Claro, porque vivemos numa sociedade reativa e que cultiva a troca, o interesse de consciência, uma série de elementos que fazem exatamente o bloqueio do encontro, ou a solapação, o furto da superfície de encontro, o furto de território, o furto da superfície existencial que você criaria, ou do território que você inventaria para que o encontro fosse possível. Então o que não se tem, geralmente, é o encontro.

Então ele diz: quando se trabalha ou se produz, necessariamente a solidão nos invade; mas é uma solidão que não tem absolutamente nada a ver com a falta ou com a ausência porque é uma solidão completamente povoada, cheia de elementos, cheia de intensidades, cheia de idéias – não como coisas a serem consumidas, mas como blocos de intensidade. E cada coisa é um encontro. Se eu estou lendo e não estou encontrando, jogue fora o livro, por favor, rasgue as páginas. Quer dizer, evite aquilo antes que o ódio suba, antes que o ressentimento suba e diga assim: “ah, isso é muito teórico, isso é muito técnico, eu não estou entendendo nada”. Quer dizer, no fundo é uma disposição para encontrar as coisas, é saber estar disponível. Isso é uma generosidade e essa generosidade implica um excesso, implica uma coragem; implica dizer assim: “no encontro eu não vou ser consumido, eu não vou ser esvaziado, eu não vou ficar na falta, eu não vou ser sugado”. Porque o encontro é exatamente o contrário disso, o encontro é uma energização. Então não importa o tipo de encontro que se faça, é saber ficar mais forte. O que Nietzsche diz: o que não me mata me deixa mais forte.

Deleuze faz isso o tempo inteiro. Então a questão não é excluir a pessoa, ou os encontros com as pessoas, ou os encontros sociais. Ele faz uma crítica em relação ao teatro, por vários motivos, ou a viagens de deslocamento espacial – a colóquios, por exemplo. Ele diz que tem horror a ver aqueles intelectuais que se encontram, falam de coisas teóricas e falam e falam e falam, aí vão almoçar ou jantar juntos e continuam falando da mesma coisa. Isso é um horror, não tem devir, não tem encontro de fato, é tudo aquela coisa intelectualizada, representada. Não há corpo, não há intensidade, não há desejo. Assim como ele odeia entrevistas, ou odeia televisão: porque no fundo há um sugar, não há um energizar.

Isso tudo para ilustrar o que ele pensa do encontro com Hume, com Espinosa, com Bergson. E é isso que ele faz o tempo inteiro. Estar sozinho é estar numa ocasião, numa oportunidade para se abrir para um máximo de encontros; a solidão é uma solidão povoada. O deserto cresce, mas as tribos crescem junto.

  • Participante: por que o deserto cresce?

Porque o deserto, no fundo, é um plano de imanência ou uma superfície lisa, é o espaço liso e o tempo liso, o tempo do esquecimento. Uma superfície lisa, mas, ao mesmo tempo, é onde as populações, as intensidades, as tribos, os blocos, atravessam. É onde pode acontecer alguma coisa. Não há acontecimento se não estiver liso alguma coisa, se não tiver o deserto – ou o mar, ou o ar. Superfícies lisas.

Isso é o que Nietzsche chama de faculdade de esquecimento: liberar a superfície das marcas, liberar a superfície das estrias. Então o que ele faz é isso, o tempo inteiro: é limpar, varrer as marcas, varrer essa má memória, recalcar essa memória para liberar exatamente a possibilidade, através do esquecimento, de uma memória imanente, de uma memória ontológica, que é a própria dobra do ser ou a própria consistência que é gerada no devir, no encontro. O devir e o encontro é o que produz a consistência que vai estar no lugar do sujeito. Nós não precisamos de sujeito, não precisamos de identidade, não precisamos de dívida. Precisamos é de consistência; e a consistência não se busca, se encontra. E ao encontrar, você fabrica o seu corpo sem órgãos, você fabrica o seu plano de consistência, você fabrica uma superfície seletiva ou um conjunto de portas enfileiradas que te levam – mesmo para o elemento micromolecular ou para o elemento macrocosmos – a fazer novas conexões. E não a subdividir a sua potência ou a sua energia. Não importa em que nível de subdivisão ou de acréscimo em que você entra, você está sempre compondo. Então é isso que é fazer um plano de consistência. Esse plano de consistência necessariamente é seletivo, é necessariamente ético.

Então o que é imundo, obsceno, imoral – ou moral, que é a mesma coisa -, pornográfico, é exatamente essa interioridade subjetiva do homem de bem. O homem de bem é absolutamente obsceno; o homem de bem é aquele que submete o encontro ao fato, o encontro à forma de se comportar, à forma de pensar, à forma de conteúdo e à forma de expressão, estabelecidas por um poder. É o que Foucault dizia: nós estamos entre o saber e o poder.

Deleuze quer ar puro, ele quer respirar fora do saber, ele quer respirar fora do poder. Ele quer, junto com Nietzsche, levar o pensamento para o Fora, o pensamento para o acontecimento. Isso é reencontrar a imanência. É por isso que ele é obcecado e ama absolutamente Espinosa: por ele ter nos dado esse plano mais puro de imanência, sem nenhuma mancha de mediação, sem nenhuma mancha de transcendência, que nos devolve a potência absoluta de ser, de existir, de pensar, de agir, de reagir de modo absolutamente ativo e afirmativo e que é necessariamente uma maneira alegre de viver.

Então a maneira alegre de viver e a maneira afirmativa de pensar são essenciais a Deleuze e, volto a dizer, inclusive no ato de suicídio dele, que é o último ato de máxima afirmação. Ele leva a vida à máxima afirmação e à máxima alegria, porque a vida é movimento, a vida é passagem; quando a vida fica enclausurada numa forma orgânica débil, onde a intensidade está aprisionada, a vida tem que ser liberada. Então é puro ato de afirmação quando você acaba com uma forma orgânica, destrói uma forma orgânica que impede a passagem dos fluxos. O ato de suicídio dele é exatamente isso: com um quarto de um dos pulmões funcionando, com uma traqueostomia onde ele respirava, não se alimentava mais, não escrevia mais, não andava, não deitava… ou seja, é aquilo que ele mesmo fala ao longo da obra dele, em vários momentos – em Lucrécio, em Espinosa, em Nietzsche, em Bergson – sobre a questão do suicídio ou a questão de quando se muda a natureza de um corpo. Espinosa fala isso direto. Espinosa é um adepto da eutanásia e Deleuze elogia isso direto em Espinosa, é a postura ética: há momentos em que o corpo muda de tal forma de natureza que você não pode mais dizer que é a mesma natureza, e a vida fica absolutamente aprisionada ali e ela tem que ser liberada.

Isso é fundamental se entender como o último ato de afirmação e de alegria, evidentemente, porque a afirmação necessariamente traz alegria, é uma liberação, nunca uma aniquilação, mesmo porque Deleuze nunca achou que afirmar a vida fosse afirmar a forma orgânica. A forma orgânica é sempre uma função, é sempre um efeito do próprio corpo sem órgãos. O corpo sem órgãos é que produz a intensidade no corpo; e a linha ou o movimento no pensamento é que gera, por efeito, formas de pensar ou formas de expressão. Então ele nunca se ligou a esse tipo de coisa e é o que ele denuncia o tempo inteiro como efeito de um pensamento transcendente, ou por analogia, ou modo de viver sedentário.

Junto com Nietzsche, com Espinosa, ele diz: não adianta nada você ter uma postura teórica e, através de uma interioridade do pensamento, querer atingir a crítica, como fez Kant, por exemplo. Kant não saiu do interior da razão, não saiu do interior da moral e não saiu do interior da religião. É Nietzsche que diz que toda interioridade já é uma forma de Estado. Espinosa diz de uma outra forma. E Deleuze vai dizer que essa forma de interioridade que é gerada pelo Estado deve ser posta novamente em relação com a sua exterioridade, onde ela nasce. A pura forma de exterioridade, na realidade, é a pura forma de expressão e a pura forma de conteúdo de um diagrama ou de um agenciamento. E você entrevê a pura forma quando você reencontra a máquina de guerra; a máquina de guerra é o entre as duas cabeças do Estado – entre o regime passional da lei e o regime paranoico do significante, do déspota. Aí você reencontra o pensamento nômade e a vida nômade, como essencialmente uma máquina de guerra. Levar o pensamento para o Fora, devolver a vida, o ar puro e o nomadismo é todo o combate de Deleuze contra o sedentarismo, a analogia e a transcendência, e contra as forças que querem se apoderar das forças do homem e fazer do homem uma forma. Essa forma que conhecemos, que vivemos; essa forma existencial que não é apenas um conceito, mas é uma maneira de ser, é uma forma orgânica mesmo.

Então Deleuze vai fazer isso através de um investimento inicial em relação aos pensadores que foram excluídos do pensamento ocidental, que não servem a nenhum poder, a nenhum saber estabelecido e a nenhum cultivo de paixões tristes. E ele vai encontrar isso em David Hume em 1953, em Nietzsche em 1961, e já Epicuro e Lucrécio nessa época; repensa Kant a partir de Hume e Nietzsche em 61-62; vai escrever e encontrar Bergson em 64-65. Vai encontrar uma outra forma de interpretar Masoch – não daquela forma estúpida psicanalítica, como o que a psicanálise faz, numa relação sadomasoquista. Ele desfaz esse bloco como sendo uma relação necessária, separa exatamente, e vai dizer: Masoch desmonta a lei através do humor; ele inventa uma regra de passagem, ao modo de Hume – como uma lei e como um substrato do contrato – e monta uma instituição revolucionária. É o que Hume já fazia. Aí ele vai encontrar Proust e o modo como Proust se relaciona com o tempo, a memória e o passado – que não é aquilo que foi, aquilo que você lembra, não são flashes ou rememorações ou recordações; são blocos intensivos de passado que se repetem aqui e agora. Como diria Bergson – isso é a ideia que Deleuze resgata também -, o passado é.

Em Bergson ele vê a ideia de duração como ideia essencial, esclarece o método da intuição em Bergson, vai desenvolver a ideia de memória – a memória ontológica – e a ideia de evolução – a evolução criadora ou élan vital, que é a ideia de diferenciação do virtual através da atualização nos encontros que se faz. Bergson, então, vai dar a Deleuze a mais pura ideia de virtualidade e multiplicidade. É Bergson que vai liberar a ideia de uma multiplicidade como fundo de tudo; a multiplicidade não é adjetivo ou qualidade ou propriedade de alguma coisa, ela é o próprio substantivo. O substantivo é a multiplicidade; a multiplicidade é o estofo de tudo. A multiplicidade deixa de ser o Múltiplo, porque o Múltiplo ainda é ligado ao Uno, ainda é submetido ao Uno; a multiplicidade é multiplicidade pura e é Bergson quem libera isso, já a partir da ideia de duração. A duração é a própria vida em devir, que Bergson vai liberar como uma ideia pura ou movimento puro; Bergson vai denunciar Hegel, Kant e outros pensadores que não encontram o movimento e o devir e vai liberar os puros devires em si mesmos, fora de uma representação teórica, fora de uma representação de um saber do juízo. E vai liberar uma intuição pura. O que é intuição? Intuição é ir direto à coisa, não tem mediação, você vai direto ao encontro da coisa.

Quando você vê a água e o açúcar se misturando é o tempo do processo de dissolução, de mistura, de encontro ou de composição, que é o próprio espírito da coisa ou intuição da coisa; você apreende a coisa na imanência. E Bergson libera isso para Deleuze. Deleuze vai ver ainda muito mais, vai fazer com Bergson coisas fantásticas.

Depois, inspirado em Bergson, em 1981 e 83 ele vai fazer duas obras sobre cinema. Uma chama Imagem movimento, que é o cinema ação, e outro chamado Imagem tempo, que é o cinema que já está imanente no próprio tempo – não o tempo mais como uma sequência de flashes ou de imagens ou de fotografias, mas agora o tempo no próprio modo de montar, de compor, de afetar e ser afetado ou agir.

O tempo agindo como já blocos de passado – o que ele chama de som-signos e opsignos, ou seja, imagens sonoras e imagens visuais – que não são exatamente imagens, mas são sinalizadores que trazem ou arrastam blocos inteiros de passado. Não como uma rememoração, mas como uma presença plena da memória ontológica do ser. Isso tudo baseado em Bergson.

Outra ideia que ele toma de Bergson é a ideia das coexistências: tudo coexiste, não há uma sequência no tempo segundo o bom senso: antes vem isso, depois vem isso, depois vem aquilo. Tudo coexiste no tempo. Essa ideia vai dar uma visão revolucionária em relação ao Estado: o Estado coexiste sempre, ainda que ele não seja atual. Pierre Clastres vai dizer que a sociedade selvagem não é uma sociedade sem Estado, sem história, sem economia de mercado, sem propriedade privada, sem troca. É contra isso tudo, a sociedade é contra o Estado. Então o Estado emerge porque a sociedade está numa imanência de máquina de guerra, a sociedade é uma máquina de guerra; o Estado se apropria dela e faz da máquina de guerra um exército que, daí, vai gerar violência.

Mas a questão do Pierre Clastres é reverter este postulado; é dizer: sim, é a máquina de guerra contra o Estado. Só que quando começa o Estado? Pierre Clastres ainda vacila; ele acredita que através de um certo profetismo, de uma certa relação até mística… ele tem a ideia de um mau encontro, ele tem a ideia da emergência violenta do Estado ou até simultânea, que ele não é uma evolução. Mas Deleuze vem e diz: o Estado coexiste mesmo nas sociedades selvagens. E como você detecta isso? Através daquilo que o próprio Pierre Clastres liberou: os mecanismos de esconjuração do Estado. Os estudos que Pierre Clastres faz com os índios guaranis, os índios guaiaquis, etc., vão mostrar como é que você faz da função de chefia apenas um elemento enzimático e acelerador de processos, e você esconjura sempre o perigo do poder, da emergência do poder na figura do chefe.

Então a coexistência se dá, na verdade, como a captação de todos os tempos simultaneamente; há uma ideia de simultaneidade e coexistência, ao mesmo tempo em que você vive a velocidade ou o tempo de cada processo de modo singular. Não há um tempo homogêneo e nem um espaço homogêneo; é por isso que é pura multiplicidade. É por isso que o espaço e o tempo são multiplicidades. É isso que Einstein não entendeu ao fazer a teoria da relatividade, e que Bergson vai criticar numa obra chamada Energia espiritual e no O pensamento e o movente. Deleuze toma então essa ideia das multiplicidades, da virtualidade e da atualidade, da coexistência disso. O atual coexiste ao virtual – e o virtual é real por isso mesmo: há uma realidade no virtual, é por isso que ele ultrapassa o campo de possibilidade.

São encontros que Deleuze faz que vão gerando uma consistência, uma riqueza e uma dinâmica que vão desembocar, por exemplo, num Diferença e repetição de 1968, que é uma síntese fantástica de tudo que a filosofia produziu; é onde Deleuze faz uma mistura tal que ele tira tudo que tem de melhor da filosofia e vai estabelecer uma linha nômade contra a linha sedentária, uma linha da univocidade contra a linha da analogia, uma linha da imanência contra a linha da transcendência. E em seguida ele vai ter o Lógica do sentido, em 1969, que já é uma criação pura, fantástica, em relação ao que Deleuze tem de mais original. E não é à toa que Foucault chegou a dizer que o século seria deleuziano, em virtude dessas duas obras – Diferença e repetição e Lógica do sentido. A diferença, no fundo, é o que Nietzsche chama de vontade de potência, e a repetição é o que Nietzsche chama de eterno retorno; e a Lógica do sentido é a micrológica ou a lógica do tempo enquanto tempo, ou tempo como espírito, tempo como pensamento.

Daí emerge uma consistência fantástica; isso já é a tessitura, a construção, a produção de um plano de imanência, de consistência e de composição de Deleuze que, ao encontrar Félix Guattari, a partir dos acontecimentos de maio de 68, vai gerar com ele uma obra chamada Anti-Édipo que já é uma explosão riquíssima dos elementos mais impressionantes, mais fascinantes, mais surpreendentes que um pensamento pôde produzir. Quem leu o Anti-Édipo de modo despojado se surpreende, não tem como deixar de se surpreender a cada leitura que seja feita do Anti-Édipo. O Anti-Édipo é a verdadeira vassoura de bruxa, como o próprio Deleuze cita do Espinosa: ler a Ética é montar numa vassoura de bruxa. Ler o Anti-Édipo é a mesma coisa.

  • Participante: o conceito de rizoma, ele vai buscar onde?

Ele tira da obra de Dom Juan, através dos livros de Castanheda. A Erva do Diabo é uma das obras citadas para referenciar o conceito de rizoma. Ele vai desenvolver esse conceito junto com Félix Guattari em 1977.

  • Participante: então não vem dessa ideia de coexistência?

Tem tudo a ver, com certeza.

  • Participante: algumas pessoas fazem um paralelo, que talvez seja um reducionismo, da ideia de rizoma para a ideia de redes.

É uma rede não estratificada.

  • Participante: porque rede, para você sair do ponto A para o ponto C, você tem que passar pelo B. Quando se faz um paralelo com sistemas telemáticos, tenta-se fazer esse paralelo. Quando, na ideia de rizoma, de A você vai para C, vai para D, vai para E, você não tem pontos intermediários. Essa ideia de coexistência me parece que está muito dentro da ideia de rizoma, e que ela acaba sendo barateada assim: filosofia, para você entender rapidamente como funciona nos mass-media, através de comparação.

Isso porque nós não ultrapassamos a consciência, ficamos nos fatos, no objeto, no sujeito, no bom senso, na fixação dos termos. Então se você fixou um ponto, isso é um termo; você vai de um ponto a outro ponto e forma uma linha. O rizoma diz: não, a linha é anterior. Ou, até melhor: ele diz que entre a linha, o ponto, a superfície e o volume não tem hierarquia, eles são intensidades. Então ao você habitar essa intensidade, você habita ao mesmo tempo o ponto, a linha, a superfície e o volume. Mais: você rompe com essa dimensão espacializada que faria com que você se destacasse e visse a coisa de fora.

O habitar já é a pluridimensão, ou a n-dimensão; quer dizer, há um infinito dimensional. E por que?

Vocês lembram de Leibniz? A curvatura e a tangente, que sempre pode ser subdividida, aquela bifurcação que você, ao subdividir, sempre tem uma curvatura ainda menor? É uma subdivisão, é uma inflexão. E essa diferença mínima é o que Epicuro chama de clinâmen e Lucrécio chama de declinação, que Leibniz chama de inflexão, que os estoicos chamam de subdivisão do acontecimento. Cada subdivisão é uma modificação possível. A modificação é uma dimensão do ser. Então cada modificação é uma dimensão. É por isso que você tem infinitas dimensões. E cada modificação faz com que você veja cores e sons absolutamente inéditos – numa modificação você vê o mundo. É por isso que Leibniz chama isso de mônada – ainda que ele leve a mônada para o indivíduo.

Deleuze leva a mônada para a singularidade. Porque no fundo o encontro de linhas, ou os feixes, geram uma espécie de um vácuo ou lugar. Esse vácuo ou lugar já é efeito; mas nesse vácuo ou lugar existe um envolvimento de uma potência, existe uma potencialização, ele forma um polo. É isso que é o ponto – olha que ponto é esse: esse ponto é um ponto de potência e a potência ou a intensidade é plural. Esse ponto, na realidade, é a conjunção, é a bifurcação de uma pluralidade de séries, e as séries se dão em vários níveis – em níveis macros, em níveis micros. Há uma subdivisão. E cada série leva esse ponto singular para um outro ponto singular. Na relação de um ponto com outro, você forma uma linha ordinária, uma repetição de frequência, de ritmo, de vibração, de ondas, de fluxos. Então o rizoma é isso, o rizoma não tem origem, não tem fim, não tem fixação – não tem como você fixar nada, ele é puro devir, ele é encontro de blocos de devires. É isso que é o rizoma.

Ele opõe a ideia de rizoma à imagem da árvore: o pensamento arborescente é um pensamento aristotélico – claro, fundado já em Platão: é aquele que fixa raízes, fundamentos, desenvolve o seu caule, as suas folhas, os seus frutos como os valores estabelecidos ou as idéias em si, valores superiores, a partir de um fundamento ou de um princípio. A ideia de árvore que finca raízes é a ideia do pensamento sedentário, a imagem do pensamento sedentário. Então ele vai opor o pensamento sedentário com essa ideia de árvore ao pensamento nômade com a ideia de rizoma.

  • Participante: acho que Pierre Levy dançou aí, quando ele traduz a ideia de rizoma para árvore.

Aquele software ele desenvolve.

A inteligência coletiva precisa entrar em devir. Eu não sei porque eu ainda não li Pierre Levy, eu não sei direito, mas o que eu ouço dele eu sinto algumas coisas nesse sentido mesmo: te leva para uma rede mais estratificada do que outra coisa – ainda que o virtual esteja inteiramente presente. Mas a ideia de inteligência coletiva é uma ideia que precisa ser problematizada, porque pode ser um grande estrato coletivo. A questão não é gerar uma sociedade, é gerar bandos; não temos que ficar presos a uma coletividade, que é uma somatória de indivíduos aparentemente com boa vontade, com bom senso, com ideal de verdade, com ideal humanista, com direitos humanos e deveres para com o próximo. Temos que romper com essa ideia, temos que gerar bandos, máquinas de guerra, porque a máquina de guerra ou o bando não quer rebanho, ele é generoso o suficiente para não precisar efetuar relação de troca; ele rouba ou dá. E mais: ele não dá esmola, como diria Nietzsche, ele dá presentes.

Diz Nietzsche: não sou suficientemente pobre para dar esmolas, não sou suficientemente humilde para ser vaidoso, e coisas do tipo. Vaidade é coisa de humildes.

Voltando: então a ideia de pensamento em Deleuze leva diretamente a uma topologia, a ocupar o lugar da imanência, mesmo; e quando você ocupa o lugar da imanência você sente, vê, pensa, vive e emerge desse próprio lugar, você nasce e morre desse próprio lugar. É dali que tudo se faz e ali que tudo se dissolve. Mas Deleuze não acredita no eterno retorno do Mesmo, então o “de onde tudo se faz” se desloca o tempo inteiro, é um ponto excêntrico e vai para outras ligações, outras conexões; e por isso há uma fabricação de consistência, a natureza se autoproduz. É por isso que a ideia de morte é completamente fictícia, absolutamente fictícia.

Esse encontro que ele faz com as obras passadas, com os pensadores passados, faz com que ele desenvolva uma obra radicalmente nova e estabeleça um corte absoluto entre o pensamento sedentário – por analogia e por transcendência – e o pensamento por imanência, por univocidade e em movimento, que seria o pensamento nômade. Ele diz: não há conciliação possível, não há negociação. E nômade não negocia, nômade ou trai, ou corta cabeça, ou entra em guerra – é máquina de guerra; então não tem negociação com o pensamento sedentário. É por isso que, apesar de ter admiração por Etienne Dilson, que vai afirmar que só existem duas vias, a da univocidade e a da analogia – uma originada em São Tomás de Aquino e outra originada em Duns Scot, mas que essas vias, no fundo, se encontram -, Deleuze vai dizer que é impossível, a via de Duns Scot vai dar em Espinosa, a de São Tomás vai dar em Descartes; a de Duns Scot e de Espinosa vai dar em Nietzsche, a de São Tomás e Descartes vai dar em Kant, vai dar em Hegel, vai dar em Habermas, vai dar em Chomsky; e aí vem outros: a psicanálise, o próprio Heidegger. Heidegger é complicado porque ele se inspirou muito em Nietzsche; ele nos confunde muito, ou tenta confundir muito, mas no fundo Heidegger não é um pensador da imanência, não é um pensador nômade, de modo algum. E Espinosa e Nietzsche desembocam num Bergson, desembocam num Foucault, desembocam num Deleuze; e são maneiras de viver e de pensar radicalmente distintas e irreconciliáveis.

A maneira transcendente, sedentária e analógica no fundo é denunciada por Deleuze através de vários pensadores – e por isso a opção pelos pensadores nômades, que ele vê como uma unidade no combate ao juízo que sintetiza a transcendência, a analogia e o sedentarismo; no fundo se chama juízo esse pensamento, pensamento do julgamento, julgamento da vida e da natureza. Ele vai então se servir exatamente desses pensadores para desmontar a origem da transcendência, da analogia e do sedentarismo – ou seja, a origem do juízo – como uma ilusão de quem habita um lugar que é um não lugar, o lugar onde nada acontece, o lugar onde é impossível o encontro, o lugar onde não tem devir; o lugar estriado, o lugar já formatado, o lugar codificado, o lugar estratificado. Então diz ele: tudo se origina quando você cai na impotência; o mau, o fraco, o moral, o justiceiro, o verdadeiro – isso tudo é a mesma coisa – se origina numa impostura.

Essa ideia é fundamental; essa impostura, essa desorientação, essa orientação para a negatividade e para a tristeza e para a reatividade é a ilusão ou a origem de todo pensamento transcendente, sedentário e analógico que forma o juízo. Por isso não tem conciliação possível. É uma postura ética, é uma questão de ética se combater até o fim qualquer transcendência, analogia ou sedentarismo; não há como fazer acordo. E Nietzsche, através de Zaratustra, narra vários momentos em que Zaratustra está enfraquecido e doente, quando Zaratustra sente piedade dos homens superiores; os homens superiores são exatamente os homens que são entupidos do juízo, do saber, da analogia, da transcendência, e têm essa fixação arborescente do pensamento sedentário. Essa piedade que levaria Zaratustra à morte, e Zaratustra percebe que a piedade é a pior de todas as paixões, porque a piedade pelo homem fraco, a piedade pelo homem moral, a piedade pelo homem superior – que no fundo é a mesma coisa, é o homem kantiano, o homem hegeliano, etc. – leva exatamente a um desinvestimento da vida forte, da vida alegre e do pensamento afirmativo. Leva a uma recusa e a uma renúncia do acontecimento ou do encontro que é sempre problemático, que é sempre dinâmico, que é sempre em guerra, mas que no fundo é sempre positivo: o problemático é positivo, o acontecimento é positivo. Então o segredo e a pedra de toque está em saber afirmar o problemático, saber afirmar o positivo, saber extrair do acontecimento o que ele tem de liberador.

Na linguagem de Deleuze: saber extrair do agenciamento o seu território. Vamos entrar numa segunda etapa para falarmos de agenciamento, e aí eu vou articular com a última aula que eu dei de Foucault.

  • Participante: Zaratustra, me parece, é um ponto de sedução, talvez seja um ponto rizomático, de Zaratustra com os homens superiores.

Existe isso, os homens superiores têm uma sedução aí, porque eles se desviaram do objetivo da própria cultura.

  • Participante: exato. Eles veem um brilho em Zaratustra, e Zaratustra vê um motivo de estar com eles. Então há uma coisa que não cinde tão rapidamente, mas há um certo ponto de sedução.

Mas é por isso que Zaratustra não é Dionísio ainda, Zaratustra não é o super-homem; Zaratustra é a gota pesada que se desprende da nuvem e que espera o raio que a abata. Ele vai ser abatido por um raio. Esse raio é Dionísio, esse raio é o super-homem.

Voltando na ideia de devir: devir é sempre em bloco, é sempre no mínimo a dois, é sempre plural – já é rizomático. E não há devir que não seja agenciamento é uma ideia que substitui, evidentemente, a ideia de troca, a ideia de relação sujeito-objeto, a ideia de interpretação de um eu em relação ao mundo, a ideia de sujeito de enunciado e sujeito de enunciação em relação ao designante, ao significado e ao significante, substitui todo tipo de má relação que, no fundo, é a relação como resultado de uma forma de conteúdo e de uma forma de expressão. No fundo é o homem como prisioneiro dos valores estabelecidos ou dos valores de época, que se vê como uma consciência interpretando o mundo, que não passa de uma forma de conteúdo. Mas ele não apreende nem a forma de conteúdo, porque a forma de conteúdo ainda é uma condição de visibilidade ou de percepção; ele apreende só as qualidades ou as propriedades do objeto, apreende já o objeto e o objeto é já uma ficção; ele não apreende o bloco que gera o objeto, ele não apreende as qualidades enquanto elementos nômades. Ele já apreende uma unidade que é necessariamente fictícia. Então ele estabelece falsas relações entre sujeito e objeto. Deleuze diz: o agenciamento tem quatro cabeças, ele é tetravalente.

E, evidentemente, que esqueci de falar – mas nem precisava também porque acho que vocês sabem muito bem disso, mas é bom reforçar – que Deleuze é completamente atravessado pela obra de Foucault, também; ele é muito influenciado e adora, eles são amicíssimos, eles têm um devir absolutamente ativo e afirmativo, ainda que eles têm algumas divergências; evidentemente, são duas solidões, dois desertos absolutamente poderosos e povoados por elementos plurais e divergentes.

Deleuze vai, através daquilo que já falei de Foucault, vai desenvolver uma tese inspirada numa certa nomenclatura de um linguista: uma diferença entre forma de expressão e forma de conteúdo e desarticular essas formas como significante e significado. A forma de expressão não é o significante e a forma de conteúdo não é o significado; ao contrário, a forma de expressão tem sujeito e objeto próprio, e a forma de conteúdo tem sujeito e objeto próprio – substância de expressão e substância de conteúdo e matéria de expressão e matéria de conteúdo. Então a forma se liga, ela forma ou constitui uma substância na expressão e no corpo; a substância no corpo se chama organismo e a substância na expressão se chama pensamento – claro, já um pensamento submetido às formas, submetido à relação do sujeito e do objeto.

Foucault vai dizer que a forma de expressão e a forma de conteúdo são as formas de visibilidade e dizibilidade: a forma do gesto e a forma da fala, a forma do rosto e a forma da mão, a forma do áudio e do visual. São formas distintas e elas se inter-relacionam e se pressupõem, há uma pressuposição recíproca entre as duas formas, ainda que sejam absolutamente heterogêneas e divergentes. Há uma disjunção entre elas, elas não se relacionam, elas não se adequam uma à outra – a não ser de modo forçado por um poder que está por trás e gera essa dupla articulação e as encaixa, mas esse encaixe é sempre artificial e forçado por um poder. Isso é o que Foucault chama de dispositivo, e isso é também o que Deleuze chama de agenciamento. Então o que Deleuze chama de agenciamento na verdade implica quatro elementos.

Implica expressão e conteúdo – são os dois elementos que geram um estrato e que se articulam com o que Deleuze chama de máquina concreta ou uma máquina de atualização; o que atualiza, o que concretiza, o que liga é a máquina concreta, através da expressão e do conteúdo. Mas a expressão e o conteúdo têm formas; essas formas são os códigos. Então a forma reduz o território ao código. Não há agenciamento que não tenha expressão e não tenha conteúdo; e a expressão é codificada pela forma de expressão e o corpo ou o conteúdo é codificado pela forma de conteúdo. Então haveria uma codificação e uma descodificação do corpo ou do comportamento, e da expressão ou do pensamento ou da linguagem. Há um movimento de codificação, de sobre codificação e de descodificação.

Por exemplo, os selvagens exercem uma codificação, eles codificam fluxos e órgãos, o corpo, etc.; o déspota divino ou os Estados despóticos sobre codificam os códigos selvagens e, ao mesmo tempo, ele descodifica e desterritorializa uma certa relação do código e do território entre os selvagens. Por sua vez, o sistema capitalista descodifica os códigos selvagens e despóticos e desterritorializa os dois.

Deleuze diz: são quatro elementos. O agenciamento concreto se apresenta sempre de duas maneiras: na expressão ou na fala ou no pensamento, e no conteúdo ou no corpo, que são ações e paixões.

Então existem ações e paixões que são os conteúdos, e as expressões seriam os acontecimentos que se exprimem na linguagem ou se expressam como forma de expressão.

Diz Deleuze: o agenciamento, para se liberar da estratificação de uma época ou de uma máquina de saber e de poder, precisa reencontrar o próprio território do agenciamento; não há agenciamento que não se faça sobre um território. O que é o território do agenciamento? É o que está sob o código, o que está em baixo ou por trás do código. No fundo não está em baixo ou por trás, isso é uma ilusão; no fundo, é o mais imediato, mas o código recobre porque o código representa o território. Então quando você reencontra o território, você já entra num movimento de descodificação; você faz daquele objeto algo mais amplo do que um objeto, um conjunto de relações, ele já é um campo territorial, ele já é um território; ele já é mais amplo; você esfacela com a unidade objetiva dele, você racha as coisas no meio, você quebra as coisas, você quebra a unidade dos objetos. E você revela a própria territorialidade.

Esse seria o terceiro elemento do agenciamento.

O quarto elemento do agenciamento é que não há território sem desterritorialização; há um movimento que desinveste ou desconstrói aquele território e ao mesmo tempo gera um outro território ou uma reterritorialização. Ou seja, o agenciamento está ligado à máquina concreta das formas de conteúdo e de expressão, e ligado a uma máquina abstrata ou ao diagrama de Foucault, que é essa dupla ponta do território e da desterritorialização; isso é um outro eixo do agenciamento.

Então o agenciamento tem dois eixos que, por sua vez, têm duas faces – é por isso que ele é tetravalente. Um dos eixos remete à expressão e ao conteúdo, ao dizível e ao visível, ao áudio e ao visual, ao gesto e à palavra; ao corpo, às ações e às paixões do corpo, e ao expresso da linguagem. Há uma máquina de expressão e há uma máquina de conteúdo; ou, em outras palavras, há os agenciamentos coletivos de enunciação e há os agenciamentos maquínicos de desejo. Então agenciamento se divide em agenciamento maquínico de desejo, que são as ações e as paixões dos corpos, e os agenciamentos coletivos de enunciação, que são as curvaturas dos enunciados que fazem com que você diga ou não possa dizer algo numa determinada época. Agenciamento coletivo de enunciação, então, é a própria forma ou a condição da expressão. O agenciamento tem essas duas faces. Isso é a máquina concreta. E há uma dupla articulação em ambos: ora a expressão invade o conteúdo – os gestos, o comportamento, as paixões e as ações -, ora as ações e as paixões invadem as palavras, invadem a expressão, invadem o pensamento, invadem o que é dito. Há uma guerra permanente, há uma relação de conflito permanente entre esses elementos que, no fundo, é alimentada por uma relação de forças, um campo intensivo que é exatamente o elemento de desterritorialização. Já vai para o outro eixo, o eixo do diagrama.

Então há um eixo do estrato – que é a máquina concreta em Deleuze e estrato em Foucault – e há o eixo do diagrama em Foucault – que em Deleuze é máquina abstrata. A máquina abstrata ou o diagrama é feita de forças, de matérias não formadas ou de elementos informais, de intensidades, de singularidades, de linhas nômades ou de devires, de blocos intensivos; não há forma possível aqui. É esse elemento que, ao investir a forma de expressão e a forma de conteúdo, descodifica a forma de expressão através das puras matérias expressivas, e descodifica as formas de conteúdo ou de comportamento através das ações e das paixões intensivas. Esse elemento de desterritorialização é que vai nos pôr em contato ao mesmo tempo contra o poder, que é o combate contra, e o combate entre forças do Fora, nos articular novamente com o Fora; essa ponta de desterritorialização que vai nos levar a uma desterritorialização absoluta e não mais relativa em relação ao saber ou em relação ao poder; agora vai para um campo absoluto.

Esse absoluto não tem nada a ver com uma mistificação transcendente, é absoluto porque não tem mais nenhuma referência. Você habita a linha como uma pluralidade de dimensões e uma plurivocidade. Ao habitar essa linha com uma pluralidade de dimensões e uma plurivocidade, a expressão e o conteúdo se fundem; então você unifica tudo quando você reencontra esses blocos intensivos, essas intensidades ou essas forças, ou a própria máquina abstrata, através dessa dupla ponta que a desterritorializa.

Deleuze diz o seguinte: que não há agenciamento que não tenha esses quatro elementos; e que é preciso levar o agenciamento à máquina abstrata, é preciso levar o agenciamento às intensidades, às forças, para fazer do agenciamento uma criação e uma máquina de guerra. A máquina de guerra só é possível quando você inventa novas relações, novas articulações ou novas conexões, não a partir de formas pré-estabelecidas, não se submetendo aos valores estabelecidos ou aos estratos, nem a funções de poder diagramático, mas encontrando o próprio rizoma que faz do diagrama ou da rede uma abertura para o Fora. Então fazer do diagrama um diagrama de forças que ultrapassa o poder é o que Deleuze chama, no Anti-Édipo por exemplo, de investimento libidinal de desejo, contra os investimentos de interesse, ou conscientes ou pré-conscientes, que são interesses orgânicos, interesses estratificados, interesses formatados nas formas de expressão e nas formas de conteúdo.

Levar então o poder e o saber a encontrarem a posição de desejo onde eles nascem, e fazer fugir o modo do poder e o modo do saber; articular o que há de desejo no saber, articular o que há de desejo no poder – que é mais ou menos a sedução do Zaratustra com os homens superiores. Há um Fora. E reconectar com as superfícies lisas, com o ar puro, com o deserto, com os devires, com os encontros e não mais com a busca, com a procura, com o encaixe, com a adequação, com a busca de uma verdade, mas com o encontro. E encontrar implica em se posicionar já no plano de imanência, que é o puro Fora – puro Fora do saber, puro Fora do poder. É por isso que, para Deleuze, não tem apenas saber e poder; o poder já é um modo do desejo, assim como o saber é um modo do desejo também. Tudo é modo do desejo. Então nós precisamos reencontrar o desejo na sua imanência, o desejo onde não falta nada a ele, o desejo que não tem mais como objeto um outro objeto, mas sim um outro fluxo, um outro devir, um outro bloco de intensidade.

Quando o desejo encontra isso, ele reencontra a capacidade de se conectar, de fazer ligações; isso que é fazer agenciamentos, segundo Deleuze: capacidade de fazer agenciamentos. Agenciar é exatamente lançar os dados, segundo Nietzsche, ou distribuir as intensidades que te atravessam, ou lançar os elementos do problema, segundo Bergson, de modo que o resultado é necessariamente vitorioso. E o resultado é sempre intensivo, nunca é extensivo, nunca é formatado; ele sempre oferece muito mais do que um mero resultado factual; o fato não se adequa a esse resultado porque o resultado é outro bloco de intensidade. E o bloco de intensidade é imensurável, não há como medi-lo, não há como gerar um equivalente, não há como gerar uma troca. Num bloco de intensidade você pode roubar ou receber um dom, mas nunca trocar.

O vir a ser é uma má tradução, e é por isso que gera muitos equívocos, você não vem a ser nada; vir a ser não é se tornar o outro. Por exemplo, devir mulher não é fazer como a mulher, não é imitar a mulher, não é ver a mulher como modelo; aliás, Deleuze diz que a própria mulher tem que encontrar o seu devir mulher, porque a mulher é produto masculino; ou o homem e a mulher são produtos de uma estrutura de poder e de uma ocidentalização que faz os dois funcionarem como uma máquina binária.

Assim como a própria homossexualidade, gerada a partir dessa visão bissexual, é uma homossexualidade absolutamente assujeitada, que a obra de Proust, por exemplo, libera como n sexos. Temos n sexos, não somos nem homem, nem mulher, não somos uma máquina binária; temos uma pluralidade de sexos que, de uma outra forma, Michel Tournier reencontrou com aquela obra Sexta-feira ou os limbos do Pacífico, onde ele leva o Robinson a fazer sexo com a terra e com os elementos. O sexo é plural.

Foucault queria libertar a sexualidade do sexo, dessa entidade “sexo”. O que é sexo? Sexo é uma forma de conteúdo submetendo ao genital no corpo, e uma forma de expressão submetendo a um saber médico na alma. E Foucault quer libertar a sexualidade exatamente desse sexo ocidental que foi gerado no século XIX com o puritanismo; o puritanismo não nos impediu de falar de sexo – ao contrário, estimulou muito para que se falasse de sexo e se formatasse o sexo.

  • Participante: ele está querendo colocar a ideia de “em cada encontro um orgasmo”?

O orgasmo, diria Deleuze, é um modo de matar o desejo. Por isso ele elogia tanto a erótica dos trovadores, do amor cortês, aquele amor cavalheiresco, enfim. É por isso que há uma certa diferença entre Foucault e Deleuze: Foucault é mais ligado ao prazer, ainda que não seja o prazer orgânico. No fundo eles estão dizendo praticamente a mesma coisa, mas há uma certa tensão aí. Deleuze diz que o desejo nunca é orgânico, o desejo nunca é desejo orgânico; o desejo de órgão ou orgânico ou genital já é o desejo assujeitado ou estriado ou estratificado, porque no fundo o desejo é anterior ao órgão, é anterior à dor e ao prazer. O prazer, o orgasmo, seria o modo de matar o desejo.

Agora, aí você poderia dizer assim: haveria um orgasmo não orgânico? Aí sim, podemos dizer que sim, é um orgasmo não orgânico.

  • Participante: e não final do desejo?

E não final do desejo. Ao contrário: o orgasmo não orgânico é exatamente o orgasmo que intensifica o desejo, que aumenta.

  • Participante: então por que chamar de orgasmo? É o desejo.

Aí é uma questão de palavra, palavra não é importante.

  • Participante: você pode usar a palavra tântrico, que é algo que intensifica ao máximo, que se perpetua, que não termina.

Precisa ver a que forças o tântrico se liga, porque eu acho que o tântrico tem uma tendência a uma aniquilação; eu não tenho certeza disso, não sei bem do que eu estou falando, mas as coisas que me chegam em relação a isso… é mais ou menos o que Deleuze chama de linha de abolição ou linha suicidária: que é quando uma linha de fuga se desterritorializa de modo absoluto e cai no vazio, gera um corpo vazio ao invés de ser um corpo sem órgãos, ou um corpo canceroso, que é um fechamento ainda pior. Ele dá um outro exemplo disso, que é o nazismo: o nazismo inicialmente era uma linha de fuga que vira uma linha de morte.

  • Participante: é o início de uma ideia boa e de repente…

Porque a desterritorialização está na origem de tudo. Porque é intensidade.

  • Participante: mas o poder também.

Aí é que está. É por isso que é necessário uma autêntica prudência, uma prudência muito forte. Como diz Deleuze: faça qualquer coisa, mas não vire um trapo, por favor.

  • Participante: muita gente não entende isso de prudência.

Você só entra em devir de modo absoluto e intenso com muita prudência. Diz Nietzsche: a minha águia é a minha serpente – a minha serpente é a minha prudência, a minha águia é a minha ousadia.

Ser ousado e prudente.

  • Participante: equilíbrio?

Eu prefiro assim: é andar na corda bamba, saber andar na corda bamba, saber se manter na superfície. Todo problema ético é saber se manter na superfície. Saber estar em devir, saber manter a atmosfera do encontro – é isso que é andar na corda bamba. A superfície é uma corda bamba. Então Deleuze vai dizer isso naquela série Porcelana e vulcão, na Lógica do sentido; ele vai dizer: é todo o problema ético e também a questão clínica – do esquizofrênico, do psicótico. Porque há um afundamento do esquizofrênico, ele se afunda no corpo e perde a superfície. E o homem moral vai numa altura e proíbe a superfície ou submete a superfície. E o artista ou o homem livre, o pensador, desliza na superfície e leva a superfície ao máximo do que ela pode – não numa extensividade, mas é a superfície sempre intensa. Então esse é o critério ético. E não é à toa que o capítulo se chama Porcelana e vulcão: vulcão que tudo dissolve numa profundidade, como em Artaud, e porcelana onde tudo se cristaliza como o alcoólatra ou então algum tipo de drogado que se fixa tanto que numa hora trinca e não se cola mais, não tem como juntar os pedaços. E aí a fissura faz com que você perca a superfície também e caia numa altura; aí você é salvo, você é resgatado, você é curado, tem levam para a altura, você cola essa fenda, mas essa superfície nunca mais.

  • Participante: não sei se é Deleuze que diz isso, a respeito das drogas: que é preciso poder entrar em devir num copo de água. Não sei se essa expressão é dele. Algumas pessoas dizem que as drogas podem ser usadas como forma de liberação.

O Henry Miller diz assim: eu quero me embriagar com um copo de água. E ele experimenta, ele toma muita água um dia e fica realmente embriagado. Você fica só com um gole de água. A involução é essa, é involuir; não é regredir, é involuir. Involuir é tocar dimensões, é o que Dom Juan chama de deslocar o ponto de aglutinação. Ou subdividir o acontecimento: você atinge elementos de modificação e cada modificação que você habita, você está num outro mundo. É como o caleidoscópio: ao girar minimamente, você já tem outras cores, outra perspectiva. Então é cada acontecimento, que no fundo são micro acontecimentos, é habitá-lo. É encontrá-lo. Ou tirar do acontecimento o que ele tem de melhor é isso: não apenas sofrer ou padecer o acontecimento, mas é coabitar, é participar dele, fazer parte. É o que Espinosa diz: tome parte – é isso que é ser causa dos próprios afetos. Então aí você está de fato deslocando o seu ponto de aglutinação e involuindo. Há uma involução e ao mesmo tempo uma evolução – não mais no sentido progressista, agora; não importa se você evolua ou se você involua, sempre você faz uma conexão ou uma composição, sempre você se fortalece. É isso que é saber afirmar o acontecimento, saber encontrar o acontecimento.

Então o problema, no fundo, é positivo; e é ao ressentir o problema que você impede o encontro, você moraliza, exige uma forma de conteúdo – ou seja, “deve se comportar de tal modo, de tal jeito, vista tal roupa, faça tal gesto”, ou “diga de um jeito tal, seja polido no teu verbo, fale o que é educado, o que é de um homem de bem”, etc. Ou seja, você ou se submete a uma forma de conteúdo ou a uma forma de expressão, porque você desencontrou o acontecimento, você tem medo do acontecimento; o acontecimento é ameaçador, o acontecimento é um problema que pode te destruir e aí ele vira uma ameaça. E, como tal, ele deve ser julgado, deve ser formatado, deve ser mantido à distância de modo que ele se torne doméstico, civilizado. A civilização é fundamental para isso. Então é a civilização que nos rouba o território, porque essa forma de conteúdo ou de expressão é o código do território; então eu tenho o território inteiramente codificado. Eu preciso descodificar, liberar o território, para entrar em devir, entrar em desterritorialização. Aí você faz um território movente, o território é movente; aí você pode até não se mexer e estar em movimento absoluto, como Deleuze diz do nômade das estepes: o nômade não se mexe. Porque ele já está habitando o território movente.

É a arte, diria Deleuze num outro texto da Lógica do sentido, do mimo; o que o mimo faz? Ele tira a espessura do gesto, ele deixa o gesto com um mínimo de profundidade possível, o mínimo de presente, e vai subdividindo o instante até duplicar. Ele é um duplo sem espessura – é isso que é a arte do ator, o ator é um duplo sem espessura. O ator não representa nada, ele é a própria expressão do acontecimento, é o duplo sem espessura. Isso que é saber encontrar ou entrar em devir.

Então entrar em devir não é imitar o outro, nem seguir o modelo, nem fazer de conta ou fazer como. É por isso que Deleuze odeia a metáfora, e Kafka também odeia a metáfora: a metáfora mata qualquer coisa. Tudo é como máquina mesmo, tudo é máquina. E a máquina fundamentalmente não é técnica; a máquina técnica já é efeito da máquina social, da máquina coletiva, da máquina humana, da máquina que é a natureza. A máquina da natureza é uma máquina abstrata – não porque ela é representativa, ideal, universal, mas ao contrário, porque ela é singular, imperceptível e funciona sem forma. Ela cria as formas, por isso é abstrata; é uma ação que se exerce sobre outra ação, uma ação que se exerce sobre uma paixão. Então ela dirige fluxos, ela orienta o desejo, ela estabelece dimensões; é por isso que ela é uma máquina abstrata. O que é concreto? Já são os canais construídos. Você atravessa os canais quando eles já estão atualizados, efetuados. Os canais são as formas de expressão e de conteúdo nos gestos do corpo e nos enunciados da linguagem.

Então entrar em devir não é vir a ser alguma coisa nem se tornar um sujeito ou algo, mas é se deslocar no mesmo lugar ou é transmutar, é a mutação ou a modificação, ou é a potência de afetar e ser afetado que se altera em você. Então é isso que é entrar em devir. Agora, imitar o outro ou imitar um modelo ou encontrar uma referência ainda é o modelo da recognição platônica: você precisa encontrar ou reencontrar um objeto já pronto, já feito e imitá-lo. Então essa ideia de devir é uma ideia absolutamente equivocada – essa ideia ou da imitação, ou da referência ou de um modelo. Qual o futuro da revolução? É uma ideia estúpida, diz Deleuze, se perguntar pelo futuro da filosofia, por exemplo – dizer que a filosofia está no fim, quando o que está no fim é um modo sedentário de pensar. Você não pode aniquilar o pensamento. E sempre que tiver uma arte de inventar conceitos, de criar conceitos, você pode dar o nome que você quiser, mas isso você não pode aniquilar, dizer que está no fim ou que vai acabar um dia. Isso é pura ficção, isso é um falso problema, é uma bobagem, assim como se perguntar pelo futuro da revolução. É uma postura absolutamente reacionária aqueles que acreditam que a revolução tem futuro; quando você liga a revolução ao futuro, você perde o devir e você é nostálgico em relação ao passado: “ah, o passado foi melhor” e “o futuro ainda virá”. Você está na memória e no projeto e perdeu o devir.

A mesma coisa a mulher, devir mulher: a mulher precisa entrar no seu próprio devir. Devir negro: não é buscar a identidade do movimento negro, não é buscar a identidade da mulher e das feministas. Devir criança: fazer como a criança faz. Devir animal: imitar o macaco. Isso é uma macaquice estúpida. Na verdade, há um devir macaco do homem e há um devir homem do macaco, há um devir cachorro do homem e há um devir homem do cachorro, porque o encontro é uma superfície que gera uma evolução a-paralela. O encontro com um gato faz com que os afetos em relação ao gato não me liguem a aquele objeto, a aquele indivíduo que é o gato, mas exatamente me desviem para elementos que se mantêm à distância ou que são a própria distância do encontro e fazem com que eu evolua de forma absolutamente diferente da evolução do próprio gato. O devir humano do gato é radicalmente diferente do devir gato do homem.

Então é assim que temos que fazer em relação à mulher, em relação ao negro, em relação aos devires minoritários, numa palavra. Devires minoritários porque são devires que não se submetem à forma; não há forma que não seja majoritária: a maioria é sempre uma forma; e a maioria, no fundo, não é ninguém. É por isso que o povo, a coletividade, é um ninguém; e a forma é o poder. Essa forma está investida em poder. E é por isso que em nome da forma se exerce o poder. E a forma, diria Deleuze, tem um modelo: o modelo europeu do homem adulto, macho, branco, heterossexual, moral, sujeito legislador, etc. Fora dessa forma, que é a maioria, tem a minoria – e a minoria tem que se adequar à maioria. É por isso que os devires minoritários são a traição dessa forma que submete a vida e o desejo.

Mas os devires minoritários só encontram a linha de fuga mesmo enquanto uma linha de vida, absoluta, de pura afirmação da vida, quando se tornam imperceptíveis. Devir minoritário tem que virar devir imperceptível, sair da zona do reconhecimento, encontrar um segredo – que é o segredo do nômade -, sair do público, que é o público sempre de Estado, público privado. E até inventar máquinas como, por exemplo, Proust inventa: quanto mais próximo, mais intocável você está. Uma máquina paradoxal que Proust inventa. Ele se torna invisível quanto mais ele se mostra e é isso que dizem Deleuze e Guattari no início dos Mil platôs: ainda usamos o nosso nome como se diz o sol se levanta, como uma maneira de dizer; ou então como uma forma melhor de nos escondermos ou de esconder o nosso próprio nome próprio. O nome próprio é nome sempre de intensidade, é nome de bloco de intensidade; o nome próprio nunca é um nome genérico, nunca um substantivo que se adequa a uma linguagem maior, a uma língua oficial; o nome próprio está ligado a uma língua menor, a uma língua estrangeira, a uma linha de fuga na própria língua ou na máquina de expressão que precipita o desejo e as intensidades.

  • Participante: é como se dissesse assim: eu só uso esse nome para vocês identificarem que é essa força que fala e poderem comprar esse livro, porque na verdade eu não preciso dessa porra.

É uma máscara para se esconder, mesmo, você se esconde atrás do nome. Quem é Gilles Deleuze?

Aí vem Klossowski, que se esconde atrás do bigode de Nietzsche que, por sua vez, vai achar um etrusco, um templário, e por aí vai. Uma caverna atrás de outra, e atrás de outra, e atrás de outra. Uma máscara atrás de outra, um rosto atrás de outro, um enunciado atrás de outro. Ou seja, são dobras do ser, memórias ontológicas, planos de consistência, portas de entradas e saídas.

  • Participante: por que a necessidade de ficar invisível? Por causa da destruição do devir?

Isso é a máquina de guerra que mantém a vida sempre livre das estrias do poder, das pinças do poder. O poder te pinça e ele pinça sempre por uma forma de conteúdo ou de expressão, na língua oficial ou no modo de se comportar civilizado. Então ao te pinçar, ele pinça sempre por uma publicidade, por uma forma de se mostrar; você se mostra, você se torna orgânico no corpo, você se torna formal no saber do discurso, você tem um discurso articulado com substantivo, verbo e objeto, por exemplo. Você tem aqueles elementos que manifestam o sujeito, você tem os elementos que designam o mundo – o isto e o aquilo – e você tem os elementos que significam a relação entre o eu e o isto, o eu e o mundo, que seria uma forma Deus ou a forma da significação, a forma da estrutura. Então essas formas é que nos fazem presas fáceis. Como ser imperceptível? Você pode até habitar essas máscaras, você pode dizer “sim, eu tenho um eu, eu vejo o mundo e eu significo a relação dos dois, eu sou um homem normal, um homem de juízo, um homem de bem”. Não tem problema. É isso que Masoch faz com a lei.

  • Participante: isso que seria a prudência?

Também. Acontece que no fundo se você é intensivo, você encontra no código – que é a forma de conteúdo, que é o jeito de se comportar – e na forma de expressão, que é o modo de saber, de pensar e de falar, você encontra no código um território que é necessário ao alojamento do código. O código pinça um território, ele aprisiona um território, ele dá limites, ele põe cercas. É por isso que é sedentário, é um pensamento de propriedades, você tem que romper com as propriedades. É quebrar os códigos. Aí você não tem mais aquele território como propriedade daquele código – nem como sujeito nem como objeto. Você racha as coisas e racha as palavras, você quebra e fica tudo bloco de relações.

  • Participante: mas aí tem uma coisa muito sutil, porque não é só uma atitude de rebeldia. Você pode ter uma atitude de rebeldia apenas como ato da tua máscara, mas o fato é deslocar-se da máscara para poder escolher que máscara você quer usar, em que momento você quer usar. No momento em que a máscara se descola, você se percebe força. E quando você se percebe força, qualquer máscara pode ser usada. Mas quando é só atitude de rebeldia…

Eu acho que é a mesma atitude você escolher a máscara ou estar na atitude de rebeldia, porque no fundo não tem escolha, você não escolhe. Quanto mais você está colado, mais você pode se mostrar e ser imperceptível, mais se você se torna implacável. Não tem como te negar, não tem como te julgar; por mais que te julguem, você escapa.

  • Participante: mas tem um duplo sentido nesse “colado na máscara”.
  • Participante: eu falei esse “colado na máscara” você para você. Porque uma coisa é quando você se confunde na forma e você pensa que o que você é, é a forma. Outra coisa é quando você não se confunde com a forma e você é capaz de olhar qual forma quer habitar.

A arte do ator. Aí você tem que subdividir o instante. É a questão do instante sem espessura. Não dar profundidade a ele, porque é na profundidade que o poder te pega. Você vai deslizar na superfície e não deixar que a máscara se cole em você. É a arte do tempo, o segredo está no tempo – é aí que você encontra a afirmação.

  • Participante: mas para isso eu tenho que perceber que eu sou independente dessa forma.
  • Participante: mas esse que fica olhando para a forma, desse jeito ele é quase uma forma, tão descolado da máscara. Quem é essa figura, também?

Quando você diz “eu tenho que perceber”, já é o desejo, já é a intensidade. Mas aí existe um elemento. Nietzsche diz: ame o distante, não o próximo, ame a distância. A distância é exatamente a afirmação da intensidade, é o que não deixa a máscara se fundir com a força. A distância é essa tensão e intensidade ao mesmo tempo, e não essa extensão flácida: “estendeu tudo” e se entrega. Não, há uma tensão e tem que afirmar a tensão; isso é que é afirmar a diferença. Afirmar a diferença é manter a superfície sempre lisa. E para manter essa tensão ou esse tensor ou esses traços diagramáticos de desejo e de expressão, você tem que ser capaz de esquecer na superfície, ou eliminar a marcas de superfície. Não deixar que o encontro seja figurativo ou gere um contorno – a captura está na figuração ou no contorno.

Às vezes nem chega a formar uma figura, mas gera um contorno. Então é não deixar a linha entrar num contorno. É aí que você está habitando uma linha nômade, um labirinto, e que é necessariamente tortuoso porque ele sempre se desvia das figuras.

  • Participante: e aí a importância da distância.

Perfeito.

  • Participante: distância como possibilidade de essa coisa ter todo o fluxo possível.

É por isso que quanto mais consistência ou dobras você faz, mais você aumenta a potência de modificar e ser modificado e não ser destruído. Porque você aumenta as distâncias. E as distâncias não são uma covardia, são modos de intensificar o desejo e de multiplicar as suas modificações; quanto mais eu modifico, mais eu sou capaz de ser modificado e vice-versa, de modificar. É afirmação no jogo, a dupla afirmação no retorno que te devolve o jogo. Os dois tempos da afirmação: é o ser do devir e o retorno do devir e do próprio ser – o ser do devir já enquanto consistência. O ser do devir é a própria consistência, é a repetição da diferença. Mas a diferença vem mais forte e é isso que é o plano de consistência.

Gerar um plano de consistência seletivo é isso, ele é necessariamente seletivo porque ele faz com que só passe o que se afirma e o que se conecta; não passa o que congela, o que te marca, o que te rouba a superfície, o que te rouba o território. Ele, na verdade, é o que Espinosa chama de natureza naturante, o que Deleuze chama de a desterritorialização absoluta; é a natureza naturante, é a terra.

A terra não se opõe à desterritorialização, a terra é a desterritorializante; a terra é, como diz Nietzsche, a Leve, ela quer se tornar leve; essa é a vontade da terra, esse é o sentido da terra. E desterritorializar é isso, é entrar em devir – cósmico e molecular ao mesmo tempo. É desestratificar, é sair do estrato inorgânico das moléculas ou da física e da química e entrar no submolecular, é sair do estrato orgânico da vida e sair do estrato antropomórfico do homem. É ultrapassar esses três estratos, atingir o cósmico e o submolecular. É isso que é a desterritorialização e a liberação da vida: é montar numa linha de vida ou na linha mais vital com intensidade absoluta. Então é uma máquina abstrata que te abre para o Fora e você só cria, só inventa, só entra em devir, só é livre se você reencontra o Fora. É por isso que Nietzsche quer arrancar o pensamento da interioridade, porque a interioridade necessariamente é a forma de um Estado.

E nós temos, hoje em dia, dois regimes de signos. O que é o regime de signos? O regime de signos é a forma que o território expressivo toma. O Estado inventou dois regimes de signos ou duas formas de expressão: o regime de signos significante, que é o paranoico-interpretativo, e o regime de signos passional – exemplo: judeus fugindo do Egito. A arca é o regime passional, o faraó é o regime significante ou paranoico. Mas o passional reencontra o paranoico: Israel hoje, como Estado sionista, é o protótipo do Estado paranoico. Não há Estado que não seja paranoico e neurótico ao mesmo tempo; ou então, legislador como formas passionais e reivindicativas, a forma do direito, dos direitos humanos; e impositor, com a forma significante e despótica.

Então nós temos esses regimes de signos que geraram a interioridade, introjetados agora como uma interioridade subjetiva. Porque o Estado despótico gera uma interioridade no interior do Estado – o Estado romano, por exemplo: ele tem lá as suas fronteiras, os seus limites, mas mesmo essa exterioridade espacial é o interior do Estado. Mas na subjetividade moderna e capitalística este Estado está dentro de nós; o Édipo é expressão disso. O Édipo enquanto parricida e incestuoso é o Édipo paranoico, é o Édipo psicótico, é o Édipo significante; o Édipo como neurótico ou já complexo superado, civilizado, é o Édipo legislador, é a lei, é a forma passional e reivindicativa. Então quando dizemos “eu”, essas duas cabeças do Estado estão no nosso sujeito de enunciação e no nosso sujeito de enunciado, na nossa formatação linguística, nas nossas formas de expressão, na nossa máquina de expressão assujeitada. Então nós temos que liberar a máquina de expressão em nós e criar uma linguagem menor, uma literatura menor, uma máquina de expressão, enfim, que liberte a linguagem. Deleuze diz: é ser estrangeiro na sua própria língua ou encontrar a gagueira da própria linguagem – não a gagueira da fala, a gagueira da própria linguagem; a linguagem tem que gaguejar, é fazer a linguagem gaguejar.

Encontrar os seus tensores, os seus limiares, e romper com as formas.

Então você só reencontra a exterioridade e o Fora quando você começa a destituir o Estado em você; e o Estado em você é o seu organismo e a sua linguagem. É isso que tem que ser desconstruído. Esse é o combate entre. É o combate contra em você mesmo – contra a tua forma de expressão, contra a tua forma de conteúdo -, e o combate entre é entrar em experimentação, experimentar. Fazer de si uma máquina de guerra ou uma obra de arte, que é a mesma coisa; como diria Foucault, estilizar a existência, fazer de si uma obra de arte ou uma máquina de guerra. A máquina de guerra inteiramente do lado da vida e não da violência e da morte, como é uma máquina de guerra aprisionada pelo Estado.

Estado sim faz uma máquina de guerra, um exército, e aí a máquina de guerra vira sinônimo de morte, de aniquilamento, de negação, de violência, etc. A máquina de guerra nômade é sempre afirmativa, é sempre lúdica, é sempre dinâmica, é sempre expansiva, é sempre generosa – ela não mata, ela gera vida.

  • Participante: então é máquina de vida.

Aí é questão de palavras.

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